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O Direito Indigenista e sua Problemática do Âmbito Constitucional

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Academic year: 2021

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O Direito Indigenista e sua Problemática do Âmbito Constitucional

Júlia Polippo Pfeifer (1) Daiara Francine Miotto dos Santos (2), Henrique Kujawa

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(1) Aluna do curso de Direito da Faculdade Meridional - IMED (Passo Fundo, Rio Grande do Sul - Brasil). Monitora do Projeto de Pesquisa sobre “Mediação e Justiça Restaurativa”. Membro do

Projeto de Pesquisa sobre “Conflitos Territoriais entre Agricultores e Indígenas”. E-mail: julia.p.pfeifer@hotmail.com

(2) Aluna do Direito da Faculdade Meridional - IMED (Passo Fundo, Rio Grande do Sul - Brasil). Membro do Projeto de Pesquisa sobre "Conflitos Territoriais entre Agricultores e

Indígenas".E-mail: daiara_m@hotmail.com

(1) Mestre em História, doutorando em Ciências Sociais, professor da Escola de Direito da IMED, coordenador do projeto de pesquisa “Conflitos Territoriais entre Agricultores e Indígenas”.

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O Direito Indigenista e sua Problemática do Âmbito Constitucional

Resumo:O presente artigo ao abordar o Direito Indígena, especificamente, no tocante a demarcação de novas Terras Indígenas, ocupa-se de um tema que tem provocado grande tensão social em várias regiões do Brasil. Do ponto de vista jurídico, o tema evidencia uma divergência na interpretação do Artigo 231e 232 da Constituição Federal de 1988, e do ponto de vista social a tensão é agravada na região norte do Rio Grande do Sul pelo fato das demandas indígenas coincidirem com territórios colonizadas, por iniciativa do próprio Estado, há mais de um século. Fizemos neste artigo, a partir de pesquisa bibliográfica e uma breve reconstrução das diferentes interpretações dos artigos constitucionais supracitados principalmente no tocante ao conceito de ocupação tradicional e a existência ou não de um marco temporal como parâmetro para comprovar essa ocupação tradicional indígena e o consequente direito de demarcação. Na sequência, demonstramos os efeitos práticos destas diferentes interpretações no caso concreto da demarcação Passo Grande do Forquilha (nos municípios de Sananduva e Cacique Doble – RS). Como elementos síntese de resultado do nosso estudo podemos apontar que a) é necessário ampliar o debate sobre o tema nas ciências sociais e jurídicas, com o intuito de produzir subsídios mais sólidos que possam contribuir com a interpretação das normas estabelecidas ou até mesmo produzir novas normas que contribuam para garantir os direito indígenas sem promover insegurança jurídica e tensão social; b) a atual política territorial indígena parte de uma interpretação constitucional com base no conceito de ocupação imemorial sem a necessidade de existência de um marco temporal para constituir o direito indígena de reivindicar a demarcação de novas terras; c) No caso específico do Passo Grande do Forquilha esta interpretação entra em conflito com o direito territorial do agricultores familiares que possuem vínculo culturais, econômicos e sociais centenários, com as terras, iniciados por ação do Estado que incentivou a colonização e vendeu as referidas terras para os imigrantes; d) por fim, se não for aparado as arestas das divergências jurídicas sobre a matéria, e permanecer a atual política territorial indigenistas capitaneada pela FUNAI é provável que se amplie a insegurança jurídica e os conflitos sociais.

