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Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo

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Academic year: 2021

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From the SelectedWorks of Andre de Macedo Duarte

2009

Foucault e as novas figuras da biopolítica: o

fascismo contemporâneo

Andre de Macedo Duarte

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Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo

André Duarte O título do V Colóquio Foucault: Por uma vida não fascista, era sugestivo e dava muito que pensar, como, aliás, sempre ocorreu nas ocasiões anteriores de sua realização. O enunciado assumia a forma proposicional do manifesto político e interpelava aqueles que o liam, exigindo a recusa e o combate de uma vida fascista tal como ela se nos apresenta agora, nos dias que correm. Também o próprio cartaz do evento anunciava, ainda que de maneira implícita, a forma de luta foucaultiana que se requer travar contra a vida fascista da atualidade. Permito-me recordar a composição do cartaz de divulgação do evento: envolvido em fundo negro, e recordemos que negra era a cor da vestimenta dos fascistas italianos, o cartaz ressaltava uma fotografia de Michel Foucault sorrindo e olhando frontalmente para o espectador da imagem. Penso que a composição, extremamente feliz, sugeria que o enfrentamento político da vida fascista na atualidade deveria passar pela coragem de olhar o fascismo contemporâneo de frente e sorrir dele, como que recomendando o sorriso espirituoso enquanto poderosa arma intelectual, capaz de questionar e impor o descrédito e a derrisão às pretensões da vida fascista. Por sua vez, o sorriso de Foucault no confronto com a vida contemporânea em seu caráter fascista evoca as palavras de Nietzsche no fragmento 173 de “O caminhante e sua sombra”, em apêndice a Humano, demasiado humano: “Rir e sorrir. Quanto mais alegre e seguro se torna o espírito, tanto mais o homem desaprende a estrondosa gargalhada; por outro lado, perpetuamente brota nele um sorriso espirituoso, um sinal de seu espanto a respeito dos incontáveis prazeres escondidos na boa existência.” (NIETZSCHE, 1997, p. 944). No sorriso espirituoso de Foucault encontra-se uma poderosa arma reflexiva contra a estupidez, recordando-nos que o enfrentamento militante contra o fascismo contemporâneo requer inteligência, sutileza, ânimo e bom humor, traços espirituais cuja conveniência recíproca foi tantas vezes suprimida ou esquecida entre os intelectuais engajados.

Mas, se a forma política do enunciado – por uma vida não fascista – é auto-evidente, será que entendemos de imediato o que pode significar a conjugação que aí se propõe entre vida, fascismo e atualidade? Com que direito podemos falar em fascismo no presente? E por que o fascismo contemporâneo estaria associado à vida? Será que ainda faz sentido continuar a empregar termos como ‘fascismo’ e ‘fascista’ nos dias de hoje? Tratar-se-ia no fascismo contemporâneo, em alguma medida, de uma repetição do velho fascismo das primeiras

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décadas do século 20, em pleno início do século 21? Por outro lado, supondo-se que não se trate de uma repetição do passado no presente, quais seriam as novas configurações do fascismo? E como combatê-las, caso estejamos realmente diante de um ‘novo’ fascismo? Mas talvez as primeiras perguntas que mereçam ser feitas nesse contexto sejam: Michel Foucault foi um teórico do fascismo? O que ele tinha a dizer sobre o fascismo? Qual a relação entre vida e fascismo no pensamento de Foucault?

Comecemos por estas três últimas perguntas. À primeira vista, Foucault não seria um teórico do fascismo e, portanto, não teria nada a nos dizer a seu respeito. Tal afirmação pareceria correta, sobretudo se recordarmos que nenhuma de suas obras ou cursos foi especificamente dedicado a este tema político. À primeira vista, nada mais afastado do teórico dos micro-poderes disciplinares do que a consideração de formas supostamente monolíticas e autoritárias de poder, como aquelas incorporadas pelo Estado totalitário em suas variantes de direita e esquerda. No entanto, se prestarmos atenção às entrevistas reunidas nos volumes dos Ditos e Escritos, veremos que Foucault se refere várias vezes aos fenômenos do fascismo, do nazismo e do stalinismo. Vejamos algumas dessas ocorrências a fim de discernir o sentido geral de suas afirmações, as quais, a despeito de dispersas, possuem certos núcleos comuns.

