• Nenhum resultado encontrado

O slam na encruzilhada dos Estudos Culturais

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O slam na encruzilhada dos Estudos Culturais"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

O slam na encruzilhada dos Estudos Culturais

Carolina Nascimento de Melo (PPGS UFSCar)1 Ana Carolina Costa dos Anjos (UFSCar)2 Resumo

Os Estudos Culturais trazem debates sobre marginalidade, alteridade, insubordinação e resistência no cotidiano, por isso, auxilia-nos a pensar os Circuitos Culturais em seus processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação (DU GAY et al., 2015). Nesse artigo buscamos apreender os slams que são competições de poesia falada, na qual texto e a performance dos poetas são avaliados por júri e plateia que interagem em um mesmo espaço e tempo. Durante a pandemia, grupos de slam têm feito lives nas plataformas de mídias digitais, trazendo novas formas de produção e consumo desse movimento. Assim, olhamos para o Slam da Guilhermina, no período de isolamento social (Covid-19), na tentativa de entender os circuitos culturais e os usos do Youtube. Para tanto, utilizamos o Circuito da Cultura como instrumental teórico-metodológico. E, por fim, infere o discurso identitário e vontade de auto representação construídos no Slam.

Palavras-chave: Estudos Culturais. Circuito da Cultura. Slam da Guilhermina. Plataformas

digitais

Introdução

Com a morte do general iraniano Qasem Soleimani e as ameaças do, então, presidente estadunidense Donald Trump, manchetes na imprensa anunciavam a possibilidade de uma terceira guerra mundial, mas o ano estava apenas começando. Em fevereiro, no Brasil, ainda se brincava o carnaval, enquanto a Ásia e Europa já falavam de centenas de mortes por causa de um novo vírus. Dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde caracteriza a doença causada pelo novo coronavírus, Covid-19, como pandemia. O Ministério da Saúde, por sua vez, o faz em 20 de março de 2020 (BRASIL, 2020). As orientações são isolamento social e o mundo reorienta-se, sem aviso prévio, para esse novo modus operandi. Este artigo, busca olhar para os redimensionamentos dos contextos interativos do movimento cultural slam, durante o período de isolamento social, na cidade de São Paulo. Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos dos Estudos Culturais, principalmente: dos estudos de mídias (SOVIC; MARTINELLI;

1 Mestranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS - UFSCar), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Membra do grupo de pesquisa Transnacionalismo negro e Diáspora Africana e do Núcleo de Pesquisa NEAB-UFSCar. E-mail: melo.n.carolina@gmail.com;

2 Doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS- UFSCar), mestre em Ciências do Ambiente, graduada em Comunicação Social/Jornalismo, ambos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Membra do grupo de pesquisa Transnacionalismo negro e Diáspora Africana e dos Núcleos de Pesquisa NEAB-UFSCar e OPAJE-UFT. E-mail: carolcdosanjos@gmail.com.

(2)

GUAZINA, 2016); a proposta analítica do Circuito da Cultura de Paul Du Gay et al. (2015), apropriação de Lisbôa Filho e Coiro Moraes (2014) do Circuito para pesquisas em audiovisual, para assim olhar o Slam da Guilhermina. Nosso foco é o canal do Youtube3, especificamente entre março e outubro de 2020, onde ocorreram as batalhas de poesia, em formato de lives. Antes as plataformas eram utilizadas como ferramentas de divulgação de artistas e obras, no contexto analisado passa a ser meio de criação e manutenção de solidariedade, afeto, significados e sentidos experienciados no evento presencial. Nesse sentido, buscamos entender essa nova configuração dos Circuitos de Cultura deste slam.

Nas batalhas de poesia falada, em momentos de evento presencial (nas ruas, praças, etc.), os slams podem ser lidos como uma oportunidade de alguns jovens ‘fazerem barulho’, se expressarem artística e criticamente, sinalizando multiplicidades de experiências ao falarem sobre si em um ambiente coletivo, apesar da violência que os atravessam. Em levantamento bibliográfico nas plataformas Scielo e BDTD, utilizando as palavras-chave slam poetry e slam poesia, encontramos 19 pesquisas. Os textos fazem referência à performance, partilha e ao caráter democrático dos slams e estão em outras áreas das Humanidades e não usam os Estudos Culturais como aporte teórico e metodológico (salvo uma exceção que se vale do conceito de identidade cultural a partir de Stuart Hall4). Dessa maneira, olhar para o Slam da Guilhermina no período e com o frame proposto é uma forma de tentar contribuir com o preenchimento dessa lacuna nas Ciências Sociais.

Os Estudos Culturais, principalmente o Circuito da Cultura (DU GAY et al., 2015), parece-nos um enquadramento privilegiado para se debruçar sobre os slams, dando-nos suporte à análise dos processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação; auxiliando no entendimento de um movimento cultural e que sendo contemporâneo, praticado por jovens e em meio urbano se valem de plataformas de mídias digitais para que ocorra a

3 O Slam da Guilhermina também possui perfil no Instagram e página do Facebook, nessas plataformas fazem divulgação de fotos, vídeos de poesia e projetos dos organizadores desse Slam, além de divulgarem data, horário do Slam. Vale destacar que, durante a pandemia, as inscrições dos poetas acontecia por meio de um formulário online, na FanPage e Bio do Instagram. Além de transmitirem no canal do Youtube também faziam na Fanpage. Endereços do Slam nas plataformas é https://www.facebook.com/slamdaguilhermina;

https://www.instagram.com/slamdaguilhermina e

https://www.youtube.com/channel/UCm3LjEJzzPOh5yxUGbGXEnA.

4 Perspectivando esse dado e o comparando ao texto de Borba (2015) que narrar a trajetória do intelectual jamaicano, as entradas e citações de suas obras no Brasil, têm-se que: “A identidade cultural na pós-modernidade lidera a lista de citações, algo que se reproduz quando se consideram as palavras-chave em sua particularidade. Considerando a totalidade dos trabalhos consultados, A identidade cultural na pós-modernidade corresponde a 56 das 125 citações, ou seja, cerca de 44,8% do total.” (BORBA, 2015, p. 36). Além disso, vale ressaltar que “(...) em 2015 20 dos 317 textos do Hall traduzidos para o português.” (BORBA, 2015, p. 40). Acreditamos que há o impacto da política de tradução, todavia outros elementos compõem o não uso das abordagens teórico-metodológicos Estudos Culturais na Sociologia no Brasil.

