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A RELAÇÃO DIREÇÕES CARDEAIS-ESQUEMA CORPORAL NO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E AFIRMATIVA

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Academic year: 2022

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A RELAÇÃO DIREÇÕES CARDEAIS-ESQUEMA CORPORAL NO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E AFIRMATIVA

Sérgio Luiz Miranda Universidade Federal de Uberlândia selumi@uol.com.br

1. Introdução

Este trabalho resulta de uma questão que surgiu na prática em sala de aula, depois compartilhada com um grupo de colegas professores, e que diz respeito a um procedimento clássico no ensino de geografia, geralmente situado no currículo escolar entre a terceira e a quinta séries do ensino fundamental, que consiste em se colocar ou se imaginar com o lado direito do corpo voltado para a direção em que o sol nasce para se identificar as direções cardeais no lugar: esse procedimento é ou não correto, adequado, pertinente, válido ou necessário e por quê?

No percurso realizado para o tratamento dessa questão, a análise de publicações didáticas e da literatura especializada voltadas para o ensino de geografia revelou posicionamentos divergentes e mesmo contraditórios, explícitos ou não, ainda que sob os mesmos referenciais teórico-metodológicos, acerca das direções cardeais no ensino relacionando-as com as direções definidas a partir do esquema corporal, referidas aqui como direções corporais, ou seja, frente, atrás, direita, esquerda, especialmente, e em cima e embaixo.

Tanto os conteúdos do ensino que a questão envolve e as formas como são abordados em alguns livros didáticos bem como as orientações teórico-metodológicas propostas para o ensino de geografia em algumas publicações dirigidas aos professores, parecem indicar uma indefinição ou incerteza quanto à pertinência ou adequação, à validade ou mesmo à necessidade de se ensinar e aprender a determinação das direções cardeais no lugar através das direções corporais, ou seja, utilizando o próprio corpo como instrumento. Essa situação de incerteza, indefinição ou apenas de divergências não explicitadas e que podem, portanto não chegar às consciências, pode repercutir na produção do conhecimento tanto na formação inicial de professores, através da bibliografia utilizada nos cursos de licenciatura, quanto no trabalho pedagógico dos professores em sala de aula, através daquela formação inicial e também dos livros didáticos utilizados nas escolas. A identificação dessa situação esboçada na literatura já nos indica a necessidade de um tratamento sistemático da questão que ao menos a

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explicite e traga argumentos para instaurar e alimentar um debate, fundamentar e nortear uma reflexão e, quiçá, que possam proporcionar subsídios para o esclarecimento da questão e apontar possíveis encaminhamentos para a mesma. É essa a intenção nesse trabalho, buscando contribuir para a reflexão teórico-metodológica sobre os conteúdos e as práticas no currículo da geografia escolar e, mais especificamente, com subsídios que possam balizar o tratamento desse conteúdo específico do ensino tanto na prática dos professores de geografia e daqueles que atuam nas séries iniciais do ensino fundamental quanto daqueles que trabalham na formação desses professores, sobretudo nos cursos de licenciatura em geografia e pedagogia.

2. Primeiras considerações e outras questões decorrentes

Quando falamos em encontrar as direções norte, sul, leste e oeste no lugar onde estamos, quem já concluiu os estudos como aluno na escola básica certamente deve lembrar-se daquele procedimento tratado nas aulas de geografia, ilustrado nos livros didáticos quase sempre através da figura de uma criança em pé, com os braços abertos, estendidos para cada lado do corpo e paralelos ao chão, a mão direita na direção em que o sol aparece nascendo no horizonte, com os pés no centro de uma cruz ou uma rosa- dos-ventos traçada no chão com a indicação das quatro direções cardeais coincidindo com quatro direções definidas pelos lados do corpo, respectivamente, frente-atrás- direita-esquerda com norte-sul-leste-oeste (figura 1).

Podemos dizer que esse procedimento clássico para se orientar espacialmente através das direções cardeais integra a vulgata da Geografia Escolar brasileira, ou seja,

Figura 1 – Ilustração clássica em livros didáticos mostrando como encontrar as direções cardeais no lugar a partir da direção em que o sol nasce e das direções definidas pelo próprio corpo. (Fonte: Mirabelli e Yonemoto, 1984, p. 70).

