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Matrix E O Despertar Do Heroi

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Academic year: 2021

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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as

autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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RICARDO KELMER

e o despertar do herói

A jornada mítica de autorrealização

em Matrix e em nossas vidas

1ª edição impressa: jul/2005 - 3ª edição para PDF: jun/2012 Capa: Miragem

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O filme Matrix chegou aos cinemas em 1999, ou seja, é um filme do século passado. Entretanto, as ideias que ele trouxe estão cada vez mais vivas no mundo do século 21:

tecnologia, dominação, liberdade, a natureza da realidade...

Este livro, porém, põe de lado os aspectos mais óbvios nas discussões sobre Matrix e foca naquilo que, para o autor, é o grande motivo do sucesso do filme: os fundamentos mitológicos de seu enredo, mais especificamente o mito da jornada do herói. Contado durante séculos ao redor de fogueiras, esse mito continua a ser contado e recontado, agora nos livros e nas salas de cinema, para que sua mensagem principal nunca se perca: o herói é aquele que se realiza a si mesmo.

Em que parte do roteiro de sua jornada você se encontra agora? A sociedade já sabe que você é o Escolhido? Onde estão o Morfeu e a Trinity para ajudá-lo? O traidor já apareceu?

Seja bem-vindo novamente à fascinante aventura de Neo. Dessa vez, porém, você o acompanhará sob a luz da mitologia e da moderna psicologia do inconsciente. E verá que, na verdade, o herói está do outro lado da tela. É o mesmo que agora lê estas palavras.

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Então os deuses, após criarem a raça humana, entraram numa discussão a respeito de onde esconder as respostas para as questões da vida, para que os seres humanos se vissem forçados a procurá-las.

"Podemos escondê-las no topo de uma montanha de difícil acesso" – disse um deus. "Não" – disseram os outros.  "Eles logo as encontrarão". "Podemos ocultá-las no centro da Terra"  sugeriu outro deus. "Não"  replicaram os outros. "Eles logo as encontrarão". Outro deus propôs escondê-las no fundo do mar. "Lá também eles logo as encontrarão"  disseram os outros. Todos se calaram...

Depois de algum tempo outro deus sugeriu: "Devemos colocar as respostas às questões da vida dentro dos seres humanos. Eles nunca irão procurar lá". E assim fizeram.

A você

que um dia também se fez a perguntinha safada

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ÍNDICE

Apresentação 07 I - Cinema, mito e psicologia 09 II - Toc, toc, toc... Acorde, Neo! 29 III - Não existe colher ... 45 IV - Morrendo para vencer ... 69 V - Matrix Reloaded e Matrix Revolutions 90 VI - Os personagens 100 VII - Quadro comparativo 104

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APRESENTAÇÃO

Maio de 1999. O filme Matrix estreia no Brasil e eu, com quinze minutos de exibição, encontro-me atônito, como se uma força emanasse da tela e me espremesse contra a poltrona. Apesar da su-pervalorização dos efeitos especiais e das armas, sinto que estou di-ante de muito mais que um grande filme de aventura e ficção futuris-ta. Percebo que o enredo tem profundas bases mitológicas e é forma-do por importantes arquétipos forma-do inconsciente coletivo. Saio forma-do ci-nema atordoado, envolto em mil pensamentos, preciso ver este filme de novo...

De fato, voltei mais vezes ao cinema e vi e revi o filme na TV. Um dia deu-se o clarão: a história de Matrix podia perfeitamente ser compreendida como metáfora do processo de individuação (neste li-vro chamarei de autorrealização) de que nos fala a psicologia jungui-ana. Se os irmãos diretores tinham ou não ciência disso quando cria-ram o enredo, não importa. O processo todo está lá, camuflado em obra de ficção.

O sucesso mundial reforçou minha primeira impressão: Matrix é mesmo um fenômeno cultural, lotando cinemas, influenciando comportamentos e provocando discussões sobre tecnologia, domina-ção cultural, controle social, religião e natureza da realidade. Jamais uma obra artística unira entretenimento, tecnologia e filosofia em tais dimensões e provocara tanto a mente das pessoas no mundo inteiro.

Decidi expressar minha interpretação da obra e, ainda em 1999, comecei a escrever artigos para jornais e sites na internet, pro-curando discutir aspectos sobre os quais o filme nos fazia pensar co-mo mitologia, psicologia, filosofia, religião, misticisco-mo e tecnologia. Em 2000 fui convidado a falar sobre Matrix durante o Encon-tro da Nova Consciência*. Falei sobre a aventura de Neo para um público de quinhentas pessoas, comparando-a ao mito da jornada do herói e ao processo de autorrealização do ser humano, que Jung, o notável pesquisador da alma, descobriu em seus estudos e no aten-dimento psicológico a seus pacientes e denominou “processo de in-dividuação”. Desde então recebo convites de variados lugares para falar sobre o filme dentro dessa visão mitológico-psicológica, o que

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confirma que Matrix exerce um notável fascínio sobre muitas pesso-as, jovens e adultos, não apenas fãs de ficção futurista ou maníacos por computadores.

Como o segundo e o terceiro filmes da série não trouxeram muitos elementos novos para a análise que faremos aqui, nós nos concentraremos mais no filme inicial pois ele contém os elementos principais da ideia sobre a qual fala este livro.

Minha intenção é utilizar a estrutura mitológica do enredo de

Matrix (a jornada do herói) para falar de um tema que considero

im-prescindível nas discussões mais profundas sobre o ser humano: a questão do autoconhecimento psicológico como fator indispensável para a verdadeira realização pessoal. Pretendo, dessa forma, mostrar às pessoas que podemos sim, cada um de nós, sermos os grandes he-róis de nossas próprias vidas, ou seja, nos realizarmos da forma mais íntima e verdadeira possível. Para isso, porém, precisaremos fazer como Neo em Matrix: despertar, conhecer nossas possibilidades e as-sumir nosso destino.

Usando um filme que é sucesso mundial, além de ser conside-rado um marco na história do cinema, creio que fica mais fácil levar esta questão ao grande público e não somente aos que se interessam por mitologia e psicologia.

Espero que meu livro possa lhe ser útil.

RK Rio de Janeiro, maio de 2005

* Festival multicultural que acontece anualmente nos dias de carnaval em Campina Grande, Paraíba, e que reúne representantes de diversas áreas da ciência, da arte, da filosofia e das tradições espirituais.

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I

Cinema, mito e psicologia

resumo do filme

No futuro a Inteligência Artificial, uma avançada geração de máquinas pen-santes, entra em guerra contra os humanos e vence. Como praticamente não há mais fontes de energia no planeta, os corpos dos humanos sobrevi-ventes são usados para manter as máquinas funcionando. Para que eles não percebam o que acontece, a Inteligência Artificial faz uso da Matrix, um superprograma de realidade virtual ao qual são conectadas as mentes dos humanos. Dessa forma, adormecidos e indefesos, os humanos dormem e vivem um sonho coletivo onde o mundo é como era no final do século 20. Um grupo de humanos, porém, despertou e mantém-se fora da realidade virtual. Eles se escondem das máquinas, invadem o sistema e tentam fazer as pessoas despertarem. Esses rebeldes creem na profecia do Oráculo que diz que o Predestinado um dia virá para destruir a Matrix e libertar a espécie humana de sua prisão mental. Eles acreditam que Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador. Começa então sua guerra, contra a Matrix e contra si próprio.

escravos da própria criação

O filme Matrix entra para a história como uma das obras que mais simbolizam o espírito de nossa época, onde a espécie humana festeja e glorifica a suprema tecnologia mas ao mesmo tempo come-ça a despontar no horizonte uma ameacome-ça que nos aterroriza: a possi-bilidade de nos tornarmos escravos de nossa própria criação.

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depender das máquinas para quase tudo no dia a dia, desde o mo-mento em que acordamos até a hora de dormir. Muitos inclusive só conseguem dormir se houver ar condicionado, ventilador, calefação, música no rádio ou com a TV ligada.

Faça um teste: da próxima vez que faltar energia elétrica, per-ceba como as pessoas se comportam. É como se de repente a vida fi-casse suspensa. Muitos simplesmente não sabem o que fazer e andam de um lado para outro feito zumbis, como se aguardassem uma or-dem para voltar a funcionar. Outros saem no escuro à procura de fós-foros ou isqueiros, praguejam por ter esquecido onde guardaram a-quele resto de vela e chegam ao cúmulo de pressionar o interruptor de luz quando entram na cozinha para procurar fósforos, tão automá-tico esse gesto se tornou.