(3)

produção e o consumo. Entendemos o slam como uma linguagem de representação da realidade - “mapas conceituais compartilhados” (DU GAY et al., 2015), vemos as produções de significados e sentidos, bem como seus compartilhamentos e (re)significações, possibilitando comunicações entre os sujeitos e a criação de identidades.

Na intenção de apreender as agências dos sujeitos que organizam, participam e ‘consomem’ o Slam da Guilhermina propomos entender como estão mantendo o circuito da cultura durante o período de isolamento social. O texto apresenta um breve histórico do Slam, a proposta teórica-metodológica, para então, analisar as batalhas que ocorreram em formas de lives em 27 de março; 24 de abril; 15 e 29 de maio; 26 de junho; 31 de julho; 28 de agosto e a Grande Final em 30 de outubro. Começamos apresentando o slam no próximo subtítulo.

‘GuilherMANOS, GuilherMINAS: 1, 2, 3 Slam da Guilherminaaa!!’

“Quem vencer essa noite será nomeado/Slampião ou Slampiã/Porém não levarás para casa/A Maria Bonita/Vem/Pode chegar/Sob a luz da lamparina/Celebrando a poesia/No slam mais roots da América Latina/Ocupando a praça muito além da fumaça/Não duvide da fé/Porque Guilhermina é/Esperança/Somos o bando do Lampião/E o nosso cangaço?/É Cangaíba nosso pedaço/Ermelino Matarazzo/Da Guilhermina a São Bento é só uma questão de tempo/Somos o Bando do Lampião/Praticando slam como num rachão de domingo/Só que pra gente também é balada/É resistência. É celebração. É convívio./” (ALCALDE, 2014, p. 15 apud STELLA, 2015, texto eletrônico)5

Slam poetry são competições de poesia falada e performática, cujas regras principais

são: poesia autoral, com no máximo três minutos, sendo proibido uso de elementos cênico (apenas corpo e voz). Após o término de cada performance poética a(o)s jurada(o)s escolhida(o)s de forma aleatória na platéia, dão suas notas (de 0.0 a 10), são cinco jurada(o)s e não são válidas as notas mais baixa e mais alta, considera-se assim, apenas 3 notas. O trabalhador civil e poeta branco de Chicago (EUA), Marc Smith (2013), define o movimento

poetry slam como a junção da arte da poesia com a arte da performance.

Nos anos 1980, a poesia contemporânea estadunidense estava restrita a pequenos grupos dentro das universidades. Neste contexto, Marc Smith organizava inúmeros encontros poéticos fora dos espaços acadêmicos, como bares e cabarés em bairros brancos da classe trabalhadora

5 Manifesto do Slam da Guilhermina, publicado em livro, gravado em CD e recitado na abertura de todas edições das batalhas de Slam durante o período da pandemia.

(4)

de Chicago. Em 1986, ele simulou uma competição de poesia na qual o público poderia julgar os poemas recitados com vaias e aplausos. Essa brincadeira deu certo e se tornou uma atração regular no bar Green Mill (Broadway, Chicago, EUA) e, depois de um tempo, foi nomeada de

Uptown Poetry Slam, o primeiro slam ou competição de poesia falada (SOMMERS-WILLETT,

2009).

O sucesso desse movimento pode ser atribuído, principalmente, a dois fatores: a classe trabalhadora como um público não-tradicional de poesias estar no centro do início do movimento em Chicago e porque nos slams a relação entre público e slammers (poetas) torna-os mais interativtorna-os, teatrais e quiçá engajadtorna-os, algo que era novidade. Ao mesmo tempo, esse período foi marcado pelo crescimento do rap (rythm and poetry), um dos pilares do movimento hip-hop, nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos da América. Segundo Gioia (2014), poeta e professor na University of Southern California, esse contexto é conhecido como período de renascimento da poesia estadunidense.

Desta maneira, o crescimento dos slams ocorreu de forma exponencial, se espalhando por diversos lugares do país e tendo sua primeira competição nacional em 1990. Para Sommers-Willet (2009), as competições cresceram devido aos seus ideais democráticos, como por exemplo: competições em bares, lanchonetes e teatros; qualquer poeta pode se inscrever para recitar sua poesia; as pessoas interagem com as poesias e performances; jurada(o)s são escolhida(o)s de forma aleatória (o que garante que não necessariamente sejam ‘entendedora(e)s’ de poesia, mas que tenham apreciado e se permitido serem tocada(o)s pela performance e poesia); entre outros.

Esse renascimento da poesia ao qual Gioia (2004) faz referência fora comemorado sobretudo pela juventude estadunidense. Por ter reaparecido no cenário social, as práticas de

poetry slam foram incorporadas ao discurso midiático, principalmente em propagandas, como

da franquia do Mc Donalds, anúncios do serviço público Partnership for a Drug-Free America, no canal MTV e em um episódio d’Os Simpsons, conforme aponta Sommers-Willett (2009). A autora acrescenta que, o conjunto da agência de atores construindo e consumindo o movimento cultural, os discursos midiáticos e o florescimento do movimento hip-hop (que traz identidades, particularmente de raça e classe) são elementos constituintes da ascensão e celebração do renascimento da poesia (SOMMERS-WILLETT, 2009).

No Brasil, algo semelhante aconteceu. A competição de poesia falada foi pautada como parte da programação da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2019; Mel Duarte, uma importante slammer participou de uma propaganda do Banco Itaú; a novela Bom Sucesso, transmitida pela Rede Globo de Televisão (2019-2020, ‘horário das sete’) exibiu uma

(5)

competição de slam como parte do enredo e também houve a contratação de alguns poetas pela referida emissora. Isto é, o slam passou a ser pautado pelo discurso midiático no país.

Em solo brasileiro, uma narrativa aponta que o primeiro slam foi criado por Roberta Estrela D’Alva, em 2008, e nomeado ZAP! Slam (Zona Autônoma da Palavra Slam). A atriz-mc conheceu os slams a partir de uma companheira de teatro e ativismo e começou a pesquisar na internet sobre esse movimento já consolidado nos Estados Unidos. Depois de algum tempo pôde ir ao EUA e frequentar os slams. Não havendo slams por aqui se propôs a criar o ZAP! Slam em conjunto com o Teatro Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (TNBD), localizado no bairro Pompéia, zona Oeste da capital paulista (NASCIMENTO, 2012). Desta forma, o primeiro slam de São Paulo - e provavelmente do Brasil - foi criado conforme os moldes estadunidenses.