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o conjunto daqueles conteúdos de ensino que a caracterizam, a identificam e a distinguem dentre as disciplinas escolares.

Tendo também, quando aluno, aprendido na escola aquele procedimento, a questão sobre sua adequação ou não só começou a se esboçar para mim quando iniciei a docência como professor de geografia na escola fundamental e comecei a utilizar em meu trabalho a coleção didática de Almeida, Sanchez e Picarelli (1995).

No primeiro volume da coleção citada, a determinação das direções leste e oeste no lugar é feita através da observação do movimento aparente do sol e do registro das sombras durante o dia em um gnomom ou “relógio de sol” para, depois, relacionar essas observações com o traçado dos paralelos e meridianos e o movimento de rotação da Terra em outras atividades com o globo terrestre, só aí introduzindo as direções norte e sul. No “Manual do professor” (p. 3), encartado no mesmo volume 1 da coleção, os autores colocam que com as atividades propostas, paralelamente, “são construídas as coordenadas geográficas, iniciando com a transferência das coordenadas do esquema corporal para a esfera terrestre, evitando que haja uma identificação errônea entre elas”.

Para se identificar as direções norte e sul no local, propõem que se coloque sob a base da estaca do “relógio de sol” uma cruzeta ou rosa-dos-ventos com o leste apontando para a direção em que o sol nasce e que já se identificou antes. Em outra publicação, dirigida a professores, apoiada principalmente nos estudos de Piaget e Inhelder (1993), Almeida explicita melhor os fundamentos dessa proposta:

Assim, determinam-se as direções leste-oeste e norte-sul a partir de seu verdadeiro referencial, que é o movimento aparente do Sol, sem confusão com direita-esquerda e frente-atrás.

É bom esclarecer que o uso do corpo do aluno como referencial para determinar as direções geográficas poderá levá-lo a idéias equivocadas, como achar que o leste está sempre à direita, sem observar a trajetória do Sol. As relações espaciais devem descentrar-se dos referenciais do esquema corporal, por isso o uso dos lados direito e esquerdo do corpo associados à direção leste-oeste não parece adequado. A direção leste- oeste decorre do movimento de rotação da Terra e de sua posição em relação ao Sol e nada tem a ver com os lados do corpo humano.

(ALMEIDA, 2001, p. 54).

Para a autora, a relação entre os referenciais do esquema corporal e as direções geográficas é o estabelecimento de outros sistemas de referência, com o das direções geográficas, a partir daquele definido pelo esquema corporal. “Do ponto de vista

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cognitivo, a criança precisa ‘se ver’ sobre a superfície da Terra e coordenar seus referenciais corporais com os referenciais terrestres” (ALMEIDA, 2001, p. 54).

As duas publicações citadas estão, sem dúvida, entre as mais bem elaboradas e fundamentadas na área e constituem importantes referências para o ensino, com propostas de atividades bem estruturadas, com objetivos e conteúdos bem delimitados, seqüenciados e articulados coerentemente. Proporcionaram contribuição significativa para minha formação docente e meu trabalho pedagógico com os alunos na escola.

Na experiência em sala de aula, de fato, muitas vezes encontrei alunos que respondiam que o leste fica à direita, o norte à frente, etc., e quando pedia para indicar qual era a direção leste na sala de aula, apontavam para a sua direita, independente da posição do corpo no espaço em relação ao movimento aparente do Sol no céu do lugar.

Essa constatação em aula levou-me, a princípio, a abandonar o ensino daquele procedimento, aceitando o argumento de sua inadequação pela confusão que pode gerar com sua in-compreensão pelos alunos. Mas ainda não tinha convicção de que era mesmo preciso ou melhor abandonar aquele procedimento clássico, entendendo que os outros propostos são insuficientes para resolver o problema elementar de se posicionar corretamente um mapa, orientar-se por ele, indicar uma direção ou dar uma localização geográfica quando não se trata de uma situação didática planejada para aula.

