• Nenhum resultado encontrado

GÓRGIAS E SEXTO EMPÍRICO: UM PARALELO FORMAL 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "GÓRGIAS E SEXTO EMPÍRICO: UM PARALELO FORMAL 1"

Copied!
17
0
0

Texto

(1)

GÓRGIAS E SEXTO EMPÍRICO: UM PARALELO FORMAL

1 Wesley Rennyer M. R. Porto

(UFPB)

E-mail: wesley.rennyer@hotmail.com

RESUMO: As “Teses sobre o Não-ser” do sofista Górgias parecem culminar, se

admitirmos seus pressupostos, na obliteração completa da possibilidade do conhecimento. Entretanto, não é propriamente o conteúdo do Tratado gorgiano que revela um elo peculiar com o pirronismo, mas sim as estruturas formais sobre as quais Górgias constrói seus argumentos. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é demonstrar o paralelo existente entre a estrutura formal da primeira tese sobre o Não-ser de Górgias e determinados argumentos erigidos por Sexto contra os dogmáticos.

PALAVRAS-CHAVE: Górgias, Sexo Empírico, argumentação, estrutura formal. ABSTRACT: The “Thesis on Not-being” by the sophist Gorgias seems to culminate in

the complete obliteration of knowledge possibility, in case we admit his assumptions. However, it is not exactly the content of the Gorgian treatise that brings out a peculiar link with pyrrhonism, but rather the formal structures which Gorgias builds his arguments on. In this sense, the main purpose of this article is to demonstrate the existent parallel between the formal structure of Gorgias’ first thesis on the Not-being, and some arguments erected by Sextus against the dogmatists.

KEY WORDS: Gorgias, Sextus Empiricus, argumentation, formal structure.

Górgias nasceu em Leontinos, na Sicília2, por volta do ano 485 e 480 a. C. De acordo com o testemunho de Diógenes Laércio, o que é atestado pelos estudiosos3, ele teria sido discípulo de Empédocles (cf. DL, VIII, 58) e adquiriu grande prestígio exercendo a profissão de sofista, tendo discursado em diferentes regiões e cidades gregas, tais como

1 Este artigo é uma adaptação de um dos itens da dissertação de mestrado do autor e que foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba com seguinte título: “Dialética no ceticismo pirrônico: a contribuição da sofística no corpus argumentativo cético”.

2 Assim nos relata Filóstrato em Vida dos Sofistas, I, 492. 3 Ver Untersteiner (2012), pág. 150, nota 5.

(2)

Olímpia, Atenas, Delfos, Tessália, Béocia e Argos (KERFERD, 2003, p. 80). Górgias viveu uma vida errante, de cidade em cidade, e provavelmente morreu na Tessália, reconhecidamente célebre, chegando a atingir a incrível idade de cento e nove anos (UNTERSTEINER, 2012, p. 152-153).

Como se sabe, um conjunto significativo de fragmentos das obras de Górgias chegou até nós4, dentre os quais é do nosso interesse investigar, em contraste com o ceticismo, seu tratado ‘Sobre o Não-ser’. O referido texto sobreviveu em duas versões diferentes, a primeira, de origem anônima, que erroneamente na antiguidade foi atribuído a Aristóteles (por isso alguns se referem ao autor como Pseudo-Aristóteles); a segunda, de Sexto Empírico, que encontramos em Adversus Mathematicos VII, 65-87.

A versão de Sexto, que carrega o título de Sobre o não-ser ou sobre a natureza (Περὶ τοῦ μὴ ὄντος ἢ περὶ φύσεως), tornou-se a mais conhecida, principalmente

porque, como explica Cassin, trata-se de um texto “filologicamente menos problemático” (CASSIN, 2005, p. 269). Cabe lembrar, no entanto, que a versão sextiana levou alguns estudiosos a considerar que ela “incita a perceber a sofística como um avatar do ceticismo” (CASSIN, 2005, p. 269).

Por outro lado, a versão anônima (ou pseudoaristotélica), que está incluída na obra Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias (doravante MXG), embora não tenha sido tão comentada quanto a versão de Sexto, possui um valor singular, pois ela possui argumentos que faltam em Sexto, razão pela qual essa versão costuma ser considerada mais autêntica. Mesmo assim, não podemos fechar os olhos para as dificuldades encontradas nessa versão, já que em muitas das suas passagens deparamo-nos com algumas lacunas textuais, ou, em determinados momentos, com trechos que definitivamente não são nítidos do ponto de vista do sentido, quiçá “desesperadores”, como nos descreve Untersteiner (2012, p. 160).

Em verdade, embora ambas as versões tenham sido provavelmente elaboradas com base na mesma fonte textual5, temos diante de nós duas versões independentes, que suscitaram diferentes interpretações entre os especialistas. Assim, privilegiar uma ou outra versão, vê-las como antagônicas, julgá-las como complementares, etc., foram

4 Os títulos das obras de Górgias são apresentados no Die Fragmente der Vorsokratiker de Herman Diels, contendo os seguintes títulos: “Sobre o não-ser ou sobre a natureza” (Περ το µντος περ φσεως); Oração

Fúnebre (πιτφιος); Discurso Olímpico (Ολυµπικος); Discurso Pítico (Πυθικς); Discurso aos Eleus (γκµιον εις ηλειους); Defesa de Palamedes (πρ Παλαµδους πολογα); Elogio a Elena (λνης γκµιον); Arte Retórica (Τχνη) (DK, 1903, p. 528-533).

5 Em geral, conjectura-se que tanto o autor pseudoaristotélico quanto Sexto Empírico tinham em mãos o texto original de Górgias, ou, conforme outra hipótese corrente, que eles possuíam uma versão da obra gorgiana copiada pelo peripatético Teofrasto.

(3)

algumas das posições tomadas ao longo dos anos em relação às versões do texto do sofista de Leontinos.

Como nosso interesse a respeito das “Teses sobre o Não-ser” de Górgias é menos de discutir o cerne do pensamento do sofista no tratado do que extrair e comparar os elementos consonantes com determinadas estruturas formais do discurso pirrônico, faremos uso indistinto das duas versões, embora adiantamos aqui que concederemos maior ênfase à versão sextiana, cuja linguagem e a configuração do texto nos parecem mais favoráveis aos desígnios da nossa argumentação.