Em entrevista6, Emerson Alcalde, idealizador e um dos organizadores do Slam da Guilhermina, afirma que participou do primeiro evento de competições de poesia falada no TNBD e se tornou um frequentador assíduo. Emerson frequentava os saraus da zona Sul e era dos movimentos culturais, em geral, e do movimento hip-hop da zona Leste (onde mora), em específico. Por ter que circular pela cidade para conseguir ir aos saraus e slam, sempre era questionado sobre o porquê não criar algo similar em sua quebrada. Essa proposta se materializou quando passou a atravessar a plataforma da estação de metrô Guilhermina-Esperança, na zona Leste, para pegar uma van e encontrar Cristina Assunção, organizadora, professora e sua companheira. Ao fazê-lo começou a reparar na praça-anexo do metrô e nutrir uma vontade de fazer algo cultural na praça - local de passagem de usuários do transporte público. A praça fica do lado esquerdo do metrô, além de ser bem localizada e de fácil acesso, possui um formato que lembra um teatro arena, em forma circular delimitada por bancos, em um dos lados possui uma leve subida que leva a pontos de ônibus e ao comércio local (ver Figura 1 na próxima página).

Da vontade nutrida à realidade foi questão de um post. A promessa do Slam da Guilhermina nasce em um ‘rolê’ e fora registrado com um post. Narrativa estranha? Explicamos! Emerson Alcalde e Vander Che (grafiteiro e historiador) se conheceram no Movimento Cultural Ermelino Matarazzo. Um dia, Vander convidou Emerson para visitarem a praça e lá pensarem no que poderia ser feito. Nesse mesmo dia, segundo Cristina Assunção

6 Entrevista concedida a autora Carolina Nascimento de Melo, em abril de 2020. Realizada para pesquisa de mestrado em andamento sobre o Slam da Guilhermina (PPGS/UFSCar - 2019-2021).

(6)

(2019)7, os dois articuladores culturais gravaram um vídeo no qual anunciaram que iriam fazer um slam ali naquela praça e postaram no Facebook. A proposta era ocupar uma praça na ‘quebrada’ da zona Leste, onde as pessoas pudessem ouvir e declamar suas poesias. Nasce o Slam da Guilhermina, em 2012, conhecido e defendido como o segundo de São Paulo e o primeiro slam de rua (ou praça) do mundo.

Figura 1 - Praça onde ocorre o Slam da Guilhermina (com slam)

Fonte: Motta (2017)

Legenda: Ao centro slammer não identificado, ao redor o público e ao fundo a Estação de Metrô Esperança-Guilhermina. Acervo Digital Slam da Guilhermina, fotografia tirada por Rodrigo Motta e publicada na FanPage

Slam da Guilhermina em 9 ago. 2017.

Com a publicização facilitada pela internet,após o Slam da Guilhermina inúmeros outros

slams em praças públicas surgiram em São Paulo e no Brasil. Na capital paulista, os slams que

surgiram na sequência e se valem do mesmo formato são chamados de crias da Guilhermina. Atualmente, há pelo menos 210 grupos de slam em todas as regiões do país e há uma competição nacional que ocorre anualmente: o SLAM BR (MOLINERO, 2019). E estima-se que haja mais de 700 comunidades de slam ao redor do mundo.

Além da ocupação dos espaços abertos e públicos para competições de poesia, algo que é visto como uma “característica nacional” dos slams brasileiros, o Slam da Guilhermina desenvolveu o projeto Slam Interescolar. Esse leva as competições para dentro de escolas do

7 Entrevista concedida a autora Carolina Nascimento de Melo, em março de 2020. Realizada para pesquisa de mestrado em andamento sobre o Slam da Guilhermina (PPGS/UFSCar - 2019-2021).

(7)

ensino básico, além de palestras e oficinas sobre poesia com o(a)s docentes dos colégios que acolhem o projeto.

Emerson Alcalde e Cristina Assunção são responsáveis pela organização e revisão da Coleção Slam, lançada pela editora Autonomia Literária, que contém quatro livros (LGBTQIA+, Antifa, Negritude e Empoderamento Feminino) com as temáticas mais recorrentes e a(o)s poetas mais conhecida(o)s. Além disso, desenvolvem diversos projetos com órgãos governamentais e culturais da cidade e estado de São Paulo.

Com esta apresentação, entendemos que os slams são artefatos culturais. Isto porque, criam e estão atrelados a criação de significados. Significados esses que tecem representações e identidades, os quais são importantes elementos para se entender a sociedade e cultura contemporânea. No tópico a seguir, explicamos melhor esses conceitos e seus contextos.

Circuito da Cultura: um caminho que nos cruza para pensar o slam

Durante meados do século XX, a cultura passa a ser percebida pelas Ciências Sociais (especificamente pela Sociologia) como um importante elemento que constitui a sociedade. Esse momento teórico e social é conhecido como a virada cultural, cuja característica principal é descentralizar as discussões focadas nas estruturas e apresentar a importância da cultura tanto na constituição da sociedade como no discurso acadêmico. A cultura passa a ser utilizada como uma categoria para compreensão da sociedade (mundo dos negócios, domínio político, entendimento de instituições sociais, práticas discursivas e agências). Esse giro epistêmico também é observável nos Estudos Culturais, Semiótica, Literatura, Psicologia entre tantas outras que passaram a considerar a cultura não apenas como resultado dos processos econômicos e políticos (DU GAY et al., 2015).

Há dois motivos para isso: o primeiro refere-se aos assuntos da substância empírica preocupados com as práticas culturais e institucionais nas vidas sociais, principalmente após o crescimento das mídias de massas, sistemas globais de informação, novas formas visuais de comunicação que impactam os modos que nos organizamos, entendemos e nos relacionamos. Já o epistemológico refere-se às questões propriamente do conhecimento. Desta maneira, alguns teóricos passaram a afirmar que se todas as práticas sociais são práticas significativas, então todas são fundamentalmente culturais e devem fazer parte da explicação sociológica (DU GAY et al., 2015).

