Francisco Caramelo
Um dos traos essenciais da
ideologia
real nasmonarquias
deIsrael e da
Mesopotmia
arelao
entre o rei e o deus criador.essencialmente da
complexidade
dessa metfora quedepende,
noplano
ideolgico,
opoder
real e a suainteligibilidade
em termosgerais.
O rei entendido comorepresentao
da divindade tutelar edemirgica.
Na
ideologia
realisraelita,
a metfora encontra a suaplenitude
no conceito dealiana,
contruo
fundamentalmenteteolgica,
mas que estrutura um corpo de ideias sobre opoder,
sobre a suaorigem,
sobre o seu exerccio e sobre os seus limites. Paralelamente, encon
tramos nas
monarquias mesopotmicas
umaconcepo
sobre opoder
que nos sugere muitas similaridades com a viso vetero-testamentria.Em ambos os casos, o
poder
resulta dadelegao
divina e da suarepresentao
noplano
terreno.Um dos
exemplos
paradigmticos
da metfora bblica a descrio
alegrica
de 2Sam.7,
retomada no si. 89. Esta narra a promessa de uma dinastia a David. A promessa insere-se noquadro
de umaaliana
que compromete ambas as
partes
- Iav e o rei. O rei torna-se o inter locutorprivilegiado
deIav,
escolhido por ele para mediar a sua relao
com Israel. Atravs deste processo deeleio/escolha,
David exaltado comofigura
eminente eperdendo
a suacondio
de homem comum, desimples
pastor,
escolhido por Iav para ser o rei de Israel. Eis aspalavras
de Iav(v. 8):
"Tirei-te de andarespelas
Revista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n. 10, Lisboa, Edies
pastagens,
atrs dosrebanhos,
para fazer de ti o chefe do meu povo, Israel."1. No si.78,70-71,
podemos
encontrar esta mesma ideia:"Escolheu tambm o seu servo
David,
que era pastor deovelhas;
reti-rou-o de trs dosrebanhos,
para serpastor
dos descendentes deJacob,
que so o seu povo e a suaherana."
Em ambos os casos, assistimosutilizao
do verbolqah (tirar
ouretirar)
para traduzir aaco
divinae o
consequente
destino de David. O v.70 recorre ao verbo bhar(escolher)
que vemreforar
esta ideia da escolha. David detm neste contexto umpapel
de certapassividade,
na medida em que Iav que o escolhe e que o tira daspastagens,
destinando-lhe uma misso. Deustem toda a iniciativa neste processo.
Os salmos
reais,
bem comoalguns
outros,reflectem,
mais ou menosexplicitamente,
esta ideia estruturante naconcepo
israelita de realeza. Alegitimao
do rei derivava da escolha de Iav. David exerceria a realeza porque Iav opreferira.
Seria rei por vontade divi na. Esta temtica ocupa umlugar
dedestaque
nastradies
narrativasligadas
a David. O si.89refere-se,
em duasocasies,
a este tema. No v. 4, diz-se apropsito
daaliana
com David: "Fiz um pacto com omeu
escolhido,
fiz uma promessa ao meu servo David". Mais adiante,no
v.20,
podemos
ler: "Escolhi umjovem
em vez de umheri;
fiz subir ao trono um rapaz em vez de um soldado". O termo bhur, utilizado para definir
David2,
pode
significar
o escolhido3 ou ojovem4,
o que no deixa de serinteressante,
na medida em que nestaeleio
podem
estarimplcitas
as caractersticas dejuventude
e devigor
fsico que deviamconfigurar
o soberano oriental. Por outro lado, bhrsignifica
tambm opreferido,
o amado. Nopodemos
deixar de pen sar noepisdio
que descreve o encontro de Samuel com David(1
Sam.16,6-13).
