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Nós: o Eu, o Tu e o Ele no processo de pesquisa

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Academic year: 2022

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Nós: o Eu, o Tu e o Ele no processo de pesquisa

Inez Helena Muniz Garcia1

quando me perguntaram porquê de viajar em jangada, soube logo dizer: “assim minha viagem é mais mansa!” e refiz-me ao rio, pois as tantas perguntas não combinam com a madeira. construí durante um tempo essa minha jangada. de noite, imaginava vozeamentos: “dedique-se ao trabalho; seja cortante; ajunte troncos e parta; viajar já é sempre uma descoberta e um começo.” 2

Ondjaki

O texto em epígrafe faz-me refletir que há muitas opções a serem feitas ao se empreender uma viagem, no caso, a escrita de um texto - importa, porém, partir do princípio de que a linguagem, considerada como central na constituição de sujeitos sócio-histórico-político-culturais, é constituidora e constituída na/pela atividade humana. Alio-me também ao pressuposto bakhtiniano3 (BAKHTIN, 1988) de que o ser humano se constitui na e pela interação, ou seja, através da rede de relações sociais de que participa.

Escutar e aprender com os sujeitos de uma pesquisa4 que realizei, de 2006 a 2011, em um assentamento de Reforma Agrário no Estado do Rio Grande do Norte, denominado Palheiros I, foi fundamental para que as trabalhadoras e os trabalhadores, pessoas simples e comuns, pudessem contar e resgatar suas histórias de vida. Esse foi o desafio em que me lancei: fazer do meu encontro com as trabalhadoras e os trabalhadores do Palheiros I, um acontecimento, isto é, algo singular e irrepetível. Tal

1 Universidade Federal Fluminense – UFF. inezhmg@gmail.co m

2 O escritor só escreve com letras minúsculas.

3 O termo bakhtiniano/a e a expressão “círculo de Bakhtin” referem-se aos estudos realizados por Bakhtin e um grupo de profissionais, de diferentes áreas e interesses, que durante os anos de 1919-29 trabalhavam em clima de amizade e colaboração. Além de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975), participavam do grupo: o filósofo Matjev Isaevich Kagan (1889-1937), Pavel Nikolaevich Medvedev (1891-1938), o filósofo e crítico literário Lev Vasilevh Pumpjanskij (1891-1940), Ivan Ivanovitch Solletinskij (1902- 1944), o linguista Valentin Nikolaevich Volochinov (1895-1936), a pianista Maria Veniaminovna Iudina (1899-1970).

4 Pesquisa realizada para a tese intitulada Um lugar chamado Palheiros: os sentidos dos discursos de Trabalhadoras e Trabalhadores rurais de um assentamento de Reforma Agrária no Rio Grande do Norte, de GARCIA, Inez Helena Muniz. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2012.

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foi a meta perseguida por mais de cinco anos: tornar aquilo considerado simples, trivial em algo que pudesse ser visto de maneira inusitada.

Procurei tecer sentidos entre as histórias de vida e a vida no assentamento das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais, a partir de seus discursos. Desde que os conheci, no ano de 2006, entraram em minha vida e, por consequência, em minha pesquisa. Ao contarem sobre suas experiências nos programas de alfabetização pelos quais passaram, seus usos e aprendizados da leitura e da escrita no cotidiano, revelaram retalhos de suas histórias em que passado, presente e futuro estão num ir-e-vir contínuo.

Trouxeram à luz lutas, sentimentos, atitudes, conquistas, sofrimentos de pessoas simples e comuns5, que andam com muita fé, que amarram seus arados às estrelas porque sonham que ainda virarão este mundo em terra, festa, trabalho e pão, e, como diz a letra da música Assentamento, de Chico Buarque, “onde só vento se semeava outrora [...]

vamos ver a campina quando flora” com: girassóis, gergelim algodão, milho e feijão no Assentamento Palheiros I.

Muitos já discutiram e discutem, pesquisaram e pesquisam sobre discursos de trabalhadoras e trabalhadores rurais que vivem em outros assentamentos de Reforma Agrária, já que “o objeto do discurso do falante, seja esse objeto qual for”, não é inaugural, uma vez que não sou a primeira pesquisadora a falar sobre ele (Cf.

