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Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

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Academic year: 2021

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POEMAS

ESCOLHIDOS

ANTONIO

h/

GEDEAO

(2)

Índice

Copyright O 1996

EDIÇÕES JOÃO S Á DA COSTA, LDA. A v Brasil, 118, 3.' esq., 1700 Lisboa Tei (01) 8 4 0 0 4 2 8 Fax (01) 8 4 0 1056

Todos os direitos reservados de harmonia com as disposições legais

1.' edição Março de 1997

2 . " ediqáo Maio de 1997

3.' edição Setembro d e 1997 4 . " edição Março de 1998

Direcsão gráfica e capa joÃo MACHADO

Distribuidor para Livrarias e m Portugal LIVRARIA FIGUEIRINHAS

Rua do Almada, 47, 4050 Porto (Fax 02 - 32 5907)

Rua da Prata, 208, 2.', 1100 Lisboa (Fax 01 - 8 8 7 9 6 3 9 )

Nenhuma parte desta obra p o d e s e r reproduzida por qualquer processo, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravaçáo sem autorização prévia e escrita d o editor.

Pré-Impressão Loja das Ideias

Impressão

Tipografia Guerra, Viseu

Printed in Portugal Depósito Legal n.' 122 141198 ISBN 972-9230-46-3 De "Movimento Perpétuo" (1956) Homem Impressão digital Pulsação da treva Cabeçudos e gigantones Estrela da manhã Pedra filosofa1 Tudo é foi Teatro óptico Que de mim? A estrada Balão esvaziado t Vento no rosto De "Teatro do Mundo" (1958)

Fala do homem nascido Ode metálica

Poema do homem só Poema de pedra lioz Minha aldeia Rosa branca ao peito Lágrimas tudo Calçada de Carriche Poema do homem-rã Poema da malta das naus Dez réis de esperança Ponto de orvalho

De "Máquina de Fogo" (1961)

Amador sem coisa amada Dia de Natal

(3)

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.

A i , , " , , , " G r d C d "

Lágrima de preta Como será estar contente? Máquina do mundo A um ti que eu inventei Poema da auto-estrada Flor de baunilha Poema épico Saudades da terra Suspensão coloidal De "Linhas de Força"(1967) Poema do coração Poema do alvorecer Poema da noite plácida Lição sobre a água Poema do fecho éclair

A adolescente

Poema para Galileo Poema da buganvília Mãezinha

Poema da flor proibida Canqão do oboé

Memória sobre os teus olhos Poema da morte na estrada Poema dos passarinhos antigos Poema da terra adubada Os amantes liquefeitos Poema da morte aparente Poema de me chamar António

De "Poemas Póstumos" (1983)

Poema do adeus

Poema do cão ao entardecer Poema das coisas belas

Poema do tio-avô materno Poema das coisas Poema do amor fóssil Poema do estrangeiro

Poema da menina do higroscópio Poema do ser inóspito

Poema dos olhos na ribeira Poema da volta pelo bairro Poema do alquimista Poema da memória Poema da eterna presença Poema das folhas secas de plátano Poema do futuro

De "Novos Poemas Póstumos" (1990)

Poema das árvores Poema dos textos Poema de Domingo Poema de ser natural Poema da praça pública

Poema da mulher dos cabelos brancos Poema da erva fresca

Poema de Alfarrobeira Poema do instante

Poema da camisinha de algodão Poema da flor no seu vaso Poema dos braços nus das mulheres Poema da minha natureza

Poema dos olhos fechados Poema do gato

Poema do homem novo Poema de andar a roda

(4)

Homem

Inútil definir este animal aflito. Nem palavras,

nem cinzéis, nem acordes, nem pincéis

são gargantas deste grito. Universo em expansão. Pincelada de zarcão i desde mais infinito a menos infinito.

Impressão

digital

Os meus olhos são uns olhos,

E é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns. Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz. Onde uns vêem luto e dores

(5)

uns outros descobrem cores do mais formoso matiz. Nas ruas ou nas estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros, gnomos e fadas num halo resplandecente. Inútil seguir vizinhos,

querer ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D.Quixote vê gigantes. Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes.

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Pulsação da treva

Fundiu-se a roda do Sol entre os cedros afiiados. Desfez-se em azuis rosados, tinturas de tornesol. Agora, solenemente,

como um corpo que se enterra, ao som de um sino plangente descea noite sobre a terra.

Campânula asfixiante. Circula um terror nas veias. Zumbem estrelas em colmeias num céu alheio e distante. Numa dormência de cova, suspensa em leite de Lua, toda a vida se renova e a guerra se continua. Nas marés do protoplasma flui, reflui, perene e forte. Espreita as pegadas da morte, persegue-a como um fantasma. Cega e surda, impenetrável, i

lateja, na treva urdida, essa coisa inevitável que é a vida.

Cabeçudos e gigantones

Tua certeza eleva-se e recorta-se no céu como um guindaste. Hirta, metálica, adstringente e fria, como a encontraste?

Se eu devesse guardar-te respeito por teres

[ um sorriso amável,

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por serem castanhos os teus olhos ou por pisares

[ o chão de certa maneira, então respeitaria também a tua certeza inabalável e dela te pediria um farrapo para o arvorar

[ em minha bandeira. Faz-me pena a tua certeza como se tivesses sofrido

[ um acidente, como se te visse estendido num leito, impossibilitado

[ de te mexeres. Em tua certeza, cadeira de rodas, fazes-te conduzir

[ piedosamente, e os caminhos passam por ti sem tu passares por

[ eles, e sem os veres. Embrulhado na tua certeza, de rosto voltado para a

[ parede, adormeces sorrindo enquanto a vida, aos borbotões,

[ exulta. Foguete de lágrimas, meandros sem rectas, catapulta, veio de água que afoga e nunca mata a sede.

Estrela da manhã

Numa qualquer manhã, um qualquer ser, vindo de qualquer pai,

acorda e vai. Vai.

Como se cumprisse um dever.

Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos; nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.

E em seu impessoal desejo latejam todos os restos de quantos desejos ficaram antes por desejar. Abre os olhos e vai.

Vai descobrir as velas dos moinhos e as rodas que os eixos movem, o tear que tece os linhos, a espuma roxa dos vinhos, incêndio na face jovem. Cego, vê, de olhos abertos. Sozinho, a multidão vai com ele. Bagas de instintos despertos i

ressumam-lhe a flor da pele. t Vai, belo monstro.

Arranca

as florestas com os dentes. Imprime na areia branca

teus voluntariosos pés incandescentes. Vai.

Segue o teu meridiano, esse,

o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais; o plano de barro que nunca endurece,

onde a memória da espécie grava os sonos imortais. Vai.

(7)

Lábios húmidos do amor da manhã, polpas de cereja.

Desdobra-te e beija em ti mesmo a carne sã. Vai.

A tua cega passagem a convulsão da folhagem diz aos ecos

"tem que ser";

o mar que rola e se agita, toda a música infinita, tudo grita

"tem que ser".

Cerra os dentes, alma aflita. Tudo grita

"tem que ser".