Este o ltimo a serapresentado
aoprofeta
mas nodeixa de o
impressionar pela
suamagnfica
presena. Nosl.45,3
podemos
tambmler,
apropsito
do rei: "Tu s o mais formoso doshomens! Dos teus lbios brota encanto!".
Ao modelo de
representao
parecem essenciais caractersticas como o encantofsico,
ovigor
e ajuventude.
Estes atributosjustifi
cam, de certa
forma,
arepresentao
e a consequentelegitimidade
do1 Utilizamos
atraduo portuguesa: Bblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bblica, 1993.
2 O
particpiodo verbo bhar.
3 Cf. Giorgio Castellino, Libro dei
Salmi, Turim-Roma, Marietti, 1955, p.606. Traduzcomoeleito.
4 Cf. a
traduo proposta por Lipinski, Le PomeRoval du Psaume LXXXIX
rei. Se certo que a escolha parece resultar da vontade exclusiva da
divindade,
certos atributos parecemjustificar
eexplicar
aeleio.
0 tema da
eleio
tem umafuno
essencialmenteideolgica,
destinada
aenquadrar
e aexplicar
o processopoltico
da sucesso,fosse esta
pacfica
ou violenta. Noobstante,
esteprincpio
sugerecontradies
com aregularidade
e com a estabilidade da sucesso dinstica. Se serprimognito
do soberano anteriorlegitimava
o direito sucesso,qual
era ento a necessidade doprincpio
daeleio?
Podemos
suspeitar
de que este tema tenha tido a suaorigem
em processos de
ruptura
poltica
e deinterrupo
dinstica. Nesses momentos tomava-se fundamental
explicar
ausurpao
elegitimar
noplano
ideolgico
o novo rei.Ora,
naMesopotmia,
asusurpaes
foram frequentes
e muitas vezes no foi oprimognito
a suceder aopai,
mas simum outro filho. Por outro lado, mesmoquando
a sucesso se veri ficava de forma estvel eregular,
oprincpio
da escolhadivina,
explo
rado napoesia
laudatria(hinos
e salmosreais),
confirmava dejure
uma realidadej
consumada,
como se cada novo soberanoprecisasse
manifestar o seu estatuto de
representao.
A literatura hnica assiro-babilnica
depositria
dealgumas
referncias degrande
interesse. o caso de umaorao
deAssur--nasir-apli
I deusa Istar5:"(...) Mas tu, Istar,
Drago
imponente
dos deuses,Tu ergueste os olhos sobre mim e
desejaste
que eu fosse o senhor;Tiraste-me do meio das montanhas e chamaste-me para ser
o pastor das gentes;
Asseguraste-me
um ceptrojusto
paraaperenidade
doslugares
habitados.
Tu, Istar, tornaste o meu nome ilustre (...)".
As afinidades so, como
podemos
verificar, evidentes.Primeiro,
aateno
da divindade recai sobre o homem, sobre osimples
pastor.
Em
seguida,
a divindade escolhe-o,elege-o
para um destino relevante, para uma misso.Finalmente,
e emconsequncia,
exalta o seu nome, toma-o ilustre.Esta
escolha/eleio
resulta do amor da divindadepelo
seu"favorito".
Ainda na mesmaorao,
podemos
encontrar aconfirmao
deste sentimento que une rei edivindade6:
5
Traduo
deMarie-Joseph Seux, Hymnes et Prires aux dieux de
Babylonie
etdAssyrie,
Paris, Les ditions du Cerf, 1976, p. 499.6 Idem,
"(...) Sou
Assur-nasir-apli,
teu dolente servidor,Respeitoso,
que teme a divindade,circunspecto,
que tu amas (...)".Logo
aseguir
aindapodemos
ler7:"que
deseja
o teucorao
eque tu amas"8. O
epteto
"favorito" ou "amado" ocorre comalguma
frequncia
nos hinos assrios e babilnicos9 NoCdigo
de Hamurabitambm encontramos o
epteto
"favorito deTutu"10,
traduzido doacdico na-ra-am Tu-tuu
O tema da
escolha/eleio
envolve futuramente umarelao
muitoespecial
entre o rei e a divindade. No entanto, estarelao
constitui um edifcio em
permanente
construo,
na medida em quedepende
estreitamente dareciprocidade
no entendimento entre ambasas partes. O favoritismo de que goza o soberano
pode
inesperadamen
te esgotar-se, em
consequncia
dasaces
dorei,
no condizentes com osdesejos
da divindade. Aeleio
pressupe
porconseguinte
umaespcie
de contrato firmado entre ambas as partes. No caso daideologia
realisraelita,
aaliana integra,
numquadro
maisamplo
e estruturado, o tema daeleio.