Panes elétricas geram sérios contratempos, é verdade, mas até mesmo elas podem trazer benefícios. Lá em casa, por exemplo, quando faltava luz, íamos para o quintal e deitávamos no chão para olhar o céu e procurar estrelas cadentes. Meu pai e eu discutíamos sobre o Universo ser ou não infinito, a velocidade da luz, as galá-xias... A imensidão do Cosmos nos inspirava certa reverência, nos fazendo lembrar do quão pequenos somos. Quando a energia voltava eu sempre estava mais calmo. Às vezes, naqueles poucos minutos, conversávamos mais que durante o mês inteiro. A pane elétrica, iro-nicamente, forçava a família a se reunir.

O desenvolvimento tecnológico é importante. A espécie hu-mana só sobreviveu até os dias de hoje porque desenvolveu tecnolo-gia suficiente para superar todas as dificuldades que surgiram, desde a necessidade de fabricar machadinhas de pedra até a criação de va-cinas e satélites que viajam além do sistema solar. O problema é que a tecnologia ocupa cada vez mais espaço em nossas vidas. Transfor-mamos a ciência numa espécie de deus e nos convencemos religio-samente de que a tecnologia pode nos salvar de todo perigo. Infeliz-mente não pode. Aliás, é justaInfeliz-mente por causa dela que a espécie ameaça destruir o planeta e se extinguir. O desequilíbrio ecológico e as guerras biológicas estão aí para confirmar o perigo do uso descon-trolado do saber científico.

Como tudo que existe tem dois lados, a tecnologia tanto pode criar como destruir. Em Matrix os avanços tecnológicos chegaram a tal ponto que as máquinas se tornaram independentes e escravizaram, literalmente, a mente dos humanos, algo que, de certo modo, já

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ocor-re hoje. Podemos fazer algo para essa possibilidade sombria não se tornar realidade?

Sim. Podemos, por exemplo, lidar com a tecnologia de um modo menos dependente, equilibrando necessidades e facilidades tecnológicas com uma vida mais ligada à Natureza (inclusive a natu-reza humana) e às coisas simples. Podemos também, desde já, ensi-nar às nossas crianças que a tecnologia existe para nos servir e não para nos escravizar. E podemos também dar mais atenção às necessi-dades da alma, entendendo que o sentido da vida é nos autorreali-zarmos, da forma mais verdadeira possível, nos tornando pessoas mais livres e harmonizadas com a vida. Isso a tecnologia não pode fazer em nosso lugar.

A verdadeira autorrealização é uma conquista individual, uma jornada mítica que cada um deve empreender em sua própria vida. É aqui, neste ponto, que podemos aprender com os mitos, essa coisa tão arcaica e que a mentalidade racional trata com tanto desdém, re-petindo sempre que “é só um mito”, desprezando sua importância e vendo-os apenas como histórias exóticas de povos primitivos ou co-mo religiões estranhas que insistem em sobreviver junto à nossa reli-gião. É como se disséssemos: “Somos mais evoluídos. Não precisa-mos de mitos”.

Mitos jamais serão “apenas” mitos pois são eles que formam a estrutura da alma e também das sociedades. Assim como os ossos sustentam o corpo físico, os mitos sustentam a psique humana. En-tender como eles agem em nossas vidas é fundamental para compre-endermos melhor a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.

o mito

Mitos são formas de interpretação da realidade, compostas de narrativas simbólicas e imagens metaforizadas, que estruturam e ori-entam as sociedades e guiam os indivíduos no crescimento psíquico. Eles não são deliberadamente criados por alguém mas nascem espon-taneamente da alma coletiva da espécie, a psique, que os faz emergir das profundezas do inconsciente geral da espécie e se sedimentar, ge-ração após gege-ração, na cultura dos povos, para conduzi-los a novos níveis em sua relação com o mistério da vida e em sua organização social, assim como na evolução de toda a espécie humana.

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mentiri-nhas ingênuas. Mito não é mentira, é metáfora. Uma metáfora não é uma mentira mas um modo simbólico de expressar uma verdade. Por esse motivo a metáfora é a língua nativa dos mitos pois por trás deles há sempre um símbolo carregado de mistério e numinosidade e a me-lhor forma de expressá-lo será sempre a linguagem figurada.

A fotografia é tão-somente um processo químico usado para captar e expressar visualmente a realidade e nem por isso uma foto é uma mentira. Assim como a ciência e a arte, o mito expressa a reali-dade à sua maneira própria, metaforicamente, que não é nem mais nem menos verdadeira. Se a ciência usa a razão lógica para explicar a vida e a arte usa a beleza e a harmonia para expressar o que senti-mos, o mito se utiliza dos símbolos para nos provocar e nos ligar aos mistérios da existência, que estão além da linguagem da ciência, da arte e da filosofia. As explicações dos mitos não podem satisfazer ao intelecto, nem deveriam, mas os símbolos que eles contêm possuem o poder de nos situar no contexto geral do Cosmos, alinhando nossas vidas com uma ordem maior e ligando a consciência individual a um sentido mais amplo e coletivo.

Podemos dizer que, além de fornecer explicações para o misté-rio da vida e da criação do mundo, o mito exerce duas funções prin-cipais, sendo uma de ordem social e outra individual. Como nos en-sinou Joseph Campbell, o famoso mitologista irlandês-estadunidense que ajudou a reacender o interesse pela mitologia no século 20 e nos incentivou a olhar para dentro e seguir nossa bem-aventurança, os mitos não só expressam a realidade: eles são o fundamento de toda sociedade. Não seria nenhum exagero afirmar que toda nossa vida, desde os menores detalhes até questões como arte, ciência, política e economia, tudo são formas rituais baseadas nos símbolos que os mi-tos expressam. Não há nada que não esteja sob uma espécie, digamos assim, de jurisdição simbólica dos mitos pois, explicando a vida, eles estão também endossando e justificando todos os aspectos culturais de uma sociedade, desde instituições como casamentos, ritos como funerais até o padrão de comportamento de homens e mulheres e a criação de religiões.

No plano individual o mito atua guiando o indivíduo pelas di-versas fases de sua vida, fornecendo-lhe imagens e narrativas ricas de significado para auxiliá-lo em sua jornada rumo à maturidade psi-cológica. Sim, os mitos descrevem ocorrências exteriores, referentes a algum tempo e lugar distantes – no entanto isso é só aparência pois

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o plano real dos acontecimentos é interior, é justamente a dimensão psicológica humana. É na alma e não no mundo externo que se de-senrolam os dramas metaforizados pelos mitos.

Dessa forma, o mito grego de Saturno, que devora os próprios filhos, nos ensina sobre o perigo da estagnação e o eterno medo da renovação, e o mito cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso nos diz sobre as dores inerentes ao despertar da autoconsciência, ao crescimento psicológico. Infelizmente o desprezo da mentalidade ra-cional pelo mito nos impede de captar esses importantes significados, tão úteis à vida.

o mito da jornada do herói

Um dos motivos pelos quais o filme Matrix fez e continua fa-zendo um sucesso danado pelo mundo inteiro é o seu enredo: ele tem profundas bases mitológicas e as pessoas se identificam com essas obras porque elas vivem, em sua própria vida, os temas contidos no filme. O mito é como o leito de um rio antigo e eu, você e todas as pessoas somos a água que corre por ele: é através da experiência de nossas vidas individuais que o mito está sempre se renovando.

Existem muitos e muitos mitos, cada um relativo a um deter-minado aspecto da existência, e mesmo sem conhecê-los (e às vezes mesmo pertencendo a outra cultura), nós os vivemos, cada um de nós, em diversos momentos da vida. Nossas águas estão sempre a percorrer o leito de algum mito, embora quase sempre estejamos in-conscientes disso. Conhecendo os mitos e olhando-os pela ótica da psicologia do inconsciente, podemos compará-los com nossas vidas, perceber de que modo os vivemos e, assim, saber para onde se diri-gem nossas águas, evitando possíveis desastres.