Numa entrevista concedida ao Cahiers du cinema em 1974, Foucault discutia criticamente certa interpretação marxista do fascismo e do nazismo, que os definia em termos de uma “‘Ditadura terrorista aberta da fração mais reacionária da burguesia’” (FOUCAULT, 1994a, p. 654). Essa definição parecia-lhe excessivamente abstrata e desprovida de conteúdo, sendo insuficiente para explicar o fenômeno do fascismo e do nazismo na medida em que se abstinha de oferecer uma análise do modo mesmo de exercício do poder sob tais formas de dominação e governo. De fato, a definição do fascismo como uma ditadura é parcialmente adequada, posto que tanto no fascismo como no nazismo prevaleceram o domínio exercido pelo partido único; no entanto, seu limite reside em que ela impede pensar o desejo das massas populares pelo fascismo. Tal desejo teria de ser entendido na medida em que tanto o fascismo quanto o nazismo concederam a parcelas da massa popular a oportunidade de exercer diretamente o poder nas funções estatais de repressão, de controle e de polícia. No fascismo e no nazismo, o poder não era exercido pura e simplesmente pela ditadura de um único homem, mas vastas parcelas da população foram investidas de formas de poder detestáveis e embriagadoras, como o poder de matar, de confiscar, de delatar, de violar. Em outras palavras, o que importava era analisar as formas pelas quais o poder foi esparramado e

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investido no interior da própria população nos casos do fascismo e do stalinismo, aspecto que teria sido negligenciado pela definição marxista mencionada.

Essa falha teórica do marxismo ortodoxo na avaliação do modo de exercício e operação do poder sob o fascismo e o nazismo não seria casual, reportando-se, antes, às análises marxistas tradicionais, que fazem derivar o poder das estruturas econômicas, aspecto ressaltado naquela definição pela menção à fração mais reacionária da burguesia. Em certo sentido, o marxismo compartilharia tal redução do político ao econômico com o liberalismo, visto que em ambos os casos prevaleceria a “Santa redução do ‘político’, por certo, mas também a tendência a negligenciar as relações de poder elementares que podem ser constituintes das relações econômicas” (FOUCAULT, 1994b, p. 264). Justamente porque o poder nas sociedades ocidentais é aquilo que mais se mostra e se faz evidente, isto é, aquilo que se encontra mais disseminado pelo tecido social, ele também se torna o fenômeno que mais e melhor se esconde: “as relações de poder encontram-se talvez entre as coisas mais escondidas no corpo social” (FOUCAULT, 1994b p. 264). Além da redução das estruturas de poder ao campo das relações econômicas, a concentração das análises liberais e marxistas do poder na figura jurídica do Estado também seria responsável pela carência de análises que pudessem descortinar as inúmeras formas do exercício do poder em múltiplas relações humanas desprovidas de um centro único e primordial. Para suplantar esse déficit analítico, Foucault procurou investigar as relações de poder em seu exercício não apenas no âmbito da infra-estrutura econômica, mas também nos âmbitos estatal, infra-estatal e mesmo para-estatal, a fim de capturá-las na materialidade de seu jogo. Se o problema da miséria da classe operária havia constituído o eixo em torno do qual o pensamento político do século 19 havia girado, então as grandes “inquietudes políticas” das sociedades atuais teriam como pano de fundo as “sombras gigantescas do fascismo e do stalinismo,” entendidos enquanto manifestações peculiares dos “poderes-excessivos” (sur-pouvoirs) (FOUCAULT, 1994b p. 264).

Em outras palavras, a exigência foucaultiana de pensar os diversos mecanismos de funcionamento do poder e de seu exercício, para além dos esquemas tradicionais que o enxergam apenas no trajeto que segue unidirecionalmente do alto ao baixo e do centro à periferia do social, refere-se diretamente a seu entendimento de que o século 20 foi justamente aquele que testemunhou “duas grandes doenças do poder, duas grandes febres que levaram muito longe as manifestações exasperadas de um poder”, quais sejam, o “fascismo e o stalinismo” (FOUCAULT, 1994b, p. 535). Por certo, fascismo e stalinismo respondiam a circunstâncias particulares de seu momento histórico preciso, de sorte que constituíram

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fenômenos políticos cuja singularidade marcada pelo excesso e pelo transbordamento das relações de poder dificilmente se repetirá tal e qual em nosso próprio tempo. Foucault gostava de afirmar, a título de ironia séria, que a história não se repete, nem como farsa nem como tragédia: “De todo modo, jamais existem ressurreições na história; melhor: toda análise que consiste em querer produzir um efeito político ressuscitando velhos espectros está destinada ao fracasso. Tentamos ressuscitar o espectro de um retorno apenas porque não somos capazes de analisar uma coisa” (FOUCAULT, 1994b, p. 385). Por outro lado, contudo, isso não significava que o fascismo e o stalinismo tivessem se transformado em problemas políticos do passado, visto que, se eles se constituíram enquanto fenômenos singulares e não repetíveis do poder excessivo, isto se deu na medida em que ambos

prolongaram toda uma série de mecanismos que já existiam nos sistemas sociais e políticos do Ocidente. Afinal, a organização dos grandes partidos, o desenvolvimento dos aparatos policiais, a existência de técnicas de repressão como os campos de trabalho, tudo isto é uma herança muito bem constituída das sociedades ocidentais liberais que o stalinismo e o fascismo recolheram (FOUCAULT, 1994b, p. 535-6).