Iav consuma comDavid,
o seueleito,
umaaliana
queobriga
ambas as partes. A promessa decorre daeleio,
no entanto, ela noirreversvel,
na medida em que orei,
setransgredir
osparmetros
daaliana, pode
cair emdesgraa,
deixando de ser o favorito de Iav.No caso da
ideologia
realassiro-babilnica,
nunca encontramosestruturada com a mesma
profundidade
a ideia de umaaliana.
Podemos porventura afirmar que a ideia de uma
aliana
entre a divindade e o reipermitiu
asistematizao
de todos os conceitosideolgicos
deum modo mais coerente que
aquele
que se observa naideologia
assiro-babilnica. No entanto, no deixa de haver a conscincia de uma
relao
dialctica e dinmica, e portantojamais
consumada e7 Ibidem.
s Em acdico
podemos ler: bi-bil lib-biki sa tarammi (cf. CAD B, p. 22). Trata-sedo
verbormu(m) (amar).
9 Cf. Seux,
op.cit., passim. 0 Cf. Finet, Le Code de
Hammurapi, Paris, Lesditions du Cerf, 1973, p. 37.
1 Cf.
Borger,
Babylonisch-Assyrische
Lesestiicke, Roma, Pontificium InstitutumBiblicum, 1979, p. 6. Trata-se do adjectivo narmu(m) que significa "favorito" e
que se relaciona com o verbo rmu(m). Encontramos este termo na onomstica
acdica. Eo caso de Naram-Sn que podemos traduzir por "favorito de Sin". Como
sabemos, a onomstica real reflecte, em grande medida, a ideologia real, por
definitiva, entre o rei e a divindade. A
morfologia
destarelao
introduz condicionalismos na
eleio
dosoberano,
desmentindo o carcterde
perpetuidade
aparente.
Efectivamente,
a escolha a que a divindadeprocede
e aexaltao
do rei so reversveis. Adivindade,
como parteactiva na
relao
com o monarca,pode,
a todo o momento,pr
emcausa o favoritismo com que o
cumula,
deixando de nutrir por ele ossentimentos e a
predileco
que lhe dedicava.Estes sentimentos so ocasionalmente
concretizados,
definindo--se a
relao
entre a divindade e o rei como a de umpai
para com o seu filho. Em 2Sam.7,14,
podemos
ler apropsito:
"Serei para ele como umpai
e ele ser para mim como um filho." O autor refere-sedescendncia de David. Desde
logo podemos compreender
que o reino entendido como filho natural de
Iav,
mas tratado como umfilho. Iav
adopta
o rei como seu filho. Porconseguinte,
a entronizao
constitui,
simultaneamente, aadopo
do soberano por parte deIav. De
algum
modo,
aadopo complementa
e intensifica a ideia deeleio
de que temos vindo afalar,
na medida em que afiliao
aproxima
ainda mais o rei de Iav.Nos salmos encontramos
igualmente
algumas
aluses a esta relao
pai-filho.
o caso do si.2,7:
"Tu s meu filho; desdehoje
sou teupai."
A crena de que o rei era, narealidade,
filho natural dos deuses parece tervingado
na culturacananeia12,
talvez por influnciaegpcia.