Pedra filosofa1

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim,

florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,

(8)

I ' < , < . ! , , ' , . \ I : r ' < > I h , d , , A

.

A , , " G r d e ' i o

desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula'e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

Tudo

é

foi

Fecho os olhos por instantes. Abro os olhos novamente. Neste abrir e fechar de olhos já todo o mundo é diferente. Já outro ar me rodeia; outros lábios o respiram; outros aléns se tingiram de outro Sol que os incendeia. Outras árvores se floriram; outro vento as despenteia; outras ondas invadiram outros recantos de areia. ~ o m e n t o , tempo esgotado, fluidez sem transparência. 16

Presença, espectro da ausência, cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria. Corpo que a arder arrefece. Incandescência sombria. Tudo é foi. Nada acontece.

Teatro

óptico

Invoco, nos longes, a minha rLsença impossível. Os longes são permanentes.

R

Lá, onde a beleza reside, deliquescentes azuis, sóis e luares, são permanência intangível. Lá.

Ser incluso pormenor naquela bruma,

esboçado apenas como um desenho por acabar. Ser lá, presente como aqui: uma

como nenhuma

distância entre o meu ser aqui e o meu estar lá. Ir-me além, naquele cerro a ascender-se. Ver-me daqui a subi-lo.

Pergantar-me "o que é aquilo?", imperceptível mexer-se.

Eucaliptos, casas, montes, águas, pedras, horizontes, coisas finitas em si.

(9)

Outeiros, vales, caminhos, sebes, rochedos, moinhos

...

Tudo no mundo. E eu daqui.

Que

de

mim?

Em quê de mim, as diferentes coisas que vejo, me tocam? Em quê de ser eu provocam excitações tão frementes? Que coisa de mim se enleia, que permanência me afirma, que sentido faz sentir-ma no espaço que me rodeia? Que linhas de força estranha me prolongam na paisagem, me tornam, à sua imagem, mar ou céu, vale ou montanha? Que fluidez dissolvente

os meus olhos humedece quando o Sol desaparece nas angústias do poente? Que de mim também se afoga nesse horizonte distante, murmúrio de agonizante 18 que em tons roxos se interroga?

Que de mim chove na chuva, e se abre nos tons da aurora? Que de mim nas flores se inflora e nas tardes se enviúva?

Ó estrelas do céu sem fim!

Ó vagas do mar sem fundo! Será tudo mesmo assim? Eu e vós, partes do mundo? Ou o mundo, parte de mim?

A estrada

Os homens, esquecidos do que não se esquece, passam distraídos

como se nada acontecesse. Dos grupos de esquina escapam-se risadas.

São sonhos pintados de purpurina. Histórias obscenas de fadas. Nas palavras que entretêm nem um suspiro transparece.

E vão, e vêm,

como se nada acontecesse. Dedos que em assombros se enclavinham,

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poisam, esquecidos, nos ombros que os adivinham.

Os lábios secos, amarelecidos por ventos de rancor,

esquecidos,

enunciam teoremas de amor. Pomo da estrada que amadurece. Como se nada acontecesse.

Balão esvaziado

Cansei os braços

a pendurar estrelas no céu. Destino dos fados lassos. Tudo termina em cansaços braços

e estrelas e eu.

A vida flui (parece) como um novelo que se

[ desenrola, como um leque silencioso que se abre,

enquanto, no ovo, um rumor se encaracola, se encaracola e desencaracola,

até quando, num repente, se dispara, incandescente, como na dança do sabre.

Ó delírio de sentir, doença de interrogar, febre do nunca atingir! Temperatura de partir na esteira do insaciar. Rescendem húmus as ancas, terras morenas e brancas, campo do jogo androceu. Afrouxam os braços lassos. Tudo termina em cansaços, 1

terras i

e braços e eu.

Estrelas, pântanos, abismos, patamares da mesma escada, dedos da mesma aliança.

Tudo morre em tédio e em nada. Tudo maça.

Tudo enfada. Tudo pesa. Tudo cansa.

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Vento no rosto

A hora em que as tardes descem, noite aspergindo nos ares, as coisas familiares

noutras formas acontecem. As arestas emudecem.

Abrem-se as flores nos olhares. Em perspectivas lunares lixo e pedras resplandecem. Silêncios, perfis de lagos, escorrem cortinas de afagos, malhas tecidas de engodos. Apetece acreditar,

ter esperanças, confiar, amar a tudo e a todos.

Fala do homem nascido

(Chega a boca da cena, e diz:) .Venho da terra assombrada,

'

do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci.

Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de viver. Com licença!Com licença! Que a vida é agua a correr. Venho do fundo do tempo; não tenho tempo a perder. Minha barca aparelhada solta o pano rumo ao norte; meu desejo é passaporte para a fronteira fechada. Não há ventos que não prestem nem marés que não convenham, nem forças que me molestem, correntes que me detenham. Quero eu e a Natureza, que a Natureza sou eu, e as forças da Natureza nunca ninguém as venceu. Com licença! Com licença! Que a barca se faz ao mar. Não há poder que me vença. Mesmo morto hei-de passar. Com licença! Com licença! Com rumo à estrela polar.

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Ode metálica

Com aparências de brisa um vento de tempestade algures se individualiza: larga a semente precisa e esvai-se na eternidade. Se vem do sul ou do norte, se vem de leste ou de oeste, não é cuidado que importe.

É um vento, um vento forte que sopra no mundo agreste. Abrem-se os lábios da Terra num cio desesperado, e a semente que se enterra desabrocha em flores de guerra e em flores de paz, lado a lado. Irrompem do solo bruto as sequóias de cimento, maranha de ferrqhirsuto como um esqueleto incorrupto coberto de pó cinzento. Inflorescências de cobre de longos cabelos ruivos que o fogo do Sol descobre; como folha que se dobre soltam metálicos uivos.

Carpelos e estames de aço, de longas, brunidas hastes, articulam-se em abraço. Rasgam os ventres e o espaço escavadoras e guindastes. Densas corolas macias, enormes como turbinas, mudam as noites em dias, sobre as garupas esguias de mil cavalos sem crinas. Num impulso rectilíneo jorram línguas de petróleo como um tecido sanguíneo. Em pistilos de alumínio i

gotejam lágrimas de óleo. Bailemos, homens, bailemos. Com festões engrinaldemos as mãos que forjam metais. Nossos troncos reluzentes à luz dos fornos candentes como bronzes triunfais. Bailemos, homens, bailemos.

E a plenos pulmões gritemos a sinfonia estridente

das bigornas dos ferreiros, das chapas dos caldeireiros, das limas dos limadores, dos maços dos batedores, das serras dos serralheiros, das tenazes dos fogueiros, das correias dos motores,

(13)

das brocas dos brocadores, dos cadinhos dos forneiros, das pinças dos caldeadores, todos, a uma, bailemos, frenéticos tangedores, troncos nus e reluzentes a luz dos fornos candentes, orquídeas de furta-cores, rubros vermelhos e brancos, bailemos todos, bailemos '

como doidos saltimbancos, bailemos e entoemos, a plenos pulmões berremos sinfonias estridentes, chispemos, esparrinhemos centelhas incandescentes, e em girândola elevemos nossos rostos como tochas, nossos braços como asas, filhos da escória e das rochas, irmãos do fogo e das brasas.