Vale lembrar que estamos cientes, decerto, do modo particular (modo cético) com que Sexto desenvolve as teses do Tratado, por isso nossas conjecturas relacionais serão sempre justificadas no confronto com o De MXG, afinal, como nos lembra Brochard, as afinidades entre Górgias e os céticos tardios fez com Sexto traduzisse Górgias nos cânones pirrônicos.

Os hábitos e a direção do espírito dos novos céticos são de tal modo semelhantes aos de Górgias que, quando Sexto resume uma parte do tratado Da natureza ou do Não-ser, acrescenta por conta própria, e quase sem perceber, argumentos e esclarecimentos que se fundem muito bem com o resto da exposição e se incorporam a ela: é somente por um esforço de atenção e comparando o texto com o De Melisso [...] que se pode distingui-los (BROCHARD, Os céticos gregos, 2009 [1887], p. 32).

Em todo o caso, antes de trazermos à tona os parentescos entre Górgias e os céticos, é preciso tecer alguns comentários a respeito da interpretação que considera o texto de Sexto demasiadamente parcial na exposição das teses gorgianas. No estudo introdutório da tradução para o castelhano da obra de Górgias, Spangenberg soa o alarme para o teor tendencioso do manuscrito de Sexto, que, em sua interpretação, estaria impregnado de sutilezas argumentativas que conduzem o pensamento gorgiano a consequências céticas.

Sua intenção [a de Sexto] é mostrar que a partir das teses gorgianas se sobressai a tese cética por excelência: não existe um critério de verdade. Não é difícil perceber, então, que através de sua exposição do pensamento gorgiano, Sexto busca levar água para seu moinho, o qual conduz a suspeitar que seu tratamento deva ser bastante tendencioso (GORGIAS, Sobre el no ser, p. 19).

(4)

Genuinamente, não resta dúvida que Sexto Empírico insere Górgias no grupo dos filósofos que, em sua leitura, aboliram o critério de verdade. As palavras de Sexto são cristalinas: “Górgias de Leontinos pertencia à mesma tropa dos que eliminaram o critério” (A.M., VII, 65); isso é inconteste. Todavia, o que não nos parece razoável declarar é que ao redigir a sua versão das “Teses sobre o Não-ser” Sexto Empírico tenha estrategicamente “pirronizado” Górgias.

Em primeiro lugar, devemos levar em consideração que Sexto Empírico está inserido numa tradição que durante séculos fez uso de um vocabulário com características bastante particulares. Trata-se, de fato, de um vocabulário cético. Por essa razão, é natural que Sexto aborde as questões filosóficas valendo-se de uma linguagem tipicamente pirrônica, o que não significa que ele enxergue marcas de ceticismo onde não exista, ou que deliberadamente adorne as teorias filosóficas alheias com traços tipicamente céticos6.

Além disso, e muito mais importante, devemos notar que aquilo que dá suporte para a afirmação de Sexto Empírico, a saber, de que as “Teses sobre o Não-ser” de Górgias culminam na destruição de qualquer critério, são as próprias proposições elementares do Tratado. Dificilmente poderíamos encontrar, dado o “caráter negativo” das teses gorgianas, alguma explicação que pudesse conciliar a crença na possibilidade de se instituir algum critério para a verdade com as hipóteses que o sofista de Leontinos apresenta no Tratado. Qualquer tentativa nesse sentido, ao nosso ver, de imediato se tornaria um exercício argumentativo vão, pois se esmeraria para conciliar o inconciliável.

Essas proposições elementares – núcleo rígido das teses – aparecem na versão sextiana e na pseudoaristotélica de forma praticamente idênticas. Ambos os manuscritos resumem o pensamento gorgiano referente às “Teses” aos princípios básicos de que: I) nada é, II) se é, não é cognoscível, III) se é, e é cognoscível, não é comunicável a outrem.

ἐν γὰρ τῷ ἐπιγραφομένῳ περὶ τοῦ μὴ ὄντος ἢ περὶ φύσεως τρία κατὰ τὴν τὸ ἑξῆς κεφάλαια κατασκευάζει, ἓν μὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν,

6 A preocupação de Sexto em distinguir o pirronismo de filosofias afins é bastante conhecida. Ao longo das

Hipotiposes, por exemplo, nosso cético dedica alguns capítulos para estabelecer uma série de distinções entre o

ceticismo e outros sistemas filosóficos (as diferenciações de Sexto abordam a doutrina de Heráclito, no capítulo XXIX; de Demócrito, no capítulo XXX; dos cirenaicos, no capítulo XXXI; etc.). Sexto também faz questão de estabelecer distinções entre o pirronismo e os céticos acadêmicos (P.H., I, 220). Até mesmo Arcesilau, cuja filosofia praticamente não difere dos pirrônicos, recebe ressalvas de Sexto, que nos diz apenas que “Arcesilau é quase pirrônico” (P.H., I, 232).

(5)

δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν, ἀκατάληπτον ἀνθρώπῳ, τρίπον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν, ἀλλά τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερμήνευτον τῷ πέλας.

Com efeito, na obra intitulada Sobre o não-ser ou sobre a natureza, estabelece em série três argumentos capitais: primeiro, que nada é; segundo, ainda que fosse, é inapreensível para o homem, terceiro, ainda que seja apreensível, entretanto, sequer pode ser expresso e explicado ao próximo (SEXTO EMPÍRICO, A.M., VII, 65).

Οὐκ εἶναί φησιν οὐδέν· εἰ δ’ ἔστιν, ἄγνωστον εἶναι· εἰ δὲ καὶ ἔστιν καὶ γνωστόν, αλλ’ οὐ δηλωτὸν ἄλλοις.

[Górgias] diz [primeiro] que nada é; [segundo] que, se é, é incognoscível; [terceiro], que se é e é cognoscível, não é demonstrável para outros (MXG, 979a, 15).

