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OBSERVATÓRIO FEMINISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Entrelaçamentos: o generocídio e a masculinidade etnicamente hegemônica na Guerra da Bósnia.

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Academic year: 2021

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Entrelaçamentos: o generocídio e a masculinidade etnicamente hegemônica na Guerra da Bósnia.

Giovanna Lucio Monteiro

A Guerra da Bósnia foi um conflito ocorrido entre 1992 e 1995, que se iniciou como uma suposta guerra civil entre os diferentes grupos étnicos existentes no país, mas envolve atores internos e externos, assim como suas questões nacionalistas principais. O conflito ficou muito conhecido por ser a primeira vez em que a OTAN fez incursões militares fora de seus países membros e pela cobertura midiática intensa. Além disso, o julgamento no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia condenou, pela primeira vez, o estupro como arma de guerra utilizado com objetivo de limpeza étnica contra mulheres bósnio-muçulmanas1​. Por esse marco, a guerra foi analisada por diferentes correntes feministas das Relações Internacionais, que possuem divergências internas fundamentais.

Os enquadramentos colocados sobre um acontecimento pode ditar as consequências dele sobre a sociedade futuramente. Ao publicarem artigos estereotipados alegando que em um lugar, como a Bósnia, mulheres de um grupo étnico específico estão sendo violentadas, como as ​mulheres ​bósnio​-​muçulmanas​, é criada uma “identidade da vítima de estupro”, que dificilmente é modificada posteriormente no imaginário da sociedade internacional. Duas categorias são mobilizadas nessa identidade: a etnia e o gênero. Quando é feita uma relação direta entre um grupo que violenta (homens sérvios) e um grupo que é violentado (mulheres muçulmanas) outras e outros que sofreram diversos níveis de violência sexual ao longo do conflito são apagados. Assim, quando Roy Gutman publicou seu artigo no Newsdaily afirmando categoricamente que ​mulheres ​bósnio​-​muçulmanas estavam sendo vítimas de um estupro sistematizado pelos ​sérvios com objetivo de limpeza étnica, ele abriu um caminho tortuoso que ignorava as outras vítimas do generocídio e a agência dessas mulheres, retirando delas suas vozes e suas identidades. Além disso, o jornalista criou um diagnóstico simplista para um problema complexo, que foi incorporado por organizações internacionais e traduzido em políticas falhas.

1​Ao longo da guerra foram descobertos “campos de estupro”, que era locais aos moldes de campos de concentração para os quais mulheres eram levadas e violadas de forma coletiva por militares. Esses campos eram, em sua maioria, criados pelo exército sérvio, que utilizavam escolas, prédios e até estádios abandonados como locais de violação. Para saber mais: PERES, 2011

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Um outro ponto importante no que tange o enquadramento é a forma como ele pode ser utilizado para manipular um discurso coletivo. Antes do início da Guerra, bósnios-muçulmanos, sérvios (cristãos ortodoxos) e croatas (católicos) conviviam de forma pacífica na região popularmente conhecida como “pequena Iugoslávia”. O apelido é resultado do caldeirão étnico que se formou no país, no qual as nacionalidades se fundamentavam nos processos étnico-religiosos que formaram a região, mesmo quando não havia uma prática religiosa2​. Ao longo dos anos, as identidades foram manipuladas de diferentes formas, servindo a objetivos político específicos. Por exemplo, ao longo da Segunda Guerra um grupo de croatas liderados por Ante Pavelić formaram a Ustase, que serviria posteriormente como um governo fantoche da Alemanha Nazista na Iugoslávia, perseguindo e matando sérvios e muçulmanos3​. Após a Segunda Guerra, Joseph Broz Tito instaura o comunismo no país e funda a República Socialista da Iugoslávia, cimentando os acontecimentos da guerra e buscando converter as identidades étnicas em uma identidade proletária.

Não lidar com um monstro tão grande no armário iugoslavo levou apenas ao seu crescimento, sem que o problema nunca fosse superado. Ao longo da maior parte do governo de Tito foi feita uma busca consciente de superar o que havia acontecido na guerra sem lidar com as questões étnicas. Percebendo isso, Slobodan Milosevic – líder nacionalista sérvio – após a morte de Tito abre a porta do armário e coloca cordas de marionete no monstro, manipulando as identidades étnicas para seus objetivos políticos. Milosevic reacende os “ódios antigos” incitando através do discurso a rivalidade entre os grupos. A necessidade de criar um inimigo para imbuir neste a culpa pela crise econômica e política que os países estavam passando leva a uma intensa propaganda sérvia que relaciona diretamente croatas-Ustase e muçulmanos-jihad. Essa propaganda criou uma constante atmosfera de medo no país, com um alistamento em massa dos sérvios no exército (MALCOM, 1996).