Poema do homem só

Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem. Os astros não se explicam: arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta, quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de dentro se refracta, nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém. Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém. i

Dão-se os lábios, dão-se os braços, dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, dão-se os dias, dão-se aflitivas esmoias, abrem-se e dão-se as corolas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica. Mas este íntimo secreto que no silêncio concentro, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce,

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virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se e desflorar-se, é nosso, de mais ninguém.

Poema de pedra lioz

Álvaro Góis, Rui Mamede,

filhos de António Brandão, naturais de Cantanhede, pedreiros de profissão, de sombrias cataduras como bisontes lendários, modelam ternas figuras na brutidão dos calcários. Ali, no esconso recanto, só o túmulo, e mais nada, suspenso no roxo pranto de uma fresta geminada. Mas no silêncio da nave, como um cinzel que batuca, soa sempre um truca

...

truca

...

lento, pausado, suave,

truca,truca,truca,truca,

sob a abóbada romântica, como um cinzel que batuca numa insistência satânica:

Álvaro Góis, Rui Mamede,

filhos de António Brandão, naturais de Cantanhede, ambos vivos ali estão,

truca,truca,truca,truca,

vestidos de surrobeco e acocorados no chão,

truca,truca,truca,truca.

No friso, largo de um palmo, que dá volta a toda a arca, um Cristo, de gesto calmo, i

assiste ao chegar da barca. Homens de vária feição, barrigudos e contentes, mostram, no riso dos dentes, o gozo da salvação.

Anjinhos de longas vestes, e cabelo aos caracóis, tocam pífaros celestes, entre cometas e sóis.

Mulheres e homens, sem paz, esgazeados de remorsos, desistem de fazer esforços, entregam-se a Satanás. Fixando a pedra, mirando-a, quanto mais o olhar se educa, mais se entende o truca

...

truca

...

que enche a nave, transbordando-a,

(15)

No desmedido caixão, grande senhor ali jaz. Pupilo de Satanás? Alma pura de eleição? Dom Afonso ou D.João? Para o caso tanto faz.

Minha Aldeia

Minha aldeia é todo o mundo. Todo o.mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence. Bate o sol na minha aldeia com várias inclinações. Ângulo novo, nova ideia; outros graus, outras razões. Que os homens da minha aldeia são centenas de milhões. Os homens da minha aldeia divergem por natureza. O mesmo sonho os separa, a mesma fria certeza 30 os afasta e desampara,

rumorejante seara onde se odeia em beleza. Os homens da minha aldeia formigam raivosamente com os pés colados ao chão. Nessa prisão permanente cada qual é seu irmão. Valências de fora e dentro ligam tudo ao mesmo centro numa inquebrável cadeia. Longas raízes que emergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia.

Teu corpinho adolescente cheira a princípio do

[ mundo. Ainda está por soprar a brisa que há-de agitar a tua

[ seara. Ainda está por romper a seara que há-de rasgar o

[ teu solo fecundo. Ainda está por arrotear o solo que há-de sorver a

[ água clara. Ainda está por ascender a nuvem que há-de chover

[ a tua chuva. Ainda está por arder o sol que há-de evaporar a

(16)

Mas tudo te espera desde o princípio do mundo: a doce brisa, a verde seara, o solo fecundo. Tudo te espera desde o princípio de tudo: a água clara, a fofa nuvem, o sol agudo. Tu sabes, tu sabes tudo.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo

[ fecundo que sabem tudo desde o princípio do mundo. Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo que desde o princípio do mundo sabem tudo. O teu cabelo sabe que há-de crescer

e que há-de ser louro.

As tuas lágrimas sabem que hão-de correr nas horas de choro.

Os teus peitos sabem que hão-de estremecer no dia do riso.

O teu rosto sabe que há-de enrubescer quando for preciso.

Quando te sentires perdida fecha os olhos e sorri. Não tenhas medo da Vida que a Vida vive por si.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo

[ fecundo que sabem tudo desde o princípio do mundo. Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo. A tua inocência sabe tudo.

Lágrimas tudo

Só de pensar amor, como se o procurasse, encheram-se-me os olhos de humidade. Exactamente os mesmos olhos, a mesma fonte,

[ se buscasse fitá-los na outra face,

do ódio, da violência, da impiedade. Porquê, lágrimas tudo?

Faz chorar o menino quando nasce, e o homem quando morre.

E a desumana voz que grita: Faça! - e faz-se, e a outra, a que nos fala, e em dóce tom discorre. E as equações diferenciais do dsPaço,

e os três metros quadrados de uma cela. E a truculenta família do palhaço, e a fétida ninhada da cadela. E as aguarelas frescas da manhã, e o lápis de carvão da sombra traiçoeira.

E os burgueses do Rodin, e os robertos da feira, e a Capela Sistina,

e os bonecos de barro de Barcelos, e a menina de vidro, opalescente e fina, e a velha bruxa de excrementos nos cabelos. Tudo, lágrimas tudo.

(17)

Calçada de Clarriche

Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda Luísa, Luísa sobe,

sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada,

palpam-lhe as coxas, não dá por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe: sobe a calçada. Chegou a casa não disse nada.

Pegou na filha, 1 deu-lhe a mamada; i bebeu da sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressàda; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda Luísa, Luísa sobe.

(18)

sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada; salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga,

puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.

Sou feliz por ter nascido no tempo dos homens-rãs que descem ao mar perdido na doçura das manhãs. Mergulham, imponderáveis, por entre as águas tranquilas,

(19)

enquanto singram, em filas, peixinhos de cores amáveis. Vão e vêm, serpenteiam, em compassos d e "ballet". Seus lentos gestos penteiam madeixas que ninguém vê. O h que insólita beleza! Festivo arraial submerso. Poema em líquido verso. Biombo de arte chinesa. No colóquio voluptuoso dessa alegria pagã,

babam-se os olhos de gozo na máscara do homem-rã. Suspensas e sonolentas, rendas d e bilros voláteis,

esboçam-se as formas contrácteis das medusas nevoentas.

Num breve torpor elástico, como dobras de sanefas, estremecem as acalefas e as alforrecas de plástico. Com barbatanas calçadas e pulmões a tiracolo, roçam-se os homens no solo sob um céu de águas paradas. Passam por entre as lisonjas das anémonas purpúreas, por entre corais e esponjas, hipocampos e holotúrias.

Sob o luminoso feixe

correm de um lado para outro, montam no lombo de um peixe como no dorso de um potro. Onde as sereias de espuma? Tritões escorrendo babugem? E os monstros cor de ferrugem rolando trovões na bruma? Eu sou o homem. O Homem. Desço ao mar e subo a o céu. Não há temores que me domem.

É tudo meu, tudo meu.