Tais considerações têm por fim evidenciar que se Foucault não pode ser entendido como um teórico do fascismo, do stalinismo ou do totalitarismo, no sentido de que ele não procedeu a uma análise detalhada desses fenômenos políticos, suas reflexões dispersas sobre o assunto devem ser referidas ao campo de suas análises genealógicas sobre a microfísica do poder. Mais especificamente, suas principais reflexões sobre os fenômenos do nazismo e do stalinismo concentram-se no âmbito de suas análises da biopolítica, de modo que é por meio da associação entre fascismo e biopolítica que teremos oportunidade de esclarecer em qual sentido Foucault pôde estabelecer a associação entre fascismo e vida, a partir da qual ele nos instou a lutar por uma vida não fascista nos domínios contíguos da reflexão e da ação política. Ademais, como veremos, tal associação entre fascismo e biopolítica seria pertinente não apenas para a consideração dos regimes históricos de Hitler, Mussolini ou Stalin, mas também para pensar a relação entre fascismo e vida cotidiana em nossa atualidade pós-totalitária, na qual o fascismo tem de ser entendido como aquilo que “está em todos nós, que acossa nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 1994b, p. 134).

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É oportuno recordar que essas afirmações, extraídas do prefácio à tradução norte-americana do Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, datam de 1977, momento imediatamente posterior à publicação do primeiro volume da História da Sexualidade, de 1976, e do curso proferido no Collège de France intitulado posteriormente como Em defesa da sociedade, também do mesmo ano. Estes são os dois principais momentos em que Foucault discute as manifestações políticas extremas do nazismo e do stalinismo referindo-os ao conceito de biopolítica, que apenas então começava a ganhar forma e consistência teóricas próprias. A menção de Foucault às formas contemporâneas do fascismo que se incrusta em nossos comportamentos cotidianos também é contemporânea do curso Segurança, território e população, de 1977-78 (FOUCAULT, 2004a). Nele, Foucault iniciou uma análise genealógica do liberalismo sob paradigma da biopolítica. A partir desse curso, ele deslocou o eixo anterior de sua análise da biopolítica, que culminara na discussão do nazismo e do stalinismo, para o campo de análise do liberalismo político, ao mesmo tempo em que também impôs o deslocamento do plano histórico de sua investigação para o dos séculos 16, 17 e 18. Ao termo de tais análises, no curso intitulado Nascimento da biopolítica, de 1978-79, Foucault finalmente reencontrou seu próprio tempo histórico por meio das análises sobre o caráter biopolítico das teorizações neoliberais da escola de Chicago e dos ordo-liberais. Como veremos, será em vista dessas análises que poderemos compreender de que maneira vida e fascismo se associam no mundo contemporâneo pós-totalitário. Tais análises constituem o contexto adequado para a exploração do significado de sua afirmação a respeito da necessidade de confrontar “todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas” (FOUCAULT, 1994b, p. 136), contra as quais se impõe encontrar formas de pensar e viver uma vida não fascista.

Assim, a trajetória da investigação sobre as relações entre fascismo e vida deve acompanhar a discussão dos deslocamentos operados por Foucault em seu conceito da biopolítica. Veremos, primeiramente, como Foucault estabeleceu a relação entre vida e fascismo no contexto da formação do conceito de biopolítica, para, a seguir, acompanhar os deslocamentos dessa discussão até chegarmos à nova configuração da relação entre fascismo e vida cotidiana no horizonte biopolítico do neoliberalismo econômico, elevado à categoria de prática de governo mundialmente hegemônica. Por meio desses deslocamentos, teremos oportunidade de observar como é que o autor pôde passar da consideração das relações entre fascismo e vida expressas nas variantes eugênicas do fascismo e do stalinismo, às figuras contemporâneas que unem a vida cotidiana a uma nova forma de fascismo, cujo caráter

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insidioso e discreto não mais se associa, exclusivamente, ao problema do racismo de Estado, pois ele agora se desloca também para a estrutura flexível do mercado das trocas econômicas estabelecido pelo neoliberalismo.

