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A raça é importante na educação psicanalítica

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Academic year: 2022

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A raça é importante na educação psicanalítica

Dionne R. Powell, M.D.

O trauma racial, a discriminação e o preconceito contam com a cumplicidade do silêncio. O silêncio das pessoas brancas que pretendem ser liberais apoia os defensores do racismo explícito. Na verdade, é obrigatório para que o racismo oprima a sociedade. Ocorre o mesmo na dissociação que minimiza o trauma racial. Assim, ao se tratar de educação psicanalítica, precisamos continuar

adentrando o ‘problema bom’ de John Lewis, a partir de um ponto de vista dinâmico.

Consequentemente, a partir do início de qualquer diálogo psicoterapêutico em que se possam apresentar questões de raça e racismo, uma resistência primária a superar é a relutância a falar francamente acerca de questões de preconceito, raça e racismo. O simples fato de se envolver na discussão franca a respeito de preconceito e discriminação interfere na capacidade de perpetuar o trauma racial, assim como falar acerca de qualquer forma de trauma ameaça destruir o espaço mental que esse trauma ocupa.

Estará a psicanálise ‘morrendo de branquitude’, com a repulsa a adotar a rica tapeçaria da sociedade, que repele em lugar de atrair a próxima geração de psicanalistas (Metz, 2019)? Quer consideremos raça, religião, gênero, sexualidade, classe ou capacidade, a psicanálise norte-

americana não cumpriu sua missão de refletir a sociedade em geral, em termos de nossas bolsas de estudos e de quem ensinamos e formamos.

As pandemias de racismo e Covid-19 do ano passado resultaram na explosão de exigências de justiça social. Na medida em que pessoas negras ou pardas foram abatidas em números

exponenciais por um vírus invisível, também foram publicamente baleadas, mortas ou

sufocadas/linchadas com joelhos no pescoço. Pessoas pardas e negras procuraram e continuam procurando tratamentos de saúde mental em números recordes. No entanto, assim como com a Covid-19, nós, psicanalistas, não estamos preparados, temos ficado muito tempo em nossas torres, longe da comunidade, com medo da diversidade, com medo de encarar a branquitude de frente (Powell, 2018) [1].

A escravidão, a raça e o racismo deixaram marcas indeléveis no inconsciente norte-americano e buscam constantemente uma plataforma narrativa para a hierarquia e superioridade racial. Algo não menos verdadeiro no cenário clínico psicanalítico, embora na maioria das vezes negado e

minimizado, independentemente da composição racial ou cultural do par em tratamento. A compreensão de como se molda a raça na mente do clínico é fundamental para maximizar as capacidades clínicas, de ensino e supervisão. As diferenças raciais recebem seu significado na infância, muitas vezes como momento traumatizante ou confuso no desenvolvimento. Considere-se o seguinte exemplo, dado por uma colega, com permissão de compartilhar:

Ao visitar sua amada avó na Geórgia, peregrinação anual, minha jovem futura colega, então com 6 anos, perguntou à mãe por que ‘os negros saíam da calçada quando elas se aproximavam?’ Sua mãe constrangida a silenciou e uma vez em casa disse angustiada: ‘foi um acontecimento terrível chamado escravidão’. Minha futura colega, branca, ficou confusa e sem qualquer outra explicação ou discussão foi deixada sozinha para conceituar esse momento assustador. Ao longo dos anos, na medida em que outros incidentes raciais foram silenciosamente adquirindo significado, ela concluiu que ‘uma vez que os brancos cometeram essa coisa terrível, os negros devem odiar os brancos e, por isso, ela deve temê-los também’.