Palavras-chave:Direito indígena; Terras tradicionalmente ocupadas; Conflitos territoriais. Abstract: The present article to address the Indigenous Law, specifically regarding the demarcation of new Indigenous Lands, deals with a topic that has caused great social unrest in several regions of Brazil. From a legal standpoint, the issue highlights a divergence in the interpretation of Article 231 and 232 of the Federal Constitution of 1988 and the social point of view the tension is exacerbated in northern Rio Grande do Sul because of overlap with indigenous demands colonized territories at the initiative of the State itself, for over a century. This article was done from literature and a brief reconstruction of the different interpretations of the constitutional articles above primarily in relation to the concept of traditional occupation and the existence or not of a timeframe as parameter to prove that traditional indigenous occupation and the consequent right to demarcation. Further, we demonstrate the practical these different interpretations in the case of demarcation Passo Grande do Froquilha(in the municipalities of Sananduva and Cacique Doble – RS) effects. As a synthesis of elements result f our study we can state that a) it is necessary to broaden the debate on the subject in social and legal sciences, in order to produce more solid information that can contribute to the interpretation of established standards or even produce new standards would contribute to promoting indigenous rights without legal insecurity and social tension; b) The current land policy indigenous part of a constitutional interpretation based on the concept of immemorial occupation without existence of a timeframe to be the indigenous claim the demarcation of new lands; c) In the specific case of the Passo Grande do Froquilha this interpretation conflicts with the territorial rights of family

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farmers who have cultural, economic and social bond centenarians, with the lands, started by state action that encouraged colonization and sold such lands for immigrants; d)Finally, if not trimmed edges of legal disputes on the matter and stay current indigenous territorial policy captained by FUNAI is likely to expand the legal insecurity and social conflict.

Keywords: Indigenous law; Lands traditionally occupied; Territorial conflicts.

1. INTRODUÇÃO

Os direitos indígenas, ainda que tenham sido objeto de precaução do legislador desde os tempos em que nosso país era Colônia de Portugal, tomaram contorno constitucional apenas com a Carta Magna de 1934 e, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houveram mudanças significativas no ordenamento jurídico brasileiro em relação a esse direito, conferindo aos indígenas um capítulo destinado a reconhecer seus direitos fundamentais: o capítulo VIII, constituído pelos arts. 231 e 232.

Nesses termos, partindo-se do estudo das normas constitucionais relativas aos direitos indígenas, mais especificamente do art. 231, caput e parágrafos, o presente trabalho objetiva examinar os direitos dos índios às terras tradicionalmente ocupadas, conceito esse que não traz uma interpretação pacífica ao referir o marco temporal da ocupação tradicional indígena, dando seguimento a duas interpretações divergentes. De um lado há o entendimento de ocupação tradicional no sentido de que essas áreas ocupadas por indígenas em algum momento histórico poderão ser pleiteadas como objeto de demarcação, em sintonia com o seu direito originário e com as teses relacionadas ao indigenato. Por outro lado, há interpretação divergente da anterior que entende que a Constituição de 1988 teve como objetivo garantir o direito indígena às terras que ocupavam nesse período e não antes disso.

Estas concepções divergentes provocam, além de um embate jurídico, circunscrito na interpretação do artigo 231 da Constituição Federal, especificamente sobre o significado de terras tradicionalmente ocupadas, grandes conflitos entre produtores rurais que, em muitos casos, possuem posse e propriedade centenária das terras e indígenas que passaram a reivindicar estas mesmas terras como sendo de ocupação tradicional. Para tanto, tendo como substrato deste estudo, é realizada uma relação da interpretação do referente artigo constitucional no que diz respeito às terras no caso do Passo Grande do Forquilha (nos municípios de Sananduva e Cacique Doble – RS). De um lado, os índios reivindicam a identificação, delimitação e demarcação, argumentando que elas foram de seus antepassados e que, portanto, são deles devido à ocupação imemorial. De outro, os pequenos agricultores, ocupantes e proprietários dessas terras hoje, têm por objetivo ratificar a posse e a propriedade, em virtude dos títulos legalmente constituídos por mais de um século e ao seu vinculo econômico, social e cultual com a mesma. Objetivamos, portanto, com este artigo fazer um resgate do tratamento constitucional ao direito indígena, mapear os argumentos divergentes quanto ao direito territorial indígena positivado na Constituição de 1988 e apontar, a partir do caso concreto do Passo Grande do Forquilha, as consequências sociais da aplicação das distintas interpretações. Do ponto de vista metodológico o texto é um substrato do projeto de pesquisa mais amplo sobre o tema que utilizou-se de bibliografias especializadas e de fontes secundárias, principalmente imprensa, de visitas e depoimentos de indígenas e agricultores envolvidos.