Poema da 111alta das naus

Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro

medi a altura do Sol. Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo, pelote de vagabundo, rebotalho de gibão. Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das praias,

(20)

arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias. Chamusquei o pêlo hirsuto, tive o corpo em chagas vivas, estalaram-me as gengivas, apodreci d e escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me, com a direita esganei.

Mil vezes n o chão, bati-me, outras mil me levantei. Meu riso d e dentes podres ecoou nas sete partidas. Fundei cidades e vidas, rompi as arcas e os odres. Tremi no escuro d a selva, alambique de suores. Estendi na areia e na-relva mulheres de todas as cores. Moldei as chaves d o mundo a que outros chamaram seu, mas quem mergulhou no fundo d o sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente. Provo-me e saibo-me a sal. Não se nasce impunemente nas praias d e Portugal.

Dez

réis de esperança

Se não fosse esta certeza que nem sei de onde me vem, não comia, nem bebia, nem falava com ninguém. Acocorava-me a um canto, no mais escuro que houvesse, punha os joelhos à boca e viesse o que viesse.

Não fossem os olhos grandes do ingénuo adolescente, a chuva das penas brancas a cair impertinente, I aquele incógnito rosto, i pintado em tons de aguarela, que sonha no frio encosto da vidraça da janela, não fosse a imensa piedade dos homens que não cresceram, que ouviram, viram, ouviram, viram, e não perceberam, essas máscaras selectas, antologia do espanto, flores sem caule, flutuando no pranto d o desencanto, se não fosse a fome e a sede dessa humanidade exangue, roía as unhas e os dedos até os fazer em sangue.

(21)

Ponto

de

orvalho

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Nem se chega a saber como um inusitado sorriso, um volver de olhos doentes, um caminhar indeciso e cego por entre as gentes, chamam a si, aglutinam, essa dor que anda suspensa

( e é dor de toda a maneira) como o vapor se condensa sobre núcleos d e poeira.

É essa angústia latente boiando no ar parado como um trovão iminente, que em muda voz se pressente num simples olhar trocado. Essa angústia universal, esse humano desespero, revela-se num sinal, numa ferida natural que rói com lento exagero. Não deita sangue nem pus, não se mede nem se pesa, não diz, não chora, não reza, não se explica nem traduz. A gente chega, respira, olha, sorri, cumprimenta, fala d o frio que apoquenta ou d o suor que transpira, e pronto, sem saber como, inútil, seco, vazio,

cai na penumbra d o rio, emerge, bóia, soçobra,

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I

-

fácil e desinteressado como um papel que se dobra por onde já foi dobrado.

Amador sem coisa amada

Resolvi andar na rua

com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão. Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados. Amador sem coisa amada, aprendiz colegial.

Sou amador da existência, não.chego a profissional.

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.

(22)

de falar e de ouvir com mavioso tom,

de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia d e pensar nos outros - coitadinhos - nos

[ que padecem, d e lhes darmos coragem para poderem continuar a

[ aceitar a sua miséria, d e perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não

[ merecem, d e meditar sobre a nossa existência, tão efémera e

[ tão séria. Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, como se de anjos fosse,

numa toada doce, de violas e banjos,

entoa gravemente um hino ao Criador. E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz d o locutor

anuncia o melhor dos detergentes.

D e novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.

(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o

[ Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um

[ relógio de pulso antimagnético.) Torna-se difícil caminhar nas preciosasrúas.

Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos,

[ esfuziante. Todos participam nas alegrias dos outros como se

[ fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que

[ passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa

[ dinâmica, cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de

[ quilovates, as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro

[ e de cerâmica. Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,

ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.

É como se tudo aquilo nos dissesse directamente

[ respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de

[ bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera d o

i ,[

arruamento. Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-

[ -se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no

[ estabelecimento e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca

[ tinha pensado comprar. Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa

a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.

Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta.

(23)

D e manhgzinha salta d a cama, corre à cozinha mesmo em pijama. Ah!!!!!!!!!! Na branda macieza da matutina luz aguarda-o a surpresa d o Menino Jesus. Jesus, o doce Jesus,

o mesmo que nasceu na manjedoura, veio pôr no sapatinho

d o Pedrinho uma metralhadora. Que alegria

reinou naquela casa em todo o santo dia!

O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das

[ portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas

e obrigava as criadas

a caírem no chão como se fossem mòrtas: i

tá-tá-tá-ta-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.

E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam

que caíam crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal, dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas.

É dia de Natal.

Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.

Lágrima cle

preta

Encontrei uma preta

que estava a chorar, I

pedi-lhe uma lágrima i

para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais.

(24)

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume, de todas as vezes

deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

C o m o

será estar

c011

tente?

Como será estar contente? Lançar os olhos em volta, moderado e complacente, e tratar com toda a gente sem tristeza nem revolta? Sentir-se um homem feliz, satisfeito com o que sente, com o que pensa e com o que diz? Como será estar contente? Deve haver qualquer mecânica, qualquer retesada mola

que se solta e desenrola no próprio instante preciso, para que um homem de carne, de olhos pregados no rosto, possa olhar e rir com gosto sem estranhar o som d o riso.

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.., i, I ,, i, , <, c, '. ,I <. <i i ,

Na minha tosca engrenagem, de ferrugenta sucata,

há qualquer mola de lata que não se distende bem, qualquer dessorada glândula ou nervo que não se enfeixa, qualquer coisa que não deixa deflagrar essa girândola de timbres que o riso tem. Não ter riso e não ter casa, nem dinheiro nem saúde, não se conta por virtude que a miséria é ferro em brasa. Mas ter casa, ter dinheiro, ter saúde e não ter riso, i flagelar-se o dia inteiro

como se o sangrar primeiro fosse um tormento preciso, tê-lo sempre forte e vivo, espantado a todo o momento, isso sim, será motivo

de grande contentamento.

Máquina d o inundo

O Universo é feito essencialmente de coisa

[ nenhuma.

(25)

Espaço vazio, em suma.

0 resto. é a matéria.

Daí, que este arrepio,

este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo, esta fresta de nada aberta no vazio,

deve ser um intervalo.

A

u m

ti

q u e e u inventei

Pensar em ti é coisa delicada.

É um diluir de tinta espessa e farta e o passá-la em finíssima aguada com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança, um armar de arames cauteloso e atento, um proteger a chama contra o vento, pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura, um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça, um planar de gaivota como um lábio a sorrir. Penso em ti com tamanha ternura

como se fosses vidro ou película de Ioiça que apenas com o pensar te pudesses partir.

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina de impaciente nervura. Como guache lustroso, amarelo de indantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura.

I

Fuge, fuge, Leonoreta. i

Vai na brasa. de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa, e bem segura. Como um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte,

(26)

enfia pelo horizonte

como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta,

O céu, as nuvens, as casas,

e com os bramidos que solta lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe, Leonor, . se o que lhe chega aos ouvidos

são ecos de amor perdidos se os rugidos do motor. Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta.