Ora, se nada é, se nada pode ser conhecido nem comunicável, como seria possível haver algum critério de verdade? Para um critério existir é necessário que alguma coisa seja; para se conhecer o critério é necessário existir a possibilidade da cognoscibilidade; por último, para se falar acerca do critério, é necessário que exista a possibilidade da comunicação. Diante dessas considerações, brota, por fim, a seguinte pergunta: Sexto de fato “pirroniza” Górgias ou tão somente identifica em seu Tratado consequências inexoravelmente afins com o ceticismo?

Se considerarmos plausível a hipótese que as Teses sobre o Não-ser possuem implicações céticas, talvez possamos melhor compreender a passagem em que Hegel nos diz que “o ceticismo alcançou um ponto muito mais profundo em Górgias de Leontinos” (HEGEL, 1892, p. 378)7. Por certo, não queremos dizer com isso que Górgias seja um cético – tal parecer não endossamos –, mas, no nosso entender, seu pensamento guarda afinidades significativas com o pirronismo.

De qualquer forma, mesmo que as duas versões das Teses que chegaram até nós suscitem agudas discussões do ponto de vista das interpretações textuais, por outro lado, o contexto no qual o trabalho gorgiano está circunscrito descansa sobre uma base menos polêmica, quer dizer, há um consenso entre os acadêmicos em considerar que as teses do Tratado de Górgias eram direcionadas contra Parmênides, ou, se preferirmos, contra a doutrina filosófica dos eleatas8.

7 “[...] scepticism reached a much deeper point in Gorgias of Leontinum” (HEGEL, 1892, p. 378). 8 Cf. Untersteiner, 2012, p. 161; Cassin, 2005, p. 17; Kerferd, 2003, p. 161.

(6)

Parmênides fora responsável por iniciar uma filosofia centrada no conceito de unidade e imobilidade, inconciliável, consequentemente, com qualquer defesa da multiplicidade e do movimento. No fragmento II do poema de Parmênides, o pensador de Eléia diz-nos que o caminho “que é” e o “que não é” são as únicas vias possíveis para o pensar; além disso, adverte-nos que apenas o caminho que “é” é admissível, pois a verdade o segue (ἀλητείη γάρ ὀπηδεῖ), enquanto que a via que “não é” resume-se, pelo

que nos consta, numa trilha inteiramente inviável (παναπευθέα).

Górgias reage aos pressupostos do poema de Parmênides declarando, de modo sequencial, teses diametralmente opostas. Recapitulando: primeiro, que nada é, segundo que, se é, não é cognoscível, terceiro, se é, e é cognoscível, não pode ser explicado ao próximo. Para o nosso objetivo de demonstrar as relações entre Górgias e os céticos (Sexto fala em nome de uma tradição), será suficiente que nos ocupemos apenas da primeira das três teses do sofista, ou seja, a tese de que “nada é”9.

Enquanto Parmênides diz que o caminho que é não pode não ser, (Fr. B 2.3) Górgias afirma exatamente o contrário: “Diz que nenhuma coisa é / Οὐκ εἶναι φησιν

οὐδέν” (MXG, 979a10); ou, segundo a versão de Sexto Empírico: “Que nada é / ὅτι οὐδὲν ἔστιν” (A.M., VII, 65). Para demonstrar sua primeira tese, Górgias teria

recorrido a uma série de argumentos que visavam exaurir qualquer possibilidade de afirmação de que alguma coisa seja. Com efeito, será precisamente pela análise de alguns desses argumentos que nos esforçaremos para traçar as semelhanças existentes entre Górgias e os céticos. Averiguemos, pois, cada um deles.

Optamos por analisar três linhas de argumentação da primeira tese do “Sobre o Não-ser” de Górgias, uma vez que, no confronto entre ambas as versões disponíveis, julgamos haver uma correspondência adequada. Esses argumentos desenvolvem-se a partir do exame das seguintes hipóteses: se algo é, ou é o ser, ou é o não-ser, ou é o ser e o não-ser ao mesmo tempo. Desse modo, Górgias investiga α) se o Não-ser é; β) se o Ser é; γ) se o Ser e o Não-ser são ao mesmo tempo. Acerca desses pontos ele concluirá, como nos relata Sexto, que nem o Ser é, nem o Não-ser é, nem o Ser e o Não-ser são simultaneamente, logo, nada é (SEXTO, A.M., VII, 66).

9 É bastante significativo, para o entendimento das teses de Górgias, levar em consideração as formas que o verbo grego εναι pode ser traduzido. Muitos estudiosos chamam atenção para a possibilidade de considerar o verbo ser no sentido predicativo, e não no sentido existencial como costumeiramente aparece nas traduções. Essa opção hermenêutica, com efeito, torna a própria tese de Górgias menos absurda, isto é, ao invés de traduzir “Οκ εναι φησιν οδν” por “Diz que nenhuma coisa existe” (que abre margem para interpretar a tese como mera ironia), poder-se-ia optar por “Diz que nenhuma coisa é”, o que insere as teses no debate filosófico sério sobre o problema da predicação.

(7)

Α) Para demonstrar que o Não-ser não é, a versão sextiana explora as

consequências absurdas que sucederiam caso disséssemos que o Não-ser fosse10. Nesse sentido, cabe notar que Górgias não está dizendo rigorosamente nada diferente do que Parmênides dissera, pois, também para o eleata, o Não-ser não é.

καὶ δὴ τὸ μὲν μὴ ὂν οὐκ ἔστιν. εἰ γὰρ τὸ μὴ ὂν ἔστιν, ἔσται τι ἅμα καὶ οὐκ ἔσται· ᾗ μὴν γὰρ οὐκ ὂν νοεῖται, οὐκ ἔσται, ᾗ δὲ ἔστι μὴ ὂν, πάλιν ἔσται. παντελῶς δὲ ἀτοπον τὸ εἶναι τι ἅμα καὶ μὴ εἶναι· οὐκ ἄρα ἔστι τὸ μὴ ὂν

(ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Μ., VII, 67).

Evidentemente o não-ser não é. Pois se o não-ser é, será e não será ao mesmo tempo; pois enquanto é pensado como não-ser, não será, porém, enquanto que é não-ser, de novo será. E é completamente absurdo algo ser e não ser ao mesmo tempo; portanto o não-ser não é (SEXTO EMPÍRICO, A.M., VII, 67).