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Trata-se de um exemplo de como ocorrem os estereótipos raciais e étnicos intergeracionais

inevitáveis. A quem tememos e por que tememos são impressos ou adquirem significados por meio dos nossos cuidadores e, geralmente, não a partir de uma experiência negativa com o outro. Por isso, é muito humano ser preconceituoso como forma primária de autoproteção. Mesmo que a pessoa esteja se protegendo de fantasmas e ilusões. Sandler descreve que a criança constrói um pano de fundo intrapsíquico de segurança, com base nas primeiras interações com os cuidadores que dão forma à sua identidade e representações de objetos correlativas às experiências afetivas que se definem ao longo do tempo (Sandler 1960; Sandler & Rosenblatt, 1962). Nos Estados Unidos, a raça também se molda na mente. Veem-se crianças brincando inocentemente, independente de raça ou religião que, aos poucos, transformam-se em estranhos que precisam ser temidos e incompreendidos a cada interação. Portanto, o tom de segurança racial é subproduto do fato de crescer em uma sociedade racista. O racismo e outras formas de preconceito e discriminação têm todas as características do que chamamos de defesas mentais: distorção da experiência para se proteger de ameaças mentais ou emocionais, distorcendo a experiência para ajustar-se ao que pode ser tolerado.

A poetisa Claudia Rankine oferece outra forma de expor o dilema racial ao afirmar: ‘A negritude no imaginário dos brancos nada tem a ver com os negros’ (Kellaway, 2015). É uma ficção intrapsíquica.

O objetivo de todos os clínicos e de todos os centros de tratamento deveria ser o encerramento dessa lacuna vivencial entre o que o clínico branco imagina e a pessoa negra real que busca

tratamento. Assim, um dos vestígios da escravidão e do racismo institucional são os mitos de que os negros têm muitos problemas na vida real, não são capazes de fazer trabalho orientado para

o insight e, portanto, não se adequam aos tratamentos dinâmicos.

O que se ensina e como se supervisiona são os aspectos mais pertinentes para o desenvolvimento do futuro psicoterapeuta e psicanalista. Nossas experiências com os pacientes nos moldam.

Contudo, a forma pedagógica da vivência de aprendizagem baseia-se na magnitude da orientação biopsicossocial de cada pessoa. Portanto, nada a respeito do paciente está sujeito à exclusão tácita.

Por isso, raça e etnia são fundamentais na compreensão da composição do self. Interessa-me contestar as noções hegemônicas de ‘branquitude’, pois, ao mesmo tempo, também estamos

tentando explicar o ‘outro’, com o objetivo de nos afastarmos da noção supremacista inconsciente de que existe um grupo, o branco, e de que tudo mais é o outro e, implicitamente, secundário ou

subordinado. Essas tendências inconscientes sutis da branquitude, como exemplo do nosso modelo de trabalho, têm impacto desfavorável, especialmente, embora não de maneira exclusiva para o analista em formação de cor. O corpo docente, supervisores e professores, devem familiarizar-se com seu próprio preconceito para um monólito cultural ‘branco’, educar-se a respeito do meio multicultural que constitui a prática da moderna psicoterapia e, de forma ativa e não defensiva, investigar seus estados mentais racistas e o racismo interno que impede esses esforços (Davids, 2011; Keval, 2016; DiAngelo, 2018; Blechner, 2020).

Como psicanalistas e psicoterapeutas, estamos tão interessados nos marcos culturais e étnicos como parte integrante do desenvolvimento do self e de como isso pode estar ao mesmo tempo em conflito e em conversa com a luta do paciente no tratamento. Por essas razões, é essencial que o corpo docente e os supervisores incluam raça e etnia na conversa com os analistas em formação.

Franqueza, incluindo curiosidade respeitosa e não defensiva, promove o ambiente potencial

suficientemente seguro para o aprendizado.[2] Questões pertinentes para a consulta inicial ou para conhecer o paciente potencial para terapia são perguntas acerca da sua etnia, identificações e a comunidade em que se formou. Ser branco, negro, asiático ou latinx nunca deve ser suficiente como

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único descritor primário.

Os centros de formação devem considerar a utilização de consultores externos a respeito de raça e etnia para preparar melhor o corpo docente e os supervisores, juntamente com outras fontes

externas, workshops ou constante supervisão de pares, em que se discuta o material de caso centrado em torno da etnia e raça, além de materiais de leitura sobre essas questões para dar sustentação ao currículo multicultural e preparar analistas em formação, professores e supervisores para ampliar seus conhecimentos sobre a importância da cultura e da etnia na formação de

profissionais de saúde mental.