Como encontrar as direções cardeais no lugar quando não temos à mão rosa-dos- ventos, bússola ou mapa em escala grande que traga indicação das direções cardeais ou alguns pontos de referência que possamos observar e identificar na paisagem para posicionar/orientar corretamente o mapa e, através dele, achar aquelas direções no local? Se nas situações didáticas podemos dar aos alunos ou pedir que confeccionem uma cruzeta com as direções cardeais e que a tragam em nossas aulas, ninguém, supõe- se, carrega sempre consigo uma cruzeta ou uma bússola para quando precisar e, ainda, os mapas nem sempre trazem a indicação das quatro direções cardeais, o que é mais comum apenas nos mapas para fins didáticos, mas, mesmo nesses, a inclusão da rosa dos ventos não é a regra.

A maioria dos mapas, mesmo nos atlas escolares e livros didáticos, geralmente trazem somente a indicação gráfica do norte por uma seta, mas também podem não trazer nem essa indicação e seguir apenas a convenção pela qual o norte no mapa corresponde com parte superior da folha, como no atlas geográfico escolar do IBGE (2002). Nesses casos, como podemos determinar as demais direções cardeais no mapa?

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saber, a partir disso, qual é o leste e qual é o oeste? Nessas situações, que são as mais comuns quando precisamos determinar as direções cardeais no lugar onde estamos ou na maioria dos mapas que usamos, nos parece que saber em que direção o sol nasce nesse lugar, que esta é aproximadamente o leste e posicionar-se ou imaginar-se com o lado direito do corpo nessa direção para identificar o norte à frente, o sul atrás, e o oeste à esquerda, pode ser um procedimento ainda útil e necessário. E também para a leitura e utilização dos mapas, sabendo que se o norte no mapa estiver para frente em relação ao nosso corpo, o leste, o oeste e o sul no mapa ficam, respectivamente, para a direita, para a esquerda e para trás, independente dessas direções no lugar.

No desenvolvimento de uma pesquisa sobre saberes e práticas docentes no ensino do espaço local com atlas escolares municipais, realizada entre 2002 e 2004 na Unesp de Rio Claro, do qual participei como professor de Geografia da Educação Básica e cujo grupo era composto ainda por outros professores que também atuavam em escolas públicas, por alunos da licenciatura e acadêmicos da universidade, a questão da adequação ou não do emprego do corpo como instrumento para identificar as direções cardeais no lugar surgiu na discussão de atividades de iniciação cartográfica para classes de séries iniciais do ensino fundamental. O planejamento de tais atividades tinha como principal referência a proposta de Almeida (2001) e Almeida, Sanchez e Picarelli (1995), e as professoras que atuavam nas séries iniciais queriam compreender porque era inadequado o modo como aprenderam, que ainda estava nos livros didáticos e que continuavam ensinando, e de que outro modo poderiam ou deveriam então ensinar.

Uma outra proposta apresentada no grupo foi a de se empregar a rosa-dos-ventos posicionando-a com o leste voltado para a direção em que o Sol nasce e deixar que o modo como cada aluno fosse relacionar as direções cardeais com os referenciais de orientação espacial do próprio corpo fosse definido pessoalmente, por cada aluno.

Poderíamos deixar por conta dos alunos, cada qual a seu modo, o relacionamento entre as direções cardeais e aquelas definidas a partir do próprio corpo para se orientar geograficamente no espaço? O relacionamento entre as direções definidas pelos dois sistemas de orientação espacial, o do esquema corporal e o do movimento de rotação da Terra, e a coordenação dos mesmos seria uma questão meramente individual, dependente apenas da preferência ou da capacidade de cada sujeito e sem implicações epistemológicas fora da subjetividade de cada um? Aquela associação entre direções cardeais e as corporais seria só uma tradição restrita ao âmbito

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da geografia escolar e que se mantém apenas pela sua vulgata, entendida como algo estático, que não comporta mudança, movimento?