O argumento da versão de Sexto Empírico parece indicar que Górgias, nesse primeiro momento, estaria demonstrando o quão absurdo seria conferir ao Não-ser algum aspecto ontológico, e, por extensão, gnosiológico11. Na verdade, se lermos: “se o não-ser é, será e não será ao mesmo tempo”, logo notamos que há neste enunciado uma violação lógica daquilo que posteriormente se denominará por princípio da não-contradição (A ˅ ~A), o que para os antigos gregos seria absurdo. Se se deve respeitar o princípio da não-contradição, jamais poderíamos declarar, como bem observou Cassin (2005, p. 19), que o Não-ser seja sujeito para o verbo “é”. Assim, somos forçados a reconhecer que o Não-ser não é.

Por outro lado, a demonstração gorgiana de que o Não-ser não é, tem, na versão pseudoaristotélica, uma configuração diferente, mas que também extrai da suposição de que o Não-ser seja, as mesmas contradições que vimos acima. Acontece, todavia, que nesse argumento estão concatenadas, também, as contradições de se afirmar que o Ser “é” e que o Não-ser e o Ser “são” ao mesmo tempo:

εἰ μὲν γᾶρ τὸ μὴ εἶναι ἔστι μὴ εἶναι, οὐδὲν ἂν ἧττον τὸ μὴ ὄν τοῦ ὄντος εἴη. τό τε γὰρ μὴ ὄν ἔστι μὴ ὄν, καὶ τὸ ὄν ὄν, ὥστε οὐδὲν μᾶλλον εἶναι ἢ οὐκ

10 A demonstração de que o Não-ser não é possui na versão sextiana dois argumentos, enquanto que na versão pseudoaristotélica existem três. Tomaremos, para nossa análise, apenas um argumento de cada versão, optando por aqueles que melhor se alinhem entre si.

11 Untersteiner acredita que já na primeira parte do título da obra de Górgias (Sobre o Não-ser) encontra-se ali o caráter dramático da phýsis, que prenuncia “a dissolução teórica de qualquer pressuposto ontológico e, em seguida, gnosiológico” (UNTERSTEINER, 2012, p. 222-223).

(8)

εἶναι τὰ πραγματα. εἰ δ’ ὅμως τὸ μὴ εἶναι ἔστιν, τὸ εἶναι, φησίν, οὐκ ἔστι, τὸ ἀντικείμενον. εἰ γὰρ τὸ μὴ εἶναι ἔστι, τὸ εἶναι μὴ εἶναι προσήκει. ὥστε οὐκ ἂν οὕτως, φησίν, οὐδὲν ἂν εἴη, εἰ μὴ ταὐτόν ἐστιν εἶναι τε καὶ μὴ εἶναι. εἰ δὲ τοὐτό, καὶ οὕτως οὐκ ἂν εἴη οὐδέν· τό τε γὰρ μὴ ὄν οὐκ ἔστι καὶ τὸ ὄν, ἐπείπερ γε ταὐτὸ τῷ μὴ ὄντι (ΜΞΓ, 979a, 25-30).

Pois se o não-ser é não-ser, o não-ser não seria menos que o ser. Pois por um lado o não-ser é não-ser, e, por outro, o ser é ser, de modo que as coisas são não mais que não são. Contudo, se o não-ser é, o ser, ele diz, seu oposto, não é. Pois se o não-ser é, convém que o ser não seja. De modo que assim, ele diz, nada seria, a menos que o ser e o não-ser fossem a mesma coisa. E se fossem a mesma coisa, nesse caso também nada seria; pois de um lado o não-ser não é, e, de outro, também o ser, já que, por certo, é a mesma coisa que o não-ser (MXG, 979a, 25-30).

Podemos identificar nessa complexa passagem da versão anônima três formas principais de argumentação: I) Não-ser é Ser, Ser é Ser; II) Não-ser é Ser, Ser é Não-ser; III) Não-ser é idêntico a Ser (cf. SPANGENBERG, 2011, p. 49). No primeiro raciocínio, Górgias parece mostrar que se pode conferir ser a qualquer sujeito, de modo que tanto o Ser quanto o Não-ser podem se identificar com o verbo “ser” num juízo de identidade. No segundo, vemos algum paralelo com a argumentação de Sexto que reduz ao absurdo a proposição que diz que o Não-ser é, porém, no MXG, o argumento conduz-nos até a conclusão de que o Ser não é mais que Não-ser (a consequência da identidade entre Ser e Não-ser, que encerra uma contradição lógica, só será extraída no terceiro raciocínio). No terceiro argumento, Górgias conclui que “se o ser se identifica com o não ser, então nenhum dos dois é” (SPANGENBERG, 2011, p. 55)12.

Β) Na segunda etapa da argumentação, Górgias investe frontalmente contra a

tese parmenidiana. Seu enunciado, certamente um dos mais escandalosos para a metafísica clássica, diz que: tampouco o Ser é (μὴν οὐδὲ τὸ ὄν ἔστιν). Nessa linha de

argumentação, tanto os raciocínios desenvolvidos na versão de Sexto quanto os da versão de Pseudo-Aristóteles partem do mesmo ponto, ou seja, iniciam a demonstração gorgiana de que “o Ser não é” extraindo consequências absurdas das únicas hipóteses possíveis caso se deseje admitir que o Ser seja, isto é, a hipótese do Ser ser ingénito

(9)

(ἀγένητον), gerado (γενόμενον), ou eterno e gerado ao mesmo tempo (ἀίδιον ἅμα καὶ

γενητόν)13.

Os manuscritos nos dizem que: se o Ser é eterno, significa que ele não tem princípio, e, não tendo princípio, é infinito (ἄπειρον); com efeito, se o Ser é infinito, não

está em lugar nenhum (MXG, 979b20). Como explica Sexto, se o infinito estivesse em algum lugar, esse lugar que o contém deveria ser maior do que aquilo que está contido, e, nesse caso, o Ser já não seria infinito, já que é absurdo que exista algo maior que o infinito e que possa contê-lo, logo, o Ser, que é infinito, não está em lugar nenhum (A.M., VII, 69).