Flor d e baunilha

Hoje, os olhos fundos do meu pensamento são

[ negros como o alcatrão, e o morno palpitar da sua carne um malicioso

[ levedar de canela. Neste momento, enquanto alguns milhões de

[ homens fossam na conquista do seu pão, estou eu pensando nela.

É uma espécie de orquídea sarmentosa, um récipe de mel, de resinas e hormonas, vaso de sílex, boceta especiosa,

cântaro de água. taleigo de azeitonas.

Quando ergue as pálpebras é como se de repente o

[ galo do campanário cantasse, é como se o vento arrebatasse o muro e libertasse a

[ paisagem cativa. Seus grandes imensos olhos redondos, botões de

[ obsidiana à flor da face, firmam-se-me, ofegantes e estáticos, como sardões

[ em expectativa. Na noite cerrada dos seus cabelos acasalam-se os

[ pirilampos, e os sapos dedilham os sistros, assolapados nos

[ lameiros. No côncavo das minhas mãos, vaza e molda o

[ silêncio nocturno dos campos, e a sua cabeça no meu ombro é o bàrco escondido

[ kntre os salgueiros. Sua carne cheirosa, fofa e tépida como a terra

[ estrumada, aceita, na intimidade dos' poros, a semente brunida

[ que acordará em pão. Ah! É verdade! O pão!

Os homens que não têm pão!

As mulheres dos homens que não têm pão! Os filhos dos homens que não têm pão! Baixa as pálpebras, flor de baunilha.

(27)

Poen~a

épico

O rapagão da camisola vermelha sacode a melena

[ da testa e retesa os braços num bocejo como um jovem leão

[ voluptuoso. Dorme a sesta

o involuntário ocioso.

A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela

[ janela e sumiu-se na noite escura do mundo.

Quis respirar mais fundo

e isso de ser coitada é lá com ela.

O homem da barba por fazer conta os filhos e as

[ moedas e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e

[ roufenho. Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas: -Eu já venho!

O da face doente,

o que sofre por tudo e por nada, sem querer, abana a cabeça negativamente:

-

Isto não pode ser! Isto não pode ser! Sentados as soleiras das portas,

mordendo a língua na tarefa inglória, com letras gordas e por linhas tortas vão redigindo a História.

Saudades

da

terra

Uns olhos que me olharam com demora, não sei se por amor se caridade,

fizeram-me pensar na morte, e na saudade que eu sentiria se morresse agora.

E pensei que da vida não teria nem saudade nem pena de a perder, mas que em meus olhos mortos guardaria certas imagens do que pude.ver.

Gostei muito da luz. Gostei de vê-la de todas as maneiras, !

da luz do pirilampo a fria luz da estrela, do fogo dos incêndios a chama das fogueiras. Gostei muito de a ver quando cintila

na face de um cristal,

quando trespassa, em lâmina tranquila, a poeirenta névoa de um pinhal,

quando salta, nas águas, em contorções de cobra, desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, quando incide num prisma e se desdobra nas sete cores do espectro.

Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria quando galga lambendo o dorso dos navios, quando afaga em blandícias de cândida luxúria a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.

E também gostei muito do Jardim da Estrela com os velhos sentados nos bancos ao sol

(28)

e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho e a

[ adormecê-la e as meninas a correrem atrás das pombas e os

[meninos a jogarem ao futebol. A porta d o Jardim, no inverno, ao entardecer, a hora em que as árvores começam a tomar formas

[ estranhas, gostei muito de ver

erguer-se a névoa azul d o fumo das castanhas. Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados que se julgam sozinhos no meio de toda a gente, e se amam com os dedos aflitos,entrecruzados, de olhos postos nos olhos, angustiadamente.

E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem

[ palavras grosseiras, e os homens a aguentarem e a travarem os grandes

[ camiões pesados, e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das

[ peixeiras. Mas

...

saudade, saudade propriamente,

essa tenaz que aperta o coração

e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.

Saudade, se a tivesse, só de Aquela que nas flores se anunciou,

se uma saudade alguém pudesse tê-la do que não se passou.

D e Aquela que morreu antes de eu ter nascido, ou estará por nascer

-

quem sabe? - ou talvez

[ ande nalgum atalho deste mundo grande

para lá dos confins d o horizonte perdido. Triste de quem não tem,

na hora que se esfuma, saudades de ninguém nem de coisa nenhuma.

Suspci~são

coloidal

Penso no ser poeta, e andar disperso na voz de quem a não tem;

no pouco que há de mim em cada verso, no muito que há de tudo e de ninguém. Anda o cego a tocar La Violetera, e eu a vê-lo, e a cegar;

e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera, e eu a vê-la, e a esfregar.

Que riso perto, que aflição distante, que ínfima débil, breve coisa nada, iça, ao fundo, esta draga carburante,

rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada? Postulados e leis e lemas e teoremas,

(29)

teorias, doutrinas e sistemas,

tudo se escapa ao autor dos meus poemas. A ele, e a mim.

Poeiiia do

coração

E u queria que o Amor estivesse realmente no

[ coração, e também a Bondade,

e a Sinceridade,

e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no

[ coração. Então poderia dizer-vos:

"Meus amados irmãos, falo-vos do coração", ou então:

"com o coração nas mãos."

Mas o meu coração é como o dos compêndios. Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral) e os seus compartimentos (duas aurículas e dois

[ ventrículos).

O sangue ao circular contrai-os e distende-os segundo a obrigação das leis dos movimentos. Por vezes acontece

ver-se um.homem, sem querer, com os lábios

[ apertados, e uma lâmina baça e agreste, que endurece

a luz dos olhos e m bise1 cortados.

Parece então que o coração estremece. Mas não.

Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático, que esse vento que sopra e que ateia os incêndios, é coisa do simpático.

Vem tudo nos compêndios. Então, meninos!

Vamos à lição!

Em quantas partes se divide o coração?

Poeina do alvorecer

i

Na ribalta do horizonte adivinha-se o hálito da manhã. Uma luz de estanho, álgida e polida,

embaciada como um espelho antigo, ampara a cidade suspensa, diluída na bruma, e adormecida

consigo.

As ruas longas e estreitas, silenciosas e vazias,

[ parecem os longos e silenciosos corredores dos museus, de

[ madrugada, à hora em que as figuras das telas baixam os olhos e

[ adormecem, quando as madonas sorrindo baixam os olhos e

[ adormecem

(30)

nos longos e silenciosos corredores dos museus, de

[ madrugada, quando os cardeais vermelhos

e os anjos da Anunciação prostrados de joelhos baixam os olhos e adormecem

nos longos e silenciosos corredores dos museus, de

[ madrugada, a hora em que os reis montados em nédios cavalos baixam os olhos e adormecem,

e os guardas dos museus apalpam as chaves debaixo

[ do travesseiro e adormecem.

A luz de estanho, álgida e polida,

escanhoa as fachadas dos prédios como lâmina de

[ navalha. Peganhenta e baça, escorre, na humidade das ruas

[ reflectida, como um óleo viscoso que lentamente se espalha.