A reflexão sobre as questões suscitadas, algumas situações vivenciadas na experiência em sala de aula e a possibilidade de compartilhá-las com outros colegas em um grupo de pesquisa me levaram a começar sistematizar algumas idéias em torno do problema levantado em um texto produzido como parte do trabalho desenvolvido com aquele grupo e de circulação restrita ao mesmo (MIRANDA, 2004).

Durante outra pesquisa, realizada para tese de doutorado, trabalhando com uma colega professora e seus alunos de terceira série do ensino fundamental, no livro que utilizava com a turma (LUCENA et alii, 2001) chamou-me a atenção a ausência daquele procedimento clássico para se encontrar as direções cardeais no local utilizando o corpo como instrumento, abordando esse conteúdo de orientação espacial de modo semelhante ao proposto por Almeida (2001) e Almeida, Sanchez e Picarelli (1995).

Essa constatação no livro didático durante a pesquisa para a tese, na qual apenas registrei em uma nota de rodapé (MIRANDA, 2005, p. 102) o que vinha pensando sobre o assunto, parecia indicar uma tendência a se considerar mesmo inadequado aquele procedimento, o que, no entanto, não se confirmou pela análise de outras coleções didáticas e publicações específicas para professores, o que possibilitou redimensionar e compreender melhor o problema. Na literatura, podemos identificar posicionamentos distintos, divergentes e mesmo contraditórios sobre a questão.

Das treze coleções didáticas consultadas – de autores, editoras e datas de edição diferentes, destinadas, dentre as que trazem essa indicação, para terceira e quinta séries do ensino fundamental – as que apresentam o procedimento para identificação das direções cardeais no lugar posicionando-se com o lado direito do corpo para a direção em que o sol nasce, geralmente com ilustração desse procedimento, são as de: Adas (1994), Azevedo (1995), Ferreira (2000), Lucci (2000), Marote (1993), Mirabelli e Yonemoto (1984), Simielli (1993) e Vesentini e Vlach (2000). Outras duas coleções, as de Boligian et alii (2001) e de Pereira, Santos e Carvalho (1997), se referem à orientação pelos astros e à possibilidade de se identificar no local as direções cardeais a partir dos pontos em que o Sol nasce e se põe no horizonte, mas não esclarecem como proceder para se determinar as direções norte e sul e sem fazer referência às direções corporais para isso. Já a proposta de Moreira e Sene (2006), ilustrada com uma foto de alguém na praia, de frente para o Sol baixo sobre o mar e com as mãos espalmadas e

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E se você não tiver uma bússola? Como poderá localizar os pontos cardeais e colaterais, mesmo que de forma aproximada? Fique de frente para o Sol nascente, junte as mãos espalmadas, depois aponte para ele, como se estivesse fazendo mira, e você encontrará o leste; às suas costas, para onde aponta sua sombra, estará a direção oeste, que é onde o Sol se põe. Em seguida, abra os braços em forma de cruz, sua mão esquerda apontará para o norte e a direita, para o sul. (MOREIRA e SENE, 2006, p. 51)

As outras duas coleções didáticas consultadas são as de Almeida, Sanchez e Picarelli (1995) e a de Lucena et alii (2001) que, como já dito, propõem outro procedimento para a determinação das direções cardeais no local.

Em três publicações dirigidas a professores, com orientações teórico- metodológicas e propostas de atividades para se desenvolver em aula, também aparecem divergências, explícitas ou não, maiores ou menores, em relação à determinação das direções cardeais no local coordenando-as com as do esquema corporal, embora os autores apresentem a mesma argumentação teórica dos estudos piagetianos sobre a estruturação do espaço e a construção das noções topológicas, projetivas e euclidianas pela criança (PIAGET e INHELDER, 1993). Como vimos, Almeida (2001) nega aquele procedimento no ensino. Já Antunes, Menandro e Paganelli (1999) propõem a atividade para ser desenvolvida com os alunos nas séries iniciais do ensino fundamental e, no texto de fundamentação e orientação teórico-metodológica, após descreverem as três fases do desenvolvimento da construção das noções projetivas de direita e esquerda pela coordenação das perspectivas em relação ao próprio corpo e aos objetos no espaço, afirmam em relação às direções cardeais que:

Se a criança passa pelas três fases descritas anteriormente, ao dar a posição dos objetos, ela está dando os passos que vão permitir-lhe entender as direções cardeais (Norte, Sul, Leste e Oeste). Na verdade, o que a criança vai conseguir é transpor a orientação corporal para a orientação através das direções cardeais.