O texto, aborda, primeiramente, a evolução histórica constitucional das garantias e direitos indígenas, após, as díspares interpretações do dispositivo legal: art. 231 da Constituição de 1988, finalizando com o estudo do caso do Passo Grande do Forquilha, tendo como método de análise, tanto a pesquisa de campo quanto bibliográfica.

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2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA LEGISLATIVA NO TRATAMENTO DAS TERRAS INDÍGENAS

Toda a história do direito constitucional se vê permeada de fases com diferentes formas de tratamento, especialmente no que diz a matéria indígena, constatando e repisando os estágios que repercutem seu desenvolvimento no processo histórico, reconstituindo a analogia de cada relação do sistema. Assim, o direito indígena transitou por vários fragmentos, sem perder sua originalidade e evoluindo através de regulamentos, acompanhando as mudanças da sociedade: do período colonial até a Constituição de 1824, quando as terras concedidas aos índios eram de domínio pleno destas comunidades sem qualquer restrição; da Constituição de 1824 até a Constituição de 1934, quando se reconhecia a posse dos índios sobre suas terras; da Constituição de 1934 até a Constituição de 1967, quando as terras foram formalmente revertidas à União, remanescendo a eles o usufruto restrito (STEFANINI, 2012:123) e finalmente, na Constituição de 1988, a qual trouxe alterações e inovações fundamentais no ordenamento jurídico em relação a esse direito, rompendo com uma tradição secular ao reconhecer aos índios o direito de ter sua própria cultura, mantendo a responsabilidade da União de proteger e fazer respeitar esses direitos.

Ao chegarem ao Brasil, os portugueses encontraram território amplamente habitado por índios, apesar de não haver exatidão quanto ao número de ocupantes. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha(1987:58) menciona a soberania indígena sobre os territórios ocupados; e afirma a existência de amplas provas, na doutrina e na legislação, do reconhecimento pleno do direito indígena sobre seus territórios e sobre as terras alocadas para eles nos aldeamentos. Na mesma perspectiva, ao comentar a legislação colonial, Silvio Coelho dos Santos aduz:

Apesar da ambiguidade dessa legislação para a efetiva proteção dos indígenas, o fato é que as Provisões, os Alvarás, as Cartas Régias ou os Regimentos expedidos pela Coroa, afirmaram e reconheceram os indígenas em sua humanidade, em sua diversidade cultural e em sua condição de legítimos detentores de seus territórios e aldeias. (ME. MARI; UNESCO, 1988: 96).

Sob esse prisma foi iniciada a concepção do direito indigenista no Brasil, ocorrendo no período em enfoque o reconhecimento da natureza humana dos índios e o direito sobre suas terras. (SANTOS FILHO, 2011:28).

Em 24 de março de 1824, foi outorgada a primeira Constituição Brasileira. Nela, porém, não houve referências específicas aos indígenas, o que na prática vetava sua cidadania. Partindo dessa perspectiva, Manuela Cunha (1987:63) afirma que, durante o Império, houve um retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas, uma vez que, no mesmo período em que o índio se torna símbolo da nova geração, a ele são negadas a sabedoria e cidadania.

Para estabelecer um novo método de se conceber o domínio e a aquisição das terras, em 1850, com o silêncio da Carta de 1824, foi criada a Lei 601 (Lei de Terras), a qual regulamentou o regime de propriedade territorial, passando o território do Brasil a ser dividido em terras públicas, terras particulares ou posse legalizada, sendo as demais consideradas terras devolutas pertencentes ao Estado que passou a destiná-las à colonização e, em alguns casos, à constituição der reservas/toldos indígenas.(SANTOS FILHO, 2011:32).

Após diversas linhas de interpretações e intensos conflitos com relação à posse e ocupação dessas terras indígenas, foi criado e editado, na Constituição Republicana de 1891, o Decreto 8.072, de 20.06.1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores

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Nacionais (SPILTN)1, o qual tinha como principal objetivo inserir os índios no mundo do trabalho

e agrupando-os, em locais onde o imigrante não se adequava. Uma das grandes mudanças promovidas com a criação do SPILTN foi atribuir ao Estado a criação de um política indigenista laica e, em grande medida, sob os princípios "fraternais" positivistas. Sob esse ponto de vista, afirma Carlos Frederico Marés de Souza Filho (SANTOS FILHO, 2011:32) que:

A política expressada nesse documento é a integração dos povos indígenas, alterando a política anterior, na expectativa de acabar com as culturas indígenas para assimilá-las à cultura nacional, na busca do sonho de transformar os índios em cidadãos.