É a hora em que os cães revolvem o lixo dos

[ caixotes nos passeios. A hora em que a rapariga na cama se espreguiça a

[ luz velada da cortina e ele, com os dedos ensonados, lhe acaricia os seios. Hora de estanho, em que os condenados atravessam

[ o pátio da prisão a caminho da guilhotina.

Poema da noite plácida

A multidão em fúria

passeia placidamente nas ruas da cidade, de mente plácida,

plácida mente,

enquanto os homens que orientam placidamente a multidão em fúria

que placidamente passeia nas ruas da cidade, procuram furiosamente

as soluções plácidas

que orientarão a multidão em fúria

que, placidamente, passeia nas ruas da cidade, de mente plácida,

plácida mente, i

e os sábios buscam furiosamente

-

as fórmulas plácidas

que, placidamente,

resolverão as dificuldades da multidão em fúria que passeia nas ruas da cidade

de mente plácida, plácida mente,

e todos, todos em suma, placidamente,

procuram furiosamente, de todas as formas plácidas,

atender às inquietações e aos anseios plácidos da multidão em fúria

que, placidamente, passeia nas ruas da cidade, e placidamente se assenta nos plácidos bancos das

[ avenidas, bebendo o ar plácído da noite,

(31)

as soluções plácidas

para os seus anseios e inquietações furiosas.

Lição sobre a água

Este líquido é água. Quando pura

é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor,

sob tensão e alta temperatura,

move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.

Embora com excepções mas de um modo geral, dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.

Congela a zero graus centesimais e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia,

apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão.

Filipe I1 tinha um colar de oiro,

tinha um colar de oiro com pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de coiro, com fivela de oiro,

olho de perdiz. Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente.

O copo era um gomo

que em flor desabrocha, I

de cristal de rocha \

do mais transparente. Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima, pela frente e por trás. Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos. Dormia na cama de prata maciça com dossel de Ihama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco, e a tíbia de um santo guardada num frasco.

(32)

1 , ,, <. i,, < r

.

I: \ < o I I, i <I i , \

.

i 2, , i 1, f ,, <. <. <I L. " ( 1

Foi dono da Terra, foi senhor do Mundo, nada lhe faltava Filipe Segundo. Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safiras, topázios, rubis, ametistas. Tinha tudo, tudo, sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho éclair.

A adolescente

Sábia, funcional, eficiente

como os modelos didácticos despojados de enfeite, passa na rua a adolescente

cheirando a leite.

Caminha soberana e enfática como as aves egípcias disfarçando no andar a lava que referve.

Vai orgulhosa por transportar no peito duas cristas

[ reptícias, e do resto, que pressente, mas ainda não sabe ao

[ certo para que serve. Contraídos os lábios na insinuação da sede,

o olhar inquieto e duro ressumando violência, as narinas fremindo como as guelras dos peixes

[ apanhados na rede. Eis a mimosa flor da adolescência.

1

Poema para Galileo

i

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda a gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha

[ Florença. (Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício. Disse Galeria dos Ofícios.)

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da

[ requintada Florença. Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza

[ della Signoria

...

Eu sei

...

Eu sei

...

As margens doces do Arno às horas pardas da

[ melancolia.

(33)

Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita num

[ relicário. Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário. E u queria agradecer-te, Galileo, a inteligência das coisas que me deste. Eu,

e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste,

ia jurar

-

que disparate, Galileo!

-

e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação

-

que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo? Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa ou

[ que um seixo da praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,

daquela cena em que tu estavas sentado num

[ escabelo e tinhas a tua frente

um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de

[ cape10 a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível que um homem d a tua idade e da tua condição,

se estivesse tornando num perigo para a Humanidade

e para a Civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observação dos satélites e

[ das estrelas, desceram lá das suas alturas

e p i s a r a m , como aves aturdidas - parece-me que

[ estou a vê-las -,

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas

(criaturas. E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor,

[ que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam

a meia-noite louvores a harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo, na própria intimidade d o teu

[ pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e escrevias

para eterna perdição da tua alma. Ai, Galileo!

Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores

[ deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões

(34)

andavam a correr e a rolar pelos espaços a razão de trinta quilómetros por segundo. Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer,

[ homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade. Por isso estoicamente, mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo, caindo sempre, e sempre, ininterruptamente,

na razão directa dos quadrados dos tempos.

((6

Poema

da

buganvília

Mas antes desse dia há-de secar a buganvília e o varredor há-de levar as flores secas para o

[ monturo. Depois cairá o muro.

E como o tempo passa mesmo contra vontade,

também há-de acabar a Calçada da Graça e o resto da cidade.

Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso que é o mais lev'e de tudo que se pode supor, será esse o momento de o poema ser flor, mas já não é preciso.

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena e os transportes difíceis.

Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões,

[ nem mísseis. Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta,

Algum dia o poema será a buganvília dos boletins oficiais,

pendente deste muro da Calçada da Graça. viviam lá na terra, a essa data, Produz uma semente que faz esquecer os jornais, o 3023 mulheres, das quais

[ emprego e a famíiia, 45 por cento eram de tenra idade, e além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem chamando tenra idade

5 que vai desde o berço até à puberdade.

(35)

28 por cento das restantes

eram senhoras, daquelas senhoras que sóhavia

[ dantes. Umas, viúvas, que nunca mais (oh! Nunca mais!)

[ tinham sequer sorrido desde o dia da morte do extremoso marido;

outras, senhoras casadas, mães de filhos

...

(De resto, as senhoras casadas, pelas suas próprias condições, não têm que ser consideradas nestas considerações.) Das outras, 10 por cento,

eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas, mas que, por temperamento,

ou por outras razões mais ou menos secretas, não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas havia, salvo erro, 32,

que à meiga luz das horas vespertinas se punham a bordar por detrás das cortinas espreitando, de revés, quem passava nas ruas. Dessas havia 9 que moravam

em prédios baixos como então havia, um aqui, outro além, mas que todos ficavam no troço habitual que meu pai percorria, tranquilamente, no maior sossego,

às horas em que entrava e saía do emprego. Dessas 9 excelentes raparigas

uma fugiu com o criado da lavoura;

5 morreram novas, de bexigas; outra, que veio a ser grande senhora,

teve as suas fraquezas mas casou-se e foi condessa por real mercê; outra suicidou-se

não se sabe porquê. A que sobeja

chamava-se Rosinha.

Foi essa a que meu pai levou à igreja. Foi a minha mãezinha.

Poema da flor proibida

I

i

Por detrás de cada flor

há um homem de chapéu de coco e sobrolho

[ carregado. Podia estar à frente ou estar ao lado,

mas não, está colocado

exactamente por detrás da flor.

Também não está escondido nem dissimulado, está dignamente especado

por detrás da flor.

Abro as narinas para respirar o perfume da flor,

não de repente

(é claro) mas devagar, a pouco e pouco,

(36)

Ele ama-me. Defende-me com os seus carinhos, protege-me com o seu amor.

