• Nenhum resultado encontrado

XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE) - Grupo de Trabalho: Saúde e Sociedade (GT 19) - Título do

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE) - Grupo de Trabalho: Saúde e Sociedade (GT 19) - Título do"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)

XIII Congresso Brasileiro de Sociologia

29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE) - Grupo de Trabalho: Saúde e Sociedade (GT 19)

- Título do trabalho: Discursos forenses sobre crime, saúde mental e periculosidade - Nome do(a) Autor(a) (ou dos autores): Myriam R. Mitjavila; Priscilla Gomes Mathes - Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

(2)

Este trabalho apresenta uma análise do papel institucional de algumas práticas forenses na produção e reprodução social das representações sobre normalidade, loucura, responsabilidade penal, criminalidade e periculosidade no momento contemporâneo. A partir de uma leitura baseada em categorias de análise que provêm da sociologia da saúde e da medicina, bem como da sociologia do risco, são examinados alguns elementos do campo semântico e dos modos de estruturação dos laudos forenses nas áreas da psiquiatria e do serviço social. O material empírico no qual se sustenta a análise tem origem em uma pesquisa realizada com uma amostra de processos judiciais e prontuários médico-sociais de população internada em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Em particular, foram examinados os laudos de sanidade mental e de cessação de periculosidade, dois dos principais momentos em que o saber científico-técnico é convocado como fonte legítima para a emissão de “verdades”, e de “provas”. É da positividade desse saber que advirá, não apenas a determinação/atribuição de condições que acabam afetando tanto as trajetórias sócio-biográficas dos indivíduos submetidos a estas avaliações quanto os processos mais amplos de institucionalização de normas e valores referentes às relações entre agentes individuais e instituições sociais na contemporaneidade.

Procura-se, assim, obter um diagnóstico sobre as funções sócio-institucionais (WEISSHAUPT, 1985) e as condições materiais e simbólicas da participação dos discursos da psiquiatria e do serviço social nos processos de trabalho que envolvem o que, em trabalhos anteriores, definimos como “ arbitragem “ social (MITJAVILA, 2002).

Em termos gerais, a arbitragem refere-se a um tipo de prática institucional que se apóia na utilização de mecanismos de categorização social dos indivíduos, geralmente com o auxílio de conhecimento cientifico e técnico, com a finalidade de instituir posições ou condições sociais (vinculadas ao acesso a bens, a serviços, ao desempenho de papeis e ao exercício de direitos) que afetam de maneira decisiva as trajetórias sociais individuais e familiares (MITJAVILA, 2002).

É preciso destacar que a arbitragem não é uma ocupação, nem uma profissão: trata-se de um tipo de função que diversos agentes institucionais desenvolvem em determinadas

(3)

áreas e com objetivos muito precisos (DOUGLAS, 1996; FARIA, 2001; MITJAVILA, 2002). Devido a isso, a questão da arbitragem oferece uma perspectiva interessante para estudar o funcionamento das instituições e o papel das profissões na contemporaneidade (FOUCAULT, 1987; FREIDSON 1988; ELIAS, 1994; GIDDENS, 1995; DOUGLAS, 1996; MITJAVILA, 2002).

A esfera da justiça caracteriza-se por haver historicamente desempenhado um papel relevante na construção e desenvolvimento de mecanismos arbitrais, principalmente por meio das práticas forenses. A escolha da área criminal fundamenta-se no seu caráter matricial, tanto para a incorporação de conhecimento científico-técnico aos processos modernos de administração de justiça como para a construção dos próprios domínios disciplinares de alguns campos de conhecimento e de intervenção profissional vinculados ao julgamento de crimes e administração de penas, como seria o caso da psiquiatria forense (DARMON, 1991; PINTO, 2004).