Em Israel no se verificam traos de uma realeza divina. NaMesopotmia, podem
observar-sealguns
casos mas que constituemexcepes.
Preferirmos traduzir o verboylad
porcriar,
mantendoassim o sentido de
adopo13
No si.
89,
27,
encontramos uma referncia semelhante: "Tu s o meupai;
s o meuDeus,
que me salva eprotege."
Nov.28,
apura-seesta ideia de
filiao.
O rei considera-seprimognito
deIav,
o quecoloca novos
problemas
quanto
discusso em torno dafiliao
natural.
Todavia,
estamos em crer que aafirmao
daprimogenitura
pretende to-s
reforar
ofavoritismo,
a exclusividade e sobretudo alegitimidade
do rei. Por outrolado,
doponto
de vistajurdico,
preten
de reafirmar os direitos do soberano, como
primognito,
herana
de seupai,
isto,
aoprimado
sobre Israel e ao domnio universal. No12 Cf. Mitchell
Dahood, Psalms I 1-50, New York, Doubleday & Company, 1966,
pp. 11-12.
13 A Bible de Jerusalm admite a
sl.2,8
esta ideia aparece expressa de forma bem evidente:"Pede-me,
que eu te darei a posse de todas as
naes
e a terra inteira emproprie
dade".
Ishida avana com uma
interpretao
alternativa para esta fraseologia
tpica
daideologia
real. O autor faz uma leitura dos termospai
e filho luz dasrelaes
devassalagem
que caracterizavam os tratados e asrelaes
entre os estados orientais14.Parece-nos,
todavia,
que a dimenso e osignificado simblico-ideolgico
darelao
depaterni
dade/filiao
que caracteriza divindade e rei no se esgota a. Aprpria amplitude
semntica dos dois termos vasta,podendo
carac terizar no apenas arelao
natural entrepai
efilho,
como tambm arelao
do mestre com o seudiscpulo.
Porconseguinte,
aaplicao
deste binmiocaracterizao
darelao
entre Iav e o rei deveimplicar
uma leitura maisabrangente.
Observemos agora os
paralelismos
assiro-babilnicos. Numaorao
deAssurbanpal
a Ninlil15podemos
ler:"Eu, teu servidor,
Assurbanpal,
que as tuas mos criaram,Que criaste sem
pai
nem me"16Noutros casos, o rei
queixa-se
de que foi abandonado por os seusprogenitores,
valorizando-se assim apaternidade
divina econfirman-do-se a
prioridade
da ideia daadopo
sobre a dafiliao
natural: a-biu bnt tzibuinnima11'.
Curiosamente,
encontramos a mesma ideia epraticamente
a mesmafraseologia
no si.27,
10: "Ainda que o meupai
e a minha me meabandonem,
o Senhor tomar conta de mim"18.Trata-se efectivamente da mesma ideia de abandono por parte dos
progenitores
e daadopo subsequente pela
divindade.Sugerem-se
duas atitudes opostas. Ospais
naturais abandonam ofilho,
deixando-o indefeso. Pelocontrrio,
Iav acolhe-o e protege-o. Curiosamente, os dois verbos apresentam uma sonoridade muito semelhante(<zab=
14 Cf. Tomoo
Ishida, The Royal Dynasties in Ancient Israel. A Study on the
Formation and Development of Royal-Dynastic Ideology, Berlin-New York, Walterde Gruyter, 1977, p. 108.
15 Trata-se daorao nl de
Assurbanpal (cf. Seux, op.cit., p. 503).
16 ul idiAD
u wn-me amli: noconheci pai nem me(cf.CADA,l, p. 68).