Ressalta-se que, o índio era reconhecido, então, como sujeito transitório, uma vez que, estava sendo "preparado" para ingressar na ''civilização'' brasileira.

Já a Constituição de 19342 faz, pela primeira vez, menção ao direito indígena, época a

qual os índios ainda eram denominados silvícolas, tendo direito a uso, gozo, e a posse da terra em que viviam de maneira permanente, porém, não a propriedade. Vale destacar, que, as Constituições de 1934, 1937 e 19463 mencionam o respeito à terra dos silvícolas, não

mencionando o direito deles ao solo. Porém, a constituição de 1967/19694, coincidiu com a

criação da FUNAI, a qual ao substituir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), tornou-se encarregada da política oficial para as populações originárias, e responsável, sobretudo, pela demarcação de suas terras.

Portanto, conjuntamente com a criação da FUNAI e do Estatuto do Índio, em 1973, que conceitua as áreas reservadas, como aquelas estabelecidas pela União e destinada à posse e ocupação pelos índios, pode-se observar a efetiva consolidação dos direitos indígenas em relação ao solo.

Contudo, partindo de uma ótica democrática, humanitária e pluralista, a nova e atual Constituição de 1988, denominada Constituição Cidadã, avança na questão dos índios sendo reconhecida como marco do direito constitucional indígena por ter influenciado a concepção de várias Constituições americanas (Colômbia/1991, México e Paraguai/1992, Peru/1993 e Bolívia/1994). Em seu Capítulo VIII, composto pelos arts. 231 e 232, delineou como devem ser efetivadas as relações entre os índios, seus povos e o Estado brasileiro, reconhecendo aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (SANTOS FILHO, 2011:44).

A partir disso, pode-se considerar que a Constituição de 1988 tornou nítida a multietnicidade e multiculturalidade brasileiras, reformando ao abandonar uma política de perspectiva assimilacionista, que considerava os índios uma categoria social transitória, fadada ao desaparecimento, passando a reconhecer aos índios o direito à diferença. Ou seja, a atual Carta reconhece o índio como diferente, contudo essa diferença não se confunde com (in)capacidade.

1 Em 1918 o SPLINT passa a ocupar-se exclusivamente dos indígenas e denominar-se Serviço de Proteção

aos Índios – SPI.

2 Constituição 1934: “Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem

permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”

3 Constituição 1946: “Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem

permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.”

4 Constituição de 1967: “Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e

reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.” Emenda Constitucional nº 1/1969: “Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes.”

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3. DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DO ART. 231 DA ATUAL CARTA MAGNA É amplamente reconhecido o avanço que a Constituição de 1988 promove para o direito indígena, reconhecendo-lhes, com status constitucional, o direito à terra tradicionalmente ocupada, à sua cultura, seus costumes e organização social. Apesar disso, a efetivação deste direito está condicionada à pacificação de sua interpretação e às políticas públicas que garantam, principalmente, à demarcação de suas terras e a possibilidade do desenvolvimento social e cultural. Neste tópico, vamos discorrer sobre a interpretação do artigo 231 enfatizando o conceito de "ocupação tradicional". O caput do primeiro assim determina:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

O texto supracitado aponta os dois pressupostos constitucionais que caracterizam os direitos dos povos indígenas à terra, sendo eles a originalidade dos direitos (direitos originários) e a tradicionalidade da ocupação (terras que tradicionalmente ocupam). É sobre eles que se estabelecem as principais polêmicas de interpretação tendo de um lado os que alegam, em consonância com o indigenato, que o direito originário está vinculado com à ancestralidade e, neste sentido, a ocupação tradicional prevista neste artigo não se vincularia a nenhum marco temporal e, por outro lado, os que defendem que a ocupação tradicional está vinculada ao marco temporal da constituição de 1988 e, portanto a expressão "direito original" não possuiria vínculo com as teses do indigenato.