Como tem sido contundentemente mostrado e demonstrado pelo acervo de investigação sócio-histórica atualmente disponível (HARRIS, 1993), a psiquiatria forense desempenhou um papel fundamental nas complexas relações existentes entre medicina, leis e sociedade a partir da segunda metade do século XIX. Fortemente estruturada em torno do positivismo emergente e dos empreendimentos morais que se desenvolveram a partir das manifestações que a questão social suscitava nos espaços urbanos e industriais, a criminologia nasceu como um campo dominado pela medicina como área de conhecimento e como profissão. As idéias médicas sobre a loucura e a periculosidade, sobre o normal e o patológico, acabaram se convertendo em elementos decisivos para a trajetória da medicina como profissão, principalmente do ponto de vista da ampliação indefinida de seus objetos de intervenção, cada vez mais sociais e decididamente biopolíticos (FOUCAULT, 1977). Desta forma, o campo judiciário tem-se convertido no principal laboratório de produção de dispositivos periciais que tiveram uma origem médica, mas que acabaram se estendendo para outros domínios extrajudiciais, criando "verdades" que se instituíram como referências morais de largo alcance institucional e populacional no mundo ocidental.

No contexto do presente trabalho, considera-se que a investigação dos discursos periciais do serviço social e da psiquiatria forense permitirá obter uma melhor compreensão do papel do conhecimento científico-técnico na organização das respostas sociais à

(4)

criminalidade em termos de saúde mental, assim como sobre a trajetória mais recente destes saberes profissionais, principalmente no que diz respeito a sua participação na divisão do trabalho no campo sócio-jurídico, seu desenvolvimento em termos de autonomia técnica e hierárquica e seus desafios éticos.

Os procedimentos arbitrais ocupam um lugar central em ambos os campos profissionais, principalmente por meio da emissão de pareceres emanados de estudos sociais e de diagnósticos psiquiátricos que, no campo do judiciário, são chamados de perícias (psiquiátricas num caso e sociais no outro), baseadas na emissão de pareceres e juízos registrados em um tipo de documento denominado laudo ou laudo de perícia (DAL PIZZOL, 2001; MIOTO, 2001). Trata-se de uma classe procedimento que proporciona insumos para a as decisões que devem tomar alguns agentes institucionais nos processos de arbitragem, fundamentalmente juízes, desembargadores e, em menor grau, promotores, advogados e os próprios sujeitos envolvidos no processo.

No entanto, as pesquisas recentemente realizadas no Brasil sobre este tema, exibem resultados bastante unânimes quanto à constatação de que a emissão de laudos periciais seria uma prática bem estabelecida no campo da psiquiatria (ABDALLA-FILHO, 2004), e pouco freqüente entre os assistentes sociais do judiciário se comparada com os formatos que tradicionalmente têm sido empregados na emissão de juízos profissionais nos quais se sustentam as funções arbitrais desta categoria profissional, tais como os pareceres técnicos e os estudos sociais (DAL PIZZOL, 2001; MITJAVILA, 2004).

Questões referentes à gestão de riscos e perigos nas sociedades contemporâneas: papel dos peritos como árbitros da vida social

Nos últimos quinze anos a questão do risco despertou um crescente interesse em diversos campos do conhecimento cientifico e, particularmente, nas ciências sociais. A noção de risco alcançou tanta relevância que alguns autores chegam a ponto de definir a modernidade como uma cultura do risco (GIDDENS, 1995; DOUGLAS, 1996;). Esse novo interesse das ciências sociais pela noção de risco é resultado precisamente da necessidade de identificação tanto das bases quanto das conseqüências sociais de uma

(5)

nova semântica e práticas sociais em torno das incertezas e perigos da vida contemporânea. Porém, a preocupação pelo risco estaria menos vinculada ao predomínio real ou factual de diversos tipos de ameaça para a vida humana do que às racionalidades, interesses e padrões culturais que organizam a percepção e as respostas sociais perante esses perigos. (DOUGLAS & WIDAVSKI, 1982; GIDDENS, 1995).

Devido a isso, torna-se necessário partir do reconhecimento da densidade sócio-política e cultural que envolvem as noções de risco e perigo (LUPTON, 1993; 1999). Neste sentido, pode-se salientar uma característica típica dos discursos sobre risco e perigo que consiste em proporcionar um suporte sintático apto para circular abrangentemente no espaço social permitindo assim transportar múltiplos, e nem sempre evidentes, significados sociais.