17 "Pai e me, abandonaram-me"
(cf. ibidem e tambm Lambert, Babylonian Wisdom
Literature, Oxford, ClarendonPress, 1975,70:11). 18 E possvel
que alguns salmos, ainda que no classificados como salmos reais,
retenham residualmente esta temtica da relao especial entre o rei e Deus,
abandonar e
'"sap
= tomar sobproteco),
o quepermite
pensar que opoeta
jogou
no apenas com ossignificados antagnicos,
como tambm com a consonncia dos referidos termos.A ideia da
paternidade
divina est tambm presente naorao
deNabucodonosor II a Marduk:
"Marduk,
Enlil dosdeuses,
deusque me criou"19. E tambm o caso de uma outra
orao
do mesmo soberano aMarduk: "Foste tu que me
criaste,
amim,
oprncipe
que tu acolhes, acriatura das tuas mos, confiaste-me a realeza sobre todos os
povos"20.
0 verbo acdico que encontramosaqui
a traduzir "criar" o mesmoque
podemos
observar noEplogo
doCdigo
de Hamurabi21:(col.XXVII)
41)
dSn(ZUEN)
be-el sa-me-e42)
Hum(DINGIR)
ba-
-ni-t.-Em
concluso,
arelao
depaternidade
que no contexto da ideologia
real caracteriza aligao
entre rei e divindaderefora
alegiti
midade do soberano e intensifica o tema da
eleio,
colocando o reinum
plano
no apenas dedependncia
mas sobretudo derespeito
filialpela
divindade. Osoberano,
como filho dilecto da divindade,pode
esperar dela o auxlio nos momentos decrise,
pode
usufruir da estabilidade e da durabilidade da sua
herana
que consiste afinal na realezae no domnio sobre o
pas.
Aadopo
garante ao soberano os direitoslegais
sobre a suaherana, legitimando-se
assim o seupoder
e o dos seus sucessores.No
obstante,
o rei tambmpodia
esperar da divindade a apreciao
das suasaces
e do seureinado,
podendo
serpunido
se os seus actos no fossem de encontro aosdesejos
divinos. Estaideia,
queimplica
ojulgamento
da actividade dorei,
dealguma
maneira prende--se com um outroaspecto.
A divindade mantm com o rei umarelao
educativa e tem para o soberano uma
funo
pedaggica,
procurando
orientar o seu
comportamento.
emfuno
destaorientao
que a divindadeprocede
avaliao
daactuao
do rei, cumulando-o de favores oupunindo-o,
conforme as circunstncias. Analisemosalguns
exemplos
quepodemos
verificar nos salmos. O si. 18,35 refere-sefuno
educativa de Iav num contexto de guerra: "Ele exercita-me19 Trata-se da
orao n3 a Marduk (cf. Seux, op.cit., p. 508).
20 Orao n5. Cf.idem,
p. 509.
21 "Sin, o senhordos cus,o deus que me criou". 22 Cf.
Borger, op.cit., p. 48. O verbo bnu(m), que aqui encontramos traduzido por
para a batalha e
pe
nas minhas mos um arco de bronze"23. Nosi.
144,1,
encontramos a mesmaideia,
integrada
num contexto semelhante, bem como o recurso ao mesmo verbo
(lmad).
No entanto, ocontexto mais
significativo
para autilizao
desta temtica o que serefere ao
cumprimento
daaliana
e aorespeito pelos
ensinamentos deIav. Se o rei
negligenciasse
oscompromissos
assumidos noquadro
da
aliana
com Iav oudesrespeitasse
alei,
isto,
os seus ensinamentos e as suas
prescries,
era avaliado emfuno
do seu comportamento e
punido
como opai punia
o seu filho ou o mestrecastigava
oseu
discpulo.
Osl.89,31-33
muito claro a esterespeito:
"Mas se os seus descendentes abandonarem a minha lei, se no andarem
segundo
as minhas ordens,se violarem os meus
preceitos
e no
cumprirem
os meus mandamentos,ento, hei-de
castig-los
severamentepelos
seuspecados,
e faz-los sofrerpelos
seus erros."O rei era como um
discpulo
para Iav. Devia ouvi-lo eguardar
os seus ensinamentos(si.