A história de Neo, que procura incessantemente uma resposta para a pergunta que o move (o que é a Matrix?) nos lembra Percival, o jovem cavaleiro do Rei Artur, buscando saber para quem serve o cálice do Graal. Neo e Percival são versões modernas do mito da jor-nada do herói, presente há milhares de anos na cultura e religião dos diversos povos da Terra. As histórias variam mas a essência é a mesma: o herói é alguém que larga a segurança de sua terra ou famí-lia e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incerte-zas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, re-tornar transformado e vitorioso, mais forte, experiente e seguro, para

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guiar ou salvar seu povo, casar-se com a princesa ou substituir um velho rei injusto ou doente.

Com algumas variações este tema se repete em nossas lendas, contos de fada, religiões e obras artísticas desde que aprendemos a contar histórias ao redor das fogueiras. Esse é o modo pelo qual os humanos conseguem, através de metáforas e sem muita consciência disso, passar para as gerações seguintes algo vital para a sobrevivên-cia da espécie: os segredos da autorrealização.

Nossos ancestrais escutavam as histórias dos heróis com res-peito e assombro, envolvidos por rituais que se transmitiam pelas ge-rações. E hoje, no terceiro milênio da era cristã, nós continuamos re-passando o mesmo costume, com a diferença que, em lugar das fo-gueiras nos reunimos no escuro dos cinemas, compenetrados e reve-rentes, para escutar a mesma história, para não esquecermos que a vida tem um segredo: cada um de nós precisa realizar a si próprio. Por isso quando o segredo é recontado nos filmes, disfarçado em dramas, romances, aventuras e comédias, nós nos identificamos, algo dentro de nós se agita e de repente a vida faz mais sentido: é o mági-co efeito que os mitos provocam.

Em algum momento da vida o mito da jornada do herói (o mi-to da aumi-torrealização) é reativado na psique individual, em mi-toda sua força. Vemo-nos então como o herói de Matrix, insatisfeitos com os velhos papéis reservados para nós pela sociedade e em conflito com nós mesmos. Despertamos da letargia, somos obrigados a largar as certezas de nossos valores atuais e partimos rumo ao desconhecido em busca de algo que nos completará, arriscando a segurança e en-frentando medos, dúvidas, sofrimentos e até a autossabotagem. Se persistirmos na jornada interior alcançaremos nossa essência e atingi-remos novos níveis de autoconhecimento e harmonia com a vida, re-alizando nosso potencial, alcançando a bem-aventurança e, inclusive, gerando benefícios para a sociedade. É assim que vivemos o mito da autorrealização em nossas vidas, encarnando em nós a antiga jornada do herói.

Como vivemos em grupo, toda vez que alguém alcança a ver-dadeira realização pessoal, de algum modo seu exemplo influencia outras pessoas e assim a espécie como um todo também avança. Por isso se diz que a autorrealização é a melhor forma de contribuirmos, individualmente, para o desenvolvimento coletivo da humanidade.

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as novas gerações, nos cinemas, nos livros e teatros, com roupagem moderna e efeitos especiais, as aventuras míticas dos heróis. Faze-mos isso para não esquecer que o sentido da vida é seguirFaze-mos a nos-sa bem-aventurança e realizarmos quem verdadeiramente somos. Uma aventura heróica, sim, mas ao alcance de cada um. Ao seu al-cance.

Jesus Cristo super-herói

Matrix tem muitos elementos que remetem à literatura, à

cul-tura pop e ao próprio cinema, a diversas tradições religiosas, místicas e filosóficas, assim como analogias a teorias ligadas a vários ramos da ciência como psicologia, antropologia e sociologia. Pouquíssimas obras de ficção despertaram tantas interpretações diferentes envol-vendo tantas áreas do conhecimento humano. Alguns argumentam que Matrix não passa de um borrão de tinta no qual cada um vê o que quer ver, um argumento que também mostra a riqueza da história e de seus fundamentos arquetípicos pois poucas obras artísticas forne-cem tantas e diversas visões.

Na filosofia as analogias são muitas. É óbvia a parábola da ca-verna de Platão (parábola ou alegoria, e não mito), onde as pessoas veem apenas as sombras da realidade e as tomam como a própria rea-lidade, tornando suas vidas limitadas. Muitos abordam o filme usan-do ideias de Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Laplace, Nietzsche, Sartre, Dostoievski, Marx e Baudrillard para discutir coisas como natureza da realidade, metafísica da mente, materialismo, tecnologia, livre-arbítrio, destino e onisciência.

No campo das tradições místicas e religiosas pode-se ver em

Matrix a ideia hinduísta de maya, ou seja, a ilusão na qual vivemos e

que nos cega para a verdade maior. Pode-se ver também a ideia tao-ísta da unicidade de tudo que existe, de se tornar uno com o mundo e assim harmonizar-se com os ritmos naturais da vida. A iluminação de que nos fala o budismo, com sua ênfase na libertação da mente dos padrões a que ela se acorrentou, é uma constante durante toda a história. Pode-se falar também da ideia gnóstica do demiurgo, o ar-quiteto deste mundo, um falso deus que governa a realidade humana. Os planos astrais e suas entidades, ideias presentes em tantas corren-tes espiritualistas, também podem ser vistas no filme.

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personagens como Morfeu (o deus dos sonhos), que auxilia Neo a despertar de seu sono na Matrix. Há também Perséfone, esposa de Hades e rainha do submundo, que ajuda os humanos quando esses descem ao inferno, e que em Matrix é esposa de Merovíngio e tam-bém dá uma forcinha aos humanos.

A mitologia cristã também está lá, emprestando sua rica sim-bologia. A trajetória de Neo tem tantos pontos em comum com a vi-da de Cristo que é improvável que sejam apenas coincidências. Co-mecemos pelo nome de Neo na Matrix, Thomas Anderson. Ander-son, de procedência nórdica, significa originalmente “o filho do ho-mem”, uma das expressões que Cristo utiliza para se referir a si. No início do filme o amigo que faz uma visita a Neo se refere a ele, lite-ralmente, como “Jesus Cristo” e “meu salvador pessoal”. Assim co-mo Cristo, Neo é tentado e torturado, co-morre, ressuscita e sobe aos céus. O nome da personagem Trinity remete à trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo). Merovíngio, o poderoso chefe dos programas rebeldes, é uma referência aos reis merovíngios, da idade média, que se acreditavam descendentes da linhagem real proveniente de Cristo. A nave Nabucodonossor traz a inscrição MARK III, no 11, que pode ser uma referência ao evangelho de Marcos, capítulo 3, versículo 11: “Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele, e gritavam, dizendo: Tu és o filho de Deus.”

No entanto, e é isso que mais nos interessa, há algo além das religiões e filosofias que liga a história de Neo com a vida de Cristo e no qual ambas se inspiram. Este elo é justamente o mito da jornada do herói, bem mais antigo que os dois e que pode funcionar como uma espécie de roteiro para entendermos, psicologicamente, suas tra-jetórias. Jesus Cristo é o grande herói da mitologia cristã. Não é rele-vante aqui se ele de fato existiu ou não ou se era ou não o legítimo fi-lho de Deus. Para o estudo da psicologia do inconsciente aplicada à mitologia, o que importa é o que sua história tem a nos oferecer em termos psicológicos. O que vale é o leito do rio, a estrutura do mito, e de que modo as pessoas o preenchem com as experiências de suas vidas.

Cristo viveu, a seu modo, a clássica trajetória do herói. Aban-donou a segurança do lar e das tradições, empreendeu uma longa e difícil jornada de autoaceitação, sofreu as dúvidas, tentações e dores inerentes aos conflitos de quem reluta em assumir seu destino e, por fim, submeteu-se à sua verdade mais íntima, ao seu destino, ou seja,

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ao fato de que, sim, ele era o filho enviado por Deus Pai para redimir a humanidade.

Igual a Cristo, muitas lendas em variadas culturas, até mesmo mais antigas, contam histórias muito parecidas, com personagens de trajetórias similares, contadas e recontadas através dos séculos. O que torna a história de Cristo tão especial é o fato dela ter inspirado o nascimento de uma religião que atualmente, incluindo suas subdivi-sões, é seguida por aproximadamente um terço da população do mundo. Não fosse isso, talvez a história do galileu que obrava mila-gres, arrebanhou seguidores, incomodou líderes políticos e religiosos e morreu crucificado chegaria à nossa época como apenas uma lenda, da mesma forma que tantas outras.