(8)

No livro Doing Cultural Studies: The Story of The Sony Walkman (2015)8, os autores sugerem utilizar um artefato cultural ou médium da cultura moderna (walkman), a fim de apresentarem como a cultura funciona atualmente. Para tanto, utilizaram um modelo teórico-metodológico baseado na articulação que, segundo os autores:

É uma ligação na qual as condições de existência ou emergência precisam ser localizadas nas contingências das circunstâncias. Assim, mais que privilegiar um único fenômeno (...) na explicação sobre o significado que um artefato venha a possuir, argumenta-se (...) que é a combinação de processos – na articulação – que o início de uma explicação pode ser encontrada. (DU GAY, et al. 2015, p. XXX, tradução nossa).

Embora o Walkman não seja mais um artefato culturalmente relevante, o modelo desenhado por esse arcabouço teórico-metodológico ainda é uma potente ferramenta análitica para artefatos culturais da contemporaneidade, como os slams. A articulação sugerida pelos autores é acionada nesse artigo para uma análise sociológica dos complexos processos culturais. O modelo apresenta cinco processos culturais: representação, identidade, produção, consumo e regulação (ver Figura 2). E é a partir da articulação desses processos que se forma o Circuito

da Cultura. Por ser um circuito não há início ou fim e cada parte é retomada ou reaparece na

próxima. A separação ocorre para fins de pedagógicos e de análise, mas na vida real eles se sobrepõem e se entrelaçam continuamente. Imageticamente os(as) autores(as) propuseram a figura 2 (próxima págia). Para facilitar a compreensão de cada um dos elementos que compõem o circuito descrevemos de forma compilada em um quadro (ver Quadro 1, próxima página).

8 Essa é a segunda edição da obra publicada em 1997. Essa edição traz uma introdução, box ao longo dos capítulos atualizando e redimensionando a perspectiva teórico-metodológica para o momento atual. Além de incorporar outras indicações de leituras que pensam os usos da internet.

(9)

Figura 2 - Circuito da Cultura

Fonte: Du Gay et al. (2015, p. XXXI)

Quadro 1 - Processos do Circuito da Cultura

PROCESSO SÍNTESE

Representação

Principal aspecto dos processos culturais. Prática de construção de significado através de signos e da linguagem. Por significado entende-se como algo é representado na linguagem, no discurso, em conceitos, ideias e conhecimento. Determinado artefato pode ser considerado cultural, pois é construído por meio de uma variedade de significados e práticas, logo é um medium ou canal de circulação de significados. Atualmente a criação de significados está na interface entre a cultura e a tecnologia. O escopo, volume e variedade de significados, mensagens e imagens foram vastamente expandidas com o aproveitamento de novas tecnologias da comunicação para produção de cultura.

Identidade

Construção de identidade ocorre se valendo da representação (linguagens). O principal objetivo da representação de determinados artefatos culturais é construir uma identificação entre consumidores/usuários e os significados, de tal maneira que nos olhemos enquanto consumidores/usuários em potencial para os artefatos. Ao mesmo tempo, determinado artefato pode trazer diferentes significados e representações e, assim, evocar diferentes identidades e identificações, sugerindo a possibilidade de escolha e diferença (que se dá no consumo). Desta maneira, houve uma expansão da escolha pessoal e o uso de objetos para expressar a individualidade. Se ocorre uma identificação bem-sucedida entre um artefato e grupos e seus estilos de vida, depois de um tempo ele passa a representá-los culturalmente. A linguagem funciona anexando significados às identidades e pode nos dizer que tipos de identidades podemos nos tornar e como.

(10)

Produção

Necessário observar como um artefato é produzido culturalmente e como os processos de produção são representados de diferentes formas. Interação entre produção e consumo evidencia as alterações no artefato. É necessário ter em mente como os produtores representam a si e seus produtos a fim de criar uma identificação entre eles e os consumidores (a narrativa é um dos meios de dar sentido a produção). Um artefato cultural é um produto híbrido da transculturação (global com uma diversidade de origem e combinação de elemento), e resultado da sinergia (tentativa de sincronizar e forjar ativamente conexões diretas entre tecnologia e entretenimento). A linguagem-tecnologia e a produção-uso são dependentes e entrelaçados.

Consumo

A criação de significados é um processo contínuo e também é criado durante o consumo. Com os novos meios de produção cultural a função entre produtores e consumidores culturais se tornou mais intercambiável. Dessa forma, o consumo ajuda a entender que os significados não são simplesmente enviados por produtores e recebidos por consumidores, mas feitos e disputados durante o uso e a partir da posição que artefatos/objetos ocupam na vida cultural cotidiana de grupos/indivíduos. Assim, o uso de determinados artefatos serve também para demarcar e afirmar identidades culturais e diferenças sociais (processo de bricolagem).

Regulação

Os meios digitais de comunicação são elementos de transformação da sociedade e da esfera doméstica, ou seja, demarcam a diluição das fronteiras binárias e antagônicas do que é para/de espaço público e espaço privado e seus sistemas classificatórios rígidos. Devido à essa ruptura da ordem social, muitos setores da sociedade passam a defender o uso limitado desses artefatos por meio de leis. A regulação é uma tentativa de manutenção de uma dada ordem.

Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Du Gay et al. (2015)

Entendemos que é no Circuito da Cultura (processos articulados) que se ampliam as possibilidades de entendimento dos slams, afinal, trata-se de um ‘objeto’ complexo de pulsação criativa, protagonizada principalmente por jovens negra(o)s e periférica(o)s que, apesar da violência contra a juventude negra, extraem de suas experiências a arte. Relembrando que a separação é para fins de análise e no cotidiano social todos são imbricados e articulados constantemente.

Arrematando, com oito anos de existência, diversas competições, envolvimento com as escolas, publicação de livros e inúmeras histórias, o Slam da Guilhermina, precisou se readaptar no atual contexto de isolamento devido a pandemia do vírus Covid-19. Apesar do importante papel do público para as performances poética, desde março de 2020, as competições aconteceram em formato de lives no Youtube e as interações se deram no chat da própria plataforma, além de outras interações tecno midiatizadas (redimensionamento dos contextos interativos) nos perfis de outras plataformas do Slam da Guilhermina. Então, vamos para internet (de onde quase não temos saído).

(11)

Exuzilhada Digital: O Slam, os usos da internet, a pandemia e o Circuito da Cultura

“Infelizmente, estamos aqui no meio de uma pandemia, mas do outro lado foi isso, né? Utilizar as redes para nos conectar. Conectar entre pessoas não com robôs. Outro problema também é que estamos muito tempo dentro da caixinha [tela]. Mas aqui a gente está entretendo e vocês entraram porque quiseram. Vamos fugir dos algoritmos e viver a nossa vida.” (ASSUNÇÃO, 2020, 01:32:18 – 01:32:40).