Na perspectiva do indigenato, o conceito de ocupação tradicional utilizado na Constituição ao referir o direito indígena, traduz, segundo o Ministro Ayres Britto, "uma situação juridicosubjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras ou títulos públicos de legitimação de posse em favor de não índios" (BRITTO. 2008). Isso significa os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam são aquem à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer título público ou escrituras em favor de não indíos, os quais seriam nulos, não produzindo efeitos jurídicos.

Em contraposição a perspectiva do indigenato, temos a interpretação que argumenta que, a ocupação tradicional que se refere à Constituição está relacionada com o marco temporal de sua promulgação e, portanto o direito originário está restrito as áreas que os indígenas ocupavam na referida data. Nesta linha de raciocínio, afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior que, “diz respeito a direitos cuja a fonte está no habitat natural do índio, ligação ecologicamente harmoniosa do homem com a terra, mas, nada têm a ver com posse imemorial anterior ao descobrimento.” (Consulta Parecer, 2001:09).

Na mesma perspectiva, ALVES (2005:05) aponta que é suficientemente claro ao aludir às terras que os índios tradicionalmente OCUPAM (presente) – o que implica dizer: no momento de sua promulgação – e não que ocupavam ou tinham ocupado anteriormente”. Nesta linha de interpretação, o legislador constituinte, a fim de abster-se de dubiedades detalhou e especificou o conceito de terras tradicionalmente ocupadas, assim disposto no §1º do art. 231 da Constituição Federal: "São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições."

Por outro lado, a partir da compreensão do indigenato, no texto supracitado, garante-se o direito indígena a terra, para além daquelas que ocupam fisicamente estendendo as áreas necessárias para, a partir de suas tradições e costumes, garantir a reprodução física e cultural.

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Nesta perspectiva as atuais demarcações realizadas pela FUNAI, tem por objetivo proteger o direito originário às terras indígenas sob uma compreensão onde a ocupação física não é determinante, mas sim as lembranças de uma forma de vida e num passado imemorial que se estenderiam até o presente e, principalmente se projetariam para o futuro.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, diferenciando-se das teses do indigenato deu indícios de que é necessário estabelecer algumas restrições ao procedimento de demarcação, onde as terras tradicionalmente ocupadas compreendem as habitadas por indígenas em 1988, sendo vedado o aumento posterior dessas áreas uma vez realizada a demarcação. Daí surge a importância reconhecida pelo legislador constituinte de se estabelecerem as quatro condições indispensáveis para que uma área seja considerada terra tradicionalmente ocupada pelos índios, não podendo ser objeto de ocupação alheia, bem como a FUNAI e à comunidade indígena precisam respeitar a propriedade privada não índia, legitimamente constituída, porque o direito de propriedade é um só, erigido como princípio pétreo constitucional (STEFANINI, 2012:132).

Na esteira das mesmas divergências está o que dispõe o § 2º do art. 231 "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes." O direito à posse permanente mostra-se como um propósito das terras indígenas, ou seja, como o espaço onde desenvolvem sua organização social, não sendo, portanto, uma simples posse regulada pelo Direito Civil. Na interpretação do indigenato significa, portanto, uma garantia para o futuro e não somente um pressuposto do passado, sendo para sempre seu habitat natural, uma vez que há um título imediato de domínio a se reconhecer. Já, na crítica ao indigenato, este direito está restrito a a data de verificação do fato em si da posse permanente que vincula-se ao dia da promulgação da atual Carta, e nenhum outro.

Igualmente significativo é o disposto no § 4º, onde "as terras de que se trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis." Ou seja, na lógica do indigenato, é garantido afirmar que os direitos sobre essas terras não prescrevem e poderão ser pleiteados a qualquer tempo (STEFANINI, 2012:132), não tendo, portanto, marco temporal. De outro lado, afirma-se que esses direitos estão interligados somente às terras de efetiva ocupação em 1988, ao entender que são inalienáveis e imprescritíveis as terras que, fisicamente, estavam sendo ocupadas pelos índios no ato da promulgação da referida Carta Magna.