Quinhentos anos antes da era cristã, na Índia, um príncipe muito rico abdicou do conforto de sua vida e foi para a floresta viver de esmolas e meditar sobre o sentido da existência. No momento em que a compreendeu, tornou-se um iluminado, um Buda, perfeitamen-te inperfeitamen-tegrado à Natureza, capaz de fazer milagres e de ensinar as pes-soas a encontrarem também a iluminação e se libertarem das prisões mentais. A mitologia cristã possui tantas semelhanças com a vida do Buda e com outros mitos de outras culturas que é como se uma única história estivesse sendo contada em variadas sociedades sob diversas versões, sob as características próprias de cada cultura e baseada em suas necessidades espirituais específicas. De fato, é sempre a mesma história: o mito da jornada do herói.

Neo, Buda e Cristo, assim como Percival, são heróis porque realizaram a si mesmos, concretizando seu potencial, vivendo pro-fundamente seu mito pessoal e cumprindo seu destino. Cada um de-les viveu, a seu modo, o roteiro que marca a jornada mítica do herói. herói e sociedade: um motocontínuo

Tudo que existe já traz em si a semente daquilo que o destrui-rá. A sociedade instintivamente sabe dessa lei universal e por isso sempre verá com desconfiança o indivíduo, ele e seu perigoso poten-cial de transformá-la. Mais cedo ou mais tarde ele a transformará e os dois prosseguirão num novo nível, ela tentando manter as coisas como estão, ele a desafiando com sua diferenciação. É um motocon-tínuo.

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individual evolua numa espiral, passando pelos mesmos pontos em novos níveis, a consciência da espécie também age assim, tendo de um lado da espiral a sociedade e do outro a individualidade. Nasce-mos imersos na sociedade e durante a vida inteira ela exerce sua for-ça coesiva sobre nós – mas do outro lado da espiral a individualidade nos atrai. Para os que a alcançam, ela fornece a diferenciação e a for-ça necessária para prosseguir no caminho legítimo da alma. Seu im-pulso, porém, obviamente conduz o indivíduo ao outro lado da espi-ral, de volta à sociedade. Isso significa que a mesma sociedade que segurou o quanto pôde o impulso diferenciador do indivíduo e o re-jeitou, mais tarde assimilará os novos valores que ele traz e assim ela se enriquece, se renova e forma novos indivíduos que, por sua vez, serão também atraídos para o outro lado da espiral e, caso prossigam, levarão a sociedade a novos níveis de evolução. É assim que a espé-cie evolui, fazendo com que o conflito entre individualidade e soespé-cie- socie-dade seja o motor do movimento contínuo.

Atualmente a autorrealização psíquica não se contenta apenas em se diferenciar do bando, como nos dias em que éramos semima-cacos, ou adquirir identidade própria, como nos estágios seguintes da história humana. A autorrealização agora exige mais, exige que al-cancemos o ponto mais verdadeiro do que somos para que o potenci-al que está lá, adormecido, possa se repotenci-alizar em toda sua plenitude. O novo nível de individualidade que temos de alcançar determina que atinjamos nosso centro mas para isso precisamos, é claro, conhecer o nosso todo e o todo inclui não só a superfície mas o que está dentro. Isso significa que temos de conhecer o interior de nós mesmos, pro-fundamente, do modo mais verdadeiro possível, se quisermos alcan-çar nosso centro mais legítimo.

Quando Neo finalmente consegue compreender quem ele é, entende seu papel no contexto da existência humana e faz o que deve fazer. É assim que ele salva a humanidade e renova as esperanças do planeta que agora, suspenso o conflito entre humanos e máquinas, pode enfim se recuperar.

monitorando Neo

O enredo de Matrix será aqui utilizado para ilustrar o processo de autorrealização do ser humano e mostrar que podemos deixar de ser meros personagens para ser os grandes heróis de nossas próprias

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vidas. Para isso usaremos como guia o primeiro filme da trilogia, on-de mora a essência da história, e alguns trechos dos outros dois. Se-guiremos cronologicamente, descrevendo as cenas mais importantes e comparando-as com a referida etapa do processo, usando exemplos da vida cotidiana, sempre dentro do contexto do processo de autorre-alização.

Agiremos mais ou menos como os agentes da Matrix, que prenderam Neo e lhe implantaram um rastreador para não perdê-lo de vista. Em nosso caso, seguiremos Neo durante sua perigosa e e-mocionante jornada porque sua história é a história de cada um de nós. A aventura do guerreiro cibernético vivido pelo bonitão Keanu Reeves é uma metáfora de nossa jornada pessoal rumo à mais verda-deira realização de nós mesmos. A diferença é que Neo é um perso-nagem de ficção e só existe nas telas, enquanto nós, eu e você, exis-timos aqui no mundo real, na tridimensionalidade do dia a dia, pe-gando ônibus lotado, suando para pagar as contas, sofrendo por nos-sos relacionamentos e pelo time que vai mal no campeonato, bata-lhando arduamente pelo que acreditamos e ainda procurando um sen-tido maior no meio desse grande caos da existência. Ufa! Merecemos um Oscar pelo conjunto da obra, não?

Monitoraremos Neo para, através de sua trajetória mítica, ver como nós mesmos nos comportamos em nosso processo de autorrea-lização. Será como um jogo onde o que virmos na tela será transplan-tado para a vida prática. Definiremos as regras do jogo a seguir mas não há nada de muito complicado. Lidaremos com noções de mitolo-gia e psicolomitolo-gia do inconsciente mas tudo será feito de forma leve e descontraída.

Bem, de fato não é fácil traduzir em simples palavras e rápidas explicações o profundo, complexo e misterioso universo da alma. É como traduzir em linguagem racional e científica coisas que são do reino dos sonhos e da intuição. Porém, felizmente existe a arte e seu poder mágico de tocar as pessoas. Existem filmes como Matrix, que já trazem em si, metaforicamente, muito daquilo que os profissionais da psicologia e psicoterapia se esforçam para explicar em seus livros, palestras e consultórios. A metáfora facilita as coisas, levando ao en-tendimento imediato e instintivo do que realmente interessa, o centro da questão, o símbolo. Por esse motivo é que a psique faz uso da me-táfora dos mitos para comunicar suas verdades.

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para que nós mesmos apliquemos as verdades mitológicas em nossas vidas e, assim, possamos nos compreender melhor e nos libertarmos um pouco mais.

Mas... libertar-se de quê? Libertar-se daquilo que nos mantém presos e que nos impede de ser quem verdadeiramente somos e de seguir a nossa bem-aventurança. E isso somente cada um de nós será capaz de descobrir o que seja. Esta é a nossa missão, a sagrada mis-são de cada um de nós.

você se conhece?

Já vimos que, em termos psicológicos, a aventura de Neo pode ser entendida como uma reedição moderna da jornada humana rumo à autorrealização. Certo. Mas o que exatamente vem a ser isso?

Autorrealização é a efetivação do que há de mais profundo e verdadeiro em cada um de nós. Feito uma potencialidade existente no mais profundo do eu, ela nos impulsiona a um processo contínuo de autoconhecimento onde integramos os conteúdos do ser e ruma-mos para a mais íntima realização pessoal: a concretização da perso-nalidade total.

Autorrealizar-se significa desenvolver o potencial adormecido e nos tornarmos quem somos destinados a ser porque é isso o que sempre fomos: a semente que já traz em si a árvore futura. É impos-sível autorrealizar-se sem conhecer as próprias possibilidades e tor-ná-las reais. Seria impossível para Neo fazer tudo o que fez sem an-tes se convencer que, de fato, podia fazê-lo. Você lembra quando ele decide voltar à Matrix para resgatar Morfeu, mesmo sabendo que jamais alguém fez isso antes? Pois é. Nesse momento Neo está, pela primeira vez, convencido de seu potencial e, por isso, consegue fazer o impossível.

Uma pessoa autorrealizada é uma pessoa equilibrada, física e psicologicamente, que se conhece a fundo e por isso é senhora de seus atos. Está consciente das necessidades do corpo e da mente, da linguagem das emoções e do espírito. Em outras palavras, todas as dimensões de seu ser estão harmonizadas. Por conta desse elevado grau de autoconhecimento, é alguém que sabe de seu potencial e o utiliza do melhor modo, sem desperdícios nem autoenganações. É alguém que, mesmo vivendo em meio ao grande caos do mundo, está em harmonia com ele e não se abala facilmente com imprevistos e

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derrotas. Uma pessoa autorrealizada venceu os desafios mais impor-tantes que a vida lhe impôs e não mais precisa lutar contra seus de-mônios internos pois um dia teve a coragem de encará-los, conse-guindo assim que eles passassem para o seu lado, herdando deles a força contra a qual tanto lutava.