BAKHTIN, 2000, p. 319). Consciente de que o objeto de estudo sobre o qual me debrucei, os discursos de sujeitos específicos, entendo que há outros olhares, outras visadas, outras miradas, outras maneiras de ver o mundo, o assentamento, seus sujeitos e suas histórias, pois os falantes, pesquisados e pesquisadora, não são um “Adão bíblico” (BAKHTIN, 2000, p. 319), somos todos irrepetíveis.

A escolha do Palheiros I como local de pesquisa não foi aleatória, mas de cunho ideológico, já que o ideológico é também vivencial, axiológico, valorativo, é aquilo que faz sentido para nós, uma vez que toda palavra é ideológica e reagimos àquelas que provocam ressonâncias em nós (BAKHTIN, 1988).

A escolha contempla, ao mesmo tempo, uma dimensão afetiva, ética e política, pois, desde o primeiro encontro, senti-me emocionalmente envolvida com as

5 Mesmo não vinculada à área da História, tomo emprestadas, ousadamente, as palavras de Carlo Ginzburg, historiador italiano, quando afirma: “No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer conhecer somente as “gestas dos reis”. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. “Quem construiu Tebas das sete portas?”– perguntava o “leitor operário” de Brecht. As fontes não nos contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso” (GINZBURG, 1998, p. 15 – grifo nosso).

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trabalhadoras e os trabalhadores rurais, uma vez que venho de uma trajetória de militância sindical, política e em CEBs – Comunidades Eclesiais de Base – porque os sentidos, sócio-históricos, se fazem em e por nós.

A convocação para uma escrita mobilizadora, capaz de mobilizar outros sentidos e novas configurações, “uma escrita em que se promova a implicação com o saber”

(GRIGOLETTO, 2011, p. 94), que provoca deslocamentos nos sentidos, nas interpretações, que possa analisar e refletir, que não seja apenas uma reprodução ou confirmação de teorias, mas que possa, a partir destas, revelar a autoria de uma pesquisadora que se envolve subjetivamente com o seu texto, responsável por sua produção, que também assume e se responsabiliza pelas faltas e pelas incompletudes de sua escrita, significa “assumir a direção”, condição para haver texto.

Necessitei, entretanto, de um afastamento dos sujeitos da pesquisa por um determinado período (16 meses). Tal distanciamento me fez olhar com minhas próprias lentes, encharcadas pelos meus julgamentos, valores e conhecimentos, e expressar como vejo que os sujeitos participantes desta pesquisa se veem, uma vez que “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não-eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu” (FREIRE, 1997, p. 46).

Essa posição singular assume uma direção exotópica, de onde se pode perceber o todo do Outro “e o mundo como algo que de fora o guarnece, restringe e acentua”

(BAKHTIN, 2003, p. 17). Esse modo de olhar, correlacionado ao que Bakhtin (BAKHTIN, 2003, p. 21), denomina excedente da minha visão, do meu conhecimento,

“é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo”, lugar esse que sou convocada a assumir, enquanto pesquisadora, para contemplar e completar o Outro, sem, contudo deixar que se perca a originalidade deste.

Um desafio que se impôs ao longo do trabalho foi não fazer da escrita apenas uma transcrição de falas, não coisificar e não atribuir uma explicação causal às escritas e falas dos sujeitos da pesquisa, mas trazer para o texto a cena enunciativa ao estabelecer uma relação de escuta dos Outros (sujeitos da pesquisa e diferentes autores).

Como estabelecer limites e possibilidades para ouvir e deixar falar a minha própria voz perante tantas alteridades, como revelar o que acredito ter descoberto e dar uma dimensão de acontecimento, bakhtinianamente falando, à minha abordagem foi a arena na qual me lancei, na ousadia de tentar responder à provocação de Bakhtin (2009, p. 149), quando assevera que: “uma problematização renovada pode colocar em evidência um caso aparentemente limitado e de interesse secundário como um

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fenômeno cuja importância é fundamental para todo o campo de estudo. Pode-se assim, graças a um problema bem-colocado, trazer à luz um potencial metodológico oculto”.

