• Nenhum resultado encontrado

Identidade e Afetividade a partir das representações sociais de policiais militares e bombeiros militares que trabalham com cães no Distrito Federal 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "Identidade e Afetividade a partir das representações sociais de policiais militares e bombeiros militares que trabalham com cães no Distrito Federal 1"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

1

Identidade e Afetividade a partir das representações sociais de policiais militares e bombeiros militares que trabalham

com cães no Distrito Federal

1

Edi Alves de Oliveira Neto (UnB)

Introdução

Este artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa de doutorado empreendida entre 2016 e 2020, no Programa de Pós Graduação em Sociologia do Departameto de Sociologia da Universidade de Brasília. O objeto de estudo desta pesquisa foi relação entre humanos e cães no contexto do trabalho de policiais e bombeiros militares do Distrito Federal. O objetivo principal foi compreender como essa relação, ainda pouco tratada dentro da sociologia, se integra às categorias sociais de identidade e afetividade, ao mesmo tempo em que dialoga com elas. É, então, um trabalho sobre a identidade profissional e sobre a construção de relações de afeto na atividade de policiamento com cães. Cabe adiantar que o recorte da pesquisa não inclui todo o trabalho com cães nas tarefas da segurança pública, nem todo o trabalho com cães pelas instituições policiais no Distrito Federal.

Os dados que fundamentam as análises foram coletados em pesquisa empírica com dois grupos específicos: (1) policiais do BPCães/PMDF e (2) bombeiros da Companhia de Cães do BBS/CBMDF. Esses dois grupos são tratados sob a categoria de cachorreiros2, que, em síntese, designa aqueles que, nas instituições de segurança pública, empregam cães em suas atividades.

A pesquisa surge a partir de questionamentos e apontamentos, derivados da minha dissertação de mestrado (OLIVEIRA NETO, 2016), acerca do modo como a abordagem sociológica da relação entre policiais militares (os bombeiros foram

1 44º Encontro Anual da ANPOCS. GT34 - Relações humano-animais: passado, presente e futuros possíveis.

2 A categoria “cachorreiros” será apresentada mais fundo em tópico subsequente.

(2)

2 inseridos na pesquisa em momento posterior) e seus cães poderia contribuir para se avançar na compreensão da atividade policial, das instituições policiais e de seus agentes. Dessa forma, este trabalho se apresenta, também, como uma sociologia da polícia, buscando produzir conhecimento sobre uma atividade fundamental para a governabilidade em um Estado Democrático de Direito, a atividade policial.

Por essa dimensão, cabe destacar que, atualmente, existe um campo consolidado de Estudos Policiais na Sociologia brasileira, assim como na internacional. Principalmente nas últimas duas décadas, diversos trabalhos acadêmicos contribuíram para a compreensão da atividade policial. São estudos sobre a identidade profissional dos agentes de segurança pública, sobre a seleção e treinamento dos noviços, sobre a cultura organizacional das corporações, sobre suas gramáticas militares ou belicistas, sobre os efeitos de uma atuação policial construída sobre marcadores de classe, gênero e raça, dentre outras temáticas.

Esses estudos amparam teoricamente esta pesquisa na medida em que fornecem instrumentais teórico-metodológicos para analisar fenômenos e categorias sociais que integram a realidade social de policiais e bombeiros. Sendo um estudo em representações sociais, é importante ressaltar que o contexto de trabalho dentro da atividade de segurança pública oferece o contexto singular no qual essas representações vão surgir e se reproduzir, já que contextos diferentes geram representações sociais diferentes sobre os mesmos objetos, no caso, os cães.

Por outra dimensão, essa pesquisa integra também o campo dos Estudos Animais. Recentemente diversos autores das ciências humanas se dedicaram ao estudo dos fenômenos relacionados ao mundo natural em interação com a sociedade. Apesar da relação humano-natureza ser fundante de nossa história, a Sociologia demorou a se atentar às especificidades e potencialidades desse objeto de pesquisa. No entanto é importante ressaltar que, tanto animais, quanto suas formas de relação com os humanos nas sociedades, têm tido destaque crescente dentro das ciências na contemporaneidade.

É possível que o crescimento desse interesse possua relação com o fato de que cada vez mais os animais participam do cotidiano das pessoas, adentrando espaços físicos e afetivos antes negados a eles, seja a cama de dormir, seja o status de integrante da família. Basta observar como os pets são cada vez mais comuns como companhias de pessoas solteiras e de casais sem filhos (KULICK, 2009), assumindo muitas vezes papéis típicos da estrutura familiar, como o de filhos ou de netos. No

(3)

3 Ocidente, a chamada cultura pet tomou grandes proporções, ocupando espaço de destaque nas representações sociais acerca dos animais de estimação.

A partir do século XVII a relação com animais de estimação se torna a principal forma de relação humano-animal no meio urbano (THOMAS, 2010), na medida em que um dos traços da Modernidade foi o distanciamento da produção rural, inclusa a criação e o abate de animais de corte, das metrópoles (ELIAS, 1993). Os animais de trabalho passam então a ser representados enquanto símbolos do atraso, do pré-moderno, sendo substituídos pelas máquinas a vapor e veículos automotivos.

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de raças de pequeno porte permitiu a entrada desses cães no ambiente domiciliar das classes mais abastadas, colocando-os como companhias para moças e donzelas, normalmente restritas também ao ambiente doméstico (THOMAS, 2010). É a partir daí que começa a se desenvolver aquilo que hoje chamamos de cultura pet, e que vem recebendo cada vez mais atenção de estudiosos de diversas áreas enquanto fenômeno social.

Como elemento do fenômeno pet, surgem novas configurações familiares que integram seres não humanos, as famílias multiespécie, com suas ambiguidades e instabilidades inerentes (LIMA, 2016). Obviamente cães ou gatos não podem substituir um cônjuge enquanto parceiro sexual (embora a zoofilia e os comportamentos dela derivados mereçam também maior atenção da sociologia e de outras ciências) ou amoroso, relevados os casos isolados em que isso ocorre. Mas, para algumas pessoas - e os números têm mostrado que são muitas - podem ser consideradas companhias agradáveis para um filme numa noite de sexta, ou para um passeio no parque aos finais de semana, e companheiros ativos do cotidiano.

Estudos apontam que pets ocupam espaços no campo das relações de cuidado (IRVINE, 2008; 2012). Por mais que não sejam, usualmente, parceiros de romance, podem ser aqueles que serão cuidados enquanto tal. Ao preparar diariamente uma alimentação especial para seu bichano, ou ao trazer presentes de viagens para seus cães, os indivíduos cuidam de seus pets como se fossem parentes, não apenas amigos (MAZON & MOURA, 2017). É nesse caminho que o modelo de família multiespécie se apresenta enquanto nova conformação familiar, cada vez mais recorrente na contemporaneidade (LIMA, 2016).