Para atingir esse ponto, porém, a pessoa tem antes de despertar e se diferenciar da mentalidade comum, como Neo despertou da Ma-trix, como nossos antepassados peludos se diferenciaram do bando e inauguraram o novo ramo evolutivo que seria a espécie humana. Isso é necessário para que a individualidade se manifeste e a pessoa possa realmente conhecer quem é, buscando suas verdades dentro de si mesma. Quem sou eu?  tudo começa com essa perguntinha safada.

Nada disso é fácil ou rápido. Mas aqui precisamos entender algo muito importante: o que verdadeiramente interessa não é alcan-çar a meta. Parece contraditório empreender uma jornada onde não há chegada mas é assim que funciona pois o que interessa realmente nessa jornada é estar no caminho. A essência da autorrealização não é chegar mas manter-se em movimento, até porque talvez não exista uma chegada definitiva na evolução psíquica. É mais ou menos como encontrar um grande amor: quando isso acontece, não importa o que exatamente vamos fazer ou até onde estaremos com a outra pessoa. Fixar-se nisso é perder a noção do mais importante, que é estar junto e viver o amor a cada dia, sem se preocupar mais que o necessário com o seu futuro.

A alma é a dimensão interna da vida, uma dimensão absoluta-mente fascinante e também libertadora. Porém, a maior parte das pessoas nunca chega realmente a se aventurar pelo universo de sua alma, preferindo a experiência de vida em níveis mais superficiais do ser. O motivo disso é que a nossa cultura não nos incentiva a olhar para dentro e, além disso, lá dentro é escuro e, você sabe, do escuro sempre podem vir coisas perigosas...

Geralmente na primeira metade da vida gastamos a maior par-te de nossa energia correndo de um lado para outro em busca de em-prego, aceitação social, conquistas sexuais, brincadeiras e aventuras por toda parte. Mesmo que o mundo interno nos chame a atenção, ele frequentemente é relegado a segundo plano. Algumas pessoas sen-tem cedo esse chamado mas a maioria só vai escutá-lo a partir da metade da vida, quando começa a fazer falta um sentido maior. Mui-tas percebem que o tudo que conquistaram não as fez realizadas –

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nem livres. Aliás, é comum as pessoas chegarem a esse ponto se sen-tindo sufocadas: pelo tempo, pelo trabalho, pela família, pelas exi-gências sociais e até por suas próprias ideias e atitudes que durante muito tempo foram úteis mas agora não têm mais o mesmo valor. É em momentos assim que a vida nos faz lembrar que temos uma mis-são sagrada e que só poderemos cumpri-la se nos voltarmos para a dimensão interna da nossa vida.

A história de Neo é a nossa história: alguém que um dia se in-comoda com a vida que vive, não se conforma e busca uma verdade maior. Assim sendo, a partir de agora olhemos para o filme com ou-tros olhos. Para monitorar o herói em sua jornada de autorrealização, precisamos ver o filme sob um ângulo psicológico, onde Matrix pas-sa a ser a história de uma pessoa, apenas uma pessoa, no caso Neo, e onde todas as situações do filme se referem diretamente ao herói, à sua psique. Por isso todos os personagens, a partir de agora, repre-sentarão aspectos psicológicos do próprio Neo.

Acho que não entendi bem..., você pode estar pensando. Não se preocupe. Vamos treinar nosso olhar um pouco mais antes de co-meçarmos o monitoramento de Neo. Vamos falar sobre essa coisa misteriosa e fascinante que é a psique.

o organismo psíquico

A cada dia novas descobertas tornam menos precisas as fron-teiras entre mente e corpo, mostrando que as duas coisas talvez não sejam tão distintas como julgamos. Mas, para efeito didático, ainda precisamos explicar separadamente essas dimensões do ser.

Assim como possuímos um conjunto de órgãos, um organis-mo, que age dentro de leis físicas, químicas e biológicas, possuímos também um “organismo psicológico” que atua seguindo suas pró-prias leis. Esse segundo organismo é a psique e, assim como o corpo físico, ela também regula a si mesma, podendo adoecer mas também promover a própria cura. Para entendermos melhor a psique, temos de vê-la como algo vivo e possuidor de uma espécie de inteligência própria e capaz de se autorregular. Nesse ponto ela é como a Terra, um superorganismo que mantém a vida em si através do equilíbrio entre seus órgãos minerais, vegetais e animais. Bem, é verdade que o Homo sapiens, um dos órgãos animais, ultimamente tem se esforça-do bastante para desequilibrar tuesforça-do mas isso é outra história.

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A psique é formada pela consciência e pelo inconsciente. A consciência é a área superficial da psique, ou seja, o nosso conheci-mento imediato sobre nós mesmos. O centro da consciência é o ego e é através dele que manifestamos nossa vontade, articulamos os pen-samentos e analisamos as coisas. Por ele ser o centro da personalida-de consciente, é justamente através do ego que temos consciência do que somos ou não somos. Mal comparando, o ego é como a pele pois ela é o elemento de comunicação mais visível e imediato do corpo com o ambiente externo. Mas a pele não é o corpo inteiro: do lado de dentro há outros elementos que atuam o tempo todo, estruturando o corpo, mantendo-o vivo e influenciando nosso comportamento, mesmo que não o percebamos. Ver o ego como a personalidade total equivale a confundir a pele com o corpo inteiro.

O conhecimento do ego sobre a psique ou a personalidade to-tal, da qual ele é apenas uma parte, só alcança que está na consciên-cia, aquilo que se pode distinguir com a luz do discernimento da per-sonalidade consciente. O que está além da fronteira da consciência, ou seja, o que faz parte do inconsciente, está na escuridão e não pode ser percebido pelo ego. Por conta do posto que ocupa, de “represen-tante autorizado” da psique para o mundo externo, o ego tende sem-pre a se considerar o eu psíquico total. Mas não é. Esta é a sua velha ilusão: ele acha que está sempre no controle da situação. Não está porque os elementos do inconsciente influenciam no comportamento da pessoa. E influenciam sem o ego se dar conta pois ele só admite a existência do que está em sua área, a consciência. Para o ego, reco-nhecer o inconsciente é recoreco-nhecer que não está sozinho no controle  e isso é sempre um golpe no orgulho egóico.

Às vezes dizemos: “Eu tenho umas coisas que não entendo...” ou “Não sei o que deu em mim para fazer aquilo...” ou “Eu estava fo-ra de mim.” Em momentos assim estamos pressentindo que não so-mos apenas o ego, ou seja, que soso-mos algo mais que apenas a nossa percepção consciente de nós mesmos. Estamos quase admitindo que existem outros aspectos de nós e que não os conhecemos muito bem nem temos controle total sobre eles. Quando surgem essas incertezas é sinal que conteúdos do ser, antes totalmente inconscientes, se apro-ximam da fronteira da consciência. O ego já os pressente e se inco-moda. Esses conteúdos estão saindo das sombras do inconsciente e forçam saída rumo à luz da consciência, querendo ser integrados à personalidade consciente. O melhor a fazer é ir ao encontro deles

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an-tes que esses danados imprevisíveis provoquem confusões maiores. Isso é investigar-se psicologicamente, dar atenção ao mundo interno. Isso é autoconhecimento.

O ego, portanto, é uma espécie de gerente da psique, incumbi-do de facilitar o fluxo de conteúincumbi-dos entre a consciência e o inconsci-ente, fluxo este que visa enriquecer a ambos e manter o equilíbrio psíquico, vital para a saúde do indivíduo. Um ego imaturo, porém, está sempre tão preocupado em manter a ilusão de se achar mais do que é no contexto geral da empresa que não consegue perceber a e-xistência de certos problemas na empresa. É exatamente por causa dessa negligência que os problemas se acumulam, ou seja, o fluxo entre consciência e inconsciente fica travado. Para esse gerente infla-do de orgulho, a prioridade não é o crescimento psíquico (crescimen-to da empresa) mas segurar seu cargo, manter as coisas como estão, empurrando com a barriga, adiando, fingindo não ver.