Por fim, uma das mais um elemento da controvérsia encontra-se no § 6º, que trata da nulidade e extinção de atos que prejudiquem os direitos dos povos indígenas à terra: "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé."

A aplicação do referido parágrafo, através da ótica imemorial, quer dizer que são nulos e extintos os atos de terceiros que deteriore os direitos indígenas de posse permanente e de usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam, considerando que tais direitos são originários e, por isso, anteriores a quaisquer outros atos de ocupação. Contudo, sob outro enfoque, essa garantia não é absoluta, visto que a mesma somente é válida a partir da Carta de 1988, e que excepciona um caso: quando houver relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar. No entanto, deve-se atentar para o fato de que esta lei ainda não foi criada, logo, a regulamentação de validade e extinção desses atos é irrestrita (KAYSER, 2010:245).

Quando nulo e extinto um ato realizado contra os direitos territoriais indígenas, não há direito de ação ou direito à indenização contra os índios, suas comunidades ou organizações que lhes representem. Todavia, contra a União, a quem cabe a propriedade e o dever de proteção sobre as terras tradicionalmente ocupadas, o direito de ação e o direito de indenização são possíveis no caso de benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé pelos posseiros (KAYSER, 2010:245).

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[...] a expressão sobre terras que tradicionalmente ocupam afirma e traduz, a rigor, a comunicação de que estas (terras) se localizam no espaço e tempo identificado, jamais no ideário dos sentimentos que tisnam a lógica e a razão. [...] Interpretar o substantivo terra como realidade de entes ideais (ancestrais), por uma paralela, e a locução tradicionalmente ocupam como pertencente ao passado com a sombra voltada para o presente, por outra, é operar o raciocínio anticientífico, rebelde ao sistema ratio de direito que sempre vigeu e com morada na insegurança jurídica. (STEFANINI. 2013:125)

Após colidir os dois conceitos, analisando ambas interpretações, é possível perceber que a crítica ao indigenato possui maior congruência com o texto constitucional, não envolvendo a segurança jurídica e o direito à propriedade, ao mesmo tempo que assegura o direito indígena. 4. ESTUDO DE CASO: CONFLITOS TERRITORIAIS NO PASSO GRANDE DO

FORQUILHA

Para melhor observarmos as considerações acima, realizaremos um estudo de caso, analisando os efeitos práticos das diferentes interpretações no conflito social existente no Passo Grande do Forquilha (Sananduva e Cacique Doble - RS), fruto das demarcações de áreas indígenas em uma região povoada por agricultores, os quais compareceram a essa região através de políticas públicas estatais que, por sua vez, pretendiam ocupar as terras consideradas devolutas.( KUJAWA; TEDESCO, 2013:164)

A demanda da Terra Indígena do Passo Grande da Forquilha abrange 1916 hectares, parte dessa terra encontra-se no município de Sananduva e outra no município de Cacique Doble. Seguindo as premissas do Decreto 1775/1996, do Ministério da Justiça, a FUNAI, ao receber a demanda indígena de demarcação desta nova área, criou um Grupo de Trabalho (portaria 1.136/2005, e 1.403/2006) coordenado pela antropóloga Juracilda Veiga, a qual realizou um laudo identificando a referida área, que foi declarada pelo Ministério da Justiça, através da Portaria Declaratório do Ministério da Justiça 498, de 25 de abril de 2011. Está instalado na região um conflito social de grandes proporções, com invasões de propriedades e ocupações de espaços públicos e comunitários, resultando em vários momentos em conflitos físicos e diversos feridos (KUJAWA;TEDESCO, 2014). Para efeito da nossa análise, é importante, mesmo que rapidamente, reconstruir o processo de ocupação territorial da região e identificar qual interpretação jurídica de ocupação tradicional, esta, sendo empregada pela FUNAI.