E o cão, como já foi dito anteriormente, ocupa espaço de destaque em meio a essas mudanças na relação entre humanos e animais, por ser o animal de estimação por excelência. Por consequência, o cão que ocupa outra posição social que não a de

(4)

4 animal de estimação, como o cão de trabalho, e a forma como esse é representado e tratado pelos humanos, não passa incólume pelas profundas mudanças sociais citadas acima, e de outras, fora do campo da cultura pet, em especial as mudanças do campo de atuação dos cachorreiros, que é o da segurança pública.

Como já foi dito, o advento da Modernidade deslocou os animais de criação e de trabalho para longe dos centros urbanos, restando ali apenas os animais de estimação e seus pares opostos, os animais de rua. Paralelamente, o uso de animais de trabalho foi sendo substituído por máquinas e automóveis. Os cavalos e carruagens foram substituídos por carros e caminhões. Em Londres, destaca Thomas (2010), esses animais foram proibidos de circular onde antes reinavam absolutos. Seu uso era representado como atrasado, pré-moderno, e deveria ser substituído pelo produto da tecnologia humana, seguindo o ethos moderno. Da mesma forma, bois de tração utilizados nos arados foram substituídos pelos tratores. Burros de carga foram substituídos por pequenos caminhões e, mais recentemente, cães de guarda foram substituídos por sistemas de segurança, compostos por câmeras, cercas elétricas, monitoramento à distância, etc.

Ao final do século XX, percebemos um aumento das práticas interespecíficas.

No que se refere ao objeto deste texto, o desenvolvimento das técnicas de canicultura e cinofilia consolida seu uso como ferramenta imprescindível para algumas atividades, como a caça, tração, pastoreio e atividades de segurança.

No período que se seguiu ao término da Primeira Guerra Mundial, o trabalho com cães policiais se intensificou como uma prática recorrente nas polícias do mundo todo (ROSA, 2009). Já ao final do século XX, a expertise do uso de cães para atividades policiais estava consolidada na maior parte dos países, com destaque para Rússia, França, Inglaterra, EUA e Colômbia, dente outros.

No Distrito Federal, até o ano de 2020, os principais canis existentes nas instituições de segurança pública eram os da PMDF, do CBMDF, da PF e da PRF.

Além desses, os Cães de Guerra da Polícia do Exército, o canil do Grupamento de Fuzileiros Navais, da Aeronáutica, da Receita Federal e da PCDF. Em 2019, as Polícias Legislativas da Câmara e do Senado Federal iniciaram projeto piloto para o uso de cães de detecção de entorpecentes e de explosivos para auxiliar na segurança das casas.

(5)

5 A abordagem pela Teoria das Representações Sociais

A metodologia escolhida foi a abordagem pela Teoria das Representações Sociais (TRS), na tradição sociológica que se desenvolve a partir das obras de Serge Moscovici (2003). Partindo do entendimento de que as representações sociais são elementos dotados de significado social e que possuem potencial para orientar a ação cotidiana dos indivíduos, sua instrumentalização permite avançar na compreensão de fenômenos sociais plurais como as relações entre humanos e outros animais. Pelas representações sociais dos cachorreiros sobre seu trabalho e sobre os cães, busco compreender como essa relação interespécie impacta na identidade profissional e nos afetos desses policiais e bombeiros. Dessa forma, as representações sociais são instrumento e resultado do trabalho, permitindo avançar na compreensão da atividade policial e demonstrando a importância das relações interespécie como objeto da sociologia.

Essa proposta metodológica pode ser assim resumida: permitir analisar como os atores sociais buscam entender o mundo e se entender neste mundo, jogando luz na rede de valores e crenças presentes nas representações sociais que esses atores possuem. Pela TRS, a porta de entrada para a compreensão de um dado fenômeno social, no caso, a relação cachorreiro-cão, são os sentidos que os atores dão ao que fazem em sua rotina de trabalho, e também no restante de seu cotidiano. Daí a importância empírica de associar observações in loco, incursões etnográficas no trabalho dos canis estudados, com entrevistas a fundo com atores qualificados.

Abordar a realidade social a partir das representações implica entender que a sociedade é formada pela sua parte, material, objetiva, e pela sua parte virtual, simbólica, subjetiva, que é tão real quanto a parte material. Essa parte simbólica das representações está presente nas imagens, na linguagem (JOVCHELOVITCH, 1998), e também nos discursos, nas palavras e nas mensagens midiáticas (JODELET, 2001).

Dessa forma, a TRS é uma metodologia que privilegia a subjetividade das representações, mas sem perder de vista que tais representações “só se constroem em relação a um dado contexto ou ambiente, objetivamente dado, já que sentidos não podem ser compreendidos independentemente do campo social no qual se inserem”

(PORTO, 2010, p. 2019).

Foi a partir da publicação de “La Psychanalyse: Son image et son Public”, em 1961, que Serge Moscovici sistematizou Teoria das Representações Sociais no campo

(6)

6 da psicologia social (FARR, 1998). O autor avança na concepção das representações dando destaque para dois aspectos que lhes seriam característicos. O primeiro desses aspectos é a condição de conhecimento socialmente compartilhado e elaborado pelos diferentes grupos sociais, como, no caso desta pesquisa, sobre o trabalho com cães na atividade policial. O segundo consiste na sua condição enquanto realidade afetiva vivida pelos indivíduos, através de emoções e sentimentos, que aqui tomam a forma da afetividade entre humanos e cães.