132,
12).
Ocastigo
destinava-se acorrigir
o comportamento futuro dorei,
a orientar os seus caminhos. Por conseguinte,
apunio
revelava,
como afirmmosj,
umafuno
pedaggica
e redentora do reiinquo.
Opai
e/ou o mestrequando
puniam
o filho e/ou odiscpulo
era para os colocarem no bomcaminho. A
punio
nosignificava,
finalmente,
umacondenao,
mas sim acorreco
pois,
assim como opai
amava o seu filho e sabiaque tinha que o
repreender
e indicar-lhe ocaminho,
tambm o mestreadmoestava o
discpulo
para lhe ensinar a via correcta. Iav instrua o rei desde a suajuventude
("Instruste-me,
Deus, desde a minhajuventude",
sl.71,17)24
einstigava-o
a deixar-secorrigir:
"E agora, prestemateno25,
reis;
aprendam
alio,
governantes do mundo!"(sl.2,10).
No contexto da literatura assiro-babilnica no so to
frequentes
23 O verbo lamad, traduzido
aqui por "exercitar", tem como significados mais cor
rentes "instruir" ou "ensinar".
24
Apesar de no ser um dos salmos geralmente classificados como salmos reais,
Eaton considera quetrata de umsalmo comcontedo monrquico (cf. Eaton,John,
Kingship andlhe Psalms, Sheffield, JSOT Press, 1986, p. 54). 25 O verbo s'kal
pode tambm significar "ser prudente", o que ajuda a
compreender
a orientao educativa de Iav. Aprudncia era considerada, nos crculos
referncias
destegnero.
Podemos,
no entanto, apontar comoexemplo
uma
orao
aEa,
pelo
reiSargo
II,
em quepodemos
ler26:"Confere-lhe como destino um vasto entendimento, uma larea
inteligncia,
Assegura-lhe
sucesso na sua actividade, que ele obtenha o quedeseja!"
No
podemos
deixar de pensar emlRs.3,9-12,
ondeSalomo,
em vez de reclamar asbnos
que os soberanos orientais tradicionalmente
pediam
divindade-longevidade, prosperidade
e vitria na guerra - solicita umcorao
sbio einteligente.
Esta
orao
a Eacontempla
a temtica fundamental que nosocupa. Efectivamente, o
poeta
roga para o monarca um "vasto entendimento" e uma
"larga
inteligncia"
e s a divindadepodia
concederestes atributos ao rei. No contexto da literatura
sapiencial,
a sabedoriaconstitua uma
qualidade
essencial ao bom rei. Era a sabedoria queconferia ao soberano a conscincia dos limites da sua
actuao
e configurava
orespeito
queaquele
deveria terpela
divindade.O
elogio
da sabedoria real como caracterstica necessria ao rei ideal ocorre em diversas ocasies noCdigo
de Hamurabi.Logo
noPrlogo, podemos
ler acerca de Hamurabi27:(col. III)
16) i-lu sr-r17)
mu-deigigallim
(IGI.GL-//??)28.
A sabedoria de Hamurabi temuma
importncia
extraordinria noperfil
do rei. Aarticulao
que o autor faz das duas partes da frase no ocorre por acaso. Hamurabi"deus dos
reis"29,
o que faz dele o maispoderoso
dos monarcas mas,por outro
lado,
aexpresso
pode
pretender
identific-lo directamente com adivindade,
atribuindo-lhe,
ainda que de maneiraambgua,
qua-Cf.Seux, op.cit., p. 528.
Finetprope: "Deus dos reis, (eu sou) aquele que conhece a sabedoria" (cl. Finet,
op.cit., p. 37).
Cf. Borger,op.cit., p. 6.