É sabido que Foucault chegou aos conceitos de biopoder e biopolítica tendo em vista explicar o aparecimento, ao longo do século 18 e, sobretudo, na virada para o século 19, de um poder normalizador que já não se exercia sobre os corpos individualizados, nem se encontrava disseminado no tecido institucional da sociedade, mas se exercia a título de política estatal com pretensões de administrar a vida e o corpo da população. Esta nova descoberta pressupunha combinar as análises desenvolvidas em Vigiar e Punir, definidas como uma “anátomo-política do corpo”, com o que Foucault começou a denominar como a “biopolítica das populações” no volume I da História da Sexualidade. (FOUCAULT, 1999a) A partir do momento em que passou à análise dos dispositivos de produção da sexualidade, Foucault percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida, haviam se tornado alvos privilegiados da atuação de um conjunto de poderes normalizadores que já não tratavam simplesmente de regrar comportamentos individuais ou individualizados, mas que pretendiam normalizar a própria conduta da espécie bem como regrar, manipular, incentivar e observar fenômenos como as taxas de natalidade e mortalidade, as condições sanitárias das grandes cidades, o fluxo das infecções e contaminações, a duração e as condições da vida, etc.

Assim, o que se produz por meio da atuação específica do biopoder não é mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas é a própria gestão calculada da vida do corpo social. A partir dessa mutação, as figuras do Estado e do poder soberano, que Foucault pusera entre parênteses a fim de compreender o modus operandi dos micro-poderes disciplinares, tornaram-se então decisivas, pois passaram a constituir a instância focal de gestão das políticas públicas relativas à vida da população. O poder soberano que surgiu a partir da constituição do biopoder já não era mais idêntico ao velho poder soberano clássico: não se satisfazia em impor seu direito de matar, pois, agora, era o próprio direito de matar que se encontrava subordinado ao interesse em fazer viver mais e melhor, isto é, em estimular e controlar as condições de vida da população. Essa mutação no modo de exercício do poder soberano segundo a chave da biopolítica não levou ao seu abrandamento, mas a uma mutação na ordem de justificativas por meio das quais tal poder pôde impor sua violência. Em outras palavras, Foucault compreendeu que a transformação da vida em elemento político por excelência, o qual teria de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado, trouxe consigo um aumento e uma transformação no caráter da violência estatal. Em suma, Foucault

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descobriu que tal cuidado da vida trouxe consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Assim, a partir do momento em que a ação do soberano foi a de “fazer viver”, isto é, a de estimular o crescimento da vida e não apenas a de impor a morte, as guerras se tornaram mais sangrentas e os extermínios se multiplicaram dentro e fora da nação:

As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência. (FOUCAULT, 1999a, p. 129)

Sob as condições impostas pelo exercício do biopoder, o incremento da vida da população não se separa da produção contínua da morte no interior e no exterior da comunidade, entendida como entidade biologicamente homogênea: “São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 1999a, p. 130). É nesse contexto que se opera uma transformação decisiva no caráter do próprio racismo, que deixa de ser mero ódio entre raças ou expressão de preconceitos religiosos, econômicos e sociais para se transformar em doutrina política estatal, em instrumento de justificação e implementação da ação mortífera dos Estados. Na medida em que os conflitos biopolíticos visam à preservação e intensificação da vida do vencedor, conseqüentemente, eles não expressam mais a oposição antagônica entre dois partidos adversários, segundo o binômio schmittiano do amigo-inimigo, pois os inimigos deixam de ser opositores políticos para ser considerados como entidades biológicas. Já não devem ser apenas derrotados, mas têm de ser exterminados, pois constituem perigos internos à raça, à comunidade, à população. É nesse contexto de análises que Foucault afirma que o nazismo é o

desenvolvimento até o paroxismo dos mecanismos de poder novos que haviam sido introduzidos desde o século 18. Não há Estado mais disciplinar, claro,

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que o regime nazista; tampouco há Estado onde as regulamentações biológicas sejam adotadas de uma maneira mais intensa e mais insistente. Poder disciplinar, biopoder: tudo isso percorreu, sustentou a muque a sociedade nazista ... (FOUCAULT, 1999b, p. 231).

No Estado nazista se encontra a generalização absoluta dos mecanismos de regulação da população por meio do racismo, aliada à extensão absoluta do poder soberano de matar a várias instituições sociais: médicos, polícia secreta, grupos de extermínio, etc. Para o modelo biopolítico de tipo nazista, tratava-se de exterminar raças inferiores e, por meio da guerra de aniquilamento, expor a própria raça ao perigo da morte e do extermínio, de modo que apenas os mais aptos e fortes pudessem sobreviver. O Estado nazista condensa em si mesmo o caráter paradoxal da biopolítica, pois instaura ao mesmo tempo o campo de uma vida que precisa ser cuidada, garantida, organizada e cultivada biologicamente e o “direito soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os seus próprios” (FOUCAULT, 1999b, p. 232). Se apenas o nazismo que elevou ao paroxismo a fusão entre direito soberano de matar e mecanismos biopolíticos de controle da população alemã, esta conjunção se encontraria inscrita no “funcionamento de todos os Estados” (FOUCAULT, 1999b, p.232). Assim, Foucault também observava que já desde o seu nascimento teórico o socialismo apresentou o enfrentamento e a guerra das classes em termos de um conflito entre raças, muito embora não tenha chegado a desenvolver a mística popular nazista da supremacia racial. Em outros termos, Foucault ressalta que o socialismo nada fez para redefinir as linhas básicas de atuação do biopoder, mas apenas impôs readaptações à sua dinâmica de atuação, mantendo, entretanto, o mesmo mecanismo racista e normalizador na desqualificação e eliminação dos que não se ajustam à norma imposta:

A idéia, por fim, de que a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la, de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biológicas, parece-me que isso foi retomado tal qual pelo socialismo. Com as conseqüências que isso tem, uma vez que nos encontramos num Estado socialista que deve exercer o direito de matar o direito de eliminar, ou o direito de desqualificar. E é assim que, inevitavelmente, vocês vão encontrar o racismo – não o racismo propriamente étnico, mas o racismo de tipo evolucionista, o racismo biológico, funcionando plenamente nos Estados socialistas (tipo União

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Soviética), a propósito dos doentes mentais, dos criminosos, dos adversários políticos, etc. (FOUCAULT, 1999b, p. 233).

Em suma, sempre que se tratou do problema do enfrentamento das classes, o socialismo recorreu à figura do racismo como forma de desqualificação e justificação do aniquilamento dos opositores. Mas esta certamente não foi a palavra final de Foucault a respeito da vinculação entre fascismo, vida e biopolítica, como o comprovam os cursos nos quais o autor discutiu a própria gênese e desenvolvimento do Estado moderno liberal. Como observou Senellart, se é certo que Foucault desconfiava das teses que apresentavam o risco de uma estatização crescente da sociedade na via da reiteração do perigo totalitário, ele tampouco entendeu o indivíduo e sua liberdade como anteriores ao Estado, nem tampouco pensou o liberalismo como o melhor remédio contra os abusos do poder excessivo dos totalitarismos. Afinal, em sua análise genealógica do indivíduo e de sua liberdade, Foucault os pensou em termos dos efeitos de uma nova governamentalidade, de sorte que para se compreender a própria constituição da figura do indivíduo portador de sua liberdade era preciso situá-lo no contexto do próprio desenvolvimento histórico do Estado (Senellart, 1995, p.2).

Quanto mais Foucault se aprofundou na análise dos fenômenos de população e dos dispositivos de seguridade, tanto mais ele se viu afastado da noção tradicional de soberania, que cedeu lugar à nova noção de governamentalidade, isto é, de governo ou governamento enquanto conjunto heterogêneo de técnicas de exercício administrativo do poder.1 Ao criar o neologismo da governamentalidade como instrumento heurístico para a investigação da racionalidade das práticas de controle, vigilância e intervenção governamental sobre os fenômenos populacionais no âmbito do liberalismo político, Foucault entendeu a população como novo “sujeito político, como novo sujeito coletivo absolutamente alheio ao pensamento jurídico e político dos séculos prévios” (FOUCAULT, 2004a, p. 44). Nos cursos subseqüentes a Em defesa da sociedade, tratava-se, portanto, de empreender uma análise genealógica das práticas de governo que nortearam a constituição do tripé moderno fundamental: Estado-população-economia política em suas versões mercantilista, liberal e

1 Ao debruçar-se sobre a idéia de governo na obra de Michel Foucault, Alfredo Veiga-Neto propôs a utilização do vocábulo governamento quando se tratar da “questão da ação ou ato de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 19). Segundo Veiga-Neto, é fundamental marcar a diferença entre governo e governamento para que se tenha noção da diferença proposta por Foucault entre aquilo que é a instância governamental e administrativa e a ação de governar: “Em suma: o que se está grafando como ‘práticas de governo’ não são ações assumidas ou executadas por um staff que ocupa uma posição central no Estado, mas são ações distribuídas microscopicamente pelo tecido social; por isso soa bem mais claro falarmos em ‘práticas de governamento’”. (Veiga-Neto, 2002, p.21)