O encontro com o Palheiros I foi/é algo marcante, e um grande desafio foi trazer para este trabalho marcas significativas desse encontro. Se no início do processo de pesquisa havia convicções de que gostaria apenas de compreender como os sujeitos aprendem a escrever, após alguns encontros com as trabalhadoras e os trabalhadores foi preciso me deixar guiar pelo material da pesquisa e, ao deixar agir sobre mim os discursos desses sujeitos, encontrei respostas onde não as procurava, entendi que suas vidas, suas histórias, suas lutas e vitórias precisavam ganhar espaço.

Nesse processo de construção do conhecimento, em que é necessário mudar a maneira de ver as coisas, foi preciso ouvir e deixar falar não apenas o meu eu, mas também o meu tu e o meu ele. Esse distanciamento, longe de ser improdutivo, apesar de desconfortável e incômodo, provocou uma tensão dialógica, ou, como nos diz Bakhtin (2003), gestou uma bivocalidade6, deixar o Outro falar em nós, o que exige uma compreensão respondente e alertou-me que “o processo de pesquisa não é um processo de mimetismo” (Cf. AMORIM, 2004, p. 233), não é falar o mesmo que os outros falaram, mas, como pesquisadora, tenho que me responsabilizar por aquilo que discuto, tenho que me ocupar do lugar que me cabe, enquanto autora, na enunciação7, tenho que manifestar uma ação responsiva à opacidade da linguagem.

Ler e reler dezenas de vezes as transcrições feitas a partir das falas desses sujeitos permitiu-me abrir a identidade à alteridade (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008), já que aquilo que muito sobressai em seus discursos é que são, antes de tudo, trabalhadoras e trabalhadores. Os passos seguintes foram ouvir, ouvir, sempre ouvir e, a partir dessa escuta, tecer, dialógica e dialeticamente, sentidos sócio-históricos.

6 Bivocalidade é compreendida, como propõe Bakhtin, como: “O plurilinguismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução), é o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões. Ademais, essas duas vozes estão dialogicamente correlacionadas, como que se conhecessem uma à outra (como se duas réplicas de um diálogo se conhecessem e fossem construídas sobre esse conhecimento mútuo), como se conversassem entre si. O discurso bivocal sempre é internamente dialogizado”. (BAKHTIN, 2010, p. 127).

7 Enunciação é compreendida, como explica Bakhtin, como: “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor”. (BAKHTIN, 1988, p. 112). “A enunciação é de natureza social” (Ibid., p. 110). Portanto, a enunciação é uma resposta e não existe fora do contexto social.

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Para objetivar o trabalho foi preciso então fotografar e emoldurar as fotografias, não para que ficassem estáticas, imóveis, prontas e acabadas, mas para dar um tom, um

“acento apreciativo” (BAKHTIN, 1988) ao dizer e ao como dizer, na perspectiva de dar um acabamento, certamente provisório e inconcluso, mas necessário para a etapa de finalização do estudo. As opções teórico-metodológicas necessitaram, portanto, não ficar atreladas a uma posição a priori que possuía, enquanto pesquisadora, mas precisaram atender às demandas que a proposta de estudo criava. Muitas questões não serão respondidas, muitas dúvidas surgiram e outras permanecem.

Assumir a direção deste trabalho significou assumir a direção de um documentário, e exigiu não somente “Luz, câmera, ação...”, mas, acima de tudo, reflexão. Relevante registrar que ler e reler os discursos escritos e não escritos das trabalhadoras e dos trabalhadores tem um sentido muito diverso de vê-los e ouvi-los quando assisto às filmagens que foram feitas. Aquilo que está apenas escrito, transcrito, embora muito vivo e presente na memória, diz e mostra a vida e o mundo de uma maneira, mas quando se veem as pessoas em movimento, quando se ouvem as suas vozes, quando se olham as paisagens, o brilho do sol, a poeira que se levanta na estrada, a árvore carregada de umbu-cajá, as crianças que correm, quando se escuta o vento, o barulho da chuva, o olhar ganha outro foco, o mundo sai do preto e branco e se torna colorido, vivo, pulsante, e tudo aquilo que parecia oculto salta aos olhos, o que antes parecia tão insignificante torna-se grandioso. Essa etapa de encantamento associo à luz.