‘Fugir dos algoritmos’ não é uma questão simples de discutir, quiçá de fazer e, de igual maneira, viver a vida também não o é. Com a fala de Cristina Assunção, no evento de setembro9, abrimos esse subtítulo que apresenta a análise. Uma vez historicizado os slams e demonstrado como o Slam da Guilhermina pertence a uma rede, partimos da rede do Slam para o Slam na rede. Nosso foco está nas agências digitais desses jovens que se valem da internet para e na produção e circulação de artefatos culturais e, dessa forma, pensar outra faceta da representação e como esses elementos constroem a identidade e o pertencimento.

Abordagens sobre os usos da internet, a digitalização e a plataformização da sociedade estão em um campo do conhecimento chamado Estudos de Plataforma, cujas perspectivas acadêmicas consolidadas, segundo Thomas Poell, David Nieborg e José Van Dijck (2019), são: os estudos de software; economia política crítica; estudos de negócios e estudos culturais. As três primeiras perspectivas têm em comum análises das instituições e institucionalização das plataformas abordando três dimensões: infraestrutura de dados, mercados e governança, ao passo que os Estudos Culturais discutem como os usos das plataformas modificam as práticas culturais e são modificadas pelos usos dos usuários. Nas palavras do(a)s autore(a)s, os usos da “(...) plataforma leva a uma (re)organização das práticas culturais em torno das plataformas, enquanto essas práticas moldam simultaneamente as dimensões institucionais de uma plataforma.” (POELL; NIEBORG; VAN DIJCK, 2019, p. 6, tradução nossa). Embora não sejam excludentes essas vertentes auxiliam na compreensão do processo de plataformização ao invés de entendê-la como uma “coisa” (plataforma em si).

Na esteira da discussão sobre as transformações das práticas culturais e produção dos artefatos de cultura que se dão na era da digitalização apontamos outro dado que é o recorte geracional dos sujeitos que agenciam os movimentos sociais e culturais dessa natureza nos contextos urbanos, falamos da juventude (pessoas entre 15 - 29 anos). Para trazer ‘imagens’

9 Essa edição aconteceu no dia 28 de agosto, às 20 horas, no canal do Youtube e Fanpage do Slam da Guilhermina. A transcrição da fala da Cristina Assunção é exatamente do momento em que está conversando com um slammers, poeta angolano Fernando Cairos.

(12)

citamos alguns eventos recentes como as manifestações de julho de 2013 (BERNARDINI; GOBBI, 2013), os rolezinhos (CALDEIRA, 2014) e as ocupações das escolas (ROMANCINI; CASTILHO, 2017; MEDEIROS, JANUÁRIO; MELO, 2019), sendo eles protagonizados por jovens.

Como mencionamos, antes do isolamento social (Covid-19), as plataformas eram utilizadas para informar sobre os eventos, as produções, as poesias, as imagens e vídeos da(o/e)s

slammers finalistas, mas houve uma (re)organização das práticas culturais, afinal, o ‘show não

pode parar’. E o Slam da Guilhermina seguiu acontecendo digitalmente, toda última sexta-feira de cada mês, o formato escolhido recebeu nomes como Live, Virtual, On-line, embora a novidade não fosse somente para o Slam.

O formato digital do Slam da Guilhermina começou no dia 27 de março e seguiu até a edição final, em 30 de outubro de 2020. Esse novo formato aumentou a audiência no canal do Youtube - que fora criado em 10 de abril de 2013, possui 453 uploads, 42,9 mil inscritos, 2,3 milhões visualizações, foi autoclassificado como entretenimento. Nos últimos 30 dias recebera 59,8 mil visualizações e 700 inscritos. Olhar para os números do canal, com suporte das ferramentas da plataforma Social Blade10, nos possibilita fazer algumas inferências, como perceber que a cada edição do Slam os números de visualizações, inscrições, curtidas (da audiência) aumentava. O mês de março, por exemplo, foram 147 mil visualizações dos vídeos do canal e 1600 novas inscrições11. Os números de todas edições digitais são 13 vídeos, 16 horas, 7.855 visualizações, 957 likes, 3 deslikes e 26 comentários, os dados que estão compilados na imagem do quadro da página seguinte (ver Figura 3).

10 Dados extraídos da análise da plataforma Social Blade, plataforma com lista de softwares criada pelo estadunidense Jason Urgo, em 2008. Além de outras funções, a plataforma produz dados quantitativos sobre o YouTube (e desde 2012 de outras mídias). Embora tenha como objetivo demonstrar as estimativas de ganhos (monetarização para youtubers) e crescimento de audiência. A plataforma analisa canais com mais de 190 inscritos e que possuem periodicidade de upload de conteúdo. É gratuita pode ser acessada no endereço: https://socialblade.com.

11 Os números referem-se a visualizações de todos os vídeos do canal, como também as visualizações do evento ao vivo. A edição de 30 de outubro, por exemplo, apresentou os números de 74 mil pessoas acompanhando pelo Youtube e 13 milhões pela página do Facebook, conforme disse o organizador e poeta Legant durante o evento.

(13)

Figura 3 – Números das edições digitais do Slam da Guilhermina

Fonte: Elaborado pelas autoras

Durante esses meses, mudanças significativas puderam ser observadas. Na primeira

Live-Slam os integrantes apresentaram dificuldades de uso das plataformas, microfones

desligados, conexões que caiam ou travavam. A parte 3, por exemplo, com quase dois minutos, trouxe o Emerson falando ‘tem que descobrir o que faz ficar travando’, seu rosto estava próximo da tela (como quem procura algo), enquanto isso acontecia ao fundo a performance da slammer Renata Ravok. Segundos depois finalizam a live sem anunciar o fim. A segunda edição, 24 de abril, os slammers foram escolhidos a partir de sorteio de inscrições feitas por formulário digital e deveriam enviar seus vídeos com a performance gravada. A ordem dos vídeos foi sorteada ao vivo e após exibir os vídeos o(a)s jurado(a)s deram suas notas. As edições seguintes voltaram a ser com poesia ao vivo, mas as inscrições continuaram sendo digital e previamente, assim como a escolha de jurada(o)s. Já as duas últimas edições (28/08 e 30/10) foram feitas em estúdio e contaram com uma produtora, embora isso não impedisse que situações como microfones ligados captando sons durante a apresentação de outros slammers, travas da internet, conexão ruim, chiados e ruídos acontecessem. Na última e mais elaborada edição, os apresentadores Emerson Alcalde e Cristina Assunção, utilizaram chroma key12 que os colocava na frente da

Praça da Guilhermina o que gerou comentários no chat como: “Vocês estão na praça?”.