Mas qual a implicação de declararmos que o Ser, que é infinito, não está em lugar nenhum? Algo poderia existir em um não-lugar? Segundo os manuscritos, a consequência da hipótese de que o Ser é eterno (ἀίδιόν), conduz a um paradoxo inescapável, que, em última instância, resume-se na conclusão que o Ser, se postulado como eterno, não é, pois não está em nenhum lugar. A ordenação silogística que Sexto confere a esse argumento não nos atesta outra coisa:

ὥστ’ εἰ ἀίδιόν ἐστι τὸ ὄν, ἄπειρόν ἐστιν, εἰ δὲ ἄπειρόν ἐστιν, οὐδαμοῦ ἐστιν, εἰ δὲ μεδαμοῦ ἐστιν, οὐκ ἔστιν. τοίνυν εἰ ἀίδιόν ἐστι τὸ ὄν, οὐδὲ τὴν ἀρχὴν ὄν ἐστιν (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Μ., VII, 70).

De modo que, se o ser é eterno, é infinito, e se é infinito, está em nenhum lugar, e se está em nenhum lugar, não é. Portanto, se o ser é eterno, de início o ser não é (SEXTO EMPÍRICO, A.M., VII, 70).

É dessa forma que temos encerrada a argumentação que demonstra o caráter paradoxal da hipótese do Ser ser eterno (ἀίδιόν). Vejamos, agora, como se desenvolve o raciocínio que problematiza a segunda hipótese, isto é, a hipótese do Ser ter sido gerado (γενόμενον). Nesse quesito, pelo que ambas as versões do Περὶ τοῦ μὴ ὄντος nos

assegura, Górgias teria argumentado que se o Ser é gerado, ou é gerado a partir do Ser ou a partir do Não-ser14, mas como essas duas possibilidades conduzem a aporias, o Ser não poderia ser gerado.

O argumento da versão sextiana é consideravelmente mais conciso que o manuscrito anônimo; nessa versão, Sexto explica que, para Górgias, o Ser não poderia

13 Essas duas primeiras hipóteses são trabalhadas em ambas as versões, no entanto, na versão de Sexto, também é examinada a hipóteses do Ser ser ingénito e gerado ao mesmo tempo.

(10)

ter sido gerado a partir do Ser, pois se esse existe, não poderia ter tido qualquer geração, uma vez que já existe (A.M., VII, 71). Em outras palavras, o argumento visa esclarecer que não haveria sentido falarmos em geração – referindo-nos ao princípio de tudo que existe –, a partir do que jamais foi gerado. Em sentido contrário, também o Ser não poderia ser gerado a partir do Não-Ser, afinal, como explica Sexto (ibidem), “o não-ser nada pode gerar, pois o que gera algo deve necessariamente participar da existência” (SEXTO, A.M., VII, 71)15.

No manuscrito pseudoaristotélico, o argumento de que o Ser não poderia provir nem do “Ser” nem do “Não-ser” ganha alguns contornos mais elaborados. O argumento expresso no manuscrito erige dificuldades inescapáveis para ambas as hipóteses, valendo-se, sobretudo, de um procedimento dialético que reduz ao absurdo as teses analisadas. εἰ γὰρ ἐξ ὄντος γένοιτο, μεταπεσεῖν ἂν, ὃ ἀδύνατον· ἐι γὰρ τὸ ὂν μεταπέσοι, οὐκ ἂν ἔτ’ εἶναι αὐτὸ ὄν, ὥσπερ γ’ εἰ καὶ τὸ μὴ ὂν γένοιτο, οὐκ ἂν ἔτι εἴη μὴ ὄν. οὐδὲ μὴν οὐκ ἐξ ὄντος ἂν γενέσθαι. εἰ μὲν γὰρ μὴ ἔστι τὸ μὴ ὄν, οὐδὲν ἂν ἐκ μηδενὸς ἂν γενέσθαι. εἰ δ’ ἔστι τὸ μὴ ὄν, δι’ ἅπερ οὐδ’ ἐκ τοῦ ὄντος, διὰ ταῦτα οὐδ’ ἐκ τοῦ μὴ ὄντος γενέσθαι. εἰ οὖν ἀνάγκη μὲν, εἴπερ ἔστι τι, ἤτοι ἀγένητον ἢ γενόμενον εἶναι, ταῦτα δὲ ἀδύνατον, ἀδύνατον τι καὶ εἶναι (ΜΞΓ, 279b, 25-30).

Pois se fosse nascido a partir do ser, ele teria mudado, o que é impossível, pois se o ser mudasse, o ser já não seria o próprio ser, de igual modo, também se o não-ser fosse nascido, o não-ser já não seria. Novamente, tampouco seria nascido a partir do ser. Pois se o não-ser não é, de nenhum modo seria nascido a partir do nada. Mas se o não-ser é, ele não poderia ser nascido do não-ser, pela mesma razão que não poderia nascer do ser. Se, com efeito, é necessário que alguma coisa seja, certamente é ingénita ou nascida, e como isso é impossível, então é impossível que qualquer coisa seja (MXG, 979b, 25-30).

Na exposição de Pseudo-Aristóteles, podemos identificar pelo menos duas linhas mestras de problematização da hipótese do Ser ter sido gerado. A primeira delas demonstra a incompatibilidade do próprio conceito de Ser, por definição imutável16, e a

15τ γρ µν οδ γεννσαί τι δναται δι τξ νάγκης φείλειν πάρξεως µετέχειν τ γεννητικόν

τινος” (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Μ., VII, 71).

16 Vale lembrar que nesse ponto, para que a argumentação possa fazer sentido, devemos pressupor a característica da imutabilidade do Ser parmenídico.

(11)

hipótese da geração, que, seja derivada do Ser ou do Não-ser, implica necessariamente na mudança. O imutável que muda é conceitualmente absurdo, logo, inadmissível. Por outro lado, quanto à segunda linha, reforça-se ainda mais a noção metafísica grega de que “do nada, nada provém”, pois, como a literalidade do texto nos certifica, do Não-ser nada poderia ser gerado.