Se o ego não desempenha bem sua função gerenciadora da psique total, ignorando o inconsciente e fazendo a pessoa viver a si mesma de modo unilateral, os interesses egóicos se chocam com os interesses do eu total e as forças autorreguladoras da psique interve-em, queira o ego ou não. E aí surgem as crises.

o inconsciente

Mas... e o inconsciente, de que é feito exatamente? Podemos, a princípio, resumi-lo como o conjunto de tudo aquilo que não sabe-mos sobre nós messabe-mos. No inconsciente vivem, vasabe-mos chamar as-sim, complexos energéticos que possuem certo grau de independên-cia, como se fossem entidades de vontade própria dentro de nós mesmos. Enquanto esses conteúdos inconscientes não forem perce-bidos e devidamente assimilados pelo ego, estarão sempre agindo na surdina, influenciando o comportamento, nos impedindo de sermos melhor do que somos, levando-nos muitas vezes a fazer coisas das quais nós mesmo nos envergonhamos e ocasionando males diversos.

É um monstro terrível esse inconsciente, um Godzilla que sempre destrói os planos da personalidade consciente? Não é bem as-sim. O inconsciente é imenso como o mar, é escuro como a noite  mas não é bom nem mau. Ele não tem moral e tudo que deseja, e vai conseguir de um modo ou de outro, é se manifestar, assim como a consciência, no mundo externo do indivíduo. O inconsciente possui

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conteúdos positivos e negativos, que podem ajudar ou prejudicar, dependendo da atenção que lhes dê o ego. Se o ego for um bom ge-rente, o inconsciente se tornará um importante aliado da personalida-de consciente vida afora.

Você já comeu o corpo de um inimigo vencido? Não? Eu tam-bém não. Mas algumas tribos guerreiras tinham esse hábito de, após vencer uma batalha, comer os corpos dos inimigos mais valentes. Nojento? Para nós pode ser mas, agindo assim, eles acreditavam in-corporar a coragem e a destreza do inimigo e, com isso, tornavam-se guerreiros mais fortes. Você pode não agir assim com seus inimigos de carne e osso, porém é isso que ocorre quando vencemos os desa-fios internos de nossa personalidade: o que antes era um inimigo traiçoeiro a nos emboscar no escuro do inconsciente finalmente jun-ta-se a nós e nos engrandece, nos equilibra e nos faz mais fortes e capazes.

hoje tem espetáculo

Talvez a analogia com as tribos guerreiras não tenha feito bem a seu estômago. Tentemos então pelo lado da arte.

Imaginemos a psique como um grupo teatral, composto de vá-rios atores. Quando a cortina se abre, porém, no palco há somente um único ator sob um facho de luz concentrada. O ator é o ego e a luz é a consciência. A consciência ilumina tudo o que toca, permitin-do que o ego, que está sempre em seu centro, veja, descrimine o que existe e decida o que fazer com o que descobriu. O próprio ego dirige o foco de luz da consciência, formando com ela quase que uma só entidade. Quase pois em certos momentos ela ilumina um pouco mais do que ele gostaria de ver.

O ego acha que está só no palco, realizando seu monólogo mas, atrás dele, na penumbra do fundo do palco, existem outros ato-res, uns quietos, outros a se movimentar, mexer na cortina. São os outros aspectos do ser. Estão lá, no escuro, porque lá a luz da consci-ência ainda não chegou e o ego, por isso, não reconhece sua existên-cia. São aspectos da personalidade que ainda não foram devidamente integrados à consciência. São conteúdos inconscientes porque o ego está inconsciente deles. Pode ser a agressividade ou um grande medo não reconhecido, pode ser um trauma da infância, uma grande culpa ou a sexualidade não assumida. Pode ser muita coisa  mas o ego

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não sabe desses aspectos ou finge não saber pois em algum momento decidiu que seria melhor não conviver com eles.

Esses atores da escuridão sabem que o ego é o ator principal mas eles também querem participar mais ativamente do espetáculo. Mesmo que não sejam oficialmente reconhecidos pelo ego, eles se movimentam na penumbra e isso mais cedo ou mais tarde acabará in-terferindo no andamento da peça. Quando isso ocorrer o ego terá a primeira noção de que não está sozinho no palco. Mas poderá insistir em continuar desprezando os colegas, fingindo que nada aconteceu. Quanto mais os desprezar, mais eles se esforçarão para aparecer, po-dendo forçar a barra e chegar ao cúmulo de se adiantar no palco e di-vidir a luz do refletor com o ego, para surpresa e embaraço deste. O ego, coitado, que em nenhum momento teve controle total sobre os rumos da peça, agora é obrigado a admitir abertamente que existe ou-tros ouou-tros atores e terá forçosamente de incluí-los em sua própria história.

Isso é apenas uma comparação, claro, mas é o que ocorre dia-riamente em nossas vidas. Pensamos que estamos agindo sozinhos mas outros aspectos que fazem parte de nosso eu total estão atuando também, algumas vezes contribuindo e outras vezes atrapalhando e até mesmo sabotando os planos de nossa personalidade consciente. A necessidade de autoconhecimento leva o ego a ampliar a luz da cons-ciência a fim de atingir outros pontos da psique total, à procura do que mais possa estar ali. É um trabalho delicado e custoso pois re-quer a coragem de encarar o que não se conhece em si próprio. Isso trará mudanças, inevitavelmente, e o ego não é muito chegado a mu-danças, preferindo sempre manter as coisas como estão. Mas não há outra forma da psique se equilibrar e da personalidade consciente ter mais controle sobre a própria vida. O ego precisará se transformar e, para isso, terá de ter grande honestidade consigo mesmo, paciência e perseverança.

Jogar a luz da consciência sobre nossos conteúdos inconscien-tes significa assumir outras parinconscien-tes de nós mesmos. Significa chamar os outros atores da peça para a luz dos refletores. Algumas dessas partes já suspeitamos que existem e, bem ou mal, convivemos com elas em nosso cotidiano. Outras partes, porém, por algum motivo, em algum momento da vida decidimos mantê-las na escuridão – são es-sas as mais difíceis de lidar pois, se por um lado essa decisão permi-tiu ao ego levar a vida como se essas partes não existissem, por outro

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lado lhes proporcionou a oportunidade de crescer e se desenvolver sem serem incomodadas. Por conta disso o ego sempre se assusta ao vê-las sair das sombras, crescidas e cheias de vontade, e vir dividir com ele a atenção da plateia.

tornar-se o próprio herói

Uma pessoa consciente de seu caminho de autorrealização sa-be perfeitamente que o processo exige um contínuo transformar-se e toda transformação traz algum tipo de crise. Essa pessoa sabe que di-alogar com suas outras partes e reconhecer que elas fazem parte do eu total não é trabalho fácil pois traz incertezas e angústias. Mas o processo de autorrealização da psique exige que a consciência se amplie para que a pessoa pare de brigar com seu próprio inconscien-te, ou seja, com ela mesma. Deixando de brigar com o que reprime dentro do ser, a pessoa se torna mais autoconsciente e equilibrada. Mais ou menos como Neo que, à medida que conhece seu potencial, vai treinando suas capacidades e assim consegue se movimentar me-lhor na Matrix.

Por outro lado, se a pessoa tem medo do que possa vir do es-curo do ser e continua reprimindo a própria natureza, a psique cedo ou tarde cobrará tal negligência, atrapalhando os planos do ego, for-çando-o a gafes e atitudes cada vez mais constrangedoras ou até mesmo provocando insucessos, acidentes e doenças – isso tudo para forçar o ego a parar um pouco e olhar para dentro. Esses mecanismos psíquicos fazem parte da capacidade de autorregulação do eu total, que só tem um único objetivo: realizar-se em sua inteireza, tornar-se a árvore futura. Mas isso será impossível se consciência e inconsci-ente não estiverem em harmonia.

O processo de autorrealização leva a consciência, necessaria-mente, a se ampliar. O que antes era um fio de superfície se trans-forma numa área maior, trazendo à luz conteúdos inconscientes que levavam vida independente mas que agora estão bem integrados à consciência. Ao longo do processo a pessoa lidará mais harmonio-samente com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. Será como Neo que, a partir do momento em que entende verdadeiramen-te quem é, deixa de ser iludido pela Matrix e percebe que, em vez de ser manipulado, pode fazer o que bem quiser.

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heróis de nossas próprias vidas. Devemos descobrir quem somos e o que devemos fazer – isso é o processo de autorrealização. E ele é como as melhores aventuras do cinema: tem um enredo criativo e cheio de reviravoltas, um herói cativante, inimigos terríveis, perigos e armadilhas por todo lado, suspense de arrepiar, romances... E o que é mais incrível: é real! Não está acontecendo na tela mas em nossas próprias vidas!

Mas antes é preciso despertar. Abrir a porta que dá para o mundo interior. Seguir o coelho branco.

Bem, acho que basta de treinamento. Já estamos prontos para monitorar nosso herói. Então vamos lá. As luzes já foram apagadas. Desligue o celular e se acomode na poltrona. O filme vai começar.

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II

Toc, toc, toc... Acorde, Neo!

seguindo o coelho branco

A primeira cena de Neo o mostra em seu pequeno apartamento, adormeci-do sobre a mesa. Um ruíadormeci-do no computaadormeci-dor chama sua atenção. Sonolento, ele observa que alguém tenta se comunicar. A mensagem na tela diz: “A-corde, Neo...” Ele não entende. Surge outra mensagem: “Siga o coelho branco”. Intrigado, hesita ante o teclado e lê a mensagem seguinte: “Toc, toc, toc...”.

Neo escuta batidas na porta e, confuso, vai abrir. São amigos que foram buscar uma encomenda e o convidam para uma festa. Ele pensa em recu-sar mas vê um coelho branco tatuado nas costas da garota e aceita. Na festa uma desconhecida chamada Trinity se aproxima e, sussurrando em seu ouvido, diz que sabe de suas noites mal-dormidas, de suas dúvidas e da pergunta que o move. Neo escuta surpreso. Como ela sabe tanto sobre sua vida?

O processo de autorrealização é um impulso natural da psique. De modo geral, ele se manifesta primeiramente através de algum tipo de curiosidade, dúvida ou insatisfação pessoal. É preciso que haja al-gum incômodo para que o indivíduo se sinta impulsionado a agir. Es-ta é a isca que a psique utiliza para atrair a atenção do ego, a persona-lidade consciente, para a questão. Um ego acomodado em seu mun-dinho de interesses imediatistas jamais terá motivação para buscar outros níveis do eu total. É necessário que uma força maior que o

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e-go, justamente o eu total, agite as águas do fundo do oceano inciente e faça com que as ondinhas cheguem até a superfície da cons-ciência, incomodando o ego. É preciso sacudir o ego e despertá-lo. É hora de ação. É preciso transformação!

No caso de Neo, ele desconfia que há algo errado com a reali-dade. Em suas buscas na internet, colhe pistas vagas sobre a existên-cia de uma tal Matrix e tem curiosidade sobre um sujeito chamado Morfeu, que é considerado um perigoso fora-da-lei. Algo o atrai e fascina nesse homem: ele parece ser forte, inteligente e destemido e desafia as autoridades em ações ousadas, sempre desaparecendo em seguida. Depois surgem aquelas mensagens no computador, a coin-cidência do coelho branco tatuado... E agora essa intrigante garota Trinity que sabe muita coisa sobre ele. Afinal, o que está acontecen-do?

A curiosidade em relação ao que seja essa tal Matrix traz in-quietação à vida de Neo. É a imagem do Graal que surge para os ca-valeiros de Artur, impelindo-os a buscá-lo na floresta. É o início do processo. E é assim que também ocorre com todos nós. As mensa-gens de Trinity no computador representam, no processo de autoin-vestigação psicológica, o primeiro contato com o inconsciente. Todo início é assim, confuso e feito de pistas e indícios sem consistência. São ideias sobre nós mesmos e nossas vidas que surgem no pensa-mento e ficam a nos instigar. Se até então o ego nunca precisou vol-tar a atenção a outros aspectos do ser, agora, porém, ele tem de aban-donar seu mundo seguro se quiser descobrir o que o inquieta.

É bastante significativo o fato de que a primeira cena de Neo o mostra em seu quarto, pequeno e fechado, um ambiente escuro e claustrofóbico. Em nossas vidas é exatamente assim que o ego se comporta, fechado e acomodado em si mesmo. O ego tende a ser e-gocêntrico. O processo do despertar, porém, exige que o ego aban-done a segurança do quarto em que sempre viveu e saia para conhe-cer o mundo, ou seja, outros aspectos do ser total. Visto por este ân-gulo, torna-se bem emblemática a primeira frase dirigida ao nosso herói: “Acorde, Neo!”

Então começam as transformações para o ego. De repente a vida não é mais tão tranquila como antes, as certezas já não são tão certas e algumas coisas não funcionam tão bem quanto funcionavam. De repente nos sentimos incomodados, agindo de modo estranho e desconfiando de certas ideias que sempre foram indiscutíveis. A

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no-ção que temos de nós mesmos, segura e inquestionável, começa a se mostrar não tão verdadeira assim. De repente parece que há algo er-rado com o mundo.

Na verdade nada está errado com o mundo. O mundo é o que é. Nós é que estamos diferentes e, exatamente por isso, começamos a entender o mundo de maneira diferente. É bom nos acostumarmos logo: cada vez que nos transformamos, o mundo também se trans-forma. Nada mais natural, afinal fazemos parte do mundo, não é? É como se tudo fossem espelhos a se refletirem o tempo todo: por me-nor que seja nossa mudança pessoal, ela será refletida pelos outros.

Uma vez que o processo de autorrealização começa a se mani-festar, será impossível prosseguir sem se transformar pois para atin-gir novos níveis de realização, teremos de descobrir quem na verdade somos. Não poderemos mais nos enganar em relação a nós mesmos. Quem se descobre, naturalmente se transforma.

Em certos casos é uma relação amorosa que provoca esse in-cômodo inicial pois o parceiro parece possuir uma certa capacidade de nos fazer descobrir coisas desagradáveis sobre nós mesmos. Isso nos indispõe com ele mas por mais que arrumemos um culpado para nosso mal-estar, já não é mais possível fazer de conta que ele não e-xiste. O incômodo está lá, feito um espinho em algum lugar da alma, e é uma questão de tempo entendermos que o que verdadeiramente incomoda está em nós mesmos e não em outra pessoa ou em certas situações.

Você já experimentou uma sensação parecida com essa, lem-bra? Foi na adolescência, quando começou a deixar de ser criança e estava se transformando em algo diferente. Tudo mudava em você, seu corpo, suas ideias, as atitudes e a própria maneira de ver o mun-do. Era como se você estivesse deixando de ser você para ser um ou-tro você, sem no entanto deixar de ser você mesmo.

A adolescência é um bom exemplo do tipo de transformação que aguarda aqueles que seguirão o coelho branco em suas vidas. A diferença é que enquanto na adolescência estamos construindo ver-dades e conceitos que a partir daí nortearão nossas vidas, agora o chamado interior do autoconhecimento exige que nos desfaçamos de nossas próprias verdades se quisermos prosseguir.

A pessoa precisa reconhecer outros aspectos do ser mas se o fizer deixará de ser quem sempre foi. Isso soa como morte para o e-go. Exatamente por esse motivo é que nunca aceitamos muito bem a

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própria transformação. primeiras repressões

Na manhã seguinte Neo acorda tarde e chega atrasado ao trabalho. Seu superior o repreende e o aconselha a se adequar às normas da empresa. Ele o acusa de se achar melhor que os outros e ter problemas com a autori-dade e o ameaça de demissão. Neo escuta e, temeroso, nada responde. Na janela, pelo lado de fora, um funcionário limpa a vidraça.

O processo já foi iniciado. As águas profundas do inconsciente já foram agitadas e as ondinhas alcançaram a praia da consciência. Incomodado, o ego agora terá de abandonar sua antiga e tranquila posição caso deseje satisfazer a curiosidade, dissipar suas dúvidas ou parar com seu sofrimento.

Se a autorrealização é um impulso natural da psique, por outro lado existe uma força que vem da própria sociedade e que sempre tenta barrar esse impulso, desaconselhando, a princípio sutilmente, aqueles que começam a se diferenciar e agir fora do padrão.

Mas que amiga da onça! Por que ela faz isso? Por uma questão de sobrevivência da própria sociedade pois é melhor que todos ajam e pensem de forma parecida, feito uma boiada  assim é mais fácil se organizar. Tal estratégia repressora é natural e eficiente para a sobre-vivência de qualquer espécie mas tem um custo: a anulação do indi-víduo e a negação de sua singularidade. Para a sociedade o que im-porta é que o indivíduo se comporte como uma peça da engrenagem social e cumpra com seu papel para que ela funcione perfeitamente e se mantenha a si mesma.

Quando ocorre o impulso da diferenciação temos então um en-contro de forças, uma vindo do indivíduo e a outra da sociedade, em forma de cultura, leis e padrões de comportamento. O conflito é ine-vitável. O indivíduo que tenta se diferenciar age como o náufrago que quer escapar da correnteza do mar: ele deve alcançar as ondas que o levarão à terra firme mas a tarefa é difícil pois terá que lutar contra o oceano que o puxa para si, contra o medo de desafiar algo tão grande e contra seu próprio cansaço.

Aqui, mais uma vez, nos lembramos da adolescência quando usávamos roupas e penteados diferentes para, inconscientemente, de-safiar os mais velhos. Queríamos ser diferentes deles e, ao mesmo tempo, precisávamos ser iguais aos da nossa turma. Essa procura por identidade leva os adolescentes a criar padrões de comportamento

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que os ajudam a se estabelecer no meio cultural em que vivem. É um tipo de diferenciação, sim, mas ainda não se trata da diferenciação psíquica de que estamos falando.

O adolescente está construindo sua identidade própria e para isso precisa copiar dos outros, de preferência de seus amigos e seus ídolos, o que faz com que ele entre para uma turma que se veste, fala e se comporta igual, um grupo que o aceita e se reforça com sua pre-sença  uma onda a qual o adolescente se une. Por outro lado, a pes-soa adulta que, obedecendo ao primeiro impulso rumo à autorrealiza-ção, tenta se diferenciar da massa, não tem como prioridade construir uma identidade pois, bem ou mal, já a possui. Seu objetivo é escapar do movimento quase hipnótico da massa para poder, com calma, ava-liar melhor o que está ocorrendo em sua alma e analisar suas inquie-tações. Por isso é que ela precisa fugir da correnteza que a faz girar e girar sem se questionar.

A correnteza é a cultura. Nascido dentro dela, o indivíduo está impregnado, até o último fio de cabelo, de leis, ideias padronizadas e modelos de comportamento. Para se dedicar mais a seu mundo inter-no e dar atenção ao que inquieta seu espírito, ele terá necessariamen-te de sair da onda, se afastar um pouco do mundo exnecessariamen-terior. Para isso, terá de mudar de hábitos. Terá de se transformar.

Mas não será fácil. Aqui surgem as primeiras dificuldades pois a sociedade age como a Matrix, acionando suas forças repressoras e detectando com rapidez aqueles indivíduos que começam a se dife-renciar e se movimentar fora do movimento padrão da massa. É co-mo se eles representassem um perigo para o funcionamento normal da engrenagem  o que é verdade.

A repressão, a princípio, costuma vir em forma de recados su-tis: são os olhares desconfiados, as desaprovações e as censuras. É como se sociedade nos repreendesse: “Para que fazer diferente se até agora a coisa vem funcionando?” Se continuarmos, os recados volta-rão mais fortes. Podemos desafiá-los abertamente ou sermos mais su-tis. Neo prefere a segunda opção. Isso não significa que ele desistiu, apenas que entendeu as regras do jogo. O herói começa a enxergar o mundo através de janelas mais limpas.

Dessa vez o herói se safou, o preço a pagar não foi tão alto. Mas o impulso da diferenciação continuará, cada vez mais forte. E o preço subirá.

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seguindo a intuição

Após escutar a ameaça de seu superior, Neo vai para sua sala e recomeça o trabalho. Um funcionário lhe entrega uma encomenda. É um celular que, para sua surpresa, logo toca. Neo atende e descobre que quem fala é Mor-feu, por quem tem tanta curiosidade e fascínio.

Morfeu o avisa do perigo que corre e o orienta para que possa fugir dos a-gentes. Neo está confuso mas obedece. Morfeu explica que ele tem duas opções: ou tentar escapar pela janela ou se entregar aos agentes. Angusti-ado, Neo anda pelo parapeito mas olha para baixo e a vertigem o domina. O celular cai de sua mão. De repente percebe a grande loucura que está fa-zendo e se entrega, sem saber por que estão à sua procura.

Durante a jornada de autorrealização nos encontraremos mui-tas vezes em situações onde é a intuição que nos aponta o caminho a seguir. O caminho é novo e desconhecido e olhamos para ele com medo pois jamais o percorremos antes. De um lado a sociedade nos aconselha com suas regras tradicionais mas, por outro lado, a intui-ção sussurra que nosso caminho é outro.

O ego se vê num dilema. Estamos em conflito com nós mes-mos pois uma parte de nós sabe que precisames-mos arriscar e a outra parte tem medo. Intuímos o que temos de fazer mas nos faltam for-ças. Nesse momento crucial o ego está sendo testado: uma viagem, uma troca de curso ou emprego, um término de relacionamento, uma atitude diferente... O ego se encontra diante de um portal e a intuição lhe diz que deve cruzá-lo, que isso é muito importante... Muitos até que tentam, pondo em risco coisas importantes, mas, da mesma for-ma que Neo, sentem ufor-ma espécie de vertigem e recuam, preferindo voltar.

Vertigem é medo de altura. É isso que ocorre nesses momen-tos: temos medo de nos soltar das amarras das seguranças já conquis-tadas e, com isso, não alçamos vôo. O ego está inseguro no início da jornada e desiste logo às primeiras dificuldades, preferindo não arris-car o novo e desconhecido. A pessoa retorna aos afazeres cotidianos e tenta esquecer a sensação de derrota, abrigando-se na segurança do que já conhece. O portal se abriu mas o vislumbre da liberdade que esse momento oferece às vezes nos é assustador. Liberdade requer responsabilidade e é por isso que a maioria desiste pois ser livre tem seu preço e nem todos estão dispostos a pagar. Mas o portal se abrirá outra vez.

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Neo não vê quem lhe fala. É apenas uma voz misteriosa mas que soa amigável e parece querer orientá-lo – uma analogia perfeita para a intuição e seu modo de trabalhar. A intuição é uma das fun-ções psicológicas de que dispomos para nos guiar vida afora, nos permitindo perceber as possibilidades inerentes à situação. É uma função irracional pois apreende a realidade instintivamente, através do inconsciente, sem a participação do pensamento lógico conscien-te. É a intuição que nos fornece súbitas revelações, perspectivas dife-rentes sobre a realidade. De repente intuímos, sem uma lógica apa-rente, que é melhor seguir por aqui e não por ali e isso, depois, se re-vela a decisão correta. Qual foi a sensação, o pensamento ou o sen-timento que nos levou a tomar tal decisão? Nenhum deles. Foi outra coisa. Foi um entendimento súbito e instintivo da totalidade da ques-tão.

Diante da necessidade de escolha, geralmente decidimos se-guindo a lógica do pensamento racional: irei por esta calçada pois as-sim caminharei na sombra. Às vezes, porém, algo parece nos impelir na direção contrária à lógica racional, como se uma parte de nós cap-tasse algum aspecto importante, mas invisível, da questão. Se a razão enxerga parte por parte, separando, discriminando e julgando, a intu-ição apreende o todo de uma vez. É como se ela estivesse em contato com todos os aspectos da questão mas não pudesse explicar um por um: ela passa um entendimento instantâneo e geral.

Podemos dizer que a intuição é uma função psicológica de ca-ráter holístico pois nos conecta com o todo, ou seja, a totalidade ao redor (pessoas, coisas, fatos etc.) e também a totalidade de nós mes-mos. Ao redor, a intuição percebe aspectos que o pensamento, as sensações ou os sentimentos não captam e nos fornece dados valio-sos para a nossa decisão. E em relação a nós mesmos, a intuição nos faz considerar aspectos do ser que estão além da percepção do ego, da mente racional. Dessa forma, pensamos e agimos de acordo com tudo o que somos, consciência e inconsciente. Isso significa que a in-tuição nos ajuda a ser mais abrangentes e verdadeiros com nós mes-mos e, assim, nos faz agir mais harmoniosamente com o mundo ao redor.

Confiar e agir seguindo a intuição não significa desprezar o pensamento lógico, os sentimentos e as sensações pois eles também são importantes. O que ocorre é que às vezes essas funções são insu-ficientes e, por isso, nos levam a tomar a decisão errada, ou se

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