Já que falamos em chat se antes gritos como: “Credooo”; “Pow, pow, pow”; “A braba”; “é geográfico” agitavam a competição, agora, ficam em expressões escritas, emotions. Sobre

12 Técnica de processamento de imagem para efeito visual. A ideia é sobreposição de imagens gerando anulamento da cor padrão, via de regra usa-se tecido verde (metonímia do chroma key), dessa maneira é possível combinar o objeto/pessoa com outro fundo.

(14)

essa forma de interação, Nancy K. Baym (2010) afirma que os contextos interativos possuem ganhas e perdas acerca das deixas simbólicas comunicativas, chamadas por ela de cues (pistas). Para Baym (2010), existem formas de transpor as barreiras de comunicação sem emoção. A autora acrescenta ainda que, os emotions:

(...) foram construídos em novas mídias para na medida em que, quando digitei essa combinação de pontuação pela primeira vez, meu processador de texto traduziu automaticamente para este gráfico representação: Uma olhada em qualquer serviço de mensagens de texto de telefone celular irá também revelar uma ampla gama de expressões gráficas de emoção, quase todos originados em novos usos de pontuação para ilustrar sentimento. As pessoas lideraram essa inovação em termos emocionais de expressão. Os emoticons não resolveram totalmente o problema, mas ajudaram. (BAYM, 2010, p. 61, tradução nossa).

Retomando, o chat tanto do Youtube e das plataformas (onde estavam poetas e jurado(a)s) foram usadas para apresentar as notas, como também ovações às performances e às notas. Outros comentários comuns eram: “que saudade da praça” ou “saudade de lotar a praça”. Além disso, no chat também se falava de outros Slams, divulgavam outros eventos, ou seja, semelhante (mas, diferente) ao que acontece no evento na praça.

Outro dado interessante é enquadramento, afinal, na praça, slammers podiam andar, agachar, se curvar, levantar, enfim, usar o corpo e também interagir com o público. Na pandemia a interação é com tela, o cenário é casa, ou como no caso do slammer Kaya foi na rua (poesias das duas últimas rodadas da edição final foram literalmente na rua e no ponto de ônibus, colocando a máscara no queixo para falar). Apesar das limitações alguns(algumas)

slammers conseguiram, ficavam em pé, pensaram o enquadramento, se aproximavam e

afastavam da tela e isso era notado pelo(a)s jurado(a)s. Os planos usados foram majoritariamente primeiro plano e close-up. Outras pessoas, devido a conexão ruim, precisaram fechar a câmera e só recitar a poesia, de modo que, a performance ficava na voz, ritmo e conteúdo. Os apresentadores começaram com plano conjunto, no sofá de casa, até um plano americano. As edições feitas no estúdio13, por sua vez, usaram plano geral, tinha microfones, equipamentos de luz e contaram com a produção de uma empresa de comunicação.

Dentre tantas novidades e estranhamentos enumeramos outros três: o Slam da Guilhermina recebe o Fomento à Cultura de Periferia da cidade de São Paulo para realizações de seus eventos e, devido à impossibilidade de realizações presenciais, desde o mês de maio

13 Outro adendo é que na última edição, Cristina, comenta estamos todos juntos, mas nos cuidando. Também vale lembrar que já estamos na faixa verde (falando sobre as cores adotadas para falar sobre em que estágio de isolamento social estamos, conforme dados oficiais das secretarias municipais de saúde, no caso a de São Paulo).

(15)

passaram a garantir os prêmios em dinheiro para a(os) três primeira(o)s colocada(o)s (R$ 250, 150 e 100 e na competição final os valores foram de R$ 1000, 500 e 300 para 1º, 2 e 3º lugar). O segundo é a realização de oficinas de slam (escrita, voz, corpo e performance) para estudantes e professora(e)s de escolas que participam do Slam Interescolar. As oficinas foram realizadas por meio de lives, assim a participação de muito(a)s convidado(a)s foi facilitada por não ser necessário a locomoção. Por fim, se os eventos presenciais limitavam a participação de pessoas da cidade de São Paulo e região, o formato digital expandiu para inúmeros lugares da própria capital paulista, do estado (SP) e de outros estados como Bahia; Ceará; Minas Gerais; Paraná; Rio de Janeiro; Rio Grande do Norte; Rio Grande do Sul e Sergipe. Atravessando o atlântico participaram também de Angola a Poetisa de Ninguém, Nzola Kuzedíua (que foi uma das finalistas) e Fernando Cairos, e de Moçambique Rico Junior, Cesar Vitoriano e Gonçalves Gonçalo.

Nessas 8 edições digitais competiram 74 slammers, sendo 35 mulheres e 39 homens e 63 pessoas negras, compilamos as informações na Tabela 1 (próxima página). A identificação de gênero e raça se deu tanto por heteroatribuição (nós inferimos), como pela autoatribuição captada pelas poesias, com dizeres como: “sou uma mulher negra”, “Sabe o que é ser jovem negro?”. Outro fato curioso é a autoatribuição da(o)s poetas angola(o)s e moçambicano(a)s como pessoas negras.

Tabela 1 – Slam da Guilhermina Digital: Gênero e Raça

MN MB HN HB TOTAL 27/mar 0 1 1 1 3 24/abr 6 0 3 2 11 15/mai 5 0 2 3 10 29/mai 3 0 6 1 10 26/jun 4 0 5 1 10 31/jul 5 0 5 0 10 28/ago 5 0 4 1 10 30/out 6 0 3 1 10 TOTAL 34 1 29 10 74

Fonte: Elaborado pelas autoras

Legenda: MN (Mulher Negra); MB (Mulher Branca); HN (Homem Negro) e HB (Homem Branco). Entre os homens havia um homem trans negro e um homem trans branco

Edições digitais do Slam da Guilhermina apresentadas, adentremos ao Circuito da Cultura. Em relação à regulação observamos o movimento interno e externo. O primeiro trata-se das regras internas do próprio circuito dos slams, citadas anteriormente, mas com novidade

(16)

da escolha aleatória de cinco jurada(o)s ser feita mediante à demonstração de interesse das pessoas no perfil do Instagram e Fanpage. Já a regulação externa se dá pela participação em editais público, como o Fomento à Cultura de Periferia que exigiu a continuação das competições mensalmente e, ao mesmo tempo, garantiu premiação em dinheiro aos primeiros colocados. Para participar de qualquer edital público é preciso apresentar uma proposta, seguir os critérios de regulamentação, prestar contas, etc.