Alguns elementos da TRS de Moscovici não são aqui utilizados, como, por exemplo, a divisão do processo de objetivação em três etapas, tratado como um processo uno. Minha apropriação da TRS segue a linha de Denise Jodelet e Maria Stela Grossi Porto e, segundo a socióloga brasileira:

“Por não possuir os elementos da formação discursiva própria à psicologia social, a apropriação que faço da Teoria das Representações Sociais, embora guarde uma grande proximidade com esta formação, é, em certo sentido, “utilitarista”. Em sua utilização, a argumentação não percorre passo a passo todo o caminho daqueles que, na psicologia social se dedicaram ao tema. Também não privilegia a parte da teoria que se dedica aos aspectos propriamente cognitivos da formação e da constituição das representações sociais e de seus mecanismos de difusão. Além do que, não há, nessa apropriação, preocupação em dissecar dada representação, ressaltando de que modo se constituíram seu núcleo central e suas periferias. Aliás, não distingue centro de periferia. Pelo contrário, trabalha a noção como um todo e sempre no plural, assumindo as representações sociais enquanto blocos de sentidos articulados, sintonizados ou em oposição e em competição a outros blocos de sentido, compondo uma teia ou rede de significações que permite ao analista avançar no conhecimento da sociedade por ele analisada.” (PORTO, 2010, p. 66)

Além das adaptações feitas na TRS, cabe também elencar premissas derivadas dessa escolha metodológica, pois, analisar a sociedade pelo viés das representações sociais significa acessar o mundo objetivo pelo que os indivíduos dizem sobre ele, ou seja, pelo senso comum. Por isso, segundo Porto (2010):

“Interrogar a realidade a partir do que se diz sobre ela, utilizando-se da categora das representações sociais significa assumir que estas:

a) embora resultado da experiência individual são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indivíduos que as produzem;

b) expressam visões de mundo objetivando explicar e dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam, ao mesmo tempo em que;

c) por sua condição de representação social, participam da constituição desses mesmos fenômenos;

d) apresentam-se, em sua função prática, como máximas orientadoras de conduta;

e) admitem a existência de uma conexão de sentido (solidariedade) entre elas e os fenômenos aos quais se referem, não sendo, portanto, nem falsas nem verdadeiras mas a matéria prima do fazer sociológico. (Porto, 2005)” (PORTO, 2010, p. 68)

(7)

7 As representações sociais, por si só, não são conhecimento sociológico objetivo (Porto, 1999). Para isso, é necessário que sejam interpretadas em relação direta com a realidade objetiva sobre a qual falam. Dessa forma, são fonte relevante de material analítico que permite melhor compreender fenômenos sociais, como aqueles referentes às relações entre humanos e animais de trabalho.

Dito isso, entendo que acessar as representações que os cachorreiros elaboram sobre seu trabalho, sobre seus cães, e sobre si permitem analisar questões como sua identidade profissional, emoções pertinentes a serem vividas com seus parceiros caninos e também sobre o papel dos cães enquanto agentes ativos em seu contexto social.

A pesquisa empírica

Para acessar as representações sociais dos cachorreiros, analiso seu discurso , colhido através de entrevistas semiestruturadas, e também a partir de dados coletados na observação da rotina dos canis. O objetivo foi localizar núcleos de sentido sobre determinadas questões, como, por exemplo, reprodução dos cães, formas de comunicação com os animais, emoções vividas em trabalho, reconhecimento social, dentre outras.

A pesquisa empírica se desenvolveu em duas frentes. A primeira, a partir da observação in loco da rotina de trabalho dos canis pesquisados. Essa observação se deu apenas no BPCães, em dois momentos. A primeira observação foi feita durante etnografia realizada durante o mestrado, em 2015, na qual acompanhei por 3 meses diversas atividades dentro e fora do canil, como cursos, instruções, apresentações, operações em escolas, operações conjuntas com a polícia civil de Goiás e diferentes treinamentos. O segundo momento de observação se deu já na pesquisa de doutorado, no ano de 2018, quando visitei o canil para as entrevistas.

A escolha em voltar a observar a rotina dos canis teve como um de seus motivos dar centralidade aos atores pesquisados, evitando tratá-los como sujeitos passivos da pesquisa, reféns das minhas pré-noções e inclinações subjetivas. Assim, a intenção é seguir direções apontadas pelos atores como guias do campo que dominam:

“Develop working relationships with Professional working in shelters, zoos, sanctuaries, veterinary, and animal-assisted practices. These animal workers are privy to the varied forms of

(8)

8

human-animal relationships that are the grist of HAS studies. As they are both guides to and beneficiaries of policy innovation, they are important allies.” (SHAPIRO & DEMELLO, 2010, p. 315)

Observar as relações interespécie implica observar os animais quase que na mesma medida que os humanos. Essa tarefa exige certo esforço:

“A separação entre homem e natureza citada no primeiro capítulo nos coloca em um lugar imaginário dentro do planeta, um lugar mais elevado. Ao observar a cidade, percebi que os animais estão sempre fora da altura dos olhos humanos. Para enxergá-los é preciso sempre uma mudança de eixo. Tirando os pássaros que dão rasantes e por acaso cruzam nosso olhar, ver um animal é sempre olhar para baixo, para cima ou por entre as coisas.” (BAPTISTELLA, 2015, p. 67)

No caso de um canil, observar os animais é, em grande parte, “olhar por entre as coisas”, pelas frestas das baias, pelas estruturas de concreto e metal das áreas de treinamento, pelas pernas dos policiais. E, naquele momento, com o canil em reforma, o trabalho dos cachorreiros ocorria em meio ao ranger de betoneiras e batidas de picareta.

A segunda frente de pesquisa empírica se deu a partir de entrevistas semi- estruturadas com cachorreiros dos dois canis. O objetivo das entrevistas era apreender o discurso nativo acerca do que pensavam sobre seu trabalho, nos mais diversos aspectos, incluindo a relação e interação com os cães.

Na Companhia de Cães de Salvamento do BBS as entrevistas foram realizadas todas no mesmo local, na sala do administrativo do canil. Mesmo com um número de cães bem menor que do BPCães, pela proximidade dessa sala com as baias, o som dos latidos adentrava com intensidade, principalmente quando alguém passava por perto.

A escala de trabalho no canil permitia entrevistar dois bombeiros por visita, à exceção de quando parte dos bombeiros estava fora do GBS, por motivo de trabalho ou de treinamento dos cães. Eu chegava às sete horas da manhã e, em poucos minutos, iniciava as entrevistas, que seguiam até próximo ao do almoço. Ao final do trabalho de campo, de um total de 14 bombeiros presentes no canil, 10 foram entrevistados. Os demais estavam fora de serviço durante o período em que realizei a pesquisa, por motivos de férias ou licença.

Já no BPCães, treze policiais foram entrevistados. À época estavam lotados ali 131 policiais. Dois fatores foram indicadores de que, após estas 13 entrevistas, havia chegado o momento de encerrar a coleta de dados: (1) a repetição de informações e (2) a percepção de que os interlocutores estavam perdendo interesse em participar da pesquisa.

(9)

9 Cachorreiros e cães policiais

O coletivo humano-cão estudado é formado por dois grupos: os cachorreiros e os K9. Quando trato os cachorreiros como grupo social, não o faço segundo critérios rígidos de definição amparado por teorias sobre o que são e o que não são grupos sociais. Parto de uma definição que talvez possa ser dita flexível, mas que, no empreendimento proposto nesta tese, se mostra solidamente funcional. É o caminho apontado por Becker (2007). Considero os cachorreiros como um grupo social tanto porque eles se definem como um grupo específico e separado de outros, quanto o são considerados distintos por outros grupos.