Câmera é a etapa do jogo de luz e sombra, isto é, destacar o quê, dar mais visibilidade a quê, são decisões importantes na realização de um documentário. Com a filmagem pronta, vem a etapa da ação, a montagem, a definição de quais planos e ângulos são mais relevantes.

Como dizer e deixar as trabalhadoras e os trabalhadores dizerem o assentamento, suas vidas, suas histórias, suas lutas, seus valores, seus sonhos, essa foi a etapa da reflexão, em que me aliei a outros(as) pesquisadores (as), recorri a autores diversos que me ajudaram a tecer sentidos nesta complexa trama do vivido/pesquisado; assim, foi posta a reflexão.

Vale ressalvar que essas etapas não são estanques, solitárias, mas estão inter- relacionadas, imbricadas umas nas outras, de maneira que em cada uma há algo da outra – onde está a luz, também se encontra câmera, ação, reflexão e assim sucessivamente. A pesquisa se debruça sobre os discursos dos sujeitos, coautores do trabalho, fundamentada na concepção de linguagem de Bakhtin, cujos estudos e contribuições

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motivaram o nascimento de uma análise/teoria dialógica do discurso em que o

“embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação entre língua, linguagens, história e sujeitos instaura os estudos da linguagem como lugares de produção do conhecimento [...]” (BRAIT, 2006, p. 10).

Torna-se necessário, portanto, evidenciar em que lugar teórico se encontra a compreensão de linguagem, língua, enunciado, discurso, sentido, palavra do outro, entre outros conceitos fundamentais para a concepção do estudo, já que o discurso é plural, vem povoado de discursos de outrem, sempre refletidos e refratados sob ângulos diversos.

Bakhtin assevera que a palavra está sempre relacionada às estruturas sociais, posto que, penetrando em todas as relações entre os indivíduos, é tecida por uma multidão de fios ideológicos, enredando todas as relações sociais, nem sempre harmônicas, são também relações de conflito, relações de poder. Nessa perspectiva, todo o dizer está carregado de valores, não existem enunciados neutros.

Em seus estudos sobre linguagem, Bakhtin (1988, 1993, 1998, 2000, 2003, 2008, 2009, 2010, 2011) afirma que o ser humano não pode ser compreendido fora do texto, pois todo ato da existência humana é um texto potencial que deve ser entendido no contexto dialógico de seu tempo e espaço. Bakhtin ressalta também que não há limites para o contexto dialógico, uma vez que “não existe a primeira nem a última palavra” (BAKHTIN, 2003, p. 410).

O texto não se trata apenas de um artefato (FARACO, 2009), é preciso compreendê-lo e estudá-lo em todas as suas dimensões, porque sua vida está nas inter- relações axiológico-dialógicas, pois é orientado por um princípio dialógico que espera respondibilidade e responsividade, uma resposta que torna cada pessoa respondível e responsável pelo que diz e pelo que faz.

O sistema de linguagem está por trás de cada texto, afirma Bakhtin (op. cit.), e a linguagem é constitutiva da língua e dos sujeitos que trabalham com a língua. Dessa maneira, a língua é um produto sempre inacabado, assim como os sujeitos, que são sempre instáveis, em sendo. Para Bakhtin (1988), a enunciação8, que é de natureza social, é a unidade de base da língua.

8 Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2003, p. 263), tradutor do russo de algumas obras de Bakhtin, explica que na obra bakhtiniana enunciação e enunciado se originam do termo visk ázivanie, que significa ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos em palavras, como o seu resultado, por

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A compreensão, em perspectiva dialética e dialógica do discurso dos sujeitos, com base em estudos de Bakhtin e de outros autores, tem merecido atenção, mostrando- se um caminho fértil. Segundo Bakhtin (1988, p. 31-38), a sociedade vai se organizando e organiza signos. Esses signos possuem significados, ideologicamente constituídos, que refletem e refratam uma realidade e que remetem a algo que lhes é exterior. Ao nascer, o sujeito se apropria da linguagem sígnica e, ao mesmo tempo, vai se constituindo como sujeito social, desenvolvendo, neste processo, a consciência ideologizada. A palavra tem papel fundamental em tal desenvolvimento, uma vez que, enquanto signo ideológico, evolui, desenvolve-se nas relações sociais e, ao mesmo tempo, é produzida pelo organismo individual, o que, de acordo com Bakhtin, determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência. O teórico afirma que sem tal material, flexível e veiculável pelo corpo, a consciência não poderia se desenvolver. Somado a isso, fenômeno ideológico por excelência, a palavra é também um signo neutro, pois, diferente de outros sistemas de signos, encontra-se aberto para preencher qualquer função ideológica, além de acompanhar e comentar todo ato ideológico.