Ele sabe que a flor pode ter espinhos, ou tem mesmo,

ou já teve,

OU pode vir a ter,

e fica triste se me vê sofrer. Transmito um pensamento à flor sem mover a cabeça e sem olhar. De repente,

como um cão cínico arreganho o dente e engulo-a sem mastigar.

Habita no meu sangue como um solo de oboé. Inexistente e imaginada

é toda feita de nada

mas necessária como o ar que não se vê. Com os pés alados das semicolcheias que extravasam da pauta,

baila no estrado olímpico das veias, descontraída, turbulenta, incauta. Oiço-a acordado e sinto-a adormecido nas ondas largas que no sangue vão como o transístor que se encosta ao ouvido

e apenas ouve quem o tem na mão.

Meiliória sobre

os

teus olhos

Magníficos

como os jactos que aguardam no aeroporto o

[ iminente sinal da partida, seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,

[ o subsolo da imagem pressentida. Perfurantes como as brocas dos mineiros,

pontas de aço-vanádio

que o rubro alcançam sem perder o gume, um fogo o olhar o queima, um mar invade-o, um lume feito de água, água de lume.

I

Súbito, seus grandes olhos imensqs descolam e

[ levantam voo. Ei-10s que sobem.

Seu movimento é como se apenas as coisas deles se

[ afastassem, é como se move o tempo, sem agravo nem estrago, como boiam as folhas na dormência do lago, como bate o coração do homem enterrado no chão. Na estática subida a que se entregam

são o próprio silêncio em que navegam, são a curva do espaço,

a quarta dimensão.

Cá em baixo,

onde as superfícies se avaliam multiplicando pi por érre dois, um formigueiro de bois

desenha na planície coloridos talhões. Cumprem-se as sementeiras.

(37)

I ' , , <, iii ri i k 1 I ,, \

.

.I i r i <i i, i i , c; i. <I <. 'i <,

As cores são as bandeiras; os regos, os limites das nações. Um rabiar de células,

cultura de bactérias num capacete de aço, ziguezagueiam, obstinadas como libélulas, num charco de sargaço.

Entretanto,

seus grandes olhos imensos olham, e olhando, no desígnio frontal que não hesita nem disfarça, com linhas de olhos vão bordando a talagarça. Sento-me à secretária,

preparo-a, limpo-a, esfrego-a na aflita busca do mais puro espaço, e com o esquadro e a régua,

o lápis e o compasso, construo os olhos d7Ela. Deliberada e escrupulosamente

ergue-se a construção de arquitectura mansa, quase cinicamente,

como quem premedita uma vingança. (Aliás

o engano, a ilusão, a mentira, a falsidade, o perjúrio, a invenção, tudo, em Amor, é verdade.)

Eis os mais lindos olhos deste mundo.

O Amor os fez.

Proas de galeões de velas pandas,

meninas a correr que chegam as varandas olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero na plácida inocência,

um miligrama de cianeto, morte sem desespero, acicate da humana permanência.

Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca de plátano, uns veios

de clorofila, mancha irisada em redor da pupila,

óleo vertido no asfalto da estrada. Encosto o rosto as mãos, e embevecido contemplo a construção de linhas, e finjo-me esquecido

como se não soubesse que são minhas. Como se não soubesse I comovo-me e entrego-me no sorfiso total.

1

Construo o meu real conforme me apetece.

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros, estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

I

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos. Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

(38)

Eles bem sabiam dos bancos da escola como os homens dignos sucumbem na guerra. Lá saber, sabiam.

A mão firme empunhando a espada ou a pistola, morrendo sem ceder nem um palmo de terra. Pois é.

Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis, não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento devia estar reservado para a pátria amada. Lá saber, sabiam.

Mas veio de Iá a bomba e destruiu tudo num só

[ momento. Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,

na berma da estrada, nuns quinhentos metros, são quinhentos mortos com os olhos abertos.

Pornia

dos

passarinhos ailtigos

Era um par de jovens. Ela e ele. Ambos jovens. Alegremente cantavam as canções dos jovens e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos

por não saberem dançar as suas danças de jovens, por não saberem cantar as sua canções de jovens. Mas num dia em que os seus olhos se encontraram

I

de certo modo, sentiram nos seus corpos um estremecimento antigo. As células antigas dos seus corpos jovens

estremeceram.

As palavras de amor saíram-lhes da boca pressurosas e múltiplas,

como as pequenas bolas de sabão quando num tubo estreito são sopradas.

E juntamente com elas saíam passarinhos leves, passarinhos antigos,

tão leves como as bolas de sabão,

e os passarinhos iam debicar nos lábios d e ambos, e os lábios intumesciam-se, v e r m e l h ~ s e macios

[ como polpas, e os passarinhos roçavam a penugem do peito pelas

[ pálpebras deles com os bicos alisando as sobrancelhas,

e aninhavam-se entre a carne e a roupa batendo as asas num saber antigo.

Quando acordaram e quiseram sacudir o pó do tempo ouviram o riso dos jovens que se riam das pessoas

[ antigas, e alegremente cantavam as suas canções de jovens e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos

[ jovens.

Como jovens que eram riam-se das p por já não serem jovens,

(39)

Poe111a da terra adubada

,

0 s

amantes liquefeitos

,

i

detrás das árvores não se escondem faunos, não.

i

Para quem não tem pena que 0 afague

Por detrás das árvores escondem-se 0s soldados é bom saber que o jovem par de amantes

com granadas de mão. marcou encontro num jardim de Copenhague.

As árvores são belas com os troncos dourados. São boas e largas para esconder soldados. Não é o vento que rumoreja nas folhas, não é o vento, não.

São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é dos limbos das folhas verdes

[ reluzentes.

É das lâminas das facas que os soldados apertam

[ entre os dentes. As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.

É o sangue dos soldados que está vertido no chão. Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a

[ assobiar. São os silvos das balas cortando a espessura do ar. Depois os lavradores

rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados, e a terra dará vinho e pão e flores

adubada com os corpos dos soldados.

Na manhã fria como o aço cromado

uma névoa leitosa amassa o esqueleto das árvores num hálito empastado.

Esquálidos, adivinham-se os ramos na bruma

[ dissolvente, secos e descarnados como tíbias desenterradas. Ao longo das hastes, os dentes polidos do gelo

[ pendente como presas de cães atentas e aceradas.

Gélido um vento sopra e eriça a epiderme das estátuas de bronze diluídas no espaço, e a pele dos golfinhos de pedra que emergem

[ da água inerme de um lago morto como vidro baço.

I

Ininterruptamente cai a neve

naquela queda paulatina e leve que tudo cobre, pesadamente. Chegaram os amantes.

Caminham silenciosos, de mãos dadas. Sob as luvas grosseiras e bordadas sentem-se os dedos mais que palpitantes.

(40)

Pararam e examinam-se. Os olhos um do outro

[ se povoam, batem as asas, desfazem-se em vapor,

as minúcias d o rosto sobrevoam

prospectando os filões mais íntimos d o amor. Fecham os olhos. Apagam-se as luzes. Vogam n o oceano os náufragos solitários. Juntam-se as bocas no fundo dos capuzes como dois pólos de sinais contrários.

e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no

[ tempo deles, parecia-lhes a vida podre e reles

e suspiravam por viver agora. A suspirar e a protestar morreram.