2As identidades étnicas são fundamentalmente relacionadas com religioes, independente da fé individual. Ou seja, mesmo indivíduos ateus podem se considerar, por exemplo, bósnio-muçulmanos por ser descendente de um grupo étnico específico.

3Sérvios e bósnio-muçulmanos (em grande maioria os sérvios) foram enviados para campos de concentração a partir de uma ideologia de supremacia racial baseada no nazismo. Cerca de 700 mil sérvios foram enviados para campos de concentração e de morte ao longo da Segunda Guerra. Como resposta ao genocídio da Ustase, uma resistencia sérvia, os chetniks, foi criada e se declaravam como monarquistas a favor do ideal da Grande Sérvia eram liderados por Mihailovic. Como outra forma de resistência, porém sem uma identidade étnica específica, surgem também os partisans, um grupo de resistência comunista liderado por Josip Broz Tito (STGLMAYER, 1994).

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Uma parte fundamental desse instrumento de propaganda estava relacionada ao estupro. Através de uma controle sobre a imagem que seria transmitida, soldados sérvios estupravam mulheres muçulmanas e/ou croatas, mas vestiam suas vítimas com roupas características de mulheres sérvias, fazendo parecer que um enorme número de mulheres sérvias estavam sendo violentadas. Isso acende o instinto protetor masculino que é incitado a buscar revanche, além disso, os estupros – verdadeiros ou não – de mulheres sérvias seriam ainda usados posteriormente para justificar os campos de estupro sérvios (MACKINNON, 1993). Além de provocar a escala de tensões, a propaganda foi fundamental para formar a masculinidade hegemônica sérvia. R. Connel conceitualiza masculinidade hegemônica como a criação de um “ser homem” ideal a partir da qual todas as outras masculinidades e feminilidades são hierarquizadas (CONNELL, 2005). Essa masculinidade incorpora a “forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens” (CONNELL & MESSERSCHMIDT, 2013).

Essa masculinidade, assim como feminilidades, devem ser analisada a partir de suas intersecções. Durante o conflito na Bósnia é criada uma relação profunda entre masculinidade hegemônica e etnia. O “poder, a dominação e a sujugação violenta” associadas a uma masculinidade hegemônica se intersecciona com uma identidade nacional específica, que no caso apresentado seriam os sérvios. Sendo assim, o gênero se torna um marcador de fronteiras entre os grupos, o “ser homem de verdade” é associado a militarização exacerbada, a supremacia racial e a busca por vingança da violação de “suas mulheres”, exercendo toda a sua masculinidade dentro do conflito. O militar sérvio que estupra mulheres para se vingar e para humilhar se torna então o topo da hierarquia, e a partir dele todos os outros são subjugados: sérvios que se neguem a violentar mulheres, homens e mulheres croatas e muçulmanos (MEZNARIC, 1993; SKJELSBAEK, 2001; HAGUE, 1997).

A vítima da violência sexual na zona de guerra é vitimizada pela

feminização tanto do sexo como da identidade étnica / religiosa / política a que a vítima pertence, da mesma forma o sexo e a identidade étnica / religiosa / política do perpetrador é afirmada tornando-se masculinizada (SKJELSBAEK, 2001, tradução nossa4​).

4 the victim of sexual violence in the war-zone is victimized by feminizing both the sex and the ethnic/religious/political identity to which the victim belongs, likewise the perpetrator’s sex and ethnic/religious/political identity is empowered by becoming masculinized.

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Assim, a etnia cria a fronteira entre os grupos, o gênero hierarquiza. O impacto disso em meio a guerra se revela em uma forma violenta de generocídio da população bósnia. Generocídio é um termo cunhado pela autora Mary Anne Warren, que a partir de uma analogia que junta “genocídio” e “gênero” pretende explicar o assassinato em massa de uma população com base em questões de gênero. O generocídio e o genocídio não possuem diferenças fundamentantes, o que ocorre é que o primeiro busca retirar a neutralidade dos grupos violentados e expor os recorte de gênero que estão nas entrelinhas. Assim, o generocídio tem como objetivo explicar situações como o assassinato em massa de bebês mulheres em alguns países e o maior número de homens torturados em um conflito (BOBBIO, 1998; JONES, 2000).