Para exaurir essa segunda linha argumentativa, demonstra-se, também, a impossibilidade de o Ser ser ao mesmo tempo eterno (ἀίδιόν) e gerado (γενόμενον). Acerca dessa hipótese, Sexto Empírico nos oferece uma demonstração muitíssimo sucinta do quão absurdo seria admiti-la, pois os termos eterno e gerado são mutuamente excludentes, de modo que, se o Ser é eterno, não pode ter sido gerado, e se foi gerado, não é eterno. Por fim, tendo exposto esses argumentos, Sexto finaliza dizendo que: I) se o Ser não é eterno, II) nem gerado, III) nem tampouco eterno e gerado ao mesmo tempo, logo, o Ser não é (A.M., VII, 72).

Γ) Neste último ponto de exposição da primeira das teses do “Sobre o Não-ser”,

verificaremos que a hipótese do Ser e do Não-ser serem ao mesmo tempo conduz, assim como as outras duas, à aporia. Sem sombra de dúvida, dentre as três linhas argumentativas que optamos por trabalhar, essa é a menos problemática, visto que a união do que “é” com o que “não-é” fere diretamente o princípio da não-contradição, portanto, não poderia ser admitida. Como Sexto Empírico nos diz, que o Ser e o Não-ser não são ao mesmo tempo pode-se demonstrar facilmente, pois se existe o Não-Não-ser e o Ser, o Não-ser será idêntico ao Ser no que se refere a existência, e, por isso, nenhum dos dois são (A.M., VII, 75).

Além disso, Sexto prossegue sua argumentação explicando que, mesmo que supuséssemos que o Ser é idêntico ao Não-ser, eles não poderiam coexistir ao mesmo tempo, porque se ambos existissem ao mesmo tempo, não seriam idênticos, e o mesmo equivale para a relação contrária, isto é, se fossem idênticos, não poderiam existir ambos ao mesmo tempo (A.M., VII, 76). Parece haver, ontologicamente falando, uma mútua exclusão desses dois princípios, como se a natureza contrária de um e de outro impossibilitasse concebê-los racionalmente. Mais uma vez o princípio lógico da não-contradição prevalece, quer dizer, ou “é” ou “não-é” (A ˅ ~A). Perante tais aporias e problemas, Sexto conclui dizendo que: “se não há nem o que é, nem o que não é, nem ambos, e nada é concebido para além destes, nada é” (A.M., VII, 76)17. Assim

17 “[…] ε γρ µήτε τν στι µήτε τό µν µήτε µφότερα, παρ δ τατα οδν νοεται, οδν στιν (ΣΕΧΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Μ., VII, 76).

(12)

encerramos nossa análise dessa tripla argumentação gorgiana, que por hora é suficiente para que tracemos alguns paralelos com o discurso pirrônico18.

Diferentemente das afinidades que o pirronismo possui com o conteúdo de certas doutrinas filosóficas, o paralelo que aqui traçaremos entre Górgias e os pirrônicos encontra-se circunscrito numa dimensão puramente formal. Se observarmos estruturalmente os argumentos da primeira das teses do Tratado, e compreendermos que ela avança seguindo uma lógica que exaure todas as possibilidades de fundamento das hipóteses que se investiga, veremos que esse mesmo procedimento dialético é desenvolvido pelos céticos, nomeadamente quando esses buscam solapar os fundamentos teóricos das doutrinas filosóficas dos dogmáticos.

Para que possa fazer sentido nossa declaração, devemos, em primeiro lugar, elucidar mais acuradamente em que consiste esse procedimento dialético, e, em seguida, apontar os paralelos que justificam, racionalmente falando, a afirmação que esse artifício dialético é compartilhado por Górgias e os skeptikoí. Sendo assim,

iniciamos nossa elucidação dizendo que esse método tem por ponto de partida a “admissão” da tese adversária, para que, no exame da sua lógica interna, extraiam-se consequências paradoxais, e, em consequência do contrassenso da tese analisada, prove-se a tese contrária.

Quando observamos atentamente a argumentação gorgiana, providos dessa orientação quanto à forma, vemos claramente que não é outro o procedimento dialético do sofista de Leontinos. Se a tese de Górgias diz que “Nada é”, vemos que para demonstrá-la ele parte justamente da hipótese contrária, “admitindo”, por assim dizer, que alguma coisa seja, em outras palavras, se alguma coisa é, ou é o Ser, ou o Não-ser, ou o Ser e o Não-ser ao mesmo tempo; porém, como todas essas hipóteses conduzem a consequências absurdas, e nenhuma outra hipótese é possível para além dessas, Górgias acaba validando sua própria tese: nada é.

Dito de outro modo, se alguma coisa é, ou é I) P, ou é II) ~P, ou III) P ˄ ~P ao mesmo tempo. Ora, se não é P, nem ~P, nem sequer P ˄ ~P ao mesmo tempo, logo, nada é. O que demonstraremos agora é que esse procedimento dialético que Górgias utiliza no seu tratado Περὶ τοῦ μὴ ὄντος também está presente nas argumentações

desenvolvidas por Sexto Empírico, tanto em suas Hipotiposes Pirrônicas quanto em seus

18 É importante lembrar que ainda na primeira tese sobre o Não-ser há outra linha de argumentação que reforça as pretensões de Górgias. Esse argumento discute se o Ser é “Um” ou “Múltiplo”, e conduz a paradoxos semelhantes aos que tratamos acima.

(13)

Adversus Mathematicos. Apresentaremos um exemplo de cada uma dessas obras, para que assim possamos legitimar, textualmente, nossa análise comparativa.

No livro III das Hipotiposes Sexto busca estabelecer – embora não positivamente, mas ao modo cético –, que o tempo é inexistente (P.H., III, 136). Para lograr êxito nessa demonstração, Sexto aplica num dos argumentos elencados o mesmo procedimento dialético que vimos em Górgias, ou seja, extrai da tese adversária consequências absurdas, e assim, por redução ao absurdo, prova sua própria tese.