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neoliberal. Em síntese, Foucault agora relacionava a mutação na forma do exercício do poder estatal sobre os fenômenos de população, iniciada a partir do século XVIII, com a descoberta do surgimento das técnicas de governamento orientadas pelo princípio liberal do laissez-faire. No cômputo geral do projeto genealógico, a introdução da noção de técnicas de governamento teve o mérito de enriquecer a compreensão foucaultiana do exercício do poder, visto que agora já não era mais possível compreender o fenômeno do poder soberano apenas segundo o regime da interdição legal. Em outros termos, Foucault agora reconhecia a importância de situar o liberalismo, entendido como técnica de governamento, “no interior das mutações e transformações das tecnologias de poder”, compreendendo que “a liberdade não é outra coisa que o correlato da atuação dos dispositivos de seguridade” versando sobre a circulação das pessoas e das coisas (FOUCAULT, 2004a, p.50). Enquanto o curso Segurança, território, população discutiu a racionalidade das práticas de governo sob o mercantilismo e o liberalismo clássico, o curso Nascimento da biopolítica discutiu a forma neoliberal de exercício do governamento estatal do segundo pós-guerra, propondo-nos, pela primeira vez, análises e discussões que visavam práticas governamentais dos anos 70, além de instigantes especulações sobre os possíveis desdobramentos biopolíticos do futuro próximo. Para concluir este ensaio, limitar-me-ei a comentar brevemente de que maneira a análise da biopolítica na sua vertente neoliberal permite reencontrar a afirmação foucaultiana a respeito das novas formas de fascismo que insidiosamente se incrustam nos nossos comportamentos cotidianos.

Com a publicação de Nascimento da biopolítica, podemos vislumbrar alguns dos desdobramentos derradeiros do conceito de biopolítica na reflexão de Foucault, assim como também sua potência visionária. Neste curso, Foucault afirma que o liberalismo é atravessado pelo princípio de que “se governa sempre demais”, de maneira que a instituição de uma racionalidade governamental de caráter liberal encontra-se continuamente marcada pela desconfiança e pela exigência de justificação legal de sua legitimidade. No liberalismo, afirma Foucault, é sempre em nome da sociedade e do mercado que se coloca a questão da necessidade e da legitimidade de novas tecnologias de governo dos cidadãos. Foi particularmente em suas análises do neoliberalismo da Escola de Chicago, o qual tende a generalizar o princípio da racionalidade do mercado para domínios da vida social não necessariamente ou primeiramente econômicos, que surgiram as mais interessantes observações de Foucault a respeito de uma novíssima forma de atuação do biopoder a partir do segundo pós-guerra do século 20. O novíssimo biopoder não atua mais apenas segundo o eixo dos exageros do poder estatal em sua ânsia de governamentalidade – a qual, por certo,

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nem por isso desapareceu, mas se transformou –, mas atua segundo o eixo flexível do mercado. Foucault centrou sua análise das tecnologias neoliberais de governo na discussão da seguinte questão: de que maneira o mercado poderia se tornar um instrumento de governamentalização da população, isto é, de que maneira o mercado pode atuar de maneira a regrar, normatizar e administrar a conduta da população?

Para responder a essa questão, Foucault centrou sua atenção nos conceitos de “homo oeconomicus”, “capital humano”, “sociedade empresarial” (societé d’entreprise) e de “mercado” competitivo, tal como formulados pela Escola de Chicago, assumindo-os como as novas instâncias de veridicção no mundo contemporâneo, ou seja, como o parâmetro à luz do qual se estabeleceram as novas normas de padronização e gestão dos comportamentos da população. Sob o impacto do neoliberalismo norte-americano do segundo pós-guerra, o homem passou a ser compreendido e determinado como homo oeconomicus, isto é, como agente econômico que responde aos estímulos do mercado de trocas, muito mais do que

como personalidade jurídico-política autônoma ou como mera peça necessária para a constituição de um mercado de trocas. Em uma palavra, Foucault agora pensava o livre mercado econômico como a instância suprema de formatação da verdade no mundo contemporâneo. Ele demonstra que no âmbito do neoliberalismo, o mercado das trocas econômicas sobrepõe-se à velha ficção jusnaturalista segundo a qual o certo e o errado, o permitido e o não permitido, se definiriam a partir da constituição da maquinaria jurídico-política que culmina na instituição do poder soberano. Foucault passa a se interessar, então, pela análise das formas flexíveis e sutis de controle e governo das populações e dos indivíduos tal como elas se exercem por meio das regras neoliberais da economia de mercado globalizado, para além dos domínios limitados da soberania política tradicional. O novo axioma biopolítico vigente nas sociedades liberais de massa e mercado do segundo pós-guerra já não se encontra mais exclusivamente na dependência dos incentivos e das ações do poder soberano que faz viver e deixa morrer certas parcelas da população. Para a biopolítica neoliberal, por outro lado, “É preciso governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado” (FOUCAULT, 2004 p. 125).

