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Auto da barca do inferno, Farsa de Inês Pereira e Auto da Índia

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Academic year: 2021

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Auto da barca do inferno,

Farsa de Inês Pereira e Auto da Índia

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(3)

TexTos inTegrais

Cotejados com edições avulsas, com base nos trabalhos de I. S. Révah e Paulo Quintela, confrontados com os textos da Compilação de 1562, publicada pelos editores Luís e Paula Vicente.

Estabelecimentos dos textos, apresentação, notas e caderno biográfico de

João Domingues Maia

gil vicenTe

Auto da barca do inferno,

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gerente editorial Claudia Morales editor Fabricio Waltrick editora assistente Malu Rangel diagramadora Thatiana Kalaes coordenação editorial Todotipo Editorial revisão Todotipo Editorial

projeto gráfico Fabricio Waltrick e Luiz Henrique Dominguez coordenadora de arte Soraia Scarpa

editoração eletrônica Luiz Henrique Dominguez

imagem da capa Azulejaria de cozinha com caças variadas, 1995, obra de Adriana Varejão CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS - RJ V681a

7.ed.

Vicente, Gil, ca. 1465?-1536?

Auto da barca do inferno ; Farsa de Inês Pereira ; Auto da Índia / Gil Vicente. - 7.ed. - São Paulo : Ática, 2011.

152p. - (Bom Livro) ISBN 978-85-08-14566-9

1. Teatro português (Literatura). I. Título. II. Título: Farsa de Inês Pereira. III. Título: Auto da Índia. IV. Série.

11-1929. CDD 869.2 CDU 821.134.3-2 ISBN 978 85 08 14566-9 (aluno) ISBN 978 85 08 12608-8 (professor) Código da obra CL 737814 CAE: 262767 2017 7-ª edição 7-ª impressão Impressão e acabamento:

Todos os direitos reservados pela Editora Ática S.A. | 2009 Avenida das Nações Unidas, 7.221 – Pinheiros CEP 05425-902 – São Paulo – SP www.aticascipione.com.br Tel.: (0xx11) 4003-3061 atendimento@aticascipione.com.br

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sumário

Gil Vicente: crítico e atual 7

Auto da barca do inferno

A sociedade portuguesa desfila ante os olhos do diabo 17

Auto da barca do inferno 21

Farsa de Inês Pereira

Uma visão vanguardista da condição da mulher 59

Farsa de Inês Pereira 63

Auto da Índia

Radiografia da infidelidade conjugal 109

Auto da Índia 113

Vida & obra 135

Obras do autor 149

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gil vicenTe: críTico e aTual

João Domingues Maia

Doutor em letras pela pontifícia universidade católica do rio de Janeiro (puc-rJ).

A expansão marítima e o comércio fizeram de Portugal, na época de Gil Vicente, uma nação próspera. Essa prosperidade e riqueza resultaram em um período de megalomania, de ostentação, da vida de aparências, da busca do enriquecimento fácil e ilícito, sem o suor do trabalho. O mais grave é que se tratava de uma riqueza fictícia, ao lado da qual grande parte do povo vivia na miséria. A ideia de enriquecimento fácil fazia com que todos sonhassem ir buscá-lo na Índia, e a agricultura entrou em decadência por falta de capital e mãos para o trabalho. Todos os serviços eram feitos por escravos africanos.

Gil Vicente era um observador crítico dessa sociedade decadente e estendia suas denúncias sobre toda a sociedade europeia. Seu teatro, essencialmente moral e social, é marcado pela intenção crítica. O riso, a sátira e os gracejos tinham um endereço certo: o público que assistia às encenações e que aca-bava por rir de si mesmo, sem que, por cegueira ou vaidade, se reconhecesse, mas certamente vendo nos quadros o companheiro ao lado, o magistrado do reino, o clérigo da aldeia, o bispo, os nobres da corte e dezenas de tipos com os quais convivia na sociedade da época.

Os vícios dos homens e da sociedade estão em todas as peças de Gil Vicente, representados por frades libertinos, magistrados corruptos, mu-lheres adúlteras, usurários, médicos charlatães, proxenetas que agenciavam meninas para os cônegos da Sé, fidalgos decadentes, velhos à procura da mulher jovem. Tipos que proliferam quando as sociedades esquecem os va-lores éticos e morais e que fazem do teatro vicentino uma denúncia sempre atual e útil à reflexão.

Católico fervoroso, Gil Vicente criticava os clérigos, mas não a Igreja. Opunha-se ao direito de que as ordens religiosas possuíssem bens tem-porais e rebelava-se contra a venda de indulgências praticada pelo papa, porém demonstrou seu fervor religioso nos belíssimos autos que escreveu.

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* Encenada em 1536 para o rei dom João III, esta peça — que se acredita ser sua derradeira — apresenta um filósofo que, por dizer a verdade, é castigado, devendo ser amarrado a um parvo pelos pés. Deste modo, o filósofo nunca consegue entabular um pensamento, já que o parvo sempre o interrompe com perguntas tolas. Neste trecho — a peça mistura português e espanhol — o filósofo se queixa de tamanha tortura. (N.E.)

Sua postura crítica valeu-lhe o desagrado dos nobres e a censura da Igreja. Gil Vicente parece referir-se a isso pela boca do filósofo da comédiaFloresta de enganos:

Y porque la reprehensión a todos es enojosa, me vi en grande pasión, y me echaron en prisión, en cárcel muy tenebrosa…*

Gil Vicente só parou de escrever em 1536, quando já teria passado dos setenta anos.

gil vicente atual

Mais de cinco séculos após a representação do primeiro auto, Gil Vicente continua atual, sobretudo pela galeria de tipos e de personagens que ex-plorou como dramaturgo.

Se fosse vivo, Gil Vicente teria farto material para caracterizar tipos e ações nefastas no seio de qualquer sociedade, já que muitos males de seu tempo ainda são os mesmos noticiados hoje em dia. Muitas personagens da vida pública e de várias classes sociais estariam certamente entre a galeria de tipos que subiriam a bordo da barca do inferno.

Vamos rever alguns episódios da nossa história recente que poderiam inspirá-lo.

2005: Denunciado no Brasil um esquema de pagamento de propina

(conhecido como “Mensalão”) para que alguns deputados federais votas-sem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo.

2005: Empresário denuncia o então presidente da Câmara dos Deputados,

Severino Cavalcanti, pela cobrança de propina para a concessão de restau-rante nas dependências da casa. O deputado renuncia ao mandato.

2006: Descoberta uma quadrilha que desviava dinheiro destinado à

compra de ambulâncias. A “Máfia das Ambulâncias” envolvia funcionários públicos de alto escalão e também deputados federais.

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2008: Polícia Federal prende, na Operação Satiagraha, o banqueiro Daniel

Dantas, o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, acu-sados de corrupção, desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro.*

Essa percepção da atualidade de Gil Vicente, que só ocorre com aqueles artistas cuja obra alcança caráter universal, permitiu a Carlos Drummond de Andrade a adaptação contemporânea de uma passagem do Auto da Lusitânia. Nela, entram as figuras do Diabo, seu auxiliar Dinato, Todo Mundo e Ninguém**, nomes que, atribuídos às personagens que dialogam, propi-ciam a comicidade mediante o jogo de palavras.

Ninguém Tu estás a fim de quê?

Todo Mundo A fim de coisas buscar

que não consigo topar. Mas não desisto, porque o cara tem de teimar.

Ninguém Me diz teu nome primeiro.

Todo Mundo Eu me chamo Todo Mundo

e passo o dia e o ano inteiro correndo atrás de dinheiro, seja limpo ou seja imundo.

Belzebu Vale a pena dar ciência

e anotar isto bem, por ser fato verdadeiro: que Ninguém tem consciência, e Todo Mundo, dinheiro.

Ninguém E que mais procuras, hem?

Todo Mundo Procuro poder e glória.

Ninguém Eu cá não vou nessa história.

Só quero virtude… Amém.

Belzebu Mas o papai não se ilude

e traça: Livro Segundo. Busca o poder Todo Mundo e Ninguém busca virtude.

Ninguém Que desejas mais, sabido?

Todo Mundo Minha ação elogiada

em todo e qualquer sentido.

* As informações factuais acima foram atualizadas na 6a edição da obra, em 2009. (N.E.)

** AndrAde, C. Drummond de. “Todo Mundo e Ninguém”. In: Poesia e Prosa, 4a. ed. rev. e atual. Rio de

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Ninguém Prefiro ser repreendido quando der uma mancada.

Belzebu Aqui deixo por escrito

o que querem, lado a lado. Todo Mundo ser louvado e Ninguém levar um pito.

Ninguém E que mais, amigo meu?

Todo Mundo Mais a vida. A vida, olé!

Ninguém A vida? Não sei o que é.

A morte, conheço eu.

Belzebu Esta agora é muito forte

e guardo para ser lida: Todo Mundo busca a vida e Ninguém conhece a morte.

Todo Mundo Também quero o Paraíso,

mas sem ter que me chatear.

Ninguém E eu, suando pra pagar

minhas faltas de juízo!

Belzebu Para que sirva de aviso,

mais uma transa se escreve: Todo Mundo quer Paraíso e Ninguém paga o que deve.

Todo Mundo Eu sou vidrado em tapear

e mentir nasceu comigo.

Ninguém A verdade eu sempre digo

sem nunca chantagear.

Belzebu Boto anúncio na cidade,

deste troço curioso: Todo Mundo é mentiroso e Ninguém fala verdade.

Ninguém Que mais, bicho?

Todo Mundo Bajular.

Ninguém Eu cá não jogo confete.

Belzebu Três mais quatro igual a sete.

O programa sai do ar. Lero lero lero lero, curro paco paco paco. Todo Mundo é puxa-saco e Ninguém quer ser sincero!

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Há quase meio milênio, Gil Vicente acusava Todo Mundo de buscar sem-pre, e por qualquer meio, a riqueza, o poder, a glória, o prestígio fruto da vaidade e as honrarias cabotinas: a louvação bajulatória e todos os prazeres mundanos, da mesma forma que “Ninguém busca virtude”. Quinhentos anos depois, continuamos a ler nos jornais notícias sobre Todo Mundo e Ninguém.

Tipos, alegorias e símbolos

Gil Vicente foi pródigo na caracterização de tipos, nos quais estão acentuados os atributos específicos de uma classe, distinguindo-se pela linguagem, pelo calão profissional (o Corregedor do Auto da barca do inferno) ou pela maneira estereotipada de reagir (o Castelhano fanfarrão do Auto da Índia). Em suas peças estão caracterizados o frade devasso, o fidalgo decaído, a moça romântica, o preguiçoso, a jovem imprevidente, o caloteiro, o judeu explorador, o mé-dico charlatão, os quais constituem apenas uma parte de uma vasta galeria: o Escudeiro, o Fidalgo, o Clérigo, o Parvo, o Pastor, o Almocreve, o Judeu, o Negro, o Ermitão, a Alcoviteira, o Onzeneiro...

Alguns desses tipos são herança do teatro francês e espanhol, como o Clérigo, o Parvo, o Pastor, o Judeu, a Alcoviteira. Poucas vezes algum desses tipos ganha contornos de indivíduo, como no caso de Inês Pereira, tipo de moça romântica e sonhadora, mas que por sua força como personagem, tor-na-se a inconfundível Inês Pereira.

A alegoria origina-se das representações religiosas e profanas pré-vicen- tinas, sobretudo das moralidades, nas quais as personagens representavam abstrações personificadas de vícios e virtudes (a Avareza, a Esperança, a Humildade, por exemplo), e dos momos, com seus vistosos desfiles de per-sonagens simbólicas (como a Tentação, os Profetas, a Redenção). O teatro de Gil Vicente, seguindo a tradição medieval, é rico em elementos alegó-ricos: a Morte aparece em forma de esqueleto vestido de negro, o Inverno coberto de agasalhos, o Verão tremendo de febres, a Preguiça na pessoa de um preguiçoso que dorme e ronca sobre o palco. Quase sempre, alegoria e símbolo coincidem, atribuindo-se um valor simbólico à alegoria. Como assinalou Antônio José Saraiva, que melhor estudou a alegoria e o símbolo no teatro medieval, “em Gil Vicente os tipos graduam-se numa escala abaixo da qual está a alegoria e acima o caráter individual”*.

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os processos cômicos

*

O exagero das situações é próprio da comédia, e Gil Vicente fazia rir a corte e o povo satirizando comportamentos e mentalidades de todas as classes so-ciais, valendo-se de três processos cômicos principais:

1. A comicidade de caráter é resultante das características psicológicas da

personagem-tipo, as quais induzem a reações e comportamentos inusita-dos em relação a determinada(s) pessoa(s), objeto(s), situações. Na Farsa de

Inês Pereira, por exemplo, Pero Marques revela sua ignorância diante de uma

cadeira, sentando-se incorretamente. Em outra passagem, sua timidez não lhe permite aproveitar-se da ausência da mãe de Inês. Ao perceber a saída dela, fala em retirar-se antes que alguém fale mal deles, o que provoca a ironia de Inês Pereira.

2. A comicidade de situação é evidenciada pelos atos das personagens-tipos

ou pelos acontecimentos em que elas se inserem. Na Farsa de Inês Pereira, Pero Marques não encontra as peras que havia colhido para Inês. No Auto da Índia, a chegada do Castelhano, quando Lemos ainda está na casa de Inês, tam-bém exemplifica a comicidade de situação.

3. A comicidade de linguagem em Gil Vicente dá-se sobretudo por meio de:

a) ironia na escolha dos nomes das personagens, como a alcunha de Constança (fidelidade) dado à ama infiel do Auto da Índia;

b) utilização irônica da rima, graças a seu conteúdo contrastante ou ambíguo, como no trecho da Farsa de Inês Pereira no qual Lianor Vaz relata o assédio sexual de um clérigo;

c) uso de lugares-comuns e fórmulas tradicionais, como rezas, provérbios;

d) jogos de palavras, como na Farsa de Inês Pereira, em que Pero Marques diz que ficou com “mor gado” (verso 300**) (“com o maior gado”) e a mãe entende que ele é proprietário de um “morgado”, isto é, de uma pro-priedade vinculada ou conjunto de bens vinculados que não podiam ser alienados nem divididos. Ou ainda, na mesma farsa, quando Pero Marques diz ter trazido para Inês Pereira “peras da minha pereira” (316) (“peras”, de Pero Marques e “pereira”, de Inês Pereira);

e) repetições, como na fala do marido, no Auto da Índia: “saltou tanto su-doeste, / sudoeste e oes-susu-doeste, / que nunca tal tormenta vi” (450-452);

* Recomenda-se a leitura de BergSon, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico, 2a. ed. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. Neste livro é estudada de maneira excepcional a comicidade de situa-ções, palavras, caráter e linguagem.

(13)

f) emprego do latim macarrônico, como em várias passagens do Auto da

barca do inferno;

g) gírias e uso de termos baixos e grosseiros, como os empregados pelo Parvo do Auto da barca do inferno.

O leitor ou intérprete das peças de Gil Vicente deve considerar outros elementos cômicos, como as ações, os gestos, as atitudes, o vestuário, já que o texto é apenas um dos componentes do espetáculo teatral.

critérios desta edição

Ao pensar em uma edição de alguns autos de Gil Vicente, consideramos, em primeiro lugar, três aspectos: a importância dos textos selecionados; a facilidade de leitura; e o interesse dos temas tratados.

As edições críticas são muito úteis aos leitores eruditos e especialistas, mas de leitura árdua para os leitores comuns, entre os quais se encontram os estudantes. No entanto, as edições excessivamente adaptadas, verdadei-ras “traduções” da obra de Gil Vicente, distanciam-se muito da linguagem medieval, não permitindo ao leitor se dar conta das transformações da lín-gua e sentir o “sabor” dos textos quinhentistas. Optamos por um número razoável de notas* e comentários para, sem nos desviarmos muito do texto vicentino, esclarecer ao leitor o significado de palavras, expressões, fatos e figuras da época. Não se pretendeu, portanto, uma edição excessivamente erudita, mas fiel o mais possível ao texto de Gil Vicente.

Para a edição do Auto da barca do inferno e da Farsa de Inês Pereira, preferimos as edições avulsas, com base nos trabalhos de I. S. Révah e Paulo Quintela, confrontando-as com os textos da Compilação de 1562, pois, embora esta tenha sido publicada depois da morte de Gil Vicente, certamente os edito-res Luís e Paula Vicente foram não só testemunhas diretas das encenações paternas, mas também, no convívio com o autor, provavelmente ouviram- -lhe correções ou leram anotações à margem de originais. Para o Auto da

Índia, utilizamos o texto da Compilação de 1562 em confronto com algumas

edições avulsas.

Apesar de modernizar a grafia, mantivemos a linguagem original, pen-sando sempre no leitor ao qual se destina este livro. Daí, algumas formas

* Visando descongestionar a leitura e facilitar a percepção da musicalidade da obra de Gil Vicente, as notas deixaram de ser numeradas no próprio texto e passaram a ser organizadas pelo número do verso em que se encontram. (N.E.)

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arcaicas foram substituídas com a finalidade de não desencorajar a leitura, desde que não prejudicasse o ritmo e a sonoridade do texto. Outras foram mantidas, como: _a = uma; polo = pelo; pera = para; per = por; nam, na, nom e nõ = não. Outras vezes uma mesma forma aparece com duas gra-fias, quando isso ocorre também no texto original, para que o leitor tenha ideia das oscilações, habituais no português arcaico.

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Auto da barca

do inferno

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a socieDaDe porTuguesa

Desfila anTe os olhos Do Diabo

O Auto da barca do inferno é um auto de moralidade. Os autos de moralidades visavam analisar e criticar os costumes, o comportamento dos indivíduos e o resultado de uma maneira de ser e proceder. Portanto, tinham finali-dade didática.

Nesta primeira peça da trilogia das barcas (barca do inferno, barca do purgatório e barca da glória), Gil Vicente põe em cena vários tipos sociais e profissionais da sociedade portuguesa de seu tempo. Mortos, eles chegam a um braço de mar onde estão dois barcos: um que conduz à glória (o céu) e outro que transporta as almas para o inferno, cada qual capitaneado por seu arrais: o Demônio e um Anjo.

Trata-se de um desfile de personagens, como em uma procissão, por meio de uma sucessão de episódios paralelos, nos quais cada um deles é obrigado a reconhecer seu destino: ir para o inferno, pelos pecados que cometeu em vida.

Essa estrutura repetitiva, que poderia resultar monótona ao espectador, é quebrada por uma compensação inteligente do autor, pela introdu-ção de irregularidades na estruturaintrodu-ção do auto pela variaintrodu-ção de frases e personagens, pela extensão irregular dos episódios e pela variedade das personagens que se apresentam, cada qual personificando o defeito de sua classe social ou ocupação profissional.

O primeiro tipo a entrar em cena é um Fidalgo, personificando o Orgulho. O Pajem que o acompanha tem função puramente teatral. Não diz nada e não embarca, por ordem do próprio Demônio: “Tu, seu moço, vai-te d’i” (172).

A começar pelo Fidalgo, cada um dos tipos traz os objetos que simbo-lizam seu pecado e, paradoxalmente, a esperança de salvar-se. Assim, o Fidalgo traz sua cadeira, símbolo de sua nobreza, mas que para o Anjo sig-nificará sua tirania. Inicialmente, o Fidalgo começa a tratar com ar jocoso

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e superior o patrão da barca do inferno, que não se zanga e ironiza, sa-bendo ser inevitável o embarque do Fidalgo, como fora o do pai desse personagem.

Vai-se então o Fidalgo à barca da glória, onde recebe o desprezo do Anjo, que lhe diz: “Não se embarca tirania / neste batel divinal” (84-85). Ainda invocando a condição de nobre, o Fidalgo insiste, mas recebe do Anjo a resposta de que a barca da glória é pequena para o tamanho de sua vaidade. Sem outra opção, reconhece os erros que cometera em vida e embarca no batel do inferno.

Esse tríplice movimento: ir à barca do inferno, ir à barca da glória e retornar à barca do inferno é repetido pelos outros passageiros. Com exce-ção do Parvo, que como assinalou Stephen Reckert*, disfarça a verdadeira simetria estrutural dos episódios, cujos movimentos terminam para cada personagem no momento em que este tem a percepção que lhe faz re-conhecer os erros passados e a inevitabilidade do embarque no batel do inferno.

O Onzeneiro (indivíduo que faz intrigas; avarento, agiota) traz uma bolsa, símbolo de sua usura, para comprar o Paraíso, mas sua maneira de ganhar dinheiro acaba por condená-lo. No diálogo com o Diabo, caracteri-zando sua sovinice, esclarece que não lhe deixaram nem uma moeda para pagar a viagem, sem saber que aquela barca o conduziria ao inferno. Indo à barca da glória, o Anjo lhe diz que ela é pequena para tamanha bolsa, ou-vindo do Onzeneiro a jura de que ela está vazia, pois deixara seus milhões na outra vida. Comprovando-se que passou a vida como explorador das di-ficuldades alheias, não lhe resta saída a não ser embarcar no batel infernal. Joane, o Parvo, tipo indispensável, herança tradicional do teatro fran-cês e espanhol, aparece várias vezes, assim como o Anjo e o Diabo, tendo duas funções: uma dramática, de ser espectador e comentador irônico dos fatos; e uma teatral, de marcar de dois em dois episódios uma transição as-simétrica, disfarçando — como assinalou Stephen Reckert — a verdadeira simetria estrutural dos episódios. Ainda que sua linguagem seja muitas vezes obscena, o fato de ser parvo lhe assegura uma irresponsabilidade que o torna digno de salvação. Como lhe diz o Anjo: “Tu passarás, se quiseres; / porque em todos teus fazeres / per malícia não erraste. / Tua simpreza t’abaste / pera gozar dos prazeres” (316-320).

O Sapateiro traz as fôrmas de seu ofício, mas que na verdade são for-mas de roubar os clientes. Seu argumento para tentar embarcar na barca

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da glória é a confissão e a comunhão que fizera antes de morrer e as missas que ouvira. Contudo, segundo o Diabo, ele morrera mesmo ex-comungado, e, depois de ouvir missas, roubava o povo por meio de seu ofício. Sua hipocrisia acaba por torná-lo antipático. Aceita o fato de ir para o inferno, convencido de que também ali saberá adaptar-se às circunstâncias.

O Frade, apenas com o hábito, é um símbolo vivo do pecado, reforçado por Florença, a amante, que o acompanha e também embarca, já que é sua cúmplice. Florença, assim como o Pajem que acompanha o Fidalgo, não fala, tendo função puramente teatral. O Frade, pelo contrário, é cheio de vida e movimento. Sua linguagem é exuberante, e ele parece não se dar conta do que faz. Baila, esgrime, revela-se um cortesão e acaba por subir à barca do inferno, não sem antes ser ironizado pelo Parvo.

Brísida Vaz carrega consigo os apetrechos de seu prostíbulo, provas de seus serviços. Suas palavras revelam desde o início total falta de princípios morais. Em sua defesa, relata os próprios sofrimentos, entremeados com exemplos de suas ações pecaminosas, que só contribuem para não deixar dúvidas quanto a seu destino. Tendo inteira consciência do que diz, acaba por irritar o próprio Anjo: “Ora vai lá embarcar, / não me estês importu-nando.” (562-563).

O Judeu leva um bode nas costas, o que revela sua adesão a Moisés e não a Cristo. Além disso, enquanto na iconografia cristã Jesus está associado ao cordeiro, o bode (ou a cabra) está associado ao Diabo. As falas do Judeu revelam total falta de compreensão. Não entende nada, como nunca enten-dera. Não se aproxima da barca da glória, já que ali havia um crucifixo e, na proa, a imagem de Nossa Senhora. Nem o Diabo, a quem oferece dinheiro, quer levá-lo embarcado. A este, o Judeu acaba por dirigir uma maldição, enquanto é acusado e escarnecido pelo Parvo.

Para Stephen Reckert, há um simbolismo claro na cena: a incredulidade do Judeu, a cegueira voluntária, que não o deixa compreender a realidade de sua situação, não o salva do fogo infernal, mas o faz incapaz de aprender. Daí não poder embarcar; quando muito, ser rebocado.

O Corregedor e o Procurador levam processos e livros, os quais, se não facilitassem seus roubos, significariam apenas autoridade e erudição. Com um latim macarrônico, são meros figurões sem individualidade. Nesse ponto, restabelece-se o ritmo de ida e volta entre uma barca e outra e apa-rece, pela última vez, o Parvo.

Duas breves cenas finais rompem definitivamente com o ritmo de idas e voltas: a do Enforcado e a da passagem dos Quatro Cavaleiros.

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O Enforcado traz sua corda, supondo que o instrumento demonstraria que ele saldara suas dívidas para com a sociedade. Esquecera-se, contudo, de que não havia saldado as dívidas com Deus. Em uma cena breve, com pouco mais de sessenta versos, resigna-se e entra na barca do inferno.

Finalmente, chegam quatro cavaleiros, que de fato constituem uma só personagem cuja função é também puramente alegórica. Carregam a Cruz, símbolo da religiosidade e justificativa para que cavalguem diretamente à barca da glória. Como assinala Stephen Reckert, embarcar, para eles, não implica nenhum descobrimento: já sabem muito bem aonde vão.

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auto da barca do inferno

[Passageiros: Anjo (arrais do céu), Diabo (arrais do inferno), Companheiro (do Diabo), Fidalgo, Onzeneiro, Joane (Parvo), Sapateiro (João Antão), Frade, Florença (uma moça), Alcoviteira (Brísida Vaz), Judeu,

Corregedor, Procurador, Enforcado, Quatro Cavaleiros.]

Auto de moralidade composto per Gil Vicente, por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor, nossa senhora, e represen-tada per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto Rei Dom Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente no presente auto se figuraa que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos

subita-mente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dois batéis que naquele porto estão: scilicetb, um deles passa pera o paraíso, e o outro

pera o inferno; os quais batéis têm cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiroc.

Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro nas Obras de Devoção, porque a segunda e a terceira parte foram representadas na Capela, mas esta primeira foi representada na Câmara, pera consolação da muito católica e santa Rainha Dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de 1517d.

a figura: imagina.

b scilicet: contração de scire licet, que significa “a saber”.

c O texto de apresentação é o da edição avulsa de 1517-1518(?). d Texto da Compilação de 1562.

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O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem que lhe leva a cauda de um rabo muito comprido e uma cadeira de espalda. E começa o Arrais do inferno antes que o Fidalgo venha*:

Diabo À barca, à barca, hou-lá!,

que temos gentil maré! Ora venha o caro à ré!

Companheiro Feito, feito!

5 Diabo Bem está.

Vai ali, muitieramá, e atesa aquele palanco, e despeja aquele banco pera a gente que virá.

10 À barca, à barca, hu!

Asinha, que se quer ir! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! Ora, sus!, que fazes tu?

15 Despeja todo esse leito!

Companheiro Em boa hora! Feito, feito!

Diabo Abaixa maora esse cu!

Faze aquela poja lesta e alija aquela driça.

* A vaidade e a ostentação do Fidalgo estão simbolizadas pelo comprimento da cauda de seu manto e pela cadeira de espaldar; rabo: manto muito comprido; espalda: espaldar, as costas da cadeira. 2 gentil: boa.

3 caro: carro, peça que cruza num mastro ou que se prende por um dos extremos em um mastro. Vira-se o carro à ré para adaptar a vela à direção do vento.

4 feito, feito!: na Compilação, este verso não vem destacado como sendo uma réplica do companheiro do Diabo. A edição avulsa indica o contrário.

6 muitieramá: em muito má hora. 7 atesa aquele palanco: estica aquele cabo. 11 asinha: depressa.

13 berzebu: Belzebu, príncipe dos demônios. 14 sus: interjeição, “vamos!”.

15 leito: área compreendida entre o mastro grande e a popa. O Diabo pretende ter mais espaço para alojar os pecadores.

17 abaixa maora esse cu!: trabalha com cuidado!; maora: má hora. 18 poja: cabo que prende o carro; lesta: rápida.

19 alija: lança ao mar, alivia a carga; driça: adriça, cabo utilizado para içar bandeiras, flâmulas, determi-nadas vergas e velas.

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20 Companheiro Ô, caça! Ô, iça! iça!

Diabo Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! Ó poderoso dom Anrique,

25 cá vindes vós? Que cousa é esta?

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

Fidalgo Esta barca onde vai ora,

que assi está apercebida?

Diabo Vai pera a ilha perdida?

e há-de partir logo ess’ora.

30 Fidalgo Pera lá vai a senhora?

Diabo Senhor, a vosso serviço.

Fidalgo Parece-me isso cortiço.

Diabo Porque a vedes lá de fora.

Fidalgo Porém, a que terra passais?

35 Diabo Pera o inferno, senhor.

Fidalgo Terra é bem sem-sabor.

Diabo Quê? E também cá zombais?

Fidalgo E passageiros achais

pera tal habitação?

40 Diabo Vejo-vos eu em feição

pera ir ao nosso cais.

Fidalgo Parece-te a ti assi?

Diabo Em que esperas ter guarida?

20 Ô, caça! Ô, iça! iça!: apanha (a vela), levanta! levanta! (a verga, para esticar a vela). Na Compilação de 1562 está: “Ó caça, ó ciça”.

23 âncora a pique: âncora recolhida. 24 anrique: forma arcaica de Henrique. 27 apercebida: aparelhada, enfeitada, ornada. 28 ilha perdida: eufemismo de inferno. 29 logo ess’ora: imediatamente.

30 senhora: o Fidalgo refere-se à embarcação ou confunde o Diabo com uma mulher. No verso seguinte, o Diabo parece retificar o Fidalgo: “Senhor, a vosso serviço”.

40 em feição: em bom aspecto, a gosto. O Diabo vê no Fidalgo um bom candidato ao inferno. 43 guarida: refúgio, salvação.

(24)

Fidalgo Que leixo na outra vida

45 quem reze sempre por mi.

Diabo Quem reze sempre por ti?…

Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!… E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer

50 porque rezam lá por ti?

Embarca!, ou embarcai!, que haveis de ir à derradeira. Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai.

55 Fidalgo Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?

Diabo Vai ou vem, embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,

60 haveis de passar o rio.

Fidalgo Não há aqui outro navio?

Diabo Não, senhor, que este fretastes,

e primeiro que expirastes me destes logo sinal.

65 Fidalgo Que sinal foi esse tal?

Diabo Do que vós vos contentastes.

Fidalgo A est’outra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros, não me ouvis?!

44 leixo: forma arcaica de “deixo”. 49 guarecer: curar-se, salvar-se.

51 embarca!, ou embarcai!: observe a sutileza da ironia do Diabo ao mudar a forma de tratamento de “tu” para “vós” (Cf. o verso da Compilação de 1562).

52 à derradeira: por fim.

53-4 Mandai meter a cadeira, / que assi passou vosso pai: mandai vosso pajem pôr a cadeira no barco, / que assim também foi vosso pai para o inferno.

56 prestes: rápido, ligeiro.

63-4 e primeiro que expirastes / me destes logo sinal: na Compilação de 1562 está: “e já quando expirastes / me tínheis dado sinal”. Aqui, a palavra “sinal” é usada com o sentido de garantia, penhor. No caso, o “sinal” dado pelo Fidalgo foram suas más ações terrenas.

Referências

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