Na concepção dialógica da linguagem postulada por Bakhtin (1988), a intersubjetividade antecede a subjetividade. Para o autor, a intersubjetividade, que é a interação das subjetividades dos sujeitos socialmente constituídos, deve ser entendida em termos “psíquicos, sociais e históricos”, em vez de puramente psicológicos (BAKHTIN, 1988, p. 64-65), já que o sujeito da linguagem interage com outros sujeitos, e a linguagem carrega a história dos falantes, história essa que é também apropriada por todos. A linguagem é ideologizada9 de vários modos, segundo valores de classes e grupos sociais, sendo que a classe dominante tenta apresentar o signo como monovalente, destacando os sentidos que lhes são caros. Essa é uma tensão que existe em qualquer signo. Alguns enunciados, que se originam de outros discursos, vão sendo incorporados por nós e ancorados em nós, vão entrando em nossas vidas, vão-nos afetando de modos diferentes. Outros brigam conosco uma vida inteira, disputam poder

exemplo, um romance. Segundo ele, Bakhtin não faz distinçã o entre enunciação e enunciado. Neste trabalho, os dois termos são utilizados indistintamente.

9 No texto “¿Que es el lenguaje?”, de 1930, de Voloshinov (1993, p. 224), encontramos: “Por ideología entendemos todo el conjunto de los reflejos y de las interpretaciones de la realidad social y natural que suceden en el cérebro del hombre, fijados por médio de palabras, diseños, esquemas, y otras formas sígnicas”.

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em nosso discurso interior. Esses signos ideológicos, portanto, vão formando a consciência dos sujeitos, o que e quem eles são10.

O signo organiza-se acima de interesses individuais, assim novos sentidos, novos significados e também novos signos, não necessariamente verbais, podem surgir.

Bakhtin interessa-se pelo signo verbal, pela linguagem presente em todos os meandros da vida social. Segundo ele, a linguagem é onipresente, mesmo quando estamos calados está presente em “todos os atos de compreensão e de interpretação”. Daí ela nos tornar seres linguageiros.

Compreende-se, então, a linguagem como uma prática social. Nesse processo, a linguagem não está “solta no ar”, ela está diretamente interligada à realidade, pois entre a leitura de mundo e a leitura da palavra há um ir e vir constante, como nos afirma Freire (1987).

Bakhtin (2003) ensina que a palavra do outro (enunciado, produção do discurso) é qualquer palavra que não seja a própria, isto é, qualquer palavra dita ou escrita por qualquer pessoa, em qualquer língua. Nessa perspectiva, vivemos em um mundo de palavras do outro, pois tudo aquilo que nos diz respeito, inclusive nosso próprio nome, chega do mundo exterior à nossa consciência pela boca dos outros. “Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo” (BAKHTIN, 2003, p. 410).

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução do francês de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

10 Segundo Bakhtin (1998, p. 145-146): “[...] a palavra persuasiva interior no processo de sua ass imilação positiva se entrelaça estreitamente com a “nossa palavra” [...] Nossa transformação ideológica é justamente um conflito tenso no nosso interior pela supremacia dos diferentes pontos de vista verbais e ideológicos, aproximações, tendências, avaliações”.

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______. Problemas da poética em Dostoiévski. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4.

ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.

______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora Bernadini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

______; DUVAKIN, Viktor. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Tradução de Daniela Miotello Mondardo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.

______; VOLOCHÍNOV, Valentin N. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. Tradução do russo para o italiano de Luciano Ponzio. Equipe de tradução e revisão do italiano: organização aos cuidados de Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro

& João Editores, 2011.

BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 9-31.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. 10. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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RIOLFI, Claudia Rosa; BARZOTTTO, Valdir Heitor (Orgs.). O inferno da escrita:

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