No centro da consideração foucaultiana sobre a governamentalidade biopolítica neoliberal se encontra a articulação entre a concepção do homem como homo oeconomicus e a teoria do “capital humano”. A fusão dessas duas figuras permite compreender que o homo oeconomicus não é apenas um empreendedor no mercado de trocas, mas sim, e em primeiro lugar, um empreendedor de si mesmo, tomando-se a si mesmo como seu próprio produtor de rendimentos e de capital (FOUCAULT, 2004b, p. 232). Já no final da década de 70, Foucault

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compreendera que havíamos nos transformado em agentes econômicos que precisam valorizar e amplificar continuamente nossas capacidades e habilidades profissionais a fim de nos tornarmos competitivos para o mercado de trabalho da sociedade empresarial. Trata-se aí da descoberta de que a determinação do padrão comportamental por parte dos indivíduos e da população já não depende mais apenas da atuação governamental por parte do Estado, pois o mercado de concorrência também pode perfeitamente se encarregar disso, atuando de maneira descentralizada e bastante eficaz como instância privilegiada de produção de subjetividades. Se Em defesa da sociedade e no volume I da História da sexualidade Foucault considerava a biopolítica a partir da capacidade do poder estatal de agir a fim de incentivar a vida e aniquilar suas partes consideradas perigosas por meio de políticas públicas dirigidas a esse fim, em Nascimento da biopolítica ele centra a atenção na caracterização dos sutis processos de governamento econômico dos indivíduos e da população, os quais decidem regrar e submeter sua conduta pelos princípios do autoempreendedorismo, tornando-se, assim, presas voluntárias de processos de individuação e subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado. Para Foucault, no coração da biopolítica neoliberal trata-se de “generalizar, de difundir, de multiplicar, tanto quanto possível, as formas ‘empresa’”, de maneira a fazer do “mercado, da concorrência e, por conseqüência, da empresa, aquilo que se poderia chamar de potência informante da sociedade” (FOUCAULT, 2004b, p. 154). O que Foucault descobriu com suas pesquisas sobre a biopolítica neoliberal não é algo distinto daquilo que Deleuze mais tarde pensou com o conceito de “sociedades de controle”, para as quais, justamente, “a empresa é uma alma, um gás. (...) O serviço de vendas tornou-se o centro ou a ‘alma’ da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing agora é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores” (DELEUZE, 1996, p. 221, p. 224).2 Não por acaso, a forma-empresa é o denominador comum pelo qual a escola contemporânea começa agora a se assemelhar à academia de fitness e programas televisivos como o Big Brother podem se tornar sensação absoluta no mundo todo: prevalece aí a exigência de se auto-constituir de maneira a satisfazer as demandas simbólicas da sociedade empresarial de concorrência.

Mas qual a relação da concepção do homem como empreendedor de si mesmo na sociedade empresarial neoliberal, a biopolítica e as novas formas do fascismo

2 Outras citações podem ser feitas no sentido de indicar a proximidade entre essas reflexões derradeiras de Foucault sobre a biopolítica neoliberal e o que Deleuze chamou de “sociedade de controle”: “A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes” (DELEUZE, 1996, p. 224). Ou ainda: “Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa” (DELEUZE, 1996 p. 221).

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contemporâneo? Num sentido amplo, trata-se aí da descoberta de que já não é decisiva a presença e a atuação especificamente estatais na determinação da padronização do comportamento individual e populacional, visto que o mercado também atua nesse sentido. Mas, num sentido mais restrito, a governamentalidade neoliberal é biopolítica no sentido da politização dos fenômenos vitais a partir de um reencontro entre política e biologia, ou, mais claramente, de um encontro novo entre política e biogenética. O que se antecipa nessas análises foucaultianas é justamente o fato, hoje em vias de se tornar realidade consumada, de que cada vez mais a biogenética será o caminho por meio do qual o homo oeconomicus tratará de potencializar suas capacidades e habilidades para tornar-se competitivo no mercado de trocas econômicas. Afinal, é também por meio da biogenética que o empreendedor de si mesmo tentará controlar os fatores potenciais de risco – como doenças geneticamente herdadas, por exemplo – que podem colocá-lo, e a seus descendentes, em situações desfavoráveis na competição pelo sustento de sua vida. Nos finais dos anos 70, Foucault já compreendera que, sob as condições neoliberais contemporâneas, o mercado seria a instância a partir da qual se decidiria a manipulação do genoma humano, tornando irrelevante toda e qualquer discussão ética e política sobre a questão:

... um dos interesses atuais da aplicação da genética às populações humanas é o de permitir reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm ao longo de sua existência. Vocês me dirão: quanto a isso não podemos fazer nada, nossos pais nos fizeram assim. Por certo, mas quando se pode estabelecer quais são os indivíduos de risco, e quais são os riscos de que uma união de risco produza um indivíduo que terá tal ou qual característica quanto ao risco de que é portador, pode-se perfeitamente imaginar o seguinte: os bons equipamentos genéticos – isto é, [aqueles] que poderão produzir indivíduos de baixo risco ou cuja taxa de risco não será nociva para eles, para seus próximos ou para a sociedade – esses bons equipamentos genéticos vão certamente se tornar algo raro, e na medida em que serão algo raro podem perfeitamente [entrar], e é normal que entrem, no interior dos circuitos ou dos cálculos econômicos, isto é, nas escolhas alternativas. Em termos claros, isso vai significar que, dado meu equipamento genético, se quero ter um descendente cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom quanto o meu, ou, na medida do possível, melhor, vou ter que encontrar alguém com quem me casar cujo equipamento genético também seja bom. E vocês vêem claramente como o mecanismo de produção dos indivíduos, a produção de filhos, pode reencontrar toda uma problemática econômica e social a partir do problema

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da raridade de bons equipamentos genéticos. E se vocês quiserem ter um filho cujo capital humano, entendido simplesmente em termos de elementos inatos e de elementos hereditários, seja elevado, verão que, da parte de vocês, será preciso todo um investimento, isto é, ter trabalhado o suficiente, ter renda suficiente, ter um estatuto social que lhes permitirá assumir como cônjuge ou como co-produtor desse futuro capital humano alguém cujo capital também será importante. (FOUCAULT, 2004b, p. 234)

Este é o ponto no qual reencontramos a importância de suas considerações sobre o contínuo perigo de que o fascismo se infiltre em nossos comportamentos mais cotidianos. A despeito do poder soberano do Estado ter perdido seu papel de foco aglutinador e irradiador do fascismo, como se dera no fascismo clássico, para o âmbito fluido do mercado transnacional de capitais, ainda assim podemos denominar certos discursos e práticas recorrentes do presente enquanto propriamente fascistas, na medida em que eles determinam insidiosamente a padronização de comportamentos, sentimentos e falas que invadem e regulam previamente todos os domínios da vida social cotidiana, bloqueando a produção de diferenças que façam a diferença, a partir do mercado econômico entendido como novo lugar de produção de verdade, de desqualificação e de aniquilação. Afinal, o que fazer com aqueles indivíduos e povos que se recusam a assumir-se como empreendedores de si mesmos?

Em um contexto biopolítico operacionalizado pelo mercado neoliberal de concorrência, em vista do qual os agentes têm de continuamente preparar-se para serem assimilados pelo mercado da competitividade, a manutenção e incremento da qualidade de vida de uns continua a implicar e exigir a destruição da vida de outros, tornando-lhes a vida supérflua e descartável: cada vez mais, as novas figuras da criminalidade e da anormalidade serão fixadas naqueles indivíduos e grupos que não se assumem como auto-empreendedores no e para o mercado. Foucault pensou a biopolítica tanto em seu caráter econômico neoliberal quanto em seu caráter governamental estatal. Elas constituem variantes independentes da biopolítica, mas nem por isso contraditórias, visto que podem associar-se eventualmente. A hipótese de uma combinação eventual no mundo contemporâneo entre os mecanismos econômicos da biopolítica neoliberal e da biopolítica estatal talvez explique a complementaridade entre a desconsideração dos protocolos de Kyoto e a proliferação das chamadas guerras preventivas e humanitárias. Em um horizonte biopolítico perpassado pela busca contínua de uma segurança política e econômica jamais alcançável, ambas as atitudes estão previamente justificadas em nome da garantia da qualidade de vida de certas

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populações. Repete-se assim a mesma lógica biopolítica: a preservação da qualidade de vida de uns está fundada na impossibilidade da vida de outros muitos, de modo que biopolítica e tanatopolítica continuam a remeter-se mutuamente. Eis aí alguns dos vetores de disseminação do novo fascismo, que poderíamos denominar como o fascismo viral, que atua por contaminação endêmica, espalhando-se silenciosamente pelo planeta como enfermidade crônica que precisa ser continuamente combatida.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. II 1970-1975. Paris: Gallimard, 1994a. FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. III 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994b.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade Vol. I: A vontade de saber. 13ª. Edição. RJ: Graal, 1999a.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. SP: Martins Fontes, 1999b. FOUCAULT, Michel. Securité, Territoire, Population. Paris: Gallimard, 2004a. FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004b.

NIETZSCHE, F. Werke in Drei Bänden. Editado por Karl Schlechta, volume I. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1997.

SENELLART, Michel. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. v.7, n.1-2, out. 1995. p.1-14.

VEIGA-NETO, Alfredo. “Coisas de Governo...” In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.): Imagens de Foucault e Deleuze. Ressonâncias nietzschianas. RJ: DP&A, 2002.

Referências

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