É importante reforçar que o maior obstáculo para a maioria dos psicanalistas e psicoterapeutas ao tentarem trabalhar com raça no setting de tratamento, é nosso investimento constante em nossa percepção como ‘pessoas boas’. Nossos traumas individuais e o desejo de ajudar nos levam à especialização na cura pela palavra. Raça, racismo, preconceito e privilégio complicam essa imagem, funcionando como ferida narcísica com vergonha e culpa por não aderir a essa bondade declarada. Muitas vezes detectamos nossa contratransferência ao nos aproximarmos de um limite de atuação sexual ou agressiva com nossos pacientes e elaboramos múltiplas fontes (seja

intrapsíquica, projeção etc.). Contudo, a raça apresenta seus próprios desafios (Powell, 2020; Shah, 2020). Quando se trata de reconhecer nossos estados mentais racistas, recuamos reflexivamente. O silêncio social e profissional acerca dessas questões apenas promove sua toxicidade. Os

acontecimentos de 2020 expuseram a complicada realidade da história norte-americana de formas impossíveis de serem ignoradas; embora muitas pessoas estejam tentando reverter ativamente essa tendência em algumas das mais ‘iluminadas instituições acadêmicas liberais’, conforme destacado na opinião de Michelle Goldberg em artigo no New York Times de 26 de fevereiro de 2021

intitulado: The Campaign to Cancel Wokeness (Campanha para Cancelar a Consciência dos Problemas Sociais). O reconhecimento da epidemia de racismo pode levar ao trajeto para sua retificação. Como clínicos, ao nos sentirmos mais solidários ou silenciosos a respeito dessas

questões, participamos do problema, não da sua resolução. Isso inclui o medo do branco da raiva do negro e, quando isso surge na clínica, voltar-nos de maneira reflexiva para uma postura mais

favorável ao invés de abordar o que está por trás da raiva do negro, ou seja, o medo de mais traumas para seus entes queridos ou para eles próprios, ou a falta de reconhecimento da

humanidade compartilhada por eles. Os negros não estão pedindo tratamento especial, mas, de modo inflexível e cada vez mais sem remorso, exigem justiça e tratamento com os mesmos direitos.

Embora se exija neutralidade em nossa profissão, será mais fácil manter uma análise imparcial se o analista não for uma vítima provável do fenômeno. Como cidadãos deste país pelo qual todos lutamos e para o qual contribuímos, não somos todos ‘vítimas’ do legado do ódio? O esforço empático para admitir, ecoar e conter as experiências de nossos pacientes é o trabalho da prática psicoterapêutica suficientemente boa.

Podemos arrumar muitos problemas caso venhamos a perturbar a branquitude em nossas políticas, posições e trabalho como analistas, os analistas deveriam permanecer curiosos questionando-se constantemente: qual ameaça o reconhecimento do nosso racismo evoca? De acordo com minha experiência, o racismo está intimamente ligado à forma como foi moldado e, portanto, ligado aos nossos entes queridos e, como raça, racismo, privilégio e preconceito foram estabelecidos,

explicados, racionalizados, rejeitados ou ignorados por nossos pais, professores e comunidade. Por doze gerações, a escravidão impactou os afro-americanos e o restante dos Estados Unidos, como observa Wilkerson: ‘... o país não pode tornar-se uma unidade total enquanto não se defrontar com o que não foi apenas um capítulo da sua história, mas a base da sua ordem econômica e social. Por um quarto de milênio a escravidão foi o país’ (2020, p. 43). O silêncio a respeito da raça é o segredo

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não mencionado na comunidade branca. Portanto, o ‘minha postura não é racista’ nos aprisiona a uma atitude defensiva ainda maior e não à sua atenuação. Se combinarmos isso com vergonha, culpa e humilhação, veremos as questões raciais se transformarem em abscessos mentais cada vez maiores, fadados a nos comprometer a todos conforme os pontos de tensão fervam ou escorram para a atmosfera de um instituto de psicanálise, sem reconhecimento e retificação consciente. A orientação racista prejudica tanto o racista – ao sacrificar a experiência de percepção da realidade em favor do prosseguimento com base na fantasia conveniente de como as coisas certamente devem ser – quanto prejudica as pessoas sujeitas à fantasia defensiva destrutiva do racista.