O processo de consumo é mapeado a partir da quantidade de visualizações, likes,

deslikes e comentários nas lives das competições, como foi apresentado anteriormente, além do

crescimento de audiência geral no canal do Youtube.

A produção refere-se às mudanças necessárias para que o Slam da Guilhermina continuasse acontecendo durante o período de isolamento social. O novo formato de lives, o uso intensivo das plataformas redes sociais digitais, Stories e feed do Instagram, posts na

FanPage para manter e gerar contato com o público, como também para divulgar informações

sobre a data dos eventos, participantes de cada edição, prêmios, além da divulgação do Slam Interescolar e publicação dos diversos livros. Outro elemento da produção é o todo organizado antes de ir para a telinha. Antes era chegar na praça, ligar o som, montar a mesa para expor livros e outros produtos, agora, foi preparar um canto da casa ou o estúdio, checar conexão com a internet, aprender a usar as plataformas para fazer live. A produção e consumo também contam com o momento “jabá”, merchandising - de livros, camisetas, canecas, produtos - tanto dos Slam da Guilhermina como de cada poeta que era convidada(o) a falar sobre o que estava produzindo e onde as pessoas poderiam encontrá-lo(a) (esse dizer já é subentendido como ‘fale seu nome de perfil nas redes sociais digitais’).

Já os processos de representação e identidade são apresentados no mesmo capítulo do livro Doing Cultural Studies (DU GAY et al., 2015), pois a representação (linguagem) é o principal meio de criação, disputa e renúncia de significados, sendo seu maior objetivo a criação de identidade e identificações através do artefato cultural que, nesse artigo, é o Slam da Guilhermina. Da mesma maneira, discutimos ambos articulados aqui. Partimos da identidade racial, isto porque, que 85% do(a)s slammers que participaram das competições são pessoas racializadas como negras (pretas, pardas e africanas). A edição de outubro, a “Grande Final”, trouxe 10 slammers vencedores das edições anteriores, assim, é um “compilado das melhores poesias”, por isso, nos atentamos a essa edição. Desses dez, seis eram mulheres negras, três homens negros e um homem branco, ou seja, nove pessoas negras. Oito eram do estado de São Paulo, uma da Bahia e outra de Luanda (Angola).

(17)

Interessante perceber que as poesias são experiencialmente informadas devido às representações e identidades trazidas nelas. Por exemplo, o poeta Fernaun, um dos finalistas, é o único que não traz debates sociais centrados na raça e gênero em suas poesias. A temática que apresentou durante suas performances trazia metáforas sobre relacionamentos. Isso é válido e necessário, autoras como bell hooks apontam a necessidade de nos debruçar afetivamente sobre nossas experiências, de pensar e viver o amor. Entretanto, ao colocar os temas do referido

slammer ao lado dos temas das poesias das mulheres negras percebemos a diferença de

percepção do mundo. Essas mulheres apresentam críticas contundentes às situações racistas, machistas, homofóbicas, entre outras. Patrícia Meira, a vencedora da final, em uma das poesias, afirma:

Eu sou a devolutiva do tapa que a PM deu na cara de uma criança, esse agora é meu jogo (…). Eu que sempre fui de falar de afeto, cansei. Eu tenho sede de vingança. Vocês sempre nos mataram para nos tirar do seu caminho e vem no slam e esperam ouvir palavras de carinho? Esquece! (MEIRA, 2020, 00:46:24 - 00:46:40).

As poesias são escritas a partir das urgências que determinadas pessoas sentem em se expressar frente a determinadas situações. Nzola Kuzedíua, em uma das poesias pergunta; “E

se Deus fosse africano?” e continua traduzindo esse mundo, no qual África seria considerado o berço da humanidade, africanos estariam ligados à razão, como sujeitos pensantes e não apenas ao corpo.

No discurso de vencedora, Patrícia Meira, pontuou a importância do Slam para que ela fosse ouvida:

O Slam da Guilhermina foi o primeiro slam que eu assisti e o primeiro slam que eu participei (...) e eu ganhei. Eu nunca tinha ganhado nada na minha vida, ninguém nunca tinha me aplaudido (...). Eu nunca fui vista, nunca estive no lugar de ser vista como estive no Slam da Guilhermina. E o Slam da Guilhermina foi o primeiro slam que me fez sonhar com isso, de viver da minha arte (...). Eu começo a me enxergar e me reconhecer enquanto poeta no Slam da Guilhermina, me enxergar enquanto uma pessoa preta (…). (MEIRA, 2020, 01: 19:58 - 01:22:26).

Em suma, observamos o ciclo do Circuito da Cultura no Slam da Guilhermina, a articulação entre cada um dos seus processos, durante o período da pandemia, produzindo lugares de escuta e experiência artística, regulação para performance e premiação em dinheiro para ‘salvar’ o fim do mês, colocando tudo no digital para circular e facilitar o consumo, mas sobretudo onde arte experiencialmente informada é pauta central há ressignificação de (auto)representação e identidade, embora não atinjam diretamente a macroestrutura, importam

(18)

no nível da existência, na construção do ser. Ou para citar Fanon (2008), na saída da zona do não ser.

Considerações Finais

Analiticamente o Circuito da Cultura nos possibilitou observar a agência da juventude negra com outro olhar que não as comuns embocaduras do paternalismo (que nega sua agência e coloca como quem precisa de ajuda) ou a da eliminação (física, simbólica e cultural). Observamos agências criativas de sujeitos que, mesmo atravessados por diversas formas de violências, se apropriam de linguagens, disputam significados e regimes de representação, constroem identidades e pautam discursos. Nessa esteira, o slam pode ser lido como movimentos culturais tais quais os bailes blacks, os blocos afros de carnaval, o movimento

hip-hop e os saraus de poesia. Trata-se de um ponto de encontro histórico. Ou seja, a articulação

(ou mesmo a encruzilhada) de disputas culturais e políticas perenes de diversas organizações e associações negras. O Slam da Guilhermina se propôs a ser um espaço democrático de compartilhamento de poesia, escuta sensível e diversão. Ao mesmo tempo, é durante esses encontros que inúmeros jovens compartilham suas experiências cotidianas e os mais diversos sentimentos. Essas poesias tão experiencialmente informadas nos possibilita observar algo além do indivíduo - e por isso os livros lançados têm essas temáticas com disputas históricas contra violência, pela educação, pelo bem-viver, em suma, pela positivação e valoração da vida dessa(e)s jovens. É a possibilidade de falar sobre inúmeras violências e ainda sim almejar o futuro (no e o presente).