De acordo com o dicionário Houaiss (2001) cachorreiro é um substantivo masculino que significa “1 criador ou treinador de cães de caça; 2 aquele que, nas caçadas, conduz os cães que farejam a trilha; matilheiro” (HOUAISS, 2001, p. 553).

Tanto nas entrevistas quanto nas observações in loco, notei que o termo cachorreiros era utilizado por policiais e bombeiros para definir o grupo de atores do campo da segurança pública e privada que trabalham com cães. São policiais, bombeiros, adestradores, militares, guardas civis, seguranças privados, dentre outros, que utilizam os cães em suas atividades. O que os coloca como cachorreiros é a vivência compartilhada das situações vinculadas a essas práticas e, principalmente, a representação do cão enquanto um animal de trabalho, em oposição ao cão pet. Nesse sentido, o termo cachorreiro é empregado como identidade de um grupo diverso, centrado da prática laboral com cães de segurança, com uma valoração positiva, atrelada ao reconhecimento social de sua profissão.

Mas existem outros significados para o termo cachorreiro, em outros grupos.

Por exemplo, Samantha Oliveira (2006) aponta que os sujeitos de sua pesquisa se identificam de duas maneiras, como “criadores de cães” e como “proprietários de cães”, mas que não são o que chamam de “cachorreiros”. Segundo a autora, os

“criadores” enfatizam que sua atividade é um hobby, uma forma de arte, uma ciência, um estilo de vida, mais do que uma profissão. Por isso, essa atividade não deve ser a única fonte de renda, o que permite que seja realizada pela paixão, e não pela necessidade de renda. Aqui os criadores de cães se colocam em oposição ao que eles chamam de cachorreiros, que são aqueles criadores que vislumbram a atividade como

(10)

10 principal fonte de renda e que a conduzem de acordo com as normas e demandas de mercado.

Mas não são esses os cachorreiros do presente trabalho, embora os cachorreiros aqui tratados também tenham apresentado em seu discurso conflitos com criadores de cães de pedigree, clubes de criadores e Kennel Clubs, questão que não será, aqui, discutida. Aqueles a quem me refiro enquanto cachorreiros são os policiais e bombeiros pesquisados, aqueles que formam binômios com seus K9.

Na perspectiva metodológica adotada, esses K9 possuem papel central. Não é uma questão de substituir o ser humano pelo ser canino nessa posição, mas de integrar o animal não humano à abordagem, enquanto agente ativo da realidade social. Dentro da atividade policial, o discurso remete à representação do cão enquanto uma ferramenta de alta eficiência, destacando seu valor de uso. Embora outros animais sejam utilizados em atividades de faro, por exemplo, porcos que farejam fungos e cogumelos, e ratos que farejam explosivos enterrados, é pela instrumentalização do faro e do corpo do cão que esse animal foi escolhido para atuar no policiamento.

No caso dos cães policiais aqui estudados, o signo que os identifica é o K93. São eles os cães de salvamento, cães de detecção de entorpecentes, cães de busca e captura, cães de assalto, os cães de ronda, dentre outros. São cães de diversas raças, utilizados em diversas funções, e que são elemento essencial para a identidade dos cachorreiros, cuja imagem é formada pelo binômio cachorreiro-cão.

A denominação dos cães policiais com K9 é utilizada, principalmente, na comunicação coletiva, com as comunidades e com a sociedade civil em geral. É muito presente nas publicações de redes sociais, tanto nos textos quanto nas montagens audiovisuais. Por exemplo, as postagens do perfil do BPCães no Instagram trazem como elemento final de seus textos a seguinte frase “BPCães 52 anos de tradição!

K9”. Além disso, está presente nos brasões, lemas, uniformes humanos e caninos, canções, etc.

Enquanto símbolo, K9 define a identidade profissional dos cães, na mesma medida em que cães pastores servem como identidade profissional dos cães que realizam essa atividade. No BPCães, são chamados de policiais K9, ao passo em que, no canil do BBS, são chamados bombeiros K9. A adoção do termo derivado da língua inglesa sugere sua disseminação na atividade fora do Brasil, de onde foi absorvida.

3 Este termo é originário da língua inglesa, na qual a pronúncia da letra K, seguida da pronúncia do número nove, formam a palavra “canine”, cuja tradução para o português seria canino.

(11)

11 Cabe destacar também a presença do termo em filmes como “K-9 – Um Policial Bom pra Cachorro”, de 1989, sua sequencia “K-9 – Um Policial Bom pra Cachorro 2”, de 1999, e também “K-9000”, de 1991. Além dos filmes, é comum o uso do termo em matérias jornalísticas sobre esta atividade:

Identidade profissional individual e coletiva dos cachorreiros

A Sociologia possui longa tradição na apropriação analítica da categoria de identidade. Sociologicamente, a categoria identidade está sempre relacionada à outra categoria, a da diferença (PORTO, 2010). Identidade e diferença são categorias que se complementam, ao mesmo tempo em que são contraditórias entre si. Ou seja, ao mesmo tempo em que identidade se refere à “pertencimento comum”, ela só toma forma na relação com um outro, diferente. Para Dubar (2009) dois processos são formadores das identidades, a diferenciação e a generalização. Para existir uma identidade, é necessário que exista seu diferente, e que ambos sejam vistos enquanto tal pela sociedade em geral. Por isso identidade e diferença seriam “como duas faces de uma mesma moeda” (PORTO, 2010, p. 62):

“Diferença/Identidade são categorias analíticas, ligadas desde sempre ao rol dos conceitos básicos do pensamento social e/ou da teoria sociológica; nessa condição cumprem trajetória plural, podendo ser abordadas a partir de dimensões filosóficas, políticas, econômicas, sociais ou culturais, dentre outras.” (Idem)

A tradição sociológica em tratar da identidade refletiu em uma pluralidade de correntes teóricas e de perspectivas de abordagem possíveis. Entre elas, a do interacionismo simbólico figura entre as que mais se dedicaram em trabalhar esta categoria. Isso reflete, dentro dos Estudos Animais, na tematização por esta corrente das questões acerca da personalidade construída pelos humanos em seus animais de estimação e, mais além, acerca de um possível self animal (IRVINE, 2008).