O clínico reconhecer o legado e o desafio contínuo do racismo institucional, da injustiça e da discriminação em todos os aspectos da vida do paciente afro-americano é um passo empático importante para amenizar os efeitos dessa tragédia americana singular. Assim, entrar no ‘bom problema’ como terapeuta é ser suficientemente bom para reconhecer os traumas potenciais e as resiliências de pessoas que sofreram abusos e discriminação sistemáticos como cidadãos norte- americanos. Quando pensamos em reparação, trata-se de identificar o trauma físico e psíquico não reconhecido infligido aos negros pelos brancos, tanto consciente quanto inconscientemente e que necessita ser retificado constantemente.

Se praticarmos a humildade cultural diante do constrangimento do nosso comportamento racista e pensarmos com abertura e curiosidade, poderemos começar a imaginar e a moldar nossos institutos para refletirem o brilho multicultural, multiétnico e multirracial que constitui nossa democracia.

Ou como James Baldwin afirmou em 1962: ‘Nem tudo o que se enfrenta pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até ser enfrentado’.

[1] As recentes reações ao artigo de Donald Moss, ‘On having whiteness’ (Ter Brancura), umas das diversas contribuições importantes no Journal of the American Psychoanalytic Association (abril de 2021), revela a capacidade disruptiva que as discussões sobre ódio racial têm na sociedade em geral, nas nossas organizações profissionais e no nosso corpo psicanalítico. Ao se seguir um pedido de silêncio, agitado por medos cada vez maiores, lembro-me do livro de Timothy Snyder, On Tyranny (Sobre Tirania), com as consequências incendiárias tóxicas de viver com medo e em silêncio.

[2] Embora muitos psicoterapeutas falem da importância de criar um ‘espaço seguro’ na psicoterapia, acredito que, em última instância, qualquer noção de segurança psicoterapêutica só pode ser uma aspiração, não totalmente alcançável. A maneira mais confiável de aumentar a segurança durante o curso de um processo psicoterapêutico não é declarar o espaço terapêutico como ‘seguro’, mas, sim, pela disposição dos psicanalistas de atender e investigar com o paciente as formas de segurança que podem estar ausentes, comprometidas ou promovidas.

Imagem: Cortesia da Biblioteca Presidencial de Barack Obama. Foto oficial da Casa Branca por Lawrence Jackson.

Referências

Baldwin, J. (1962). As much truth as one can bear. The New York Times. January 4, 1962.

Blechner, M. (2020). Racism and psychoanalysis: How they effect on another. Contemporary Psychoanalysis, DOI: 10.1080/00107530.2020.1756133.

Davids, M.F. (2011). Internal Racism: A Psychoanalytic Approach to Race and Difference. London:

Springer Nature Limited.

Diangelo, R. (2018). White Fragility: Why It’s So Hard for White People to Talk about Racism. Boston:

Beacon Press.

Goldberg, M. (February 26th 2021). The campaign to cancel wokeness. The New York Times.

Kellaway, K. (2015). Interview: Claudia Rankine: Blackness in the White imagination has nothing to

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do with Black people. The Guardian, December 27, 2015.

Keval, N. (2016). Racist States of Mind: Understanding the Perversion of Curiosity and Concern. London: Karnac.

Metzl, J.M. (2019). Dying of Whiteness: How the Politics of Racial Resentment is Klling America’s Heartland. New York: Basic Books.

Moss, D. (2021). On Having Whiteness. Journal of the American Psychoanalytic Assn. 69:2, 355-371.

Powell, D. (2020). From the sunken place to the shitty place: The film Get Out, psychic emancipation and modern race relations from a psychodynamic clinical perspective. The Psychoanalytic Quarterly.

Vol 89, Issue 3.

Powell, D. (2018). Race, African Americans, and psychoanalysis: collective silence in the therapeutic situation. J. Amer. Psychoanal. Assn., 66(6):1021–1049.

Sandler, J. and Rosenblatt, B (1962). The concept of the representational world. Psych. Study of the Child, 17: 128-145.

Sandler, J. (1960). The background of safety. IJP 41: 352-356.

Shah, D. (2020). Dangerous territory. Psychoanalytic Quarterly.

Snyder, T. (2017). On Tyranny: Twenty Lessons From the Twentieth Century. New York, Tim Duggans Books.

Wilkerson, I. (2020). Caste: The Origins of Our Discontents. New York: Random House.

Tradução: Tania Maria Zalcberg

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