O argumento desenvolvido por Sexto (P.H., III, 147) nos diz que: se o tempo existe, ou é I) ingênito (ἀγένητος) e incorruptível (ἄφθαρτος), ou é II) gerado (γένητος) e corruptível (φθαρτὸς). Entretanto, ambas as possibilidades não se justificam, pois, como argumenta Sexto, o tempo não pode ser ingénito e incorruptível, pois uma parte dele mesmo, o passado, já não é, foi, e sua outra parte, o futuro, ainda não é, será19. Por outro lado, tampouco é gerado e corruptível, pois o que é gerado deve gerar-se a partir de algo existente, assim como o que é corruptível. E se admitirmos que tenha sido gerado ou corrompido no passado ou no futuro, gerou-se e corrompeu-se do inexistente, já que nem o passado e nem o futuro são (P.H., III, 148).

Tendo extraído consequências absurdas das teses adversárias, Sexto então conclui que “se [o tempo] não é ingénito e incorruptível, nem gerado e corruptível, absolutamente não existe / εἰ δὲ μήτε ἀγένητος καὶ ἄφθαρτος ἐστι μήτε γενητός καὶ

φθαρτὸς, οὐδὲ ὅλως ἔστιν” (SEXTO, P.H., III, 148). Podemos ver, então, que Sexto

emprega o mesmo procedimento que vimos em Górgias, excetuando apenas o aspecto conjuntivo, que aborda, ao mesmo tempo, ambas as hipóteses analisadas. Desse modo, se vemos em Górgias que “se algo é” ou é “P”, ou é “~P”, ou “P ˄ ~P” ao mesmo tempo (e como essas hipóteses conduzem a aporias Górgias conclui que “nada é”), em Sexto temos apenas “T” ou “~T”, e, igualmente, como elas implicam em contrassensos, Sexto é levado a concluir que definitivamente “o tempo não existe”. A semelhança formal é notória.

Por outro lado, a argumentação do livro VII dos Adversus Mathematicos, com a qual encerraremos os paralelos entre Górgias e Sexto, nos traz, do ponto de vista da estrutura formal, todos os aspectos presentes na argumentação gorgiana. Isso significa dizer que além das hipóteses “P” ou “~P”, teremos, igualmente, a hipótese conjuntiva representada por “P ˄ ~P”. O argumento sextiano ao qual nos referimos visa

(14)

demonstrar, novamente de maneira cética, que não há um critério seguro mediante o qual possamos apreender a verdade.

Todavia, antes de examinarmos o argumento que acima mencionamos, é de fundamental importância lembrarmos que o critério de verdade é tratado por Sexto de maneira diversificada. Tanto nos Adversus Mathematicos quanto nas Hipotiposes Pirrônicas, Sexto Empírico desenvolve uma longa exposição na qual ele tanto subdivide quanto sistematiza o problema relativo ao critério de verdade. Grosso modo, sua maneira de tratar a questão estabelece uma tripla distinção quanto ao modo de nos referirmos ao critério, isto é: I) em sentido geral, II) em sentido especial e III) em sentido particular. É com esse terceiro modo, ao qual Sexto também denomina de “critério lógico” (P.H., II, 16; A.M., VII, 33), que nós nos ocuparemos.

Observando o raciocínio sextiano, de antemão notamos que o sentido lógico do critério de verdade se subdivide em três partes, que consistem em: I) o critério como agente (o homem), II) o critério como instrumento (a sensação), e, por fim, III) o critério como aplicação e uso (aplicação da representação) (cf. A.M., VII, 35). Na busca pelas proximidades formais com a argumentação de Górgias, focaremos em uma das subdivisões do critério lógico, ou seja, concentrar-nos-emos naquele que é instrumento de apreensão da verdade.

Esses instrumentos são os sentidos (αἰσθήσεσι) e o pensamento (διανοίᾳ), meios pelos quais, segundo os dogmáticos, seria possível a apreensão da verdade, seja unicamente pelos sentidos, seja pelo pensamento, ou por ambos simultaneamente. No entanto, como argumentara Sexto, não podemos encontrar a verdade valendo-nos dos sentidos, nem auxiliados pelo pensamento, nem tampouco recorrendo aos sentidos e ao pensamento conjuntamente (A.M., VII, 343).

Os sentidos, por serem irracionais, não são adequados para o descobrimento do verdadeiro. Eles não captam, como explica Sexto, a totalidade dos atributos dos objetos, mas apenas recebem marcas imperfeitas dos objetos representados (A.M., VII, 344). O que Sexto Empírico quer dizer com isso é que não basta que os sentidos recebam uma determinada impressão, como por exemplo, a impressão do branco ou do doce, mas sim que eles sejam capazes de apreender, de modo irrestrito, o objeto que permite-nos dizer “isto é branco” ou “isto é doce” (ibidem). Ademais, os sentidos são falhos e muitas vezes nos enganam, com efeito, eles não poderiam, por si mesmos, ser o critério para julgarmos a verdade (A.M., VII, 346).

Também o pensamento não poderia apreender a verdade, pois se fosse esse o caso, ele deveria antes conhecer a si mesmo, isto é, dar-se conta da sua natureza, da

(15)

substância que o compõe, do lugar que ocupa, etc. No entanto, Sexto nos diz que de nenhum modo o pensamento pode apreender tais coisas, e invoca múltiplos argumentos para demonstrar o quão insolúvel é o problema (A.M., VII, 348-352). A própria controvérsia entre os dogmáticos, que declaram coisas diferentes acerca das questões relativas ao pensamento, também servem para que Sexto rejeite o pensamento como critério, afinal, o pensamento, na medida em que é algo controvertido, não poderia ser critério para a verdade.

Os sentidos e o pensamento, na ótica de Sexto, também se defrontam com obstáculos quanto à possibilidade de captarem a realidade dos objetos externos. Na realidade, Sexto os considera uma via impossível para a verdade (A.M., VII, 354), pois a sensação não apresenta ao pensamento os objetos externos, mas apenas sua afecção particular; assim, se esse é o caso, o conhecimento não ocorre, uma vez que a representação é diferente do objeto representado, afinal, “de igual modo que a representação do fogo é [diferente] do fogo, pois este queima, aquela não é capaz de queimar (SEXTO, A.M., VII, 357)20.