Outra característica dos discursos sobre risco e perigo refere-se às suas propriedades imunizadoras perante a possibilidade de fracasso dos resultados de eventuais prognósticos associados a diversas classes de eventos. Na medida em que estas noções operam através de enunciados sobre o futuro, qualquer medição em termos de possibilidade será fictícia e, por isso, sem compromisso. Assim, os sistemas abstratos - e especialmente as disciplinas técnicas como a medicina, por exemplo – têm incorporado, em graus variáveis, a avaliação de riscos e perigos, mas sempre diante do desafio de diagnosticar (e predizer) o futuro de situações concretas, únicas, irrepetíveis, assim como intervir sobre elas em nome desses conhecimentos. Neste tipo de discurso observa-se uma forte influência do que poderíamos chamar de “universo da certeza”: as predições que não se cumprem vem a se converter em potenciais fontes de fracasso do ponto de vista da capacidade preditiva do saber profissional. Mais recentemente, a incorporação de elementos de análise oriundos do que se tem denominado medicina baseada em evidências (VASCONCELLOS-SILVA & CASTIEL, 2005) permite proteger as predições diante de eventos que poderiam contestá-las, podendo-se fundamentar o fracasso de uma explicação, não na certeza, mas na probabilidade, apenas, de acontecer o que foi anteriormente anunciado. No entanto, a já clássica distinção sócio-antropológica entre perigo (ameaça diretamente detectável) e risco (probabilidade de um evento acontecer) parece perder força analítica quando aplicada à interpretação dos julgamentos e avaliações que caracterizam o trabalho pericial de assistentes sociais e psiquiatras sobre insanidade mental, responsabilidade penal e periculosidade criminal. Assim sendo,

(6)

torna-se necessário apretorna-sentar a torna-seguir o perfil atual dos processos de arbitragem desenvolvidos nessa área, fundamentalmente do ponto de vista das condições enunciativas dos discursos forenses.

Saúde mental e periculosidade: dimensões relevantes dos processos de trabalho da psiquiatria forense e do serviço social na área criminal

As práticas profissionais (discursivas e não discursivas) da psiquiatria forense e do serviço social, que se inserem nos processos de arbitragem de risco e periculosidade criminal, encontram-se estreitamente relacionadas, não apenas em função dos dispositivos biopolíticos e institucionais que determinam sua coexistência e funções, como também das posições historicamente ocupadas por ambas as profissões na construção dos modelos etiológicos e terapêuticos e na divisão sócio-técnica do trabalho em torno das relações entre saúde mental e criminalidade.

Assim, por exemplo, os estudos disponíveis sobre os origens e trajetórias destas profissões no espaço político- institucional que intersecta os problemas simultaneamente associados à loucura e à criminalidade, revelam o peso significativo dos quadros de referencia teóricos e ideológicos oriundos de movimentos como o higienismo, o preventivismo sanitarista norte americano e a reforma psiquiátrica, na estruturação do papel e funções sócio-institucionais de profissões como o serviço social (MITJAVILA, 2004; ORTEGA E MITJAVILA, 2005). Com efeito, a participação dos saberes profissionais neste âmbito não pode ser analisada à margem dos processos mais amplos por meio dos quais são organizadas as respostas sócio-políticas ao crime e à loucura, a partir de finais do século XIX e até o presente.

Nesse mesmo sentido, pode-se afirmar que os códigos, procedimentos e funções dos assistentes sociais no campo da saúde mental historicamente exibem sua inscrição fortemente subordinada à psiquiatria e aos saberes “psi” responsáveis pela formulação das bases epistemológicas e as configurações de poder-saber que organizam a gestão social das relações entre saúde mental e criminalidade. Isto significa, então, que a análise das funções do serviço social nos processos de trabalho voltados para a atribuição de risco e periculosidade criminal não pode negligenciar o conjunto de condições que decorrem dos processos históricos por meio dos quais o saber médico instalou-se como o mais legítimo dos saberes em esse campo e obteve monopólio,

(7)

mandatos institucionais e licença quase sem limites para medicalizar alguns processos vinculados à gestão da criminalidade nas sociedades ocidentais (FREIDSON, 1998) Segundo Adorno (1991), as políticas públicas penais brasileiras apresentam uma orientação bastante eclética do ponto de vista dos pressupostos etiológicos da criminalidade e suas relações com a doença mental. Isto também se reflete no estatuto ambíguo do doente mental no Brasil, já que, como afirmam Peres e Nery (2002: 19), “(...) a sua doença é o móvel de seu ato, excluído por isso a culpabilidade e a responsabilidade. Na ‘estratégia da periculosidade’, a punição justifica-se como tratamento, e a prevenção fundamenta-se em um ato passado.”