Alguns trabalhos do interacionismo simbólico contribuíram para avançar na compreensão de identidades de coletivos de humanos e animais, como são os canis policiais, e de identidades híbridas, compostas a partir da relação entre humanos e outros animais. É o caso dos estudos de Sanders (2006) sobre a identidade de cegos que utilizam cães guias, da qual o cão de trabalho assume posição central na medida

(12)

12 em que se torna uma extensão do corpo de seu condutor, ampliando as possibilidades de experimentação, de vivência de sociabilidades, e de interação com outros humanos.

Já dentro dos Estudos Policiais a abordagem pela categoria da identidade possui, no cenário brasileiro, vasta produção acadêmica. De acordo com revisão bibliográfica feita por Muniz, Caruso e Freitas (2018), o tema identidades profissionais está entre os mais tratados pelo campo, sendo presente desde os primórdios do campo, como os trabalhos de Silva (1997) e Muniz (1998), até os mais recentes, como os de Nascimento (2014; 2017) e Porto (2017), para citar apenas alguns. Especificamente sobre a identidade profissional em unidades de policiamento especializado, podemos citar os trabalhos de Storani (2008) e Castro (2012).

Cabe destacar que não existem, ainda, trabalhos sobre a identidade policial daqueles que trabalham especificamente com cães. A bem da verdade, a identidade profissional das categorias socioprofissionais que trabalham com animais são pouco, ou quase nada, tratadas pelas ciências sociais no Brasil. Uma exceção é o trabalho de Barreto (2015), que trata da relação entre o ovelheiro gaúcho, cão de trabalho pastoril, com a identidade do gaúcho.

A identidade dos cachorreiros é aqui analisada em duas dimensões. A primeira delas, que chamo de dimensão coletiva da identidade de cachorreiro, diz respeito a identidade dos cachorreiros enquanto grupo, enquanto um coletivo humano-animal.

Nesta dimensão, o outro é a sociedade em geral. Como não faz parte do escopo empírico deste trabalho o discurso deste outro, da população não cachorreira, os elementos apreendidos para análise são oriundos do discurso dos cachorreiros sobre como eles percebem que são vistos, representados, pela população em geral, e sobre como eles se apresentam para a sociedade.

É uma dimensão da identidade relacionada com o reconhecimento recebido por sua atuação profissional. Por isso, existe uma diferença central na forma como esta identidade é vivida por cachorreiros policiais e cachorreiros bombeiros. Cachorreiros bombeiros são, via de regra, bem vistos pela sociedade e se sentem reconhecidos. Por outro lado, policiais vivem uma identidade historicamente deteriorada, que traz consigo estigmas negativamente valorados, e, consequentemente, não se sentem tão reconhecidos como os bombeiros. É uma forma híbrida de identidade, na medida em que é composta pela dupla cachorreiro-cão.

Começando pelos cachorreiros bombeiros, as entrevistas apontaram para uma percepção de reconhecimento positivo de seu trabalho perante a sociedade civil. Em

(13)

13 nenhuma das entrevistas sua identidade enquanto bombeiros militares foi apresentada enquanto negativa.

“A relação com a comunidade é sempre excelente, graças a deus, sempre apoiou, sempre apoiou. Nunca tivemos empecilho nenhum com a comunidade. Graças a deus somos muito bem vistos pela população né. Graças a deus nunca tivemos problemas. Onde nós chegamos somos muito bem recebidos. O Corpo de Bombeiros em si, né, é uma corporação que só vem a somar pra comunidade, e é muito bem vista, muito bem vista pela comunidade. E quando a gente sai pra uma ocorrência, eles já percebem que ali tem um problema e um perigo, e eles acreditam fielmente na gente, uma credibilidade enorme.” (Cachorreiro 14)

Já o discurso dos cachorreiros policiais apontava para uma percepção de não reconhecimento de seu trabalho, muitas vezes com valoração negativa, como uma identidade degenerada por estigmas:

“Quando a gente chega, que a gente não tem o cão, dependendo da cidade, se o índice de criminalidade for muito alto, as pessoas geralmente têm algumas reações padrões assim. Ou elas saem correndo, porque elas acham que vai ter troca de tiro, ou elas falam q a gente não tá trabalhando, que a gente tá abordando pessoa de bem e que o bandido tá solto e a gente tá ali abordando uma pessoa de bem. A gente não é bem visto, a gente chega a gente geralmente não é bem visto. Principalmente em algumas cidades que tem uma cultura de trafico, daquela, daquela historinha de filme do traficante cuidar da sua população. Porque acaba que ele é um cara querido ali, então ele tem muito amigos. A gente chega pra fazer uma abordagem, é, são milhões de celulares filmando, esperando a gente errar.

Alguns até provocando, xingando, falando né, coisas indesejáveis pra tentar tirar a gente do sério.

Quando a gente chega co o cão, ou a pessoa tem medo e já nem se aproxima, ou a pessoa tem muita admiração por aqueles cães e quer chegar perto, quer perguntar, quer passar a mão. Então é outra coisa, totalmente diferente. Eu nunca passei nenhuma situação semelhante do que eu já passei em outro batalhão, nesse sentido de você saber que não é bem quisto. Me sinto quase uma bombeira, porque o bombeiro onde ele chega ele é herói né, me sinto quase uma bombeira.” (Cachorreiro 4)

A fala transcrita acima revela não apenas a percepção dos policias de que são mal quistos por parte da sociedade, como a percepção de que os bombeiros são reconhecidos e representados de maneira oposta. De acordo com a série histórica do Índice de Confiança Social5 (ICS), elaborado desde 2009 pelo IBOPE, o corpo de bombeiros é a instituição que figura no topo da lista das instituições em que a população mais confia, desde o início de sua realização. O ICS vai de 00 (nenhuma confiança) até 100 (muita confiança) e, em 2009, o corpo de bombeiros marcou 88 pontos.

Já em relação à polícia militar, categorizada como polícia no ICS, a série histórica mostra que a confiança em seu trabalho flutua próxima da média de 50, tendo

4 Para preservar a identidade dos entrevistados, algo que foi acordado no momento da autorização da pesquisa, os nomes foram substituídos por uma numeração aleatória dos cachorreiros entrevistados.

5 Disponível em:

<https://www.ibopeinteligencia.com/arquivos/JOB%2019_0844_ICS_INDICE_CONFIANCA_SOCIA L_2019%20-%20Apresenta%C3%A7%C3%A3o%20(final).pdf > Acesso em: 01/11/2020

(14)

14 marcado, em 2019, 63 pontos. Enquanto uma das formas comunitárias de identificação (DUBAR, 2009), a identidade policial está atrelada à estigmas sobre sua atuação. Aqui podemos citar estigmas relacionados a formas violentas de abordagem (SÁ &

SANTIAGO NETO, 2011), a corrupção (NASCIMENTO, 2011; 2014), a ideia de um trabalho sujo, a letalidade (ZACCONE, 2015), a abusos do uso da força (ALBERNAZ, RIBEIRO & LUZ, 2009), a letalidade em relação a jovens negros (AMPARO-ALVES, 2010; BARROS, 2008), dentre outros.