Esse tipo de orientação se inicia pela identificação dessas direções no espaço concreto. Por exemplo: no pátio da escola, a criança identifica com o braço direito o nascente (o Leste), com o braço esquerdo o poente (o Oeste), à sua frente localiza o Norte, e, às costas, o Sul.

As direções cardeais deverão ser aplicadas em várias situações concretas: primeiro, em trajetos, por exemplo, e depois nas representações gráficas, nas plantas e nos mapas. (ANTUNES, MENANDRO e PAGANELLI, 1999, p. 52-53)

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Em outra publicação (SCHAFFER et alii, 2003), voltada para práticas com o globo terrestre em aula, os autores, tratando da orientação espacial, não se referem ao emprego do corpo como instrumento para se determinar as direções cardeais no lugar, mas relacionam os lados direito e esquerdo e as partes de cima e de baixo do corpo com os hemisférios do globo terrestre e, logo, das direções corporais com as direções cardeais, a partir e através de uma “hemisferização” do corpo, ilustrada com a figura 2.

Para a construção da noção de localização projetiva, o ponto de partida é o próprio corpo a partir do qual se marca uma hemisferização. Com a construção da hemisferização corporal, o ser humano está elaborando as primeiras noções para a compreensão das relações norte-sul e leste- oeste, num espaço de três dimensões, como num globo. [...]

O trabalho com as direções norte-sul e leste-oeste deve partir de diferentes situações concretas. É importante que se transponha a orientação corporal, dada por exercícios de hemisferização, para a orientação através do traçado das coordenadas geográficas.

Nos globos terrestres, o eixo norte-sul da Terra, cuja inclinação sobre a órbita é de 23o27’, está, via de regra, fixo. Isso acaba fortalecendo a idéia de que o norte está em cima e o sul embaixo. (SCHAFFER et alii, 2003, p. 71 e 73)

Essa idéia equivocada de que o norte é ou está em cima e o sul embaixo pode se dar também pelo uso comum de mapas colocados na vertical, como na lousa e nas paredes da sala de aula ou na TV e no monitor de vídeo do computador. Mas, mesmo com o mapa colocado na horizontal, essa idéia pode se originar ainda pela orientação convencional dos mapas com o norte correspondendo à parte superior do suporte que, no uso convencional da folha de papel, corresponde a para cima e, a parte inferior, para baixo, como empregamos essas direções na folha quando desenhamos. Portanto, relacionar os hemisférios do globo com lados e partes do corpo, como aparece na figura

Figura 2 – “Hemisferização corporal” (Fonte: SCHAFFER et alii, 2003, p. 71).

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2, só pode reforçar aquela associação rígida e equivocada com norte-sul e em cima- embaixo e também entre direita-esquerda com leste-oeste, como se os hemisférios do globo e as direções cardeais existissem ou fossem definidas no próprio corpo, contribuindo para uma “incorporação” das direções geográficas pelo aluno. Enquanto que para Almeida (2001) o problema parece ser o aluno, em decorrência do seu egocentrismo, poder estender as direções do corpo para a Terra, como que tomando-a com o corpo e ocupando o leste com sua direita, o norte com sua frente, etc., em Schaffer et alii (2003) parece que ocorreria o contrário, isto é, os hemisférios da Terra é que seriam trazidos do globo para o corpo, substituindo seu lado direito pelo leste, a parte de cima do corpo pelo hemisfério norte, etc., e não haveria problema nisso.

Nessas abordagens da questão, aparecem, de um lado, as idéias de transferência (ANTUNES, MENANDRO e PAGANELLI, 1999) ou de transposição (SCHAFFER et alii, 2003) do sistema de coordenadas do esquema corporal para o das direções cardeais e, de outro lado, a idéia de coordenação entre os referenciais corporais com os referencias terrestres, mas sem fazê-la para identificar as direções cardeais no local ou nos mapas (ALMEIDA, 2001).