No século XX, emprega-se uma política de colonização, capitaneada pelo Estado, delimitando lotes coloniais e demarcando diversas reservas indígenas para seus aldeamentos. No caso específico em tela, a área demandada pelos indígenas e declarada pela FUNAI teve o processo de colonização no início do século XX, através de colonização publica e privada. A colonização privada, no atual município de Sananduva, ocorreu na antiga fazenda São João que era propriedade de José Bueno de Oliveira e sua esposa, sendo que os primeiros agricultores os adquiriram o legalizaram as escrituras de seus lotes em 1901. A colonização pública, denominada de Colônia Forquilha, deu origem a diversos municípios da região, inclusive a Cacique Doble onde se encontra parte da área demanda pela Terra Indígena do Passo Grande da Forquilha, nas secções Guabiroba, Três Paus e Tingo, sendo que os primeiros colonizadores tiveram seus títulos a partir de 1915.

Kujawa (2013:164) demonstra, através estudos documentais, principalmente os mapas da colonização pública e as escrituras das terras, bem como o levantamento da memória dos descendentes dos primeiros colonizadores, que não resta dúvida quanto a efetiva ocupação física dos agricultores nem de seu vínculo cultural, social e econômico centenário com a terra, que hoje é reivindica pelos indígenas. Desta forma, a base jurídica que sustenta a reivindicação indígena

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para a criação da Terra Indígena do Passo Grande da Forquilha é a interpretação do art. 231 da Constituição Federal, a partir das premissas do indigenato atribuindo-lhes o direito imemorial, congênito e independente de qualquer presença física no ato da promulgação da Constituição de 1988.

O efeito da aplicação do direito indígena, a partir da lógica do indigenato, é que se ignora a presença centenária dos agricultores que ali vivem e estabelecem, por diversas gerações, vínculos com o local. Se a atual área delimitada for efetivamente demarcada, atingirá 162 famílias, organizadas em cinco comunidades, com suas respectivas capelas, cemitérios, salões comunitários, etc, Obviamente, o impacto social de tal ação é de grande monta, provocando a revolta dos agricultores que sentem sua história ultrajada. Para além disso, a proposição da nulidade dos títulos e escrituras centenárias originadas pelo próprio Estado que agora passaria a não mais reconhecê-las, gera uma situação de insegurança jurídica, criando a possibilidade ampliação consecutivas das demandas indígenas sobre áreas que genericamente ocupavam até meados do século XIX e que, posteriormente, foram colonizadas e muitas delas, inclusive, urbanizadas.

Não resta dúvida que, este processo é considerado injusto pelos agricultores, os quais não aceitam a alcunha de usurpadores de terras indígenas, uma vez que as compraram originalmente do Estado, nem tão pouco aceitam perder suas propriedades e romper com os vínculos sócio-culturais que possuem. Neste sentido, a tendência, em permanecendo esta política territorial indígena, é o agravamento dos conflitos sociais que demonstram, por sua vez, ser prejudiciais tanto para agricultores quanto para indígenas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo explorar o conceito de ocupação tradicional, por meio de um estudo sistemático do artigo 231 da Carta Magna de 1988, na efetivação do direito territorial indígena frente ao direito de propriedade dos agricultores com enfoque na demanda territorial do Passo Grande da Forquilha, no Estado do Rio Grande do Sul.

Assim, no que se refere à história, o direito indígena passou por vários fragmentos, evoluindo através de regulamentos. No período colonial as terras eram de pleno domínio dos índios; no Brasil Império foi reconhecida a posse dos índios sobre as terras; no período republicano as terras foram formalmente revertidas à União, restando aos índios o usufruto restrito; e por fim, foi promulgada a Constituição de 1988, a qual reconheceu aos índios o direito a ter sua própria cultura, mantendo a responsabilidade do Estado de proteger esses direitos. Dentre essas diversas fases, referenciamos a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores (SPILT), o qual foi extinto anos depois, sendo substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), dando uma nova visão à defesa do direito indígena no país e também o surgimento do Estatuto do Índio.

A finalidade de esmiuçar as demandas de demarcações indígenas é de mostrar o quão labiríntica é essa questão, uma vez que a disjunção desses agricultores de suas terras não se delimita a relação econômica, mas principalmente à ruptura de identidades acopladas a trajetória histórica, que está presa às suas terras, e, portanto, o conceito e as divergências das interpretações imemorial e tradicional representam, nesses casos, a construção sociocultural dos agricultores e seus familiares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Referências

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