De acordo com Finet, a expresso "deus dos reis" refere-se a Hamurabi e no a
Ezida (Casa da Verdade, nome do templo do deus Nabu em Borsipa), o que nos
obrigaria a ler "Ezida [residncia] do deus dos reis". Na verdade, ainda de acordo
com Finet, esta expresso recorda uma inscrio em sumrio em que Hamurabi se
intitula "deus [do seu] pa[s]" (cf. Finet, op.cit., p. 37). Efectivamente, podemos ler nesse texto: "Hammu-rapi, deus [do seu] pa[s], que An revestiu de esplendorreal"
(cf.
Sollberger,
E. eKuppcr,
Jean-Robert, Inscriptions Royales Sumeriennes etAkkadiennes, Paris,Les Editions du Cerf, 1971, p. 218 [IV C61]). A expresso i-lu
sr-rpoder traduzir uma espcie de superlativo, fazendo de Hamurabi o "maior
lidades divinas. Uma dessas
qualidades
divinasprecisamente
a sabe doria30e Hamurabiapresenta-se
comoaquele
que conhece a sabedoria.A
sabedoria,
queimplcita
ouexplicitamente
tem umaorigem
divina, confere ao rei no apenas acapacidade
dejulgar
mas fundamentalmente a conscincia de que deve
respeitar
a divindade. NoAntigo
Testamento, aexpresso
"temor aDeus",
traduzindo uma ati tude reverenciai, muito comum na literaturasapiencial,
emboratambm ocorra com
frequncia
noutros contextos. O temor a Deus eraentendido como
expresso
da sabedoria do homem emgeral
e do rei emparticular,
traduzindo a atitudeparadigmtica
para com Iav. Temer a Deussignificava
uma virtude quedistinguia
o bom homem dompio
e o rei ideal do reiinquo.
Assim,
Iav desafia os reis a seremprudentes
e a deixarem-secorrigir
(si.
2,
10).
Porconseguinte,
otemor a Deus
significava
o caminho recto e tambm agarantia
de que o rei veria a suajustia
e a sua atitudeexemplar
retribudas e compensadas. Como que o rei
podia
provar o seu temor a Iav? Fazia-o,cumprindo
a vontade deIav,
isto,
respeitando
oscompromissos
assumidos noquadro
daaliana.
Se ofizesse,
Iav manteria apromessafeita a David e a realeza
perduraria.
Nas
oraes
assiro-babilnicas,
encontramosexpresses
similares:
"que
teme a tuadivindade"31,
"A mimAssurbanpal,
que temo atua
grande
divindade"32,
"Quanto
amim,
Nabnides, rei da Babilnia,que temo vossa
grande
divindade"33. Temer a divindadesignificava
acatar a ordem social e
poltica:
"Estabelece o temor a Sin, o Senhor dos deuses noscus,
nocorao
das suas gentes para que nocometam
faltas;
que as suas basessejam
estveis.Quanto
a mim, Nabnides, rei daBabilnia,
que temo a vossagrande
divindade, que eu goze infinitamente de vida!"34. O temor divindade condicionava a estabilidade e a durabilidade do reinado e da dinastia; o reirespeitava
a
divindade, esperando
que ela o cumulasse de favores e lheassegu-30 Encontramos no
Prlogo a expresso "a muito sbia Mama" (cf.Finet, op.cit.,
p. 38). Mama um dos nomes atribudos a Nintu. Em acdico podemos ler:
(col.III) 28) e-ri-is-tum 29) dMa-ma (cf. Borger, op.cit., p. 6). E-ri-is-tum a
forma feminina de ersu (=sbio). Portanto, a sabedoria um dos atributos da
divindade. 31 Cf. Seux, op.cit.,
p.498.
32 Idem,
p. 504.
33 Idem,
p. 523.
34 Orao n2 de Nabnides
rasse o
poder.