Em resumo podemos dizer que o trabalho dos policiais não é tão bem visto quanto o trabalho dos bombeiros, o que implica em um maior reconhecimento por parte da população pelo trabalho de um, e um menor reconhecimento, muitas vezes percebido como um desconhecimento ou também um não reconhecimento, do trabalho do outro. O discurso dos policiais entrevistados apontou esta percepção:

“Sabemos que é difícil também pra sociedade, porque a polícia militar é o braço armado do estado, que tem o objetivo de preservar a ordem pública. E muitas vezes essa preservação da ordem pública vai um pouco contra né, aos anseios que a sociedade deseja. Ela quer o direito de se expressar, que é um direito constitucional e tudo, e nós tentamos fazer uma linha tênue entre aonde o Estado quer desenvolver, e o que que a sociedade também quer, manter seus direitos preservados e buscar mais melhorias sociais.” (Cachorreiro 11)

Ao mesmo tempo, o discurso dos policiais aponta para o cão como mediador/pacificador desta relação com a sociedade, como algo percebido em seu dia a dia:

“Então é um papel difícil para a polícia militar, mas nós estamos buscando, e esse trabalho com o cão nos auxilia a manter uma proximidade junto com a população. Até por exemplo na vistoria, na abordagem de carros com cães, ou de locais, as pessoas sentem confiança, não se sentem ameaçadas com o cão que tá ali pra fazer a parte principalmente de detecção..” (Cachorreiro 11)

Aqueles cachorreiros que já haviam trabalhado em outras unidades, sem o uso dos cães, também destacaram a perceptível diferença na forma como eram recebidos, e reconhecidos, pela população:

“Desde que eu comecei trabalhar com os cães, eu vi que a recepção realmente é bem maior, da sociedade. Eu vejo que, talvez por se tratar de um animal, e como toda a sociedade, toda a população tem um certo carinho por animais, e gosta um pouco de animais, eles recebem um pouco melhor né. Sempre que a gente chega num determinado setor o pessoal já aborda, já pergunta como é trabalhar com cão, já pede pra olhar. As vezes pede pra conhecer o batalhão. Se for uma pessoa que já tem animal, as vezes ela pergunta se existe a possibilidade de a própria polícia treinar o cão dele né.

Então eles são bem mais receptivos. Eu acredito que, por esse trabalho, principalmente de detecção, você retirar muita droga das ruas, acredito que eles vêm como um fato bastante positivo. Diferente um pouco da unidade de área né, que eles tem ainda um pouco a imagem daquele policial truculento,

(15)

15

bruto, agressivo. Então o que eu já trabalhei nas duas áreas, tanto na unidade de área, quanto na especializada com cães, eu vi bastante diferença, seja no trato, seja na, vamos dizer assim, na forma como ele vê o trabalho. Parece que são duas polícias distintas. Eles reconhecem muito mais e acham muito mais bonito o trabalho da especializada com os cães, do que o trabalho feito pelas unidades de área, apesar de tudo convergir prum mesmo sentido, prum mesmo objetivo. Mas o fato de trabalhar com animal ajuda bastante a sociedade enxergar a gente de uma maneira comunitária. O cão aproxima a gente mais, o policial da sociedade. ”(Cachorreiro 10)

Principalmente aquelas atividades que também são realizadas sem a presença do cão, como as abordagens a veículos particulares e ônibus, quando realizadas com o auxílio dos K9, são percebidas e recebidas positivamente pela população:

“Quando você trabalha com o cão, eu te falo de Brasília, as pessoas gostam de cão. Por exemplo, você tá indo pra casa, ônibus lotado, caramba, aquele ônibus lotado, meu deus. Você ta indo pra casa, aí eu vou te parar bem ali na estrutural. Gente, vou fazer uma abordagem, vai descer todo mundo, e tal. Se for uma abordagem comum, sem ninguém [se ferindo a uma abordagem sem cães], então sabe [expressão de desgosto, incômodo], é aquela coisa. Mas meu amigo, quando eu faço esse trabalho com o cão, (ix) o humor das pessoas muda. Você ta entendendo? Não fica aquela coisa chata.

Ela [pessoa abordada] vê o cão e: caramba, um cachorro! [seguido de uma expressão de deslumbre]”

(Cachorreiro 2)

O discurso nativo sugere que presença do cão nas atividades policiais de gera uma maior empatia no público em geral. Esta empatia possivelmente está relacionada com a posição do cão enquanto animal doméstico. A representação do cão pet possui uma dimensão lúdica, que se torna, em certa medida indissociável destes animais.

Além disso, a presença do cão na posição de animal de trabalho desperta a curiosidade de um público que está mais acostumado com sua presença dentro de domicílios enquanto animais de companhia. As representações sociais dos cães pet se misturam com as representações sociais dos K9 e, nesse caso da identidade coletiva e do reconhecimento, essa mistura é valorada positivamente pelos cachorreiros.

A outra dimensão da identidade dos cachorreiros analisada é a que chamo de dimensão individual-profissional da identidade de cachorreiro. É a identidade do cachorreiro enquanto indivíduo dentro do grupo dos cachorreiros, principalmente em seu próprio canil. Nesta identidade o outro são os cachorreiros, aqueles já inseridos no sistema de valores e crenças do cachorreiro, e que, via de regra, o reconhecem enquanto um bom ou um mal cachorreiro a partir das normativas deste sistema.

Novamente, é uma identidade composta por humanos e cães, em direta interação, atuando como uma unidade.

Na identidade individual-profissional o cão toma a forma de extensão do corpo do cachorreiro que o conduz, não apenas enquanto metáfora para o trabalho, mas

(16)

16 também na medida em que ações, comportamentos e características dos K9 são relacionadas diretamente com ações, comportamentos e características de seus condutores. Nesta medida, o cão é fruto do trabalho do cachorreiro, é reflexo direto do profissional que o treina e conduz e, por isso, aponta para a valoração moral do trabalho deste cachorreiro enquanto tal. Aqui a categoria do binômio humano-cão toma relevância.