Esses processos de determinação de (in)imputabilidade, (ir)responsabilidade e periculosidade criminais inscrevem-se em um sistema penal que, no caso do Brasil, funciona de modo jurisdicionalizado, no sentido de que cabe ao juiz das execuções – e não à administração prisional – presidir e fiscalizar também o processo de cumprimento de penas (TEIXEIRA & BORDINI, 2004).

A partir do Código de 1940, a doença mental é considerada causa excludente de culpabilidade e, portanto, motivo de absolvição de doentes mentais criminosos. Isto pressupõem que, pelo fato de serem absolvidos e isentos de culpabilidade, os doentes mentais não devem ser objeto de punição, mas de tratamento. É neste contexto que se justifica a medida de segurança com internação em manicômio judiciário, em função da sua periculosidade presumida por lei. Um aspecto a ser salientado é que se trata de um confinamento que pode chegar a ter caráter definitivo e que depende inteiramente do julgamento da magistratura. Por essa razão, resulta necessário registrar o alto grau de autonomia hierárquica do juiz, autonomia que se exprime na natureza absolutamente discricionária do papel do magistrado no administração dos processos de produção de provas. Para o julgamento de questões envolvidas nos litígios, os juizes se valem de provas, as que podem ser apresentadas ou requeridas pelas partes ou pelo representante do Ministério Público. A literatura sócio-jurídica identifica três tipos de prova: documental, testemunhal e pericial (DAL PIZZOL, 2003).

Interessa a esse respeito sublinhar que o juiz encontra-se institucionalmente habilitado para atuar discricionariamente tanto na determinação de provas periciais, quanto na escolha dos peritos para realizá-las. Conforme estabelece o Art. 420 do CPC, "(...) o juiz

(8)

deve procurar nomear profissional especializado, de sua confiança e que responda fidedignamente, de forma imparcial e com o devido conhecimento técnico." (DAL PIZZOL, 2003, p. 34).1

Diversas pesquisas têm demonstrado que os juizes tendem a depositar um alto grau de confiança no conhecimento cientifico-técnico para a produção de provas periciais (BERCOVICH, 2000; MITJAVILA, 2003). No entanto, isto não significa que essa confiança se estenda a todas as áreas do saber cientifico-técnico, entre as quais se encontra, é claro, o próprio Serviço Social, nem que todos os assuntos que devam ser objeto de arbitragem judicial requeiram, na ótica dos juizes, de provas periciais.

Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que a autonomia do juiz para definir o campo das práticas periciais é enorme. Aqui se estabelece a possibilidade, por exemplo, de que o juiz desconsidere um pedido de perícia, fundado no fato da prova no depender de conhecimento técnico ou cientifico ou, ainda, na opinião de que existe excesso de prova.

Sob essas condições, o processo de nomeação do perito se apresenta, também, como um poderoso mecanismo de (re) institucionalização dos papeis profissionais na divisão do trabalho no judiciário. Isto obedeceria ao fato do juiz estar investido do poder para decidir se um determinado campo de saber, ou uma certa categoria profissional, dispõem dos conhecimentos e competências necessários para aportar os elementos de prova que estão sendo requeridos.

Cabe ainda destacar que o subsidio técnico-científico para as decisões arbitrais do juiz a respeito de condições como a imputabilidade e a periculosidade provem essencialmente de avaliações registradas em documentos que correspondem a duas fases do processo de arbitragem:

(a) Fase Processual – Compreende a elaboração de laudos de (in)sanidade mental, cujo principal propósito é determinar se o indivíduo pode ou não ser julgado pelo crime ou crimes cometidos em função de um conjunto de atributos que informam sob aspectos cognitivos e volitivos da sua participação nos fatos tidos como criminosos. Este tipo de avaliação forense constitui um insumo fundamental para a atribuição, por parte do juiz, de responsabilidade penal ao periciado e, decorrentemente, para determinar se ele pode ou não ser julgado por esses crimes.

1

(9)

(b) Fase de Execução Penal – O juiz se apóia no saber especializado da psiquiatria e de outras áreas para determinar a aplicação de alguma das duas formas de confinamento dos doentes mentais nesta área: internamento para tratamento psiquiátrico e internamento para cumprir medida de segurança. Em ambos os casos, um insumo científico-técnico torna-se fundamental para a toma de decisões do juiz: a avaliação da periculosidade presumida do periciado (geralmente por meio de laudos de cessação de periculosidade) e, conseqüentemente, a adoção de medidas que visem manter, tornar mais rigorosas ou ainda abrandar e até suspender de maneira parcial ou total o confinamento.