No entanto, era a divindade que incutia o temor no rei, da que o soberano o reivindicasse como ddiva divina nas suasoraes
para si e para os seus sucessores:"Quanto
a mim,Nabnides,
rei da Babilnia, salva-me de
qualquer
falta arespeito
de tuagrande
divindade epresenteia-me
com uma vida delongos
dias. E quanto aBaltazar, filho
primognito
sado demim,
estabelece no seucorao
otemor de tua
grande
divindade,
para que ele no cometa faltas; que elegoze infinitamente de vida!"35. O temor divindade era assim funda
mental para a sobrevivncia e para o sucesso do
rei36,
embora nodependesse
do livre arbtrio do soberano. A conscincia do temordivindade era-lhe suscitada
pela prpria
divindade: "suscita no meucorao
o temor da tua divindade"37. Era ocorao,
sede do entendimento humano, que
albergava
o temor divindade, tal comoalberga
va ainteligncia,
aprudncia
e a sabedoria que Salomo reclama deIav.
Entre o rei e a divindade,
sejam
os deuses assiro-babilnicos,seja
Iav,
estabelece-se uma verdadeirarelao
dialctica de invocao
e deresposta.
O reipede
divindade que ooia
e o atenda nahora de
aflio.
Esta aceita ou no essepedido
do soberano, emfuno
do seucomportamento
anterior.Como
verificmos,
arelao
entre a divindade e o rei era entendida em vrios
planos
que, emqualquer
dos casos,implicavam
apreferncia
e aeleio
do rei. Porconseguinte,
estes diversos nveisexplicativos
dacomplexa relao
entre o rei e a divindade, no seopem
mas,pelo
contrrio,
sobrepem-se
einteragem.
Este corpo deideias que analismos constitui um intrincado e
complexo
edifcioideolgico,
cujos
elementos se imbricam harmoniosamente, contribuindo para a coerncia e
lgica
finais da estrutura.O rei a
representao
da divindade e dessacondio
que deri va alegitimidade
ltima dopoder.
Estepoder
tem umaorigem
divina, na medida em quedelegado pelo
deus no soberano que orepresenta,
seu
lugar-tenente
eresponsvel
pela
difuso da sua ordem.Ameaar
opoder
do reisignificava transgredir
a ordem divinapela qual
osobe-5
Orao
nl de Nabnides a Sn (Idem,p. 52 1 ). 6 A realeza tinha a sua
origem no temor divindade. Neste hino acrstico, Marduk
concede os smbolos da realeza ao que manifesta esse respeito: "[Que concede o
ceptro] e o trono real ao rei que [o] teme" (Idem, p. 127). Em acdico, podemos
ler: pa-li[h-(h)i-stt. Trata-se do
permansivo
na 3a pessoa masc. pi. do verbopalhum (temer), seguido do pronome su que se refere ao deus Marduk. 7
Orao
n5 de Nabucodonosor II a Marduk (Idem,rano era
responsvel.
O rei era aimagem
terrena do deus e a representao
justificava-se
na medida em que era o soberano quem maisprximo
se encontravada divindade e quem mais se assemelhava aela. Arepresentao
dadivindade,
exercidapelo
soberano,
funda-mentava-se no
princpio
teolgico
eideolgico
de que havia umarelao
simtrica entre o mundo terreno e o mundo divino. A divinda de supremaimpunha
e conservava a ordem no mundo divino e dele gava no rei a misso de o fazer tambm noplano
terreno.A
representao
realizava-se atravs da escolha divina. O deus descobria norei,
quando
este era ainda umsimples
pastor, um poten cial luminoso e definia para ele um destino. O tema bblico daaliana
e as narrativas acerca de David vo mais
longe
noaprofundamento
desta temtica. O entendimento entre a divindade e o soberano assume noAntigo
Testamento a forma de umaaliana.
A promessa anima o rei de uma forma permante egarante-lhe
aproteco
divina para arealizao
da misso de que Iav o incumbe.Na
ideologia
real de Israel e daMesopotmia,
cada novo soberano era no presente a