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Acionistas Do Nada Quem So Os Traficantes de Drogas

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ACIONISTAS DO NADA

QUEM SÃO OS TRAFICANTES DE DROGAS. ORLANDO ZACCONE D'ELIA FILHO

Editora Revan

Sumário

PREFÁCIO 7

AGRADECIMENTOS 9

CAPÍTULO 1 Introdução: Definindo os traficantes de drogas ilícitas 11

CAPÍTULO 2 Controle social, discurso jurídico e seletividade punitiva no tráfico de drogas ilícitas 27

2.1. As teorias da reação social 41

2.2. O estereótipo e a estigmatização 56

2.3. Os olhares revisionistas 62

CAPÍTULO 3 Drogas maquiavélicas - quando a política cria a guerra 75

3.1.A proibição das drogas 79

3.2. Lei e Ordem: a guerra contra as drogas 88

CAPÍTULO 4 A indústria da criminalização das drogas 105

4.1.A sociedade pós-moderna e a guerra contra as drogas 109

4.2. O traficante: um ser do mal - o imaginário social 118

CONCLUSÃO 5 Limitando a violência seletiva na criminalização das drogas ... 127 PREFÁCIO

Este livro de Orlando Zaccone aprofunda o debate sobre os efeitos da nossa política criminal de drogas numa perspectiva inovadora. Do lado mais duro da trincheira do capitalismo de barbárie, trabalhando como delegado de polícia no Estado do Rio de Janeiro, Zaccone lança o olhar crítico sobre o maior vetor de

criminalização dos novos tempos: o comércio de drogas ilícitas. Seu trabalho, carregado da verdade dolorosa do dia-a-dia, é impregnado de imaginação sociológica e sensibilidade histórica, tudo aquilo que falta em grande parte nas ciências sociais ao abordar o assunto. Não é interessante constatar que a intelligentsia policial pode assegurar uma visão crítica da questão criminal, enquanto a sociologia politicamente correta se "policiza"?

Talvez Orlando Zaccone tenha compreendido mais do que ninguém (porque o fez com a própria pele) as diferentes atribuições de estigmas quando o assunto é drogas. Que outra razão explicaria a concentração de registros de ocorrência de tráfico de drogas de uma região para outra? Ele explica e comprova através da sua experiência na aplicação do direito penal nas delegacias do Rio: nas áreas pobres o comércio varejista de drogas ilícitas é exercido por traficantes, nas áreas ricas é aplicada a solução abolicionista de respostas à situação problema. Em Jacarepaguá o jovem favelado aparecerá hediondamente, como inimigo público número 1, sujeito às penas mais duras, nas condições mais adversas; na Barra da Tijuca o tráfico fluirá com baixas taxas de

criminalização, com pouquíssimos inquéritos policiais.

Este sistema desigual de atribuições de estereótipos, descrito magistralmente por Rosa del Olmo, é demonstrado pelo trabalho de Zaccone, que realiza uma atualização das teorias do labeling approach no Brasil, retomando as trilhas sábias de Augusto Thompson. Tanto Thompson como Zaccone aproveitaram a penosa prática da gestão da segurança pública para produzir uma teoria revigorada e encarnada, na perspectiva do realismo marginal proposto pelo nosso ministro Raúl Zaffaroni. Alessandro Baratta já havia nos ensinado sobre a importância do rotulacionismo como ponto mais avançado da criminologia liberal, tendo produzido uma ruptura criminológica com os paradigmas positivistas e funcionalistas que o antecederam o labeling approach,

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ou rotulacionismo, produziu a criminologia da reação social com um deslocamento de seu objeto, do

"delinqüente" ou do desvio para a "definição do delito", recuperando o melhor do penalismo liberal. Essa

importante escola demonstrou que a questão criminal só pode ser analisada através da ação do sistema penal, pela reação das instâncias oficiais às situações problemáticas e por seu efeito estigmatizante. Para o

rotulacionismo o criminoso não é um ponto de partida, mas sim realidade socialmente construída, implicação do processo social intitulado de criminalização secundária. No paradigma da reação social a intervenção penal não tem efeito reeducativo, mas determina a consolidação da identidade desviante.

Através das conclusões dos estudos dos crimes de colarinho branco realizados por Sutherland, apareceram as cifras negras, as distorções estatísticas, o falso quadro da distribuição da criminalidade, concentrada sempre nos mais pobres e/ou resistentes. Entre a criminalidade latente e a perseguida, um poderoso filtro vai atribuir diferentes significados, estereótipos e respostas penais.Trata-se de compreender a ação seletiva das instâncias penais com um grande dispositivo de criminalização.

É esta discussão e essa prática que aparece renovada pelo trabalho de Orlando Zaccone. Ele demonstra que, ao contrário do que apregoam os preconceituosos "policiólogos", a intelectualidade da polícia pode estar na vanguarda da reflexão criminológica quando alia a verdade e o conhecimento da sua realidade com a reflexão crítica sobre o sistema penal e suas funções para o desenvolvimento do capital neoliberal. A criminologia de Orlando Zaccone apresenta todos os elementos e possibilidades para a construção de outras políticas de segurança, com uma polícia menos vulnerável, menos exposta, mais qualificada e mais próxima do seu povo.

Vera Malaguti Batista Rio de Janeiro, junho de 2006.

AGRADECIMENTOS

O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz de imparcialidade. Só

acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista. (Nélson Rodrigues)

A pretensão de imparcialidade do conhecimento científico nos é transmitida, ainda quando meninos, nos bancos escolares. Os métodos positivistas, entre eles o experimental, nos fazem acreditar que a realidade existe, para o bem ou para o mal, enquanto um dado pré-constitucional à própria produção científica, e que o conhecimento não pode estar atrelado a nenhum interesse político, sob pena de contaminação e distorção. Enfim, a pureza da imparcialidade científica!

No campo das políticas de segurança pública o delírio positivista faz com que as estatísticas ganhem terreno autônomo na análise do fenômeno criminal e até na aferição da produtividade policial. O crime, o criminoso e a própria polícia passam a ser observados pela "letra fria" dos números. Não é por menos que os gestores da segurança pública ao se lançarem candidatos a cargos eletivos enumeram as apreensões de armas, as prisões e até as mortes resultantes das ações policiais como um dado inquestionável de eficiência. Esquecem os defensores da realidade intocável que os números não existem independentes de uma análise interpretativa, de que somente os homens com seus interesses historicamente construídos podem concluir acerca, por exemplo, de um crescimento no número de pessoas encarceradas, no aumento da quantidade de armas apreendidas e,

principalmente, nos elevados índices de cidadãos mortos, de todos os lados, nos confrontos com a polícia. Ponto a favor ou gol contra? Eficiência ou fracasso? Dever ou desvio? Estas conclusões dependem, inexoravelmente, de uma tomada de decisão política.

O presente trabalho não se pretende imparcial na análise dos números e da realidade que envolve a chamada "guerra contra as drogas" na cidade do Rio de Janeiro. Muito pelo contrário, analisa as práticas

punitivas na repressão ao tráfico de drogas ilícitas partindo da premissa de que esta política criminal é irracional ao produzir danos maiores do que aquilo que pretende proteger', ocultando sua verdadeira função de punir os pobres, ao segregar os estranhos da era do consumo. É neste ponto que quero chegar. Sou eternamente grato aos professores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista, que, mesmo remando contra a maré, conseguiram estabelecer e coordenar, no período entre 1999 e 2005,0 curso de mestrado em ciências penais da Universidade Cândido

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Mendes, capaz de fornecer um aparato de conhecimento crítico para aqueles que, sem perder a ternura jamais, ainda sonham em continuar a exercer alguma atividade no chamado sistema penal. Não fossem eles, nada seria revelado.

Neste momento histórico, em que nosso país se vê diante de crescentes demandas punitivas, criadas e reforçadas por um sentimento de insegurança desenvolvido a partir da falência do atual modelo

socioeconômico, o pensamento e a liderança dos professores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista são como uma trincheira de resistência para aqueles que ainda ousam defender a verdade dos oprimidos.

BATISTA, Nilo. "Política Criminal com derramamento de sangue". In: Discursos Sediciosos n2-' 5/6.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 77. CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO:

DEFININDO OS TRAFICANTES DE DROGAS ILÍCITAS

A delinqüência, ilegalidade dominada, é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes. (Michel

Foucault)

O Fundo Monetário Internacional calcula que o chamado crime organizado movimenta, por ano, 750 bilhões de dólares, sendo que 500 bilhões de dólares são gerados pelo "narcotráfico"2. No comando deste grande negócio é identificada, em seu aspecto político e legal, a figura do "narcotraficante", cujo estereótipo, construído pelo discurso oficial e divulgado pela mídia, aponta para o protótipo do criminoso organizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa legislação outrora como "entorpecente" e hoje, genericamente, como "droga".

Toda a atual política de repressão ao comércio de drogas ilícitas está voltada a combater este "inimigo" da sociedade que, já no final dos anos noventa, representava em torno de 60% da população carcerária no Estado do Rio de Janeiro3.

Como delegado de polícia, atuando há pouco mais de seis anos na capital, acabei por encontrar uma realidade diversa daquela que nos é apresentada, diariamente, enquanto "verdade". Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres, com baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas

______________________________________________________________ 2

ROCCO, Rogério. O que é legalização das drogas? São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 72. 3

Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1998, p. 236. Do total de 12.072 presos no regime fechado, 7.398 tinham por motivo da condenação o tráfico de entorpecentes.

portar nenhuma arma. Desprovidos do apoio de qualquer "organização", surgem, rotineiramente, nos distritos policiais, os "narcotraficantes", que superlotam os presídios e casas de detenção.

O sistema penal revela assim o estado de miserabilidade dos varejistas das drogas ilícitas, conhecidos como "esticas", "mulas", "aviões", ou seja, aqueles jovens (e até idosos) pobres das favelas e periferias cariocas, responsáveis pela venda de drogas no varejo, alvos fáceis da repressão policial por não apresentarem nenhuma resistência aos comandos de prisão.

O fato de a imprensa e de as autoridades públicas darem grande destaque às prisões dos chamados "chefes" do tráfico, dedicando as primeiras páginas dos jornais e muitos esforços à captura dos "donos" do negócio relativo ao comércio de drogas, demonstra, por si só, a existência de um escalonamento. De um lado "grandes" traficantes, como Fernandinho Beira-Mar, e pouco mais de uma dezena de nomes considerados delinqüentes de alta periculosidade, para os quais são reservadas algumas celas nos presídios de segurança máxima; do outro, milhares de "fogueteiros", "endoladores" e "esticas" que, junto dos "soldados"- única categoria armada e responsável pela segurança do negócio - , assemelham-se mais à estrutura de uma empresa do que a de um exército, lotando as carceragens do estado.

Apesar de a própria Secretaria de Segurança admitir diferentes níveis de delinqüência ao tratar do tráfico4, a conduta de quem dispara fogos de artifício para avisar da chegada da polícia recebe o mesmo tratamento penal de quem tem o comando do negócio no varejo, bem como dos grandes produtores e daqueles

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respeitáveis

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A Subsecretaria de Inteligência da SSP/RJ passou a adotar, após o término da Operação Rio, em maio de 1995, a "Teoria dos 3 Níveis ou do Iceberg Invertido", desenvolvida pelo cel. Romeu A. Ferreira, que classifica a criminalidade no tráfico de entorpecentes em diferentes categorias.A teoria reconhece que o comércio ilícito de drogas nas favelas é a ponta de um iceberg invertido onde se concentra o maior número de pessoas que ficam expostas à repressão (criminalidade de nível 3), ao passo que os "novos ricos" e "os cidadãos acima de qualquer suspeita" estariam situados na criminalidade de níveis 2 e 1, que ilustrariam a ponta submersa (oculta) do

iceberg invertido.

empresários que financiam a produção e o comércio destas substâncias com todos respondendo, em abstrato, pelo mesmo crime.

Outra grande constatação ocorreu quando da minha transferência como delegado adjunto da 41' DP (Jacarepaguá) para a 16' DP (Barra da Tijuca). Em Jacarepaguá, responsável péla circunscrição que inclui comunidades como a da Cidade de Deus e a do Morro do São José Operário, a cada plantão realizava, no mínimo, um flagrante de tráfico, com diversas apreensões de drogas e armas pelo Batalhão da Polícia Militar. Ao contrário, em quase um ano como delegado de plantão na Barra da Tijuca, só lavrei um flagrante de tráfico que resultou na prisão de uma senhora de quase 60 anos.

A "delinqüente" revendia pequenas quantidades de maconha para alguns consumidores em Vargem Grande, dentro da sua própria residência, um casebre simples da região. O fato se tornou ainda mais peculiar, uma vez que a ocorrência foi conduzida por policiais militares, residentes na localidade, que, no seu dia de folga, resolveram proceder na luta contra o crime, pois não queriam aquele "tipo de comércio" próximo a suas moradias.

Diante dos fatos, se um pesquisador tivesse acesso às estatísticas policiais no Rio de Janeiro, chegaria à conclusão de que não existe tráfico de drogas ilícitas na Barra da Tijuca. O sistema penal realiza, assim, um duplo processo seletivo presente não só na questão das drogas, bem como na persecução de todos os demais comportamentos delitivos.

Inicialmente o Estado define em lei as condutas consideradas como crime, para, imediatamente após, selecionar as pessoas que irão responder por estes fatos. Exemplo dessa dupla seletividade nos é fornecido pelo ilustre criminólogo e penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, ao relacionar a prática do crime de falsidade ideológica a juízes que, diariamente, subscrevem declarações como prestadas na sua presença e nas quais jamais estão presentes'.

Em razão do cargo que ocupo, posso afirmar que boa parte dos autos de prisão em flagrante, lavrados nas delegacias de nosso

_______________________________________

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte

Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,p. 58.

estado e assinados pelas autoridades policiais, não tem a presença dessas mesmas autoridades, tipificando a conduta prevista no crime de falsidade ideológica. Porém, quantos juízes ou delegados de polícia respondem por esse crime?

Não estou com essa afirmação clamando pela punição dos delegados e juízes que, muitas vezes, por força do acúmulo de serviço, não podem estar presentes em todos os atos exigidos pela lei. Mas é o óbvio ululante, o óbvio dos óbvios, na expressão de Nélson Rodrigues, que o crime de falsidade ideológica não foi previsto para alcançar essas condutas.

No tocante ao delito de tráfico de drogas a seletividade punitiva pode, além da observação empírica, tal como na minha passagem pelas delegacias de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, ser comprovada pelas estatísticas de registros desse crime nas diversas unidades de polícia judiciária do Rio de Janeiro.

Para se ter uma idéia, no ano 2005, entre os flagrantes lavrados para apurar a conduta de tráfico de drogas ilícitas na Capital e Baixada Fluminense, todas as delegacias da zona sul reunidas, incluindo Botafogo, Copacabana, Ipanema, Leblon e Gávea, somadas à Barra da Tijuca (zona oeste), atingem aproximadamente um

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terço dos registros realizados somente na 34a DP, em Bangu. Observemos:

Mapa de ocorrências por detalhamento de delito tráfico de entorpecente (2005 DELEGACIA (ÁREA) FLAGRANT ES 34ª DP (Bangu) 186 36ª DP (Santa Cruz) 89 21ª DP (Bonsucesso) 83 32ª DP (Jacarepaguá) 73 62ª DP (Imbariê) 67 17ª DP (São Cristóvão) 63 TOTAL 561 ZONA SUL 15ª DP (Gávea) 17 10ª DP (Botafogo) 15 12ª DP (Copacabana) 14 ª DP (Leblon) 9 13ª DP (Ipanema) 5 16ª DP (Barra da Tijuca) 3 TOTAL 63

É mais do que evidente que os registros realizados pela polícia não correspondem à realidade da circulação e comércio de drogas ilícitas no Grande Rio; caso contrário, deveríamos acreditar que em Bangu existe um movimento de drogas três vezes maior que em toda a zona sul carioca e Barra da Tijuca, ou que em São Cristóvão circula a mesma quantidade de drogas que em todos os bairros da zona sul mais Barra da Tijuca.

Os números, no entanto, revelam algo muito mais concreto do que a própria realidade. A partir do mapa de registro, apresentado anteriormente, podemos estudar a opção política do Estado ao tratar da maior demonstração do exercício de poder a sua disposição, ou seja, o encarceramento. A isto nos referimos como seletividade punitiva.

Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um conjunto de agências que formam o chamado sistema pena16.

Na lição de Zaffaroni e Nilo Batista, o poder punitivo penal se traduz num processo seletivo de criminalização que se desenvolve em duas etapas denominadas, respectivamente, primária e secundária. _______________________________________________________

ZAFFARONI, Eugenio Raid e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro.

*Fonte do ISP (Instituto de Segurança Publica) Primeiro volume. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 43. A criminalização primária, exercida pelas agências políticas (poder legislativo), é o ato e o d'eito de

sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se de um

programa de punição a ser cumprido pelas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, juízes, advogados, agentes penitenciários).

A criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que se desenvolve

desde a investigação policial até a imposição e a execução de uma pena e que, necessariamente, se estabelece através de um processo seletivo.

A seleção punitiva ocorre uma vez que é impossível para os gestores da criminalização secundária realizarem o projeto "faraônico" de criminalização primária previsto em todas as leis penais de um país. Ou

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seja, não é possível ao sistema penal prender, processar e julgar todas as pessoas que realizam as condutas descritas na lei como crime e, por conseguinte, as agências penais devem optar entre o caminho da inatividade ou da seleção. "Como a inatividade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e procedem à seleção", concluem Zaffaroni e Nilo Batista, ressaltando que esse poder de seleção corresponde, fundamentalmente, às agências policiais.

Opera-se, portanto, uma inversão total da estrutura formal do aparelho repressor.A magistratura e o Ministério Público passam a ter delimitadas as suas faixas de atuação pela polícia, que, na realidade das práticas informais, decide quem vai ser processado e julgado criminalmente:

Exatamente ao reverso do que apregoa a ideologia, é a policia quem controla a atividade do Judiciário, pois este só trabalha com o material concedido por aquela. Graças a isto pode o Judiciário manter uma

aparência de isenção e pureza, uma vez que a parte ostensivamente suja da operação discriminatória se realiza antecedentemente à sua atuação'.

___________________________________

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Amen Júris, 1998, p. 87.

Em se tratando de segurança pública, não são os índices que determinam a política, mas a política que determina os índices. Assim, os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia

judiciária do que a realidade criminal, conforme observação do coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira ao destacar o comentário de Lola Anyar de Castro de que a cifra oculta da criminalidade enfraqueceu o papel das estatísticas como fonte precisa de interpretação do fenômeno criminal : "Uma multiplicação de delitos nas estatísticas pode significar somente uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência dos tribunais e não que a delinqüência tenha aumentado".

Todavia, de que forma o sistema penal realiza a seleção das pessoas que vão responder pela conduta prevista como tráfico de drogas ilícitas?

A criminologia crítica incumbiu-se da análise da chamada "cifra negra", isto é, do estudo daqueles delitos cometidos na sociedade que nunca chegam ao conhecimento das autoridades constituídas e de outros que, apesar de gerarem um procedimento investigatório, não resultam em processo criminal.

Quem melhor explica a categoria "cifra oculta da criminalidade" é a criminóloga venezuelana Lola Anyar de Castro, que, em seu livro Criminologia da reação social, distingue a criminalidade legal da aparente e da real. A criminalidade legal seria aquela que aparece registrada nas estatísticas oficiais, já a criminalidade aparente é toda aquela que é conhecida por órgãos de controle penal (polícia, Ministério Público, juízes etc.), ainda que não apareçam nas estatísticas por diversos motivos, como, por exemplo, a falta de sentença, a desistência da ação, autoria não identificada, arquivamento, entre outros. Por fim, temos a criminalidade real, que é a quantidade de delitos verdadeiramente cometidos em um determinado momento. Afirma Lola Anyar: _________________________________________

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. °futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova policia. Rio de janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 227.

Entre a criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos que jamais serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina cifra obscura, cifra negra ou delinqüência oculta. A diferença entre a criminalidade real e aparente seria, pois, dada pela cifra negra.9

Quatro fatores preponderantes servem para explicar o fenômeno, como nos mostra o criminólogo brasileiro Augusto Thompson". São eles: a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do criminoso construído pela ideologia prevalente; a incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção ou prevaricação; e a vulnerabilidade à violência.

O espaço em que se opera a venda de drogas ilícitas na zona sul e Barra da Tijuca é completamente distinto de outras regiões, como Jacarepaguá, Bangu e Bonsucesso. Os grandes pontos de venda de drogas ilícitas na Barra, por exemplo, se localizam em áreas residenciais de acesso privado, como apartamentos e condomínios, espaços onde a polícia não tem entrada franqueada. Imagine a proposta de se policiar

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tráfico de drogas!

De forma distinta encontra-se o espaço onde circula a mercadoria ilícita nas favelas do Alemão e Cidade de Deus, onde a polícia, ainda que de forma limitada, tem acesso livre às vielas e becos onde ocorre o comércio ilegal das drogas. A polícia não enxerga um palmo além do espaço público! - como conclui

Thompson:

As classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais fechados; os indivíduos marginalizados vivem a céu aberto. Compreende-se, por isso mesmo, haver muito mais probabilidade de serem os delitos dos miseráveis vistos pela polícia do que os perpetrados pela gente de posição social mais elevada. Como conseqüência, idênticos comportamentos, dependendo do estrato a que pertence o sujeito, mostrarão variações quanto a gerar o reconhecimento de serem criminosos.

____________________________________________________ 9

DE CASTRO, Lola Anyar. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 68. 10

THOMPSON, op. cit., p. 60.

Também responsável pela "cifra negra" é a adequação do autor ao estereótipo do criminoso. Crime e miséria têm sido constantemente associados. Setores ditos progressistas consideram, ainda hoje, a pobreza como causa do crime, sendo que o primeiro traço definidor da imagem do delinqüente é o seu status social. Afirmar que o criminoso é caracteristicamente pobre facilita inverter os termos da proposição para afirmar que o pobre é caracteristicamente criminoso".

No que concerne ao crime definido como tráfico de drogas ilícitas, um breve olhar sobre os registros de ocorrência desse delito revela a posição social dos seus autores, como bem demonstrou o rapper MV Bill, morador da Cidade de Deus, ao desabafar: "Reparem nas roupas e nos dentes de todos os presos e dos detidos como traficantes nas favelas. São dignos de dó"12.

Lembro-me da passagem em que um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou, em flagrante, dois jovens residentes da zona sul pela conduta descrita para o usuário, porte de droga para uso

próprio, por estarem transportando, em um veículo importado, 280 gramas de maconha. Para se ter uma idéia do que isso representa em termos quantitativos, um bom cigarro de maconha tem um grama, segundo Bob Marley, o que equivaleria a 280 "baseados" do estilo jamaicano.

O meu amigo se convenceu de que a quantidade não era determinante para prendê-los no tráfico, uma vez que a forma com que a droga estava condicionada, dois volumes prensa dos, bem como

______________________________________________________

THOMPSON, Augusto. "Reforma da polícia: missão impossível". In: Discursos Sediciosos- Crime, Direito e

Sociedade n219/10. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 244.

12

MV BILL. "Quanto custa uma vida?". In: Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 11 junho, p.12.

o fato de os rapazes serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual traziam a droga para uso próprio, era pertinente. O delegado lavrou o flagrante e, em quatro páginas, fundamentou sua decisão, que autorizou a concessão da fiança e a liberdade provisória dos detidos, conforme a lei em vigor naquele momento.

O fato criou grande repercussão em nosso grupo, uma vez que o representante do Ministério Público após receber o inquérito resolveu denunciar os dois jovens no crime de tráfico de drogas, expedindo oficio à Corregedoria de Polícia Civil requisitando instauração de procedimento apuratório em relação à conduta do delegado. O tempo passou e o juiz competente para o processo, na sentença, condenou os dois réus,

desclassificando do delito de tráfico para aquele previsto para o usuário, seguindo o mesmo raciocínio da fundamentação do flagrante feito pelo delegado.

Ainda hoje tenho muito respeito por esse companheiro de profissão, já falecido, pela coragem

demonstrada na apreciação do fato, mas ainda me pergunto: será que a mesma postura seria por ele adotada se os jovens fossem negros e estivessem transportando a droga para uso próprio em um ônibus, ainda que

comprovassem trabalho e tivessem a ficha sem anotação?

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poderia imaginar, é indício de que a pessoa que é detida portando drogas corresponde à figura do usuário e não à do traficante. Não estou aqui fazendo nenhuma proposta de maior punição aos usuários que tenham renda suficiente para armazenarem grandes quantidades de drogas para consumo próprio. Como bem nos ensinou o professor Juarez Tavares, não se pode resolver injustiça social com injustiça pernil'. Caso contrário, estaremos nos enquadrando no comportamento a que a

______________________________________________ 13

TAVARES, Juarez. "Os limites dogmáticos da cooperação penal internacional". In: Princípios de

Cooperação Judicial Penal Internacional do protocolo do Mercosul. Revista dos Tribunais, 2000, p.174.

genial juíza Maria Lúcia Karam denominou "esquerda punitiva"". Porém, não podemos deixar de observar que o traficante tem uma cara predefinida.

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador da favela, próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda. Observa a criminóloga Vera Malaguti Batista'', que em seu livro Difíceis ganhos fáceis, consegue desvendar a seletividade punitiva nos arquivos do extinto Juizado de Menores. Aos jovens consumidores da Zona Sul aplica-se o

paradigma médico, através de atestados médicos que garantem soluções correcionais fora dos reformatórios, ao contrário do destino dado aos jovens das classes baixas, para os quais se aplica o paradigma criminal.

Outro fator utilizado na discriminação seletiva daqueles que se enquadram como traficantes é a incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção ou prevaricação. Conforme nos ensina Thompson, "só pode subornar quem dispõe de recursos (corrupção); só pode pedir para ser atendido quem goza de prestígio (prevaricação)"6. Talvez esse fator seja o que melhor explica o fato da captura dos chamados "chefes" do tráfico nas favelas ser tão comemorado pelo poder. "Quanto vale uma cabeça" é jargão utilizado com freqüência nos meios policiais e fazem referência ao valor a ser pago por um gerente ou "dono" do comércio de drogas nas comunidades pobres quando preso.

Entretanto, o poder econômico não protege a grande maioria dos envolvidos com o comércio de drogas ilícitas nas favelas e periferias da cidade. A partir dos anos 1980, com a sedi-

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14

KARAM, Maria Liicia."A esquerda punitiva". In: Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, n° 1. Rio de Janeiro: Relume-Durnará, 1996, p. 79.

15

BATISTA,Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 28. "THOMPSON, op. cit., p. 245.

mentação da política de "guerra" contra as drogas, a divisão do trabalho no comércio ilegal fez surgir a figura do "estica", aquele que resolve participar do negócio ilícito como revendedor da mercadoria.

Este "sacoleiro" das drogas ocupa a mesma posição dos camelôs e pivetes, sendo considerado bandido de 31 classe, uma vez que é sobre ele que recai a repressão punitiva. Isso explica, por exemplo, o aumento do número de mulheres e crianças envolvidas com o narcotráfico. Para ser "sacoleiro" de drogas não é preciso portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organização criminosa. Basta ter crédito junto aos fornecedores.

Autônomo no comércio ilegal, o "estica" é presa fácil, uma vez que não apresenta nenhuma resistência às ordens de prisão e passa a participar do negócio ilegal oferecendo a sua própria liberdade como caução. Desprovido do capital necessário para fazer parte como acionista do negócio ilícito, o "estica" se transforma em revendedor comissionado no comércio de drogas, oferecendo o único bem de valor que lhe resta, qual seja, sua própria liberdade de ir e vir. Uma breve pesquisa nos registros de flagrantes de tráfico de drogas revela, por exemplo, que muitas das prisões são realizadas quando a droga está circulando, estando o agente desarmado no interior de um ônibus'.

O espaço público, embora não citado por Thompson, também constitui fator de seletividade punitiva. Vemos que o Estado escolhe políticas de segurança levando em consideração não somente a incidência estatística da criminalidade. A política bélica de combate às drogas na favela da Rocinha - situada entre os

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bairros da Gávea e São

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R.O. 01174/2002 da 25' DP - Engenho Novo. 27/03/2002. Dinâmica do fato: Narra o comunicante que, na noite do dia 26/03/2002, cerca de 21:45h estava participando de uma blitz na Rua Ana Néri, no bairro São Francisco Xavier, juntamente com outros policiais militares, quando decidiu revistar a bolsa da nacional Leila Maria Gomes, que se encontrava no interior do ônibus 474 Jacaré - Jardim de Alá, logrando encontrar um tablete de maconha prensada na bolsa da conduzida.

Conrado, caminho obrigatório para quem vai da zona sul à Barra da Tijuca - não pode ser a mesma das favelas do Alemão e Juramento, localizadas nos subúrbios cariocas.

A escolha em relação às pessoas que são atingidas pela prática da conduta descrita como tráfico de substância entorpecente é algo irrefutável. Um simples olhar pelos milhares de presos condenados por esse crime revela que, apesar de participarem do comércio ilegal de substância entorpecente, não passam daquilo que o criminólogo norueguês Nils Christie denominou de "acionistas do nada'.

Ocupando a ponta final do comércio de drogas proibidas, "esticas", "mulas" e "aviões" ficam tão-somente com uma parcela ínfima dos lucros auferidos no negócio, quantia esta que nunca os levará a possuir participação real nas empresas que atuam no mercado ilegal das drogas. Sem propriedade, afastados de uma rede social que os proteja e privados até da própria honra, os varejistas das drogas ilegais, em nossa cidade, formam um contingente perigoso, levando o mesmo criminólogo a concluir: "Em todos os países

industrializados a guerra contra as drogas reforçou concretamente o controle do Estado sobre as classes potencialmente perigosa s" 19•

Não é difícil, para um observador crítico, concluir pela concentração do capital gerado pelo

narcotráfico nas mãos dos grupos conhecidos como máfias ou cartéis internacionais. O estudo da geopolítica das drogas, no entanto, aponta para outra premissa irrefutável: é impossível que um negócio, que movimenta mais de um bilhão de dólares ao dia, beneficie tão-somente meia dúzia de narcotraficantes internacionais. Surge, então, um problema: onde circula e quem se beneficia dos bilhões de "narcodólares" produzidos nesse mercado proibido?

______________________________________________ 18

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56. 19 Idem, p. 61.

Os jornalistas José Arbex Jr. e Cláudio Júlio Tognolli retratam com brilhantismo o casamento entre capital e drogas":

O banqueiro saudita Gaith Pharaon, à época um dos quinze homens mais ricos do mundo, declarou, em Buenos Aires, que todos os grandes bancos lavam dinheiro do narcotráfico, incluindo instituições como o First Bank of Boston e o Credit Suisse. Pharaon se ressentia do fato de que apenas o seu Bank of Credit and

Commerce International, estopim de um grande escândalo financeiro em 1992, fosse citado com freqüência por suas vinculações com o narcotráfico. Pharaon era também dono de uma cadeia de supermercados na França, acionista da rede mundial do Club Mediterranee e da rede de hotéis Hiatt, de cinco estrelas. Entre seus amigos estavam homens ilustres, como o presidente Carlos Menem, da Argentina. Tudo isso faz com que suas

declarações adquiram uma importância especial e permite que se vislumbre um pouco da hipocrisia dos

capitalistas que se comportam, publicamente, como donzelas indignadas contra o crime organizado e as drogas. Quando o assunto é o comércio de drogas ilícitas, o legal e o ilegal aparecem mesclados de forma indivisível e, como diz o mestre Eugenio Raúl Zaffaroni, a seletividade punitiva não é de toda arbitrária e se orienta pelos padrões de vulnerabilidade dos candidatos à criminalização, que, nesse caso, são as empresas mais débeis, presas fáceis da extorsão2' e, na cidade do Rio de Janeiro, são representadas pelo tríduo

PRETO-POBRE-FAVELA.

Segundo o criminólogo e penalista argentino, esta seletividade exerce uma função de excluir da competitividade do mercado este

(10)

______________________________________ 20

ARBEX JR. Jose e TOGNOLLI, Cláudio Júlio. O século do crime. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996, p. 213.

21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. "Crime organizado: uma categorização frustrada". In: Discursos Sediciosos -

Crime, Direito e Sociedade, n2 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p. 45.

setor debilitado, convertendo o sistema penal num fator de concentração econômica, que não importa na

exclusão das atividades ilegais do mercado, senão somente sua concentração junto às atividades legais. Assim, o atual modelo repressivo acaba por realizar uma função de intervenção no mercado. Os varejistas são retirados da competitividade do comércio ilegal, aumenta-se a corrupção na periferia e concentram-se os lucros do negócio ilícito junto às atividades legais, responsáveis pela lavagem do dinheiro obtido com o comércio das drogas proibidas.

Ainda sem considerar os interesses transnacionais presentes no atual modelo bélico, que assegura a presença militar americana nos países do eixo-sul, em especial naqueles em cujos territórios encontra-se a Floresta Amazônica, a atual política criminal de "combate" às drogas, longe de eliminar o comércio das substâncias consideradas entorpecentes, acaba por reforçar e concentrar o grande negócio do tráfico nas mãos dos grandes grupos econômicos e financeiros.

Com efeito, temos diante da seletividade punitiva da "guerra" contra as drogas aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman denomina criminalização dos consumidores falhos, ou seja, daquela massa de excluídos que não tem recursos para acessar o mercado de consumo - "aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos"22. Nesse ponto reside a única racionalidade do modelo bélico de repressão ao tráfico de drogas ilícitas: punir os pobres, segregando os "estranhos" do mundo globalizado.

______________________________________________

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 57.

CAPÍTULO 2

CONTROLE SOCIAL, DISCURSO JURÍDICO E SELETIVIDADE PUNITIVA NO TRÁFICODE DROGAS ILÍCITAS

Uma mentira deles, dez verdades. (Sabotage - rapper paulista)

Nesse capítulo ficarei adstrito em nível de definição da criminalizaçáo secundária, qual seja, aquela em que os órgãos executivos do sistema penal selecionam as pessoas que irão responder pelas condutas definidas como tráfico de drogas ilícitas, para no capítulo posterior descrever o processo de criminalização primária, através do estudo histórico da legislação e das políticas de criminalização destas substâncias, e no terceiro capítulo analisar os efeitos dos processos de criminalização do tráfico de drogas na sociedade pós-industrial, quando, então, poderemos observar a contribuição da criminologia crítica na compreensão das verdadeiras funções exercidas pelo modelo proibicionista.

Entendo que essa ordem segue a mesma direção das teorias deslegitimadoras do sistema penal que, a partir dos dados reais observam a verdadeira incompatibilidade entre o discurso jurídico e as funções declaradas do sistema punitivo com as suas funções reais, manifestas. Aliás, foi da observação do recrutamento pelo

sistema penal dos "acionistas do nada", ou seja, daqueles que integram a parte mais enfraquecida do tráfico de drogas, auferindo lucros insignificantes em face do montante do negócio, que surgiu a idéia da presente pesquisa.

O controle social, entendido como a 'Influência delimitadora do âmbito da conduta do indivíduo"23, é fenômeno intrínseco a toda sociedade. No interior de qualquer grupamento humano en-

_________________________________________________ 23

ZAFFARONI e PIERANGELI, op. cit., p. 61.

(11)

Castro o controle social não passa de predisposições de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante24.

O controle social da conduta humana, no entanto, "não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar a sua própria conduta para não se debilitar"25. Dessa forma, independentemente do estrato social ocupado pelo indivíduo na sociedade, o controle social é exercido sob todos os seus membros, inclusive aqueles responsáveis pela

imposição das normas comportamentais, tais como os deputados, juízes, policiais, padres e professores, que também sofrem um controle rigoroso do sistema.

Um bom exemplo do controle daqueles que estão mais próximos dos centros de decisão reside no escândalo provocado quando juízes, delegados de polícia e outras autoridades são "flagrados" desfilando em uma das escolas de samba no carnaval carioca. Muito embora o evento seja organizado pela própria prefeitura, como parte integrante do calendário oficial da cidade, a imprensa considera aviltante o fato de um magistrado, por exemplo, participar da festa como folião.

O papel desempenhado pelo direito penal no controle social é distorcido pela dogmática que confere ao Estado, com exclusividade, o direito de punir. A lição é curta e simples: a norma penal incriminadora cria para o Estado, seu único titular, o direito de punir, configurando crime o exercício arbitrário das próprias razões, conforme previsto no Código Penal Brasileiro. Contudo, até que ponto o Estado detém o monopólio da violência física?

___________________________________________________

24 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 22. 25 ZAFFARONI e PIERANGELI, op. cit , p. 61.

Não haveria também exercício do poder punitivo na conduta de pessoas que internam seus ascendentes em clínicas geriátricas contra a vontade destes? E o serviço militar obrigatório? Ainda podemos observar que o controle social nem sempre é exercido pela via punitiva, uma vez que a família, a escola, a medicina, a religião, os meios de comunicação de massa, por exemplo, definem padrões de comportamento, induzindo condutas sem serem percebidos como instituições de controle.

Afirmam Zaffaroni e Pierangeli que o sistema penal não tem a importância no controle social que o discurso jurídico ordinário lhe atribui, sendo ainda mais modesto o lugar que cabe ao direito pena126.Assim, o âmbito do controle social é amplíssimo, sendo que, na classificação dos citados mestres, pode ser difuso (meios de comunicação de massa, família, preconceitos) ou institucionalizado (escola, hospital psiquiátrico, polícia, tribunais).

O controle punitivo, portanto, é tão-somente uma das modalidades de controle social, para o qual o sistema penal presta relevante serviço ainda que de forma não exclusiva, uma vez que existem controles punitivos, como certas práticas psiquiátricas (internação à revelia), que se apresentam formalmente como não punitivas.

A perversão do discurso jurídico-penal faz com que se recuse, com horror, qualquer vinculação dos menores (especialmente os abandonados), dos doentes mentais, dos anciãos e, inclusive, da própria prostituição com o discurso jurídico-penal, embora submetam-se todos esses grupos a institucionalizações, aprisionamentos e marcas estigmatizantes autorizadas ou prescritas pela própria lei que são, num todo, semelhantes - e,

freqüentemente, piores - do que as abrangidas pelo discurso jurídico penal 27.

_____________________________________________________________________ 26 Idem, p. 68.

27

ZAFFARONI, Eugenio RaUl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 22.

De acordo com o ministro do Supremo Tribunal da Argentina, o discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de legalidade o exercício de poder através de diversas práticas de controle punitivas e não punitivas, tais como "o poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificação etc., fica a cargo de órgãos executivos, sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais"28. Ocorre assim o fenômeno do poder configurador,

(12)

positivo, do sistema penal. Antes mesmo de reprimir, função que realiza com mediação do órgão jurisdicional, operando tão somente um limite legal estabelecido pelo órgão legislativo, o sistema penal atua para além da legalidade restringindo direitos e garantias constitucionais.

Os órgãos do sistema penal exercem, segundo o jurista argentino, um controle social disciplinar, militarizado e verticalizado, distinto da função meramente repressiva, sendo exercido sobre a maioria da população de forma substancialmente configuradora da vida social. Este poder configurador positivo exerce controle sobre uma infinidade de comportamentos, ainda que essas condutas não estejam previstas na lei penal como crime.

No que diz respeito ao poder exercido pelos órgãos do sistema penal no controle da circulação de drogas ilícitas, a função repressiva é apenas uma das facetas do exercício desse poder. Prender, processar e julgar os indivíduos que realizam as condutas descritas na lei como tráfico de drogas é tão-somente uma parcela do controle social na questão envolvendo estas substâncias proibidas. O controle sobre as populações pobres e, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, das áreas ocupadas por essa população, conhecidas por "favelas", é o exemplo mais gritante do exercício do poder configurador positivo.

Para além da função de reprimir a circulação destas substâncias, o sistema penal exercita um poder de vigilância disciplinar, de uso cotidiano, nas áreas carentes, seja restringindo a liberdade de ir e vir naquelas comunidades, através das prisões para averiguação, ou restringindo reuniões e o próprio lazer das pessoas, como na

___________________________________________________________________________________________ 28

Idem, p. 22. 30

proibição dos "bailes funks", que a pretexto de reprimir a "apologia ao narcotráfico", traduz o poder de controle exercido sobre as populações pobres. Não é por menos que a historiadora Gizlene Neder, citada pela

criminóloga Vera Malaguti Batista, conclui: "a eficácia das instituições de controle social se funda na capacidade de intimidação que estas são capazes de exercer sobre as classes subalternas"29.

Praticamente, não existe conduta - nem mesmo as ações mais privadas - que não seja objeto de

vigilância por parte dos órgãos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou reforçar seu controle, embora se mostrem mais vulneráveis as ações realizadas em público, o que acentua a seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano que confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais carentes 30.

O poder configurador ou positivo cumpre a função disciplinadora do sistema à margem da legalidade, revelando um sistema de controle informal no âmbito dos órgãos do sistema penal que torna ínfimo o exercício do sistema penal formal.

Para Michel Foucault, a partir do século XIX ocorre uma mudança que vai estender o exercício do controle social para além do poder judiciário.

Chega-se, assim, à contestação da grande separação atribuída a Montesquieu, ou pelo menos formulada por ele, entre o poder judiciário, poder executivo e poder legislativo. O controle dos indivíduos, essa espécie de controle social punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à

__________________________________________________________

BATISTA,Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 37. ZAFFARONI, op.cit., p. 25.

31

margem da justiça, como a policia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção - a policia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas e pedagógicas para a correção. É assim que, no século XIX, desenvolve-se em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão

enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia etc. Toda essa rede de um poder que não &judiciário deve

(13)

desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades31.

Assim, para o filósofo francês: toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer32.

É nesse momento histórico que se introduz, a partir da criminologia, a noção de "periculosidade"na teoria penal, fazendo com que o indivíduo passe a ser considerado pela sociedade no nível de suas virtualidades e não no nível dos seus atos.

Aparece a idéia de uma penalidade que tem por função não ser uma resposta a uma infração, mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposições do perigo que apresentam, das virtualidades possíveis.

___________________________________________________ 31

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ e Nau Editora, 2001, pp. 85 e 86.

32

Idem, p. 85. 32

Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-los pela reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa idéia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma idéia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder.

Definindo o poder punitivo a partir da norma penal, mas o exercendo efetivamente a partir de práticas extra-penais, o poder configurador positivo do sistema revela uma incompatibilidade entre a teoria penal, que programa um certo número de ações através de um discurso jurídico e, por outro, uma prática real, social, que conduz a resultados totalmente diversos, numa espécie de processo "esquizofrênico", onde o sistema penal obtém sua (auto) legitimação através da lei, mas não consegue atingir a legitimidade social, entendendo-se por legitimidade a "qualidade que se pode predicar ao sistema pela relação de congruência entre programação (normativa e teleológica) e operacionalização e, por legitimação, "o processo mediante o qual se atribui esta qualidade ao sistema.

Assim, ao mesmo tempo em que o Estado moderno encontra no sistema penal um dos seus

instrumentos de violência e poder político, de controle e domínio, necessitou formalmente desde seu nascimento de discursividades ("saberes" e "ideologias") tão aptas para o exercício efetivo deste controle quanto para a sua justificação e legitimação35.

__________________________________________ 33

Idem, p. 99.

PEREIRA DE ANDRADE,Vera Regina. A Ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 181.

35

Idem, p. 176. 33

Podemos, de acordo com a professora Vera Regina Pereira de Andrade, distinguir duas dimensões e níveis de abordagem na estrutura do moderno sistema penal: uma dimensão definicional ou programadora do controle penal que define as regras do jogo para suas ações; uma dimensão operacional que deve realizar o controle penal com base naquela programação. Surge aqui a pergunta que irá modificar definitivamente o paradigma criminológico:

Em que medida têm sido cumpridas as promessas da dogmática Penal na trajetória da modernidade? Tem a dogmática Penal conseguido garantir, com sua metaprogramação, os direitos humanos individuais contra a violência punitiva? Tem sido possível controlar o delito com igualdade e segurança jurídica?36

(14)

a metaprogramação dogmática do Direito Penal com a operacionalidade do sistema penal enquanto conjunto de ações e decisões. Pois é esta análise constrastiva que possibilita emitir juízos de (in)congruência entre

operacionalidade ("ser") e programação (“dever-ser"), entre o acontecido socialmente e o postulado jurídica e dogmaticamente (...) 37 .

O discurso jurídico penal contratualista clássico "foi construído sob a égide da laicização do direito (delito) e moral eclesiástica (pecado)"38.A caracterização e delimitação do direito penal surgem com a

definição de princípios gerais. "Toda legislação positiva pressupõe sempre certos princípios gerais do direito", afirmou Kaufrnann, citado por Nilo Batista". Os princípios gerais do direito penal constituem assim os alicerces para a definição do discurso jurídico legitimante.

_________________________________ 36

Idem, p.170. 37

Idem, pp.169-170.

38 CARVALHO, Sallo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Ltimen Júris, 2001, p. 69.

39 BATISTA, op. cit., p. 61. 34

O princípio da lesividade, corolário do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, transporta para o terreno penal a questão da distinção discursiva entre o direito e a moral.

Assim sendo, desde o seu nascimento o discurso jurídico penal traz a noção de tutela a um bem jurídico - como nos ensina Roxin, citado por Nilo Batista:

Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é

simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos40.

Partindo de um conceito material de delito, o discurso-jurídico entende o crime como um desvalor da vida social, ou seja, uma ação ou omissão que se proíbe e se procura evitar, ameaçando- a com pena, porque constitui ofensa (dano ou perigo) a um bem, ou um valor da vida social.

O objeto principal da proteção penal nos crimes de tráfico e uso indevido de drogas ilícitas é a saúde pública (Menna Barreto)41. Assim, todas as condutas punidas pela lei têm por escopo a proteção de algo que poucos juristas conseguem definir, mas que revela a necessidade da autolegitimação do sistema penal a partir da criação da norma jurídica - "A tarefa imediata do direito penal é, por tanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico", afirma Francisco de Assis Toledo42 . Entretanto o que é saúde pública? Seria tal bem jurídico uma ficção? _______________________________________

40 Idem, p. 91.

41 JESUS, Damásio de E. Lei antitóxicos anotada. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 11.

42

TOLED O, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 13. 35

Qual seria a tarefa do direito penal ao reprimir o tráfico de drogas ilícitas? A resposta da ciência penal a essas perguntas revelará a falácia do discurso jurídico penal no que diz respeito à tão divulgada "guerra contra as drogas", àquilo que Nilo Batista chamou de "política criminal com derramamento de sangue" 43 .

Realmente, o interesse jurídico concernente à saúde pública, de natureza difusa, não é fictício. Não constitui meramente referência abstrata criada pelo legislador. É um bem palpável, uma vez que se encontra relacionado a todos os membros da coletividade e a cada um considerado individualmente (...) de modo que; quando lesionados, interferem na vida real de todos os membros da sociedade ou de parte dela antes de haver dano ou perigo de lesão individual. Resulta que os delitos de tráfico e uso indevido de entorpecentes e drogas afins têm a saúde pública como objeto jurídico principal (imediato), entendida como "o estado em que o

(15)

organismo exerce normalmente todas as suas funções" (Dicionário da Real Academia Espanhol) . (Grifo nosso)

Outro conceito de saúde pública pode ser encontrado no dicionário de direito penal do ministro do STJ Vicente Cernicchiaro: "interesse do Estado de preservação e normal funcionamento do organismo dos membros da sociedade".

A irracionalidade decorrente da distância entre a programação jurídico- discursiva e a realidade operacional do sistema nos é então revelada:

Imaginemos a surpresa do pesquisador que um dia comparar o número de pessoas mortas pelas drogas, por overdose, debilita-

________________________________________________

43 BATISTA, Nilo. "Política criminal com derramamento de sangue". In: Discursos Sediciosos, na 5/6. Rio de

Janeiro: Freitas Bastos, 1998,p. 77. 44

JESUS, Damásio de. Op. cit., p. 12.

45 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Dicionário de direito penal. Brasília: Universidade de Brasília, 1974, p. 447.

36

ção progressiva ou qualquer outro motivo, com o número de pessoas mortas pela guerra contra as drogas" . A atual política criminal da chamada "guerra contra as drogas" evidentemente ofende mais à saúde pública que à própria circulação destas substâncias. Se é verdade que o direito busca, ao reprimir as condutas descritas como tráfico de drogas, proteger "o estado em que o organismo social exerce normalmente todas as suas funções" (saúde pública), como entender que a violência criada pela guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro tenha atingido níveis de homicídios superior aos da guerra de Bush no Iraque?"

O número de mortes causado pelos sistemas penais latino- americanos aproxima-se e, às vezes, supera o total de homicídios de "iniciativa privada", segundo Zaffaroni48 Já no início da década de 90, pesquisas

apontam que do total de homicídios registrados no espaço público, aproximadamente 70% envolvem a chamada "guerra ao narcotráfico",49 contabilizando "baixas" entre policiais e traficantes, que, coincidentemente, são oriundos dos mesmos estratos populares de nossa sociedade, levando alguns rappers nacionais a se referirem aos policiais militares como "o ze povinho fardado".

A incongruência entre a operacionalidade do sistema penal ("ser") e sua programação ("dever ser") também reside no fato de as

_____________________________ 46 BATISTA, op. cit., p. 90.

47 'Guerra do tráfico mata 14 num só dia". Reportagem de capa do jornal O Globo do dia 23/01/2004, quando cinco traficantes do Complexo da Maré foram mortos em confrontos com a polícia e nove pessoas foram mortas por traficantes em Santa Cruz.

48 ZAFFARONI, Eugenio R.a61. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 39.

49

No Rio de Janeiro, em 1992, três quartos dos homens vítimas de homicídio eram assassinados em espaços públicos e dois terços das vítimas o eram em função do tráfico de drogas (Luiz Eduardo Soares, Violência e

política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, pp. 241-2)

50 MV Bill e Chorão. 37

drogas lícitas causarem resultados lesivos em números reconhecidamente maiores do que as drogas ilícitas. "O álcool e o fumo, que são drogas lícitas, causam mais danos à saúde pública do que as ilícitas, como maconha e cocaína", alerta da Organização Mundial da Saúde em recente relatório lançado em Brasília e divulgado pelos jornais51. De acordo com a OMS, entre os dez fatores de risco de se adquirir doenças evitáveis, o tabaco figura em quarto lugar, seguido pelo álcool, em quinto. Cigarros e bebidas alcoólicas contribuíram com 4,1% e 4%, respectivamente, para as causas de doença em 2000, enquanto substâncias ilícitas foram associadas a 0,8%.

(16)

saúdes individuais. Reconhecendo que a saúde dos membros do corpo social seja algo distinto da saúde dos seus integrantes, conforme nos ensina a dogmática, entendendo-se ainda que os crimes envolvendo drogas ilícitas atinjam não somente à qualidade de vida da população, bem como coloquem em risco e causem lesões efetivas aos seus habitantes, como explicar que drogas permitidas produzam danos socialmente relevantes em

quantidade superior às substâncias proibidas? Basta nos centrarmos nos acidentes de trânsito provocados pelo uso de álcool para concluirmos pela impossibilidade do discurso jurídico- penal em explicar, para além do campo normativo, a distinção entre drogas lícitas e ilícitas.A imprecisão, longe de caracterizar falha científica, surge como uma arma:

Um livro sobre narcotráfico é uma obra de política, uma reflexão sobre relações e jogos de poder, e não sobre drogas no sentido farmacológico ou técnico. Desse modo não cabem discussões prolongadas sobre as propriedades químicas das drogas

__________________________________________

51 "Drogas lícitas matam mais que as ilegais", reportagem do Jornal O Globo de 19/03/2004, coluna Ciência e Vida, p. 36.

38

e seus efeitos no corpo e na mente. No entanto, há que se enfrentar de saída uma importante questão: a nomenclatura das drogas como uma relação de poder.52

Drogas, tóxicos, narcóticos, entorpecentes, são diferentes nomenclaturas imprecisas para designar

substâncias de circulação proibida em nossa legislação. Considerando que muitos medicamentos são

distribuídos pelas chamadas "drogarias", podemos observar que, ao contrário da nomenclatura policialesca, a palavra droga significa, no plano médico, aquilo que chamamos de remédio. Inseticidas e outros venenos utilizados nas produções agrícolas são produtos que estavam fora do objeto de proteção da "lei de tóxicos", como ficou conhecida a revogada lei 6.368/76 e, por fim, narcóticos e entorpecentes são designados

genericamente como drogas ilegais, embora não haja consenso no seu significado.

Estas más aplicações, que reúnem as drogas ilícitas sob nomenclaturas imprecisas, devem parte de sua existência a práticas e atos classificatórios que se reproduzem, mas que também, da perspectiva política, acabam cumprindo uma função importante, que consiste em condensar em um único bloco substâncias que são alvo de perseguição governamental. Assim, o inimigo fica agrupado, fato que torna mais simples a declaração de guerra às drogas53.

Em razão desses fatos, o professor Nilo Batista alerta para uma "trágica metáfora" ocorrida na Bolívia e narrada por seus alunos bolivianos do curso de mestrado: "nas áreas em que os fuzileiros navais

norte-americanos despejaram suas poderosas drogas, que arrasam as plantações de coca e adjacências, começam a nascer agora crianças deformadas” 54.

____________________________________________

52 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desativo, 2003, p.18. 53

Idem, p. 21.

54 BATISTA, NILO. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 62. 39

Em seu artigo "Novos caminhos para a questão das drogas", a professora Maria Lúcia Karam assinala: Talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente se manifeste a enganosa publicidade do sistema penal, apresentado como um instrumento capaz de solucionar conflitos, como o instrumento capaz de fornecer segurança e tranqüilidade, através da punição dos autores de condutas que a lei define como crimes".

Destinada a erradicar do globo todo um leque de compostos psicoativos, as diretrizes proibicionistas terminaram por produzir um efeito contrário: organizações ilegais fortaleceram- se, uma variedade maior de drogas ilícitas ficou à disposição dos interessados, e a violência que acompanha todo o negócio ilegal não cessou de crescer. Essas observações procedem e, diante delas, até mesmo um leitor francamente contrário ao uso de qualquer substância psicoativa estaria em condições de questionar o proibicionismo aplicado até hoje56.

(17)

A perda da legitimidade do sistema penal resulta assim de um processo de revelação de dados reais, gerando um "impulso desestruturador", designado por Stanley Cohen como o conjunto de ataques - críticas, demandas, visões, teorias, movimentos de reforma etc - que constituíram, desde a década de 60 como um assalto continuado às próprias fundações (ideológicas e institucionais) do sistema de controle penal da modernidade, cuja hegemonia perdurava há dois séculos57.

__________________________________________

55 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993, p. 21. 56 RODRIGUES, op. cit., p. 107.

57

PEREIRA DE ANDRADE, Vera Regina. A ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 182.

40

Este "impulso desestruturador", na concepção do professor Zaffaroni, não foi produzido de forma abrupta, mas resultou de um longo processo de revelação de dados reais, acompanhado de um paralelo empobrecimento filosófico do discurso jurídico-penal" que culminou na crítica historiográfica, sociológica e criminológica do moderno sistema penal, orientando movimentos de políticas criminais alternativas e de reforma, que somente puderam ser penados a partir da desconstrução.

2. 1. As TEORIAS DA REAÇÃO SOCIAL

Os estudiosos do fenômeno da deslegitimação do sistema penal e do desprestígio dos discursos jurídico-penais, no entanto, são unânimes em admitir que, embora diferentes dimensões analíticas tenham participado desse movimento crítico, a crise do discurso jurídico-penal foi obra, principalmente, do saber sociológico, que culminou na mudança do paradigma criminológico realizado pelas "teorias da reação social", ou labelling approach, que operou "uma revolução científica no âmbito da sociologia criminar", com a seguinte tese central:

(...) desvio - e a criminalidade - não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. Uma conduta não é criminal "em si" ou "per si" (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e atribuição de criminoso a seu ator depende de certos processos sociais de

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ZAFFARONI, op.cit.,. p. 45 59

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1999.p. 85

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"definição", que atribuem à mesma um tal caráter, e de "seleção", que etiquetam um ator como delinqüente 60.

Esta direção da pesquisa, na lição do professor Alessandro Baratta, parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal:

(...) o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e "tratado" como delinqüente" .

Assim, a criminologia da reação social experimenta uma troca de paradigmas, deslocando o interesse desenvolvido pela criminologia positivista na investigação das "causas" do crime e, conseqüentemente, no estudo do criminoso, para a reação social da conduta desviada. Ao invés de indagar, como a criminologia tradi-cional,"quem é criminoso?","por que é que o criminoso comete crime?", o labelling passa a indagar quem é

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