A maior parte das evidências empíricas disponíveis (BERCOVICH, 2000; ABDALLA-FILHO, 2004) sugere que as decisões judiciais sobre a imputabilidade e confinamento de indivíduos considerados doentes mentais criminosos quase sempre som coincidentes com e se fundamentam nas conclusões das perícias psiquiátricas, confirmando assim a permanente renovação de uma aliança de longa data entre poder judicial e medicina psiquiátrica. Devido a isso, parece-nos pertinente identificar alguns aspectos dos modos de estruturação, das condições de autonomia e do tipo de racionalidade que organizam os discursos sobre risco e periculosidade nestas práticas profissionais.

Comentários finais: conseqüências da autonomia, do monopólio e da autoridade cultural da psiquiatria forense na área criminal

Nesta seção, pretendemos registrar algumas considerações a respeito do que se constituiriam três dimensões altamente problemáticas do papel e dos rumos que historicamente vem adotando as relações entre as instituições jurídicas e o saber médico, ora aprofundando tendências seculares, ora renovando as estratégias discursivas de acordo com os desafios introduzidos pela realidade social no momento contemporâneo. Estas dimensões compreendem questões que podem ser agrupadas em três categorias: o problema da avaliação de risco e periculosidade criminais; os limites da autonomia da ciência e da técnica na arbitragem da criminalidade; e as condições de possibilidade de práticas forenses sobre o social.

Quanto à questão da avaliação de risco e periculosidade, é preciso lembrar que os discursos organizados em torno à idéia de risco podem ser amplamente utilizados para

(10)

legitimar políticas ou para desacreditá-las; para proteger os indivíduos das instituições ou para proteger as instituições dos agentes individuais. A moralização e a politização dos perigos no contexto da modernidade exige um vocabulário uniforme que já não pode ser o da religião, que estaria baseado nas idéias de pecado e de tabu. Em condições de modernidade, o risco possui a virtualidade de oferecer, segundo a expressão de Mary Douglas (1990: 5), “termos seculares para reescrever as sagradas escrituras”.

A participação do saber científico e técnico torna-se fundamental no desenvolvimento de uma das mais importantes propriedades do risco como dispositivo. Trata-se do que Mary Douglas (1990) chama de propriedades forenses do risco, as que lhe permitem agir tanto Retrospectiva quanto prospectivamente. Na área criminal, do ponto de vista da avaliação retrospectiva, isto se manifesta na avaliação de (in)sanidade mental em situações passadas associadas a comportamento criminoso em função de atributos avaliados ex-post em um momento presente que corresponde ao exame pericial coordenado pelo psiquiatra forense. Prospectivamente, isto se manifesta geralmente na avaliação do risco de comportamento violento, em um futuro indeterminado, a partir do exame de antecedentes biográficos e do comportamento do periciado durante o período de confinamento para tratamento ou custódia. Um dos problemas inerentes à avaliação forense de riscos e periculosidades reside nos critérios utilizados pelos profissionais envolvidos nas práticas periciais. Existem atualmente, tanto do ponto de vista das fontes teóricas como das condições de aplicação dos mesmos, duas grandes correntes de pensamento, quais sejam, a avaliação clínica de risco e periculosidade desenvolvida nos moldes da psiquiatria clínica e do quase-work em serviço social, onde a relação inter-pessoal e a observação in loco de atributos do periciado por meio de interrogatório e/ou entrevista; e a aplicação de métodos padronizados baseados em testes e cálculos probabilísticos de risco e periculosidade criminais. No Brasil, este último tipo de recurso permanece ainda como um exercício acadêmico com escassa ou nula inserção nas práticas forenses desenvolvidas nos hospitais de custódia. Sob essas condições, cabe formular um conjunto de interrogantes acerca dos critérios e dos referentes conceituais e ideológicos que organizam a percepção técnica da (in)sanidade e do risco e da periculosidade criminais como fundamento para a aplicação de punições que podem chegar até o confinamento perpétuo dos indivíduos.

