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ROGÉRIO DUPRAT E A TROPICÁLIA

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Academic year: 2021

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ROGÉRIO DUPRAT E A TROPICÁLIA

Regiane Sanches Gaúna FUNDARTE (Fundação das Artes de São Caetano do Sul) Professora de História da Música Européia e Brasileira rsgauna@uol.com.br

Resumo: Rogério Duprat é um dos compositores mais importantes no

cenário da cultura brasileira a partir da década de 1960, até os dias de hoje. Sua atuação se deu no âmbito da música erudita, popular e na criação de trilhas sonoras, principalmente para o cinema. A trajetória artística do compositor foi marcada, fundamentalmente, pela participação em dois movimentos culturais de vanguarda: Música Nova e Tropicália, que marcaram o Brasil, assim como alguns países da América Latina. Sendo assim, o ponto central desta comunicação é abordar e elucidar a contribuição de Duprat como, um dos principais, arranjador e orquestrador da Tropicália. Sua presença na cultura brasileira caracterizou-se por seu perfil renovador, e isso não se deve apenas ao fato de ter integrado esses movimentos culturais, mas em especial por ter transitado em diferentes faces musicais. Além de fazer parte da primeira geração de compositores brasileiros a utilizar o computador em experiências musicais, foi um dos pioneiros na adoção do happening como expressão e na utilização de elementos da música concreta e eletrônica como possibilidade de criação.

Palavras-chave: Duprat, Tropicália, arranjos.

Abstract: Rogério Duprat is one of the most important composers in the

Brazilian musical scene from the 60's until today. His works go from classical and popular music to the creation of soundtracks, mainly for movies. His artistic journey was determined mainly by his participation in two vanguard cultural movements: New Music (Música Nova) and Tropicália, important in Brazil and some Latin American Countries. Therefore, discussing and clarifying Duprat´s contribution as one of the central arranger and composer of Tropicalia is this Seminar's main point. His presence in the Brazilian cultural scene was characterized by his refreshing spirit, and not only because of his participation in the art movements mentioned above, but also for having moved through different musical aspects. Aside from being part of the first generation that used the computer in musical experiences, he was one of the first musicians to adopt the concept of the happening as a way of expression and to use elements of concrete and electronic music as a creative possibility.

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A Tropicália foi um movimento artístico divulgado em nível nacional nos festivais de música popular brasileira, sobretudo, entre os anos de 1967 e 1968, através das músicas “Alegria, alegria” e “Domingo no parque” de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente. Apesar deste movimento ter se estendido à literatura de vanguarda, à estética de filmes como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, peças de teatro como O rei da vela, de Oswald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e às artes plásticas com os Parangolés, de Hélio Oiticica, a música popular tem sido considerada o seu maior expoente, dada a larga adesão por parte de diversos músicos, a exemplo de Tom Zé, Capinam, os integrantes do grupo Os Mutantes, Torquato Neto, Gal Costa e outros.

O ideário estético da Semana de Arte Moderna de 22 foi uma das principais influências sofridas pelos tropicalistas. Para uma mistura de conteúdos singulares da cultura, tratada por eles como "geléia geral", somaram aos tradicionais instrumentos elétricos os ritmos brasileiros, elementos da bossa nova, o happening, o samba, a poesia concreta, The Beatles, literatura de cordel às letras das canções, sem, contudo, deixar de lado a crítica social introduzida pelo humor, paródia, alegoria e o cafonismo. Segundo Favaretto, além da Tropicália elaborar uma nova linguagem para a canção a partir da tradição da música popular brasileira e dos elementos que a modernização