Referências

ALCADE, E. História do Slam da Guilhermina. [Entrevista cedida a] Carolina N. Melo, São Paulo, mar., 2020

ASSUNÇÃO, C. História do Slam da Guilhermina. [Entrevista cedida a] Carolina N. Melo, São Paulo, abr., 2020.

BAYM, N. K. Personal Connections in the Digital Age. Cambridge (Eng); Malden (EUA): Polity Press, 2010.

BERNARDINI, G.; GOBBI, M. C. Levante Popular da juventude brasileira: saímos do Facebook. Revista Mediação, v. 15, n. 17, 2013.

(19)

BORDA, E. W. B. Raça e etnicidade em Stuart Hall e seu lugar nas ciências sociais

brasileiras. Áskesis, São Carlos, v. 4, p. 28-42, 2015. [Dossiê Diásporas, descentramentos e relações raciais contemporâneas]. Disponível em:

https://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/72. Acesso em: 15 jan. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico

8. Semana Epidemiológica 15. Brasília, 9 abr. 2020. Disponível em:

https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/09/be-covid-08-final-2.pdf. Acesso em: 15 maio 2020.

CALDEIRA, T. P. do R. Qual a novidade dos rolezinhos? Espaço público, desigualdade e mudança em São Paulo. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 98, p. 13-20, mar., 2014. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002014000100002&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 out. 2020.

DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L. MACKAY, H. NEGUS, K. Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman. 2 ed. 2 Reimp. Londres (UK): Sage Publications Ltd, 2015 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

GIOIA, D. Disappearing Ink: Poetry at the End of Print Culture. Mineápolis (EUA):

Graywolf Press, 2004.

GRANDE FINAL Slam da Guilhermina - Parte 2. Cristina Assunção. São Paulo. 1 vídeo (87 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EymOOIL_uvo&t=480s. Acesso em: 07 nov. 2020.

GRANDE FINAL Slam da Guilhermina - Parte 2. Patrícia Meira. São Paulo. 1 vídeo (87 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EymOOIL_uvo&t=480s. Acesso em: 07 nov. 2020.

LISBOA FILHO, F. F.; MORAES, A.L. C. Estudos Culturais aplicados a pesquisas em mídias audiovisuais: o circuito da cultura como instrumento analítico. Significação, São Paulo, v. 41, n. 42, 2014. p. 67-86. Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/significacao/issue/view/7028. Acesso em: 01 maio 2020. MEDEIROS, J.; JANUÁRIO, A.; MELO, R. (org.). Ocupar e resistir: movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.

MOLINERO, B. Brasil tem 210 grupos de slam, diz torneio nacional de poesia falada. Folha

de São Paulo, São Paulo, 7 dez. 2019. Colunas e Blogs. Disponível em: https://folha.com/k6e4pn32. Acesso em: 15 set. 2020.

MOTTA, R. [Sem título]. 9 ago. 2017. 1 fotografia. Disponível em: https://www.facebook.com/slamdaguilhermina/photos/foto-de-rodrigo-motta/1274444612665728/. Acesso em: 20 out. 2020.

(20)

NASCIMENTO, R. M. A performance poética do ator-MC. 2012. 142 f. Orientadora Jerusa Pires Ferreira. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica São Paulo, São Paulo, 2012. ROMANCINI, R; CASTILHO, F. “Como ocupar uma escola? Pesquiso na Internet!”: política participativa nas ocupações de escolas públicas no Brasil. Intercom, Rev. Bras. Ciênc.

Comun., v. 40, n. 2, São Paulo, maio/ago., 2017. Disponível em:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-58442017000200093&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 10 out. 2020. DOI 10.1590/1809-5844201726

SLAM POETRY MOVEMENT: Marc Smith at TEDxLUC [s.l: s.n], 2013. 1 vídeo (22 min). Publicado pelo canal TEDxTalks. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=dOpsS9H5dgQ. Acesso em: 01 maio 2020

SOMMERS-WILLETT, S. B. A. The Cultural Politics of Slam Poetry: Race, Identity, and the Performance of Popular Verse in America. Ann Arbor (EUA): University of Michigan Press, 2009.

SOVIC, L.; MARTINELLI, F.; GUAZINA, L. Stuart Hall e os estudos da comunicação no Brasil. Matrizes, v. 10, n. 3, set./dez., 2016.

STELLA, M. G. P. A Batalha da Poesia. Ponto Urbe [online], n. 17, dez., 2015. Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/2836. DOI10.4000/pontourbe.2836.

POELL, THOMAS; NIEBORG, DAVID; VAN DIJCK, J. Platformisation. Internet Policy

Review, v. 8, n. 4, 2019. Disponível em: https://policyreview.info/concepts/platformisation. DOI 10.14763/2019.4.1425.

Referências

Documentos relacionados

Sensibilização respiratória ou cutânea : Não são conhecidos efeitos deste produto Carcinogenicidade : Não são conhecidos efeitos deste produto Mutagenicidade : Não são

Quais os principais assuntos tratados nas APG?________________ 11.2 Periodicamente, ocorrem kaizens workshops eventos caracterizados por trabalho intensivo, brainstorming e

As silagens de todos os híbridos apresentaram adequado processo fermentativo, entretanto, na análise univariada o híbrido DKB-344 merece des- taque por aliar maior produtividade

The specific objectives of this work were: (1) to introduce a web-based data acquisition system using the LabVIEW software program to measure environmental

responsável pela formação dos condomínios na área, por ter apresentado bons resultados no que se refere à participação e, conseqüentemente, a uma boa adesão dos usuários à rede

É possível constatar que, apesar de ainda não concluído integralmente, este projeto é considerado pelos atores envolvidos um instrumento propício para organização dos

A Kame House, apesar de não ter sido referido anteriormente no briefing, é uma habitação também presente no mesmo condomínio que a Green Island Beach Villa, no entanto, a abordagem