“Se você trabalhar de maneira intensa, você vai ter um cão intenso, um cão disposto. Já se você trabalhar de uma maneira que você deixa a desejar, ou as vezes um pouco mais relapsa, então o cão vai fazer exatamente aquilo que você tá passando pra ele. Aquela energia que você tá passando pra ele. Ele vai se tornar, as vezes, um cão preguiçoso, desde que você seja também preguiçoso. Então o binômio ele se resume muito a isso. Essa projeção da sua energia em cima do cão” (Cachorreiro 10)

Aqui entra o “perder o cão”. Este termo se refere à situação em que um cão é mal treinado pelo cachorreiro a tal ponto que perde sua funcionalidade enquanto K9.

Perder um cão se torna uma marca negativa na identidade do cachorreiro. Durante a etnografia no BPCães, alguns policiais eram valorados por outros de forma negativa especificamente por terem perdido cães.

Ao mesmo tempo, os cachorreiros tidos como melhores, como referências na área, eram apontados atrelados aos cães importantes que formaram. São cães que fizeram grandes apreensões ou, no caso dos bombeiros, que tiveram boas atuações em situações críticas.

Os cães integram estas duas dimensões da identidade profissional dos cachorreiros, na medida em que estes últimos só existem quando na relação com os primeiros. Mas não enquanto meros elementos simbólicos, como as fardas, as armas, canções e gritos de guerra. Integram enquanto agentes. E não como agentes totalmente passivos, como potes que são resultado das mãos de um artesão. Os cães aqui são agentes ativos do social, não simplesmente por sua condição biológica senciente, mas principalmente porque são construídos socialmente enquanto tal.

A disciplina dos afetos

O discurso dos cachorreiros acerca do seu trabalho tende a destacar a eficiência dos cães enquanto ferramenta de trabalho, principalmente no que diz respeito aos trabalhos com seu faro. Este discurso traz uma conotação de instrumentalidade, com o

(17)

17 cão objetificando enquanto uma ferramenta de trabalho. Certa vez me disseram, na SECAN/PF, que algumas empresas produziram máquinas com o objetivo de detectar substâncias pelo seu cheiro, que pudessem substituir os cães e serem incorporadas dentro dos sistemas de deslocamento de malas, cargas e pacotes, em aeroportos, correios, portos, etc. Porém, estas máquinas teriam apresentado eficiência muito menor que os cães.

A comparação apresentada pelo policial federal para destacar a alta eficiência dos cães para a detecção de substâncias demonstra o contexto objetivo em que esta prática se realiza, e na qual o cão está posicionado enquanto instrumento de trabalho.

“Eu acho que a ferramenta, o cão a gente fala assim que é uma ferramenta pra atividade policial, de alto desempenho. Então quanto mais aprimoração dessa ferramenta que nós temos, mais lapidada ela é, mais nos conseguimos proporcionar um trabalho de excelência para o desempenho na área de segurança pública. ” (Cachorreiro 11)

Durante a pesquisa de campo do mestrado, o discurso do cão enquanto ferramenta, junto com a disciplina das emoções e comportamentos em relação aos cães que buscam evitar que estes sejam tratados como animais de estimação, foram bastante presentes. Desse contexto surgiu o questionamento sobre como se constroem as relações de afeto entre cachorreiros e cães, em um contexto de trabalho, no qual o cão ocupa uma posição instrumental, no qual vigoram censuras sobre a manifestação de afetos.

Os estudos sobre as relações entre humanos e pets destacam como a posição dos animais de estimação na relação com os humanos, como integrantes da família, muitas vezes na posição de filhos, cria um contexto objetivo que permite a construção de relações de afeto íntimas e intensas. As relações afetivas entre humanos e pets é marcado pela representação dos animais não humanos como portadores de um amor incondicional (GAEDTKE, 2017), acompanhada da filhotização (LEWGOY, SORDI

& PINTO, 2015), na medida em que a “filhotização de animais de companhia os reveste de uma “função redentora” (Digard, 1999) sendo os últimos depositários de uma noção de “amor incondicional” (Ibidem, p. 80) Esta filhotização implica em tomar os animais de estimação como seres dotados de uma amoralidade típica de bebês, como eternos dependentes para sanarem suas demandas biológicas, e merecedores de cuidados típicos da maternidade (GAEDTKE, 2017).

(18)

18 Para evitar que os K9 sejam tratados enquanto pets, o que segundo os cachorreiros seria prejudicial para seu rendimento enquanto animal de trabalho, os cachorreiros passam por uma disciplina dos afetos a partir de sociabilidades experimentadas em grupo. A principal forma destas sociabilidades são os cursos, mas também a rotina diária de treinamentos e operações.

“O curso a gente vê aqui como uma coisa de suma importância. Porque uma coisa é a pessoa que tem um cão em casa, que a gente fala que é o pet. Ele vai, tem um tratamento com aquele cão totalmente diferente do tratamento que o nosso policial tem com o nosso cão, que o nosso cão já não é pet, é um animal de trabalho. Então, é, algumas manias, alguns vícios e costumes que as pessoas tem costume de fazer com o cão em casa, nós aqui já não fazemos. Então esses cursos são importantes exatamente pra isso. E hoje no batalhão nós trabalhamos, basicamente, três cursos específicos e distintos.” (Cachorreiro 18)

Nesta diferença entre o cão de trabalho e o cão pet, o afeto assume posição central. Não apenas na forma de representar a afetividade entre cachorreiro e K9, mas na forma de se comportar em relação ao animal, na conduta diária de trabalho com o cão. São toques, carinhos, formas de falar, tom de voz. São nas manifestações de afeto que residem as principais diferenças entre os dois tipos de cão.

“É porque assim, a gente, eu, por exemplo, eu amo cachorro né.E assim, você vê o cachorro mais como um bichinho de estimação, uma companhia, e você tem todo aquele carinho, e ficar abraçando, pegando nele né. E aqui, por exemplo, o carinho e essa retribuição afetiva assim, tipo de toque, é mais assim uma recompensa. Não é uma coisa diária. Você tem que fazer com que o cachorro ficar feliz com você né, pra ele mostrar que ele tá acertando. Então você vai, toca nele, acaricia e tal, assim, no sentido de “você fez algo certo”, entendeu?. E em casa isso é muito recorrente, porque você tá com o cachorrinho, ele senta em cima do sofá, ele não tem tanto assim obediência né. Então assim, e aqui não, o cachorro de trabalho ele tem que entender que existe momento pra tudo. Existe o momento da brincadeira, existe o momento em que você vai ser legal, e existe o momento em que ele vai trabalhar, entendeu? Que ele tem que responder àquilo ali. E é diferente, pra mim assim, é diferente.”