A partir do conceito de generocídio é possível expandir a análise acerca dos acontecimentos ao longo da guerra da Bósnia. Homens e mulheres foram violentados de diferentes formas nas mãos do exército sérvio com o objetivo de “emascular, aterrorizar e enfraquecer o Estado que desejavam ocupar" (KEPKAY, 2011, tradução nossa). Nesse sentido, o estupro seria não apenas uma arma de guerra contra mulheres ou um instrumento de genocídio contra as mulheres de um grupo específico, mas sim uma forma de generocídio no qual homens e mulheres de um grupo especifico são subjugados e violados por uma masculinidade hegemônica que é associada a um grupo étnico (KEPKAY, 2011).

Durante a Guerra da Bósnia, os homens não-sérvios eram percebidos como uma ameaça militar e sexual à masculinidade sérvia, assim como as mulheres eram observadas como parte do território e um “contêiner sexual” que deveria ser conquistado e colonizado. É possível perceber que toda a questão nacionalista e territorial é fundamentalmente relacionada com questões de gênero, desde a tortura sexual de homens, a sodomização e o assassinato, até o estupro de mulheres, a gravidez forçada e a humilhação de ser estuprada por gangues em locais públicos. Todas essas atitudes têm como objetivo expressar a superioridade dos sérvios sobre os não-sérvios, mas principalmente a superioridade dos homens sérvios sobre todo o resto. Não há nenhuma relação com prazer sexual e sim com uma demonstração de poder constante de uma masculinidade sobre as outras (KEPKAY, 2011).

A partir dos conceitos de masculinidade hegemônica e generocídio se torna possível, então, traçar uma relação entre gênero, etnia e estupro militarizado. A violação sexual perpassa ambas as dinâmicas: por um lado a utilização do estupro como ferramenta possibilita

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a humilhação e a subjugação das mulheres e dos homens, promovendo a tortura, a agressão sexual e a gravidez forçada. Juntamente com isso, a masculinidade hegemônica é construída por um grupo étnico específico, os sérvios, que cria uma hierarquia étnica e de gênero a partir de si própria. A busca dos sérvios é, então subjugar não apenas os homens e mulheres através da feminilização destes, mas também subjugar a etnia através do estupro e do assassinato em massa. Esse conjunto de práticas do exército sérvio demonstram como o estupro pode ser utilizado como uma ferramenta de generocídio.

Quando ampliamos o enquadramento que antes apontava apenas para a vítima de estupro ​mulher bósnio-muçulmana e incluímos homens, mulheres de outras etnias e até mesmo homens e mulheres sérvios, é possível aprofundar a análise. A partir da metáfora de uma corda, as questões de gênero e étnico-religiosas são diferentes filamentos, que se entrelaçam e coexistem. Não há como pensar em uma corda com apenas um filamento, ela é composta por muitos, assim como não há como pensar no estupro militarizado de forma essencialista. É um fenômeno complexo, que deve ser inserido na realidade social e política em que ocorreu, isolar para fins de análise leva a uma percepção rasa sobre os acontecimentos. Uma corda pode ser utilizada para salvar ou para matar, fora do estado de guerra, as etnias e suas fronteiras de gênero existiam, mas eram percebidas como um ponto positivo, que transformava a Bósnia em um local único, mas a partir do momento em que essa mesma corda foi inserida em um contexto de guerra, ela foi utilizada para propagar a supremacia racial de um grupo sobre o outro e para limpar etnicamente um território, ou seja, usada para matar. A fim de desenvolver uma percepção não reducionista da violência sexual no conflito é necessário dar luz as vidas que foram deixadas de lado tanto na divulgação midiática do conflito quanto nas políticas públicas feitas para tratamentos de vítimas posteriormente.

REFERÊNCIAS

CONNELL, Ruth. W.; MESSERSCHMIDT, James. W. ​Masculinidade hegemônica: repensando o conceito​. v. 21, n. 1, p. 241–282, 2013.

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HAGEN, K. T.; YOHANI, S. C. ​The Nature and Psychosocial Consequences of War Rape for Individuals and Communities​. International Journal of Psychological Studies, v. 2, n. 2, 2010.

HOLTER, Ø. G. A theory of gendercide. Journal of Genocide Research, v. 4, n. 1, p. 11–38, 2015.

HOROWITZ, Donald L. ​Ethnic Groups in Conflict. ​University of California Press, California, 1985.

KEPKAY, J. ​Gendercide and the Bosnian War​. About Politics, 2011. MALCOLM, Noel. ​Bosnia: A short history.​ NYU Press, 1996.

MACKINNON, Catharine A. ​Turning Rape into Pornography: Postmodern Genocide. In: Mass rape: The war against women in Bosnia-Herzegovina. University of Nebraska Press, 1994, pp. 73-81

SKJELSBAEK, I. ​Sexual Violence and War: Mapping Out a Complex Relationship. European Journal of International Relations, Noruega, 2001

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