E agora, quando se abrem as covas,

encontram-se as vezes os dentes com que rangeram, tão brancos como se as dentaduras fossem novas.

Uma estrela cadente os ares corta e enquanto O longo beijo continua

semeia luz em pó na natureza morta.

Poelna de me chamar Aniólii«

,

Rompem as flores do chão, e as árvores esquálidas

projectam sobre a relva a sombra tutelar. \

Anima-se 0 sangue nas veias de bronze das estátuas Hoje, ao nascer do sol, de manhãzinha,

ouvi cantar um galo no quintal

dissipa-se a névoa, alegra-se o ar. quando eu tinha seis anos e fui passar as férias do

Um búfalo de fogo no horizonte se esboça. [ Natal

Traz música nos olhos e as goelas hiantes. com a minha madrinha. h n d e - s e a neve empedernida e grossa.

Funde-se o gelo. Fundem-se os amantes. Na cama improvisada no corredor sabiamente fingia que dormia

C

muito embrulhado num cobertor, enquanto numa luz melada e quase fria, o mundo, sabiamente,

fingia que nascia.

Pociiia

d a

nioi-tc

aparente

E então apeteceu-me também nascer,

nascer por mim, por minha expressa vontade, sem pai nem mãe,

(41)

sem beijos nem carícias de ninguém, só, só e só por minha livre vontade.

Dobrado em círculo no ventre do meu cobertor, enrugado como um feto à espera da liberdade (viva a liberdade!)

cerrava e descerrava as pálpebras, sabiamente, como se as não movesse,

como se não sentisse nem soubesse,

abrindo-as numa fenda dissimulada e estreita, insensível as coisas quotidianas,

mas hábil para aquela alvorada puríssima e escorreita que me inundava o sangue através das pestanas. Fremiam-se-me as pálpebras sacudindo na luz um

[ pó de borboletas, um explodir de missangas furta-cores,

bacilos e vapores, rendas brancas e pretas.

Cada vez mais feto, mais redondo, mais bicho-de-

[ -conta, mais balão, mais planeta, bola pronta

a meter-se no forno, mais eterno retorno,

mais sem fim nem princípio, sem ponta nem aresta, excremento de escaravelho aberto numa fresta. Foi então que o tal galo cantou.

Looooooonge

...

Muito looooooonge

...

no quintal da vizinha,

lá para o fim do mundo mesmo ao lado da casa da

[ minha madrinha.

Era uma voz redonda, débil, inexperiente, bruxuleante como a chama

que está mesmo a apagar-se e esperta de repente e novamente morre e de novo se inflama. Uma voz sub-reptícia, anódina, irresponsável, ( fugaz e insinuante,

I

1

um canto sem contornos, aéreo, imponderável.

i

Tudo isso e muito mais, mas principalmente distante.

Foi assim que a voz do galo na capoeira do quintal da vizinha

que tinha plantado ao centro uma nespereira mesmo junto da casa da minha madrinha, penetrou no ventre macio do meu cobertor. Era uma frente de onda, compacta e envolvente, pura já na garganta e agora mais que pura,

filtrada i

e destilada

I nos poros ávidos da minha cobertura.

1 Chegou e fulminou o meu ser indigente,

~

exposto e carecido, naquele gesto mole e distraído do Deus omnipotente

da Capela Sistina

quando ergue a mão terrível e fulmina o coração

de Adão.

E pronto. Eis-me nascido. Cheio de sede e fome.

(42)

P o e i ~ ~ a

do adeus

nas escamas dos peixes, encontrem meus ouvidos. Exigem novas leis que os olhos não se alegrem Que a terra me seja leve. quando as folhas das árvores Ihes acenam;

quando 0 lagarto ao Sol o erótico pescoço,

erecto e circu~ante

9

como um radar,

I

transforma as ondas mansas I

1

em lúbricas tensões.

i

poema do cão ao etitardecer

Não mais ~ u r m Ú r i 0 ~ de águas nem aromas de pinhos que 0s ouvidos antigos recolhiam

e os narizes hauriam sequiosos

i ,

um

cão no areal corria presto.

como exaustores de fumos; presto corria o cão no areal deserto.

não mais abrir os olhos e fechá-los Era ao entarde~er, e O cão corria presto

sob a língua da luz lambendo morna no areal deserto. i

o convexo das pálpebras;

não mais levitação do corpo no silêncio, corria em linha recta, presto, presto,

o porte da doninha na iminência pela orla do mar.

do que nunca acontece. pela orla do mar, em linha recta,

corria presto, 0 cão.

Pois que sejam meus olhos que ao fecharem-se

levem consigo a imagem derradeira Era ao entardecer.

da fragância poética do mundo; NO areal as águas derramadas

que em meu rosto bafeje o último hálito nas angústias do mar

das magas transparências inventadas; lambuzavam de espuma as patas automáticas que nele roce a última das aves, do cão que presto, presto, corria em linha recta

de benévolas asas estendidas pela orla do mar.

que em construídos céus nos redimiram

da frágil condição de ser humano; Sem nem fim, em linha recta,

que as últimas mensagens pela orla do mar.

dos emissores piratas, clandestinos algures

no fundo dos cristais, Era ao entardecer,

no pistilo das flores, na hora espessa, peganhenta e húmida,

(43)

I' i, i, i i r ri

.

I

.

r , i i l i I 11 r i .

.

A 8 , I ,, I , , c, ( 1 o

em que um resto de luz no espasmo da agonia geme nas coisas e empasta-as como goma. No espaço diluído, esfumado e cinzento, corria presto o cão no areal deserto. Corria em linha recta, presto, presto, definindo uma forma movediça que perfurava a névoa e prosseguia pela orla do mar, em linha recta, focinho levantado, olhos estáticos, fixando o breve ponto onde se encontram além de todo o longe

as rectas que se dizem paralelas. Alternavam-se as patas na cadência, na cadência ritmada do movimento presto, deixando no areal as marcas do contacto. Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão no areal deserto.

O ritmo sempre igual, a língua pendurada, os olhos como brocas, furadores de distâncias. Em seu último espasmo a luz enrodilhou o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante. Era um suposto cão correndo presto, presto, num suposto areal, realmente deserto, por uma linha recta mais suposta que o areal e o mar.

Mas presto, presto, sempre presto, presto, ia correndo o cão no areal deserto.

Poema das

coisas

belas

As coisas belas,

as que deixam cicatrizes na memória dos homens, por que motivo serão belas?

E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo. Derrama cores porque os meus olhos vêem. Mas por que será belo o pôr do Sol?

I

E belo, para quê? I

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,

i mas só são coisas quando coisas percebidas,

1

por que direi das coisas que são bplas?

i

E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas

i

sem precisarem de ser coisas percebidas,

para quem serão belas essas coisas?

E belas, para quê?

Poema do tio-avo materno

Num dia sufocante, de intensíssimo calor, encontrei, ao regressar da escola,

Referências

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