Além disso, Sexto ainda assinala que mesmo que considerássemos que os objetos externos fossem semelhantes as nossas afecções, de nenhuma maneira o pensamento, ao captá-las, poderia mediante essas mesmas afecções apreender os objetos externos, “posto que as coisas semelhantes a outras coisas são sempre outras daquelas as quais são semelhantes” (SEXTO, A.M., VII, 358)21. Em outras palavras, se o pensamento reconhece as coisas semelhantes aos objetos externos, significa que o pensamento reconhece as coisas semelhantes, não os objetos externos, tal como explica Sexto nesse precioso exemplo:

καὶ ὃ τρόπον ὁ τὸν Σωκράτην ἀγνοῶν τὴν δὲ Σωκράτους εἰκόνα βλέπων οὐκ οἶδεν εἰ ὅμοιός ἐστι τῇ φαινομένῃ εἰκόνι ὁ Σωκράτης, οὕτως ἡ διάνοια τοῖς πάθεσιν ἐπιβάλλουσα, τὰ ἐκτὸς μὴ θεασαμένη, οὔτε ὁποῖά ἐστι ταῦτα εἴσεται, οὔθ’ ὅτι ὅμοιά ἐστι τοῖς πάθεσιν (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Μ., VII,

358).

E do mesmo modo que quem não conhece a Sócrates, mas vê uma imagem de Sócrates, não sabe se Sócrates é semelhante à imagem representada, assim o pensamento, quando capta as afecções sem ter contemplado as coisas externas,

20 “[...] οον π πυρς φαντασία το πυρς· τ µν γρ καίει, δ’ οκ στι καυστική” (ΣΕΞΤΟΥ, Π.Μ., VII, 357).

(16)

não saberá nem quais são estas, nem quais são semelhantes às afecções (SEXTO EMPÍRICO, A.M., VII, 358).

Dado o conjunto das objeções erigidas, isto é, que nem os sentidos, nem o pensamento, nem os sentidos e o pensamento conjuntamente podem ser estabelecidos como critério (κριτήριον) para a apreensão da verdade – pois cada um desses instrumentos defronta-se com obstáculos –, Sexto (A.M., VII, 368) então conclui que a verdade é incognoscível (ἄγνωστον). Se analisarmos atentamente, perceberemos que é esse o procedimento empregado por Górgias no seu “Sobre o Não-ser”: primeiro, parte-se da teparte-se adversária e dela parte-se extrai conclusões absurdas ou demonstra-parte-se sua inviabilidade, depois, admite-se a tese oposta.

Em Sexto, a estrutura formal do argumento se alinha perfeitamente à argumentação desenvolvida por Górgias. Para demonstrar que a verdade não pode ser apreendida, Sexto explora as hipóteses adversárias com quais os dogmáticos supõem ser possível captar a verdade, quer dizer: ou através de S (sentidos), ou de P (pensamento) ou através de S ˄ P (sentidos e pensamento) ao mesmo tempo. Por conseguinte, se não se verifica possível “S”, nem “P”, nem “S ˄ P” conjuntamente, logo, nada pode ser apreendido (καταλήπτον). Tal como Górgias, Sexto Empírico, ao

conduzir as hipóteses adversárias a aporias teóricas, demonstra a tese contrária ao dos que declaram que a verdade pode ser apreendida; desse modo, pela força da necessidade que sua argumentação impõe, conclui, por fim, que a verdade é inapreensível22. Desse modo, então, damos por encerrada a nossa exposição dos paralelos formais entre as argumentações gorgiana e sextiana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTOTLE. Minor Works: On Melissus, Xenophanes, and Gorgias. Tradução de W. S. Hett. London: Havard University Press, 1995.

BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus, 2009.

CASSIN, Barbara. O Efeito Sofístico. Tradução de Ana Lúcia de Oliveia, Maria Cristina F. Ferraz e Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2005.

22 Nunca é demasiado lembrar que a declaração “a verdade é inapreensível” não tem, no ceticismo, nenhuma pretensão de validade absoluta nem se constitui como um discurso positivo sobre a realidade.

(17)

FILÓSTRATO. Vidas de los Sofistas. Traducción de María Concepción Giner Soria. Editorial Gredos, S. A., 1982.

GÓRGIAS. Testemunhos e Fragmentos. Tradução de Manuel Barbosa e Inês de Ornellas. Lisboa: Colibri, 1993.

______. Sobre el no ser. Traducción de María Elena Días e Pilar Spangenberg. Buenos Aires: Ediciones Winograd, 2011.

HEGEL. Lectures on the History of Philosophy. Vol. I. London, 1882.

HERMAN DIELS. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Ed. Weidmannsche Buchhandlung, 1903.

KERFERD. G. B. O Movimento Sofista. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução de José Trindade dos Santos. São Paulo: Loyola, 2009.

SEXTUS EMPIRICUS. Works in four volumes. Outlines of Pyrrhonism. Edited by R. G. Bury. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, Vol. I, 1976. ______. Works in four volumes. Against the Logicians. Edited by R. G. Bury.

Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, Vol. II, 1967.

______. Works in four volumes. Against the Physicists and Against the Ethicists. Edited by R. G. Bury. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, Vol. III, 1968.

______. Works in four volumes. Against the Professors. Edited by R. G. Bury. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, Vol. IV 1971.

UNTERSTEINER, Mario. A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica. Tradução de Renato Ambrósio. São Paulo: Paulus, 2012.

Referências

Documentos relacionados

‘uma capacidade de trazer à oposição, de todas as formas, coisas que aparecem e coisas que são pensadas, de modo que, devido à igual força dos itens opostos e asserções

Neste artigo discutimos alguns aspectos característicos da sociedade a que Bauman denominou de “líquida”, a partir de As cidades invisíveis, de Italo Calvino –uma obra 6 por

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Os clones obtiveram respostas similares quanto ao seu crescimento em altura ao longo dos dias após o transplantio (Figura 1), apresentando crescimento proporcional, e após

Os corpos que no mundo se encontram têm efetivamente uma natureza, mas que é resultante da interação de inúmeros fatores: por exemplo, a essência da

O trágico, para Górgias, é capaz de suscitar a empatia justamente por colocar a descoberto o conflito entre a ética humana, convencionalmente estabelecida, e as leis que governam

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos