Data: 15 de Junho 2020 (10h00) Duração: 1h15 (+5’ tol. + 10’ subm.) Docente Responsável: Hugo Terças
Mecânica Analítica
MEFT 2019/20EXAME
? Teste II ?
Justifique cuidadosamente as suas respostas e apresente todos os cálculos que efectuar.
Questão 3. [10 val] Em muitas situações, os sistemas dissipativos podem ser descritos por Lagrangeanos que dependem explicitamente do tempo. Consideremos o seguinte sistema, com um grau de liberdade, descrito por
L(q, ˙q, t) = 1 2me
γt q˙2− ω2 0q2 .
a) [2 val] Obtenha o Hamiltoniano H(q, p, t) correspondente a este sistema.
O Hamiltoniano relaciona-se com o Lagrangeano através da transformada de Legendre H = p ˙q − L.
Usando o facto de que p = ∂L ∂ ˙q = me
γtq e, portanto, ˙˙ q = (p/m)e−γt, obtemos imediatamente
H(q, p, t) = p 2 2me −γt+ 1 2mω 2 0q2eγt.
b) [2 val] Escreva as equações canónicas do movimento e mostre que são equivalentes a ¨
q + γ ˙q + ω02q = 0. Que tipo de movimento descreve?
As equações de Hamilton para estas coordenadas são dadas por ˙ q = ∂H ∂p = p me −γt, p = −˙ ∂H ∂q = −mω 2 0qeγt. Derivando a primeira equação em ordem ao tempo, obtemos ¨q = p˙ me
−γt− γ p me
−γt. Elim-inando ˙p com recurso à segunda equação (e p com recurso à primeira), podemos então escrever ¨ q = e −γt m −mω 2 0qeγt − γ ˙q ⇔ q + γ ˙¨ q + ω20q = 0.
Esta equação descreve um movimento oscilatório amortecido, onde ω0 é a frequência própria de vibração na ausência de atrito e γ é a taxa de amortecimento.
c) [2 val] Como sabe, uma transformação canónica q → Q e p → P é definida por forma a que as novas variáveis Q e P satisfaçam as equações de Hamilton. Mostre que uma transformação é canónica se
∂ ˙Q ∂Q = −
∂ ˙P ∂P.
Use este resultado para verificar a canonicidade da transformação Q = qeγt/2, P = pe−γt/2.
Se a transformação fôr canónica, então Q e P serão variáveis canonicamente conjugadas, implicado que satisfaçam as equações de Hamilton para um novo Hamiltoniano K(Q, P ) (atenção: H(Q, P ) não produz as equações do movimento correctas e, portanto, não pode-mos usar H para concluir seja o que for)
˙ Q = ∂K
∂P, P = −˙ ∂K ∂Q.
Derivando a primeira equação em ordem a Q e a segunda em ordem a P , e reparando que K ∈ C2, ∂
2K ∂Q∂P =
∂2K
∂P ∂Q (lema de Schwarz), então vem ∂ ˙Q
∂Q = − ∂ ˙P ∂P. Aplicando esta propriedade à transformação proposta,
˙ Q = ˙qeγt/2+γ 2qe γt/2= ˙qeγt/2+ γ 2Q =⇒ ∂ ˙Q ∂Q = γ 2, ˙ P = ˙P e−γt/2−γ 2pe γt/2= ˙pe−γt/2−γ 2P =⇒ ∂ ˙P ∂P = − γ 2, ou seja ∂ ˙Q ∂Q = γ 2 = − ∂ ˙P
d) [2 val] Obtenha o novo Hamiltoniano K(Q, P ) recorrendo a uma função geradora do tipo F2 (ver tabela) e determine uma quantidade conservada do sistema original (i.e. em termos de q e p) partindo da observação de que K é conservado.
Para uma função geradora do tipo F2(q, P, t), as relações de transformação são p = ∂F2
∂q , Q = ∂F2
∂P .
Uma vez que, por definição, temos p = P eγt/2, obtemos por integração da primeira equação que
∂F2 ∂q = P e
γt/2 =⇒ F
2(q, P ) = P qeγt/2+ f (P ). Para determinar f (P ), usamos a segunda equação
f0(P ) + qeγt= qeγt =⇒ f (P ) = const.
Sem perda de generalidade, podemos definir a constante como nula e, então, escrever F2(q, P ) = P qeγt/2. Assim, o novo Hamiltoniano vem
K(Q, P ) = H(Q, P ) +∂F2 ∂t = P2 2m+ 1 2mω 2 0Q2+ γ 2P qe γt/2= P2 2m+ 1 2mω 2 0Q2+ γ 2P Q. Repare-se que K(Q, P ) 6= H(Q, P ), o que reflecte que o novo Hamiltoniano só pode ser correctamente obtido recorrendo à função geradora (e não por mera substituição das coor-denadas). Como K 6= K(t), então existe conservação de K ( ˙K = 0), pelo que a quantidade
A(q, p) ≡ K(q, p) = p 2 2me −γt+1 2mω 2 0q2eγt+ γ 2pq = H(q, p, t) + γ 2pq
é conservada. Este último resultado não é nada óbvio e mostra a utilidade da transformações canónicas na revelação de propriedades interessantes dos sistemas hamiltonianos.
e) [2 val] Obtenha a equação de Hamilton-Jacobi em termos das coordenadas Q, P . Sem a resolver, explique como procederia para determinar q(t) e p(t).
A equação de Hamilton-Jacobi para as coordenadas Q e P é dada por uma transformação canónica Q → Q0 e P → P0 que conduz a um novo Hamiltoniano que é identicamente nulo,
K0(Q0, P0) = K(Q, P ) + ∂S ∂t = 0,
onde S ≡ S(Q, t) é a função principal de Hamilton. Explicitamente, uma vez que S(Q, t) é uma função geradora do tipo F2, P =
∂S ∂Q, a equação escreve-se 1 2m ∂S ∂Q 2 +1 2mω 2 0Q2+ γ 2Q ∂S ∂Q+ ∂S ∂t = 0.
Além disso, como K = const. ≡ α, podemos escrever a equação de Hamilton-Jacobi na forma ∂S
∂t = −α, ou seja S(Q, t) = W (Q) − αt, onde W (Q) é a função característica. Após a integração da equação diferencial ordinária para W (Q), usaríamos o facto de que as novas equações de Hamilton fornecem P = ∂W
∂Q e Q = ∂W
∂P = β, com α e β surgindo como constantes de integração que poderão ser fixadas pelas equações iniciais q(t = 0) e p(t = 0), onde q(t) = Q(t)e−γt/2 e p(t) = P (t)eγt/2.
Questão 4. [10 val] O celebrado modelo de Ginzburg-Landau é um marco no estudo de transições de fase. Para o ilustrar, vamos estudar uma possível formulação lagrangeana da transição de fase que ocorre em sistema ferromagnéticos. Seja ϕ(x, t) um campo real clássico que descreve o magnetismo numa barra unidimensional de ferro. A densidade lagrangeana é dada por
L = 1 2ρ " 1 v2 ∂ϕ ∂t 2 − ∂ϕ ∂x 2# −1 2α(T − T0)ϕ 2−1 4βϕ 4,
onde ρ é a densidade linear de massa, v é uma velocidade típica, e α e β são constantes positivas (representando a permeabilidade magnética e a interacção entre correntes internas, respectiva-mente).
a) [2 val] Obtenha a equação do movimento para o campo ϕ.
A equação de Euler-Lagrange para um sistema contínuo descrito por um campo ϕ(x, t) é dada por ∂µ ∂L ∂(∂µϕ) − ∂L ∂ϕ = 0, onde ∂µ = ∂ ∂xµ e x
µ= (t, x) representa o espaço-tempo. Usando a convenção da soma do índice repetido, vem explicitamente
∂t ∂L ∂(∂tϕ) + ∂x ∂L ∂(∂xϕ) −∂L ∂ϕ = 0, o que resulta em ρ v2 ∂2ϕ ∂t2 − ∂2ϕ ∂x2 + α(T − T0)ϕ + βϕ 3 = 0.
b) [2 val] Argumente seo sistema é, ou não, simétrico para a transformação contínua ϕ → ϕλ = ϕ(x + λ, t) e obtenha a corrente que lhe está associada. [Sugestão: Faça uso da definição jµ =
∂L ∂(∂µϕ) δϕ, onde ∂µ= ∂ ∂xµ e x µ= (t, x) = x µ (métrica euclidiana).]
Em primeiro lugar, notamos que, pelo teorema de Noether, existe a seguinte relação δL = ∂µ ∂L ∂(∂µϕ) δϕ ≡ ∂µjµ, onde δX = ∂X ∂λ λ=0 . Neste caso, δϕ = ∂ϕ(x + λ) ∂(x + λ) ∂(x + λ) ∂λ λ=0 = ∂ϕ ∂x. Portanto, resta verificar se o Lagrangeano é invariante para a transformação infinitesimal ∂ϕ
∂x. • ∂λ ∂ϕλ ∂t λ=0 = ∂λ ∂ϕ ∂t λ=0 = 0. • ∂λ ∂ϕλ ∂x λ=0 = ∂λ ∂ϕ ∂(x + λ) ∂(x + λ) ∂λ λ=0 = 0. • ∂λ −α 2(T − T0)ϕ 2 λ+ β 4ϕ 4 λ λ=0 =α(T − T0)ϕ + βϕ3 ∂ ϕλ ∂λ λ=0 6= 0.
Os termos cinéticos são invariantes para a transformação, mas o termo de potencial (que depende explicitamente em ϕ) não (apenas o será nos pontos de equilíbrio, mas não em geral). Assim, como δL 6= 0, temos que a corrente
jµ= (jt, jx) = ∂L ∂(∂tϕ) ∂ϕ ∂x, ∂L ∂(∂xϕ) ∂ϕ ∂x = ρ v2 ∂ϕ ∂t ∂ϕ ∂x, −ρ ∂ϕ ∂x 2!
associada a esta simetria não é conservada.
c) [2 val] Estude o Lagrangeano quanto aos pontos de equilíbrio e mostre que o sistema está magne-tizado abaixo da temperatura de Curie, i.e. se T ≤ T0. Represente graficamente o potencial V (ϕ) para as diferentes situações e o valor da magnetização de equilíbrio ϕ0(T ). Comente fisicamente.
O Lagrangeano pode ser reinterpretado como L = T − V, onde V = 1
2α (T − T0) ϕ 2+1
4βϕ 4 é o potencial. Os pontos de equilíbrio são dados pela condição
∂V
∂ϕ = 0 ⇐⇒ α(T − T0)ϕ + βϕ 3 = 0,
que possui as soluções ϕ0= 0 ϕ±= r α
β(T0− T ). Acima da temperatura de Curie, T > T0, apenas ϕ0 é ponto de equilíbrio (correspondendo a um ponto de equilíbrio estável,
∂2V ∂ϕ2 0 = α(T − T0) > 0); para T < T0, ϕ0 e ϕ± estão definidos, mas desta feita correspondem a equilíbrios instável e estáveis, respectivamente, i.e.
∂2V ∂ϕ2 0 = α(T − T0) < 0, ∂2V ∂ϕ2 + = ∂ 2V ∂ϕ2 − = 2α(T0− T ) > 0.
Isto indica que o sistema apenas apresenta uma magnetização expontânea abaixo de uma determinada temperatura. Fisicamente, tal acontece porque a temperatura induz o aumento da agitação térmica dos dipolos magnéticos (como verão em mecânica quântica, dos “spins”) e, por conseguinte, a desordem. A fase magnética é mais ordenada do que a fase não-magnética. No painel da esquerda, representamos o potencial V(ϕ) para T > T0(tracejado) e T < T0 (cheio); no painel da esquerda, representam-se as soluções de equilíbrio (ϕ0, a tracejado, e ϕ±, a cheio.) -2 -1 0 1 2 -2 -1 0 1 2 3 4 φ V (φ ) 0.0 0.5 1.0 1.5 2.0 -1.5 -1.0 -0.5 0.0 0.5 1.0 1.5 T/T0 φ0 , φ+
/-d) [2 val] Expanda o Lagrangeano na vizinhança do ponto de equilíbrio, ϕ ' ϕ0+ ξ, até segunda ordem no campo ξ. Identifique a simetria que é aqui espontaneamente quebrada e discuta a emergência dos ditos campos de Goldstone e/ou de Higgs, justificando. [Sugestão: (a + b)4 = a4+ 4a3b + 6a2b2+ 4ab3+ b4.]
Expandimos, por exemplo, perto do equilíbrio ϕ0 = r α
β(T0− T ). Os termos cinéticos vêm rapidamente escritos como
T ' 1 2ρ " 1 v2 ∂(ϕ0+ ξ) ∂t 2 − ∂(ϕ0+ ξ) ∂x 2# = ρ " 1 v2 ∂ξ ∂t 2 − ∂ξ ∂x 2# . O termo de potencial vem
V (ϕ0+ ξ) ' V (ϕ0) + ∂V ∂ϕ ϕ0 ξ + 1 2 ∂2V ∂ϕ2 ϕ0 ξ2+ O(ξ3) = α(T0− T )ξ2. Assim, o Lagrangeano “quebrado” pode ser escrito como
L ' 1 2ρ " 1 v2 ∂ξ ∂t 2 − ∂ξ ∂x 2# − α(T0− T )ξ2.
Assim, como consequência da quebra da simetria discreta Z2 (i.e. a inversão ϕ → −ϕ), surge um campo de Higgs de massa m ∼ pT0− T que apenas está definida para T < T0. Como esperado, uma vez que a simetria quebrada é discreta (não contínua), não emerge nenhum campo de massa nula, o que está de acordo com o Teorema de Goldstone.
e) [2 val] Mostre que a relação de dispersão das ondas de spin é dada por ω2 = ω02+ v2k2,
discutindo a relação entre ω0 e a quebra espontânea de simetria que acompanha a fase ferromag-nética. Qual seria a relação de dispersão para o caso T > T0?
A equação do movimento para o campo ξ é dada por ∂L ∂(∂tξ) + ∂L ∂(∂xξ) −∂L ∂ϕ = 0, o que fornece ∂2ξ ∂t2 − v 2∂2ξ ∂x2 + 2αv2 ρ (T0− T )ξ = 0.
Usando a decomposição em ondas planas (possível aqui porque a equação diferencial é linear!), ξ(x, t) =X k,ω Ak,ωeikx−iωt, temos −ω2+ v2k2+2αv 2 ρ (T0− T ) X k,ω Ak,ωeikx−iωt= −ω2+ v2k2+2αv 2 ρ (T0− T ) ξ = 0.
Uma vez que ξ é arbitrário, a condição anterior só é possível se ω2= v2k2+2αv
2
ρ (T0− T ), onde observamos que ω0 =
s 2αv2
ρ (T0− T ). Na fase magnetizada, a frequência de corte ω0 6= 0, as ondas de spin são dispersivas (∂kω 6= ω/k). Na fase normal (não-magnética), a frequência de corte é nula (ω0 = 0), e a relação de dispersão é ω = vk.
Comentário: Embora ainda não tenhamos ferramentas para compreender a profundidade deste resultado, o que isto nos diz é que excitar ondas num sistema magnetizado custa energia ao sistema, ao passo que na fase normal as excitações são produzidas com energia arbitrariamente pequena. Por outras palavras, a fase magnética (mais ordenada) é mais “rígida” (portanto, menos susceptível) à ocorrência de excitações. Isto é consequência di-recta do facto de à quebra espontânea de uma simetria discreta estar sempre associado um modo de Higgs com massa (caso a simetria quebrada fosse contínua, o modo de Goldstone correspondente estaria intimamente ligado a uma relação de dispersão do tipo acústico, ω ∼ k).
F1(qi, Qi, t) F2(qi, Pi, t) F3(pi, Qi, t) F4(pi, Pi, t) pi = ∂F1 ∂qi pi = ∂F2 ∂qi qi= − ∂F3 ∂pi qi = − ∂F4 ∂pi Pi = − ∂F1 ∂Qi Qi = ∂F2 ∂Pi Pi = − ∂F3 ∂Qi Qi = ∂F4 ∂Pi K = H +∂F1 ∂t K = H + ∂F2 ∂t K = H + ∂F3 ∂t K = H + ∂F4 ∂t ∂pi ∂Pi = −∂Qi ∂qi ∂pi ∂Pi = ∂Qi ∂qi ∂qi ∂Qi = ∂Pi ∂pi ∂Qi ∂pi = −∂qi ∂Pi