Se tomarmos a mesma teoria que fundamenta essas idéias sobre a orientação espacial, é preciso lembrar que para Piaget a coordenação de conjuntos de relações espaciais é uma das últimas e mais importantes conquistas do desenvolvimento cognitivo quando, a partir da coordenação de um determinado conjunto de relações formando um sistema e a coordenação de um outro conjunto de relações em um outro sistema, se torna possível coordenar um conjunto com outro, o que Piaget e Inhelder (1993) chamam de coordenação de conjuntos. No caso da representação do espaço, é o que ocorre quando se é capaz de coordenar as relações projetivas (como as relações de direita-esquerda-frente-atrás e as perspectivas espaciais em um grupo de objetos observados de diferentes pontos de vista) com as relações euclidianas (como as distâncias e ângulos entre as posições fixas dos mesmos objetos, que permanecem, apesar de mudarem as formas projetivas como são vistos os objetos e as relações de direita-esquerda-frente-atrás entre os mesmos quando se muda o ponto de vista, por exemplo, quando vistos de cima, de um lado e de outro). Assim, segundo essa teoria, é possível e seria mesmo desejável ou recomendável relacionar o sistema de orientação espacial pelas direções corporais com aquele das direções cardeais definido na Terra pelo seu movimento de rotação.

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Mas, para isso, o encaminhamento mais adequado e coerente do ensino não seria evitar ou negar o relacionamento entre as direções corporais e as cardeais, e tampouco apenas transferir ou transpor umas para outras, mas ao contrário, seria explicitar como podem ser coordenadas entre si para que os alunos compreendam e aprendam, entre outras coisas, que: o leste não é a sua direita ou que a parte de cima do seu corpo não é o norte, etc.; direita-esquerda e frente-atrás são dois eixos de direções opostas definidos a partir do próprio corpo e constituem um sistema de coordenadas; norte-sul e leste-oeste também são dois eixos de direções opostas formando também um sistema de coordenadas, mas definidas na Terra pelo seu movimento de rotação; sabendo isso e fazendo coincidir a direita com o leste, logicamente, à esquerda estará o oeste, e que nessa situação o norte coincide com a frente e sul com atrás; então, coordenando assim os eixos de coordenadas, pode se determinar direções em um sistema também a partir do outro, correlacionando direções em um e em outro. E a isso se acrescenta ainda um terceiro eixo, a vertical, que define as direções para cima e para baixo na superfície terrestre pela gravidade da Terra. Quando se coloca com o corpo em outra posição em relação ao Sol no céu do lugar, por exemplo, de frente para o nascente, direita-esquerda- frente-atrás não mudam no próprio corpo e, portanto, permanecem as mesmas relações entre elas, assim como leste-oeste-norte-sul não mudam no lugar ou na superfície terrestre porque se virou com o corpo para outra direção, ou, nesse exemplo, o Sol passaria a nascer à direita do sujeito, ou seja, no sul, porque se colocou com a sua direita nessa direção?

Será que isso é tão difícil, incompreensível ou inalcançável para as crianças em idade escolar, para nossos alunos? Talvez seja, ou pelos menos demorem a descobrir e compreender, se esperarmos que eles aprendam sozinhos e espontaneamente. Sozinhos, poderão chegar a idéias equivocadas, ou erradas mesmo, e continuar com elas, como achar que o leste é a sua direita e não que o leste só está à sua direita quando se coloca com o lado direito do corpo na direção em que o Sol nasce. Espontaneamente, provavelmente nem venham a pensar sobre isso, e a não saber; ou então poderão empregar as direções corporais de outras formas para se identificar as direções cardeais no lugar como, por exemplo, ficando de frente para o nascente para encontrar à direita o sul e à esquerda, o norte, ou qualquer outra forma, o que não teria importância, como naquelas duas propostas comentadas antes. Mas, relacionar e coordenar as direções corporais e as cardeais tem um porque histórico e continua sendo necessário saber.

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