(11)

No que diz respeito aos limites da autonomia da ciência e da técnica na arbitragem da criminalidade, é preciso registrar a atual ausência quase absoluta de limites sócio-técnicos à tradicional autonomia da psiquiatria forense na emissão de laudos na área criminal. Além de haver historicamente atribuído à medicina o monopólio para determinar a responsabilidade e a periculosidade criminais, a justiça criminal institucionaliza condições de autonomia para o exercício dessa função por parte da psiquiatria forense que superam, provavelmente, os níveis de autonomia que a profissão médica detem como um todo, incluindo também outras áreas de atuação da medicina legal. Se por autonomia da medicina entendemos, junto com Friedson (1993), a possibilidade da profissão criar, de maneira independente, e auto-validar as regras do exercício profissional, podemos concluir que estes atributos se manifestam de maneira radicalizada nas perícias psiquiátricas. Com efeito, o exame pericial que constitui a base da emissão de laudos de sanidade mental e de cessação de periculosidade consiste em uma entrevista ou interrogatório dirigido à obtenção de evidências sobre a responsabilidade e a periculosidade do periciado com relação a um evento passado, no primeiro caso, e a eventos incertos de natureza violenta ou criminosa, num futuro também indeterminado. Do ponto de vista dos direitos humanos dos sujeitos periciados, trata-se de uma tecnologia que não oferece garantias mínimas, no sentido de permitir realizar controles técnicos posteriores, devido à irreplicabilidade dos procedimentos e, portanto, à impossibilidade de introduzir a avaliação por pares. Diferentemente do que acontece em outras áreas da medicina legal, onde as evidências forenses são ou podem ser registradas por meio de imagens e outros suportes tecnológicos ou materiais, assistimos aqui a elaboração de juízos profissionais baseados em informação obtida a partir de evidências imateriais (simbólicas, objetivas ou subjetivas) e irrepetíveis, devido ao contexto interacional entre perito e periciado que caracteriza o ato forense.

Por último, esta primeira abordagem do tema sugere a importância de incluir nas agendas de investigação sobre a problemática das relações entre saber científico-técnico e instituições sociais dimensões ainda não suficientemente exploradas pelas ciências sociais a respeito do papel das profissões na medicalização do social. Entre essas dimensões, resulta pertinente indagar as condições de possibilidade das avaliações forenses sobre o social. Nesta direção, iniciamos com este trabalho uma aproximação à análise do papel das profissões na avaliação de riscos e periculosidade criminais, a qual se encontra ainda em uma fase incipiente de tratamento por parte das ciências sociais no

(12)

Brasil. Foi com esse intuito que neste trabalho nos propomos abordar, de maneira bastante etnográfica, os processos de trabalho que se desenvolvem com o objetivo de emitir laudos técnicos dirigidos a subsidiar o julgamento de indivíduos em função de sua responsabilidade (laudos de sanidade mental para determinação de imputabilidade/inimputabilidade penal) e periculosidade criminal (cessação de periculosidade para a determinação de livramento condicional ou medidas de segurança).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALLA-FILHO, E. 2004. Violence risk assessment in Forensic Psychiatry. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 31, n. 6. pp. 65-78. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832004000600002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 Apr 2007. Pré-publicação. ADORNO, S. 1991. Sistema Penitenciário no Brasil: problemas e desafios. Revista USP, São Paulo. n. 9: pp. 65-78.

BERCOVICH, I. 2000. La medicalización de la sociedad: el caso de la práctica psiquiátrica forense en el Uruguay. Montevidéu, 90 f. Licenciatura en Sociología – Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de la República del Uruguay.

DAL PIZZOL, A. 2001. O estudo social e a perícia social: Um estudo em construção. Florianópolis: Divisão de Artes Gráfica do Tribunal de Justiça.

DARMON, P. 1991. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

DOUGLAS, M. 1996. Cómo piensan las instituciones. Madrid: Alianza.

DOUGLAS, M. 1990. Risk as Forensic Resource. Daedalus, 119 (4), pp. 11-16.

DOUGLAS, M.; WIDAVSKY, A. 1982. Risk and Culture. Oxford, Basil Blakwell.

ELIAS, N. 1994. Conocimiento y Poder. Madrid, La Piqueta.

FARIA, J.E. 2001. O poder judiciário nos universos jurídico e social: esboço para uma discussão de política judicial comparada. Serviço Social & Sociedade, Ano XXII (67), pp. 7-17.