(Cachorreiro 7)

As representações sociais sugerem que a relação de afeto entre cachorreiros e cães é estruturada para aceitar as questões objetivas de uma relação de trabalho, como, por exemplo, a morte dos cães. Para além das questões de treinamento e adequação funcional dos cães para o trabalho policial, a disciplina dos afetos se mostra importante para a instrumentalização do animal enquanto ferramenta de trabalho.

Os resultados apresentados aqui são parciais de minha pesquisa de doutorado.

Estas análises ainda serão aprofundadas e passarão pelo crivo científico. Crivo este do qual faz parte a apresentação neste GT

(19)

19 Referências Bibliográficas

ALBERNAZ, E. “Deus e o Diabo na terra do sol”: visões de espaço público, ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos do Rio de Janeiro.Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, 2009.

ALBERNAZ, E.; RIBEIRO, L.; LUZ, D. Uso progressivo da força: dilemas e desafios. In: STORANI, P. (Org.). Uso progressivo da força: um protocolo de atendimento. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2009. p. 12-15.

AMPARO-ALVES, J. À sombra da morte: juventude negra e violência letal em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Bahia Análise & Dados, Salvador, v. 20, n. 2, p.

563-578, 2010.

BARRETO, Eric Silveira Batista. Por dez vacas com cria eu não troco meu cachorro:

as relações entre humanos e cães nas atividades pastoris do pampa brasileiro. 2015. n.

116 de páginas. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós- Graduação em Antropologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.

BARROS, G. S. Filtragem racial: a cor na seleção do suspeito. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 134-155, 2008.

BECKER, H. S. Segredos e truques de pesquisa. Tradução, Maria Luiza X. de A.

Borges, revisão técnica, Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

CASTRO, P. A. L. Os convencionais e os especiais: um estudo sobre a construção da identidade dos integrantes do Batalhão de Operações Especiais da PMDF. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2012.

DeMELLO, Margo; JOSEPH, Cheryl. Human-Animal Studies – Exploring the Animal-Human bond through a sociological lens. NY: Lantern, 2010.

DUBAR, C. A Crise das Identidades: a interpretação de uma mutação. São Paulo:

Universidade de São Paulo, 2006.

FARR, Robert M. – ―Representações Sociais: a teoria e sua história‖. In: Textos em Representações Sociais. Petrópolis, Vozes, 1998.

IRVINE, L. Animals and Sociology. Sociology Compass, Blackwell Publishing Ltda, Colorado, v. 2, n.6, 2008

JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D.

(Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.

(20)

20 KRUSE, Corwin R. Social Animals: Animal Studies and Sociology. Society &

Animals. Koninklijke Brill NV, Leiden, 2002

LEWGOY, B. SORDI, C.; PINTO, L. Domesticando o Humano: para uma antropologia moral da proteção animal. Ilha Revista de Antropologia, v. 17, n. 2, p.

075-100, 2015.

animal life. H. Albany, N.Y.: State University of New York Press. pp. 37-54. 1999.

LIMA, M. H. Animais de estimação e civilidade : a sensibilidade de empatia interespécie nas relações com cães e gatos. Tese de Doutorado – Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Recife, 2016 MOSCOVICI, S. Representações sociais - investigações em psicologia social.

Petrópolis: Vozes, 2003.

MUNIZ, J. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 289 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.

______. A crise de identidade das polícias militares brasileiras: dilemas e paradoxos da formação educacional. Security and Defense Studies Review, Washington, DC, v.

10, n. 1, p. 177-198, 2001.

MUNIZ, Jacqueline; CARUSO, Haydée; FREITAS, Felipe da Silva. Os estudos policiais nas ciências sociais: um balanço sobre a produção brasileira dos anos 2000, BIB, v. 84, n.

2, p. 148 – 187, 2018.

NASCIMENTO, A. A. A corrupção policial e seus aspectos morais no contexto do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 5, n. 9, p. 16- 30, 2011.

______. Quando um homem da lei se torna um sem lei: os caminhos da corrupção policial. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

OLIVEIRA, S. B. Sobre Homens e Cães: Um Estudo antropológico sobre afetividade, consumo e distinção. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia). IFCS/ PPGSA, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

PORTO, M. S. G. Sociologia da Violência. Brasília, Verbana Editora, 2010.

_____. A violência urbana e suas representações sociais: o caso do Distrito Federal. In:

São Paulo, Perspectiva, v. 13, n° 4, out/dez, 1999

(21)

21 _____. Violência, democracia e segurança cidadã: o caso das Polícias no Distrito Federal.

Brasília: Verbena, 2017.

ROSA, L. O emprego de cães de faro nas operações de fiscalização de drogas ilícitas realizadas nos postos do Batalhão de Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina.

Monografia – Curso de Segurança Pública da Universidade do Vale do Itajaí, 2009.

SANDERS, Clinton R. The Sociology of Nonhuman: Animals and Society. In:

CLIFTON, D. Bryant & DENNIS L. Peck (ed.). 21st Century Sociology: A Reference Handbook (vol. 2). London: Sage, 2007.

SÁ, L.; SANTIAGO NETO, J. P. Entre tapas e chutes: um estudo antropológico do baculejo como exercício do poder policial no cotidiano da cidade. O público e o privado, Fortaleza, n. 18, p. 147-163, 2011.

SILVA, J. Representação e ação dos operadores do sistema penal no Rio de Janeiro.

Tempo social. vol.9, n.1, São Paulo, maio, 1997.

STORANI, P. “Vitória sobre a morte: a Glória Prometida”. O “rito de passagem” na construção da identidade dos Operações Especiais do BOPE/PMERJ. Rio de Janeiro:

UFF, 2008, 170 p. Dissertação (Mestrado) 0 Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2008.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ZACCONE, O. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

Referências

Documentos relacionados

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Considerando que, no Brasil, o teste de FC é realizado com antígenos importados c.c.pro - Alemanha e USDA - USA e que recentemente foi desenvolvido um antígeno nacional

By interpreting equations of Table 1, it is possible to see that the EM radiation process involves a periodic chain reaction where originally a time variant conduction

O desenvolvimento desta pesquisa está alicerçado ao método Dialético Crítico fundamentado no Materialismo Histórico, que segundo Triviños (1987)permite que se aproxime de

Portanto, podemos afirmar que alcançamos o nosso objetivo, pois o resultado do estudo realizado nos forneceu dados importantes para a compreensão daquilo que nos

O objetivo deste trabalho foi realizar o inventário florestal em floresta em restauração no município de São Sebastião da Vargem Alegre, para posterior

Assim procedemos a fim de clarear certas reflexões e buscar possíveis respostas ou, quem sabe, novas pistas que poderão configurar outros objetos de estudo, a exemplo de: *