(13)

FOUCAULT, M. 1977. História da sexualidade. I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

FREIDSON, E. 1993. How dominant are the professions? In: Hafferty, F.W e McKinlay, J.B. The changing medical profession: An international perspective. New York: Oxford University Press.

FREIDSON, E. 1988. Professional Powers. A Study of the Institutionalization of Formal Knowledge. Chicago, The University of Chicago Press.

FREIDSON, E. 1998. Renascimento do profissionalismo. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo.

GIDDENS, A. 1995. Modernidad e identidad del yo. El yo y la sociedad en la época contemporánea. Barcelona, Ediciones Península.

HARRIS, R. 1993. Assassinato e loucura. Medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro, Rocco.

LUPTON, D. 1993. Risk as Moral Danger: The Social and Political Functions of Risk Discourse in Public Health. International Journal of Health Services 23, pp. 425-35.

LUPTON, D. 1999. Risk. London: Routledge.

MIOTO, R.C.T. 2001. Perícia social: proposta de um percurso operativo. Serviço Social &Sociedade, Ano XXII (67), pp. 145-158.

MITJAVILA, M. 2004. Perícia técnica e arbitragem Social: Um estudo sobre o Serviço Social do Poder Judiciário no Estado de Santa Catarina. In: Anais do IX Enpess - Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social 30 de novembro a 03 de dezembro de 2004 - PUCRS. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. CD-rom ISBN 85-8952-07-8.

MITJAVILA, M. 2002. O risco como recurso para a arbitragem social. Tempo Social; Revista de Sociol. USP. São Paulo, 14 (2), pp. 129-145, outubro.

MITJAVILA, M; ORTEGA, E. 2005. El preventivismo sanitarista y la institucionalización del Trabajo Social en el Uruguay neobatllista: una indagación genealógica. Revista Katálysis. Florianópolis. v.8 n.2 jul/dez, pp. 211 – 224. Editora da UFSC.

PERES, M.F.T.; NERY FILHO, A. 2002. A Doença Mental no Direito Penal Brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança. Hist. cienc. saude-Manguinhos., Rio de Janeiro, v. 9, n. 2.

(14)

PINTO, F.R. 2004. A Penitenciária de Florianópolis e a medicalização do crime (1935-1945). Florianópolis, 151f. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal de Santa Catarina.

TEIXEIRA, A.; BORDINI, E.B.T. 2004. Decisões judiciais da Vara das Execuções Criminais: punindo sempre mais. São Paulo Perspec. São Paulo, v. 18, n. 1.

VASCONCELLOS-SILVA, P.R.; CASTIEL, L.D. 2005. Proliferação das rupturas paradigmáticas: o caso da medicina baseada em evidências. Rev. Saúde Pública, vol.39, no.3, pp.498-506. Jun.

WEISSHAUPT, J.R (Org.) 1985. As funções sócio-institucionais do serviço social. São Paulo: Cortez.

Referências

Documentos relacionados

visam o ensino de habilidades de compreensão e de produção de textos orais e escritos e o desenvolvimento da competência comunicativa, na proposta curricular da instituição

Normalmente, não é necessária nenhuma proteção especial para os olhos.. Quando houver risco de respingo, deve-se usar óculos de proteção com laterais, como medida

As relações hídricas das cultivares de amendoim foram significativamente influenciadas pela a deficiência hídrica, reduzindo o potencial hídrico foliar e o conteúdo relativo de

Este texto é fruto de pesquisa de Iniciação Científica e tem como objetivo analisar se a proposta pedagógica do CIEJA (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos) localizado

Figura A.164 – Custos de Exploração por metro cúbico de água faturada em função do número médio de trabalhadores para EG de gestão direta por grau de fiabilidade dos dados.

MELO NETO e FROES (1999, p.81) transcreveram a opinião de um empresário sobre responsabilidade social: “Há algumas décadas, na Europa, expandiu-se seu uso para fins.. sociais,

linguística e cultural, pois consiste numa área de particular interesse para os professores e educadores que se veem cada vez mais confrontados com uma realidade multicultural nas

Este trabalho tem como objetivo contribuir para o estudo de espécies de Myrtaceae, com dados de anatomia e desenvolvimento floral, para fins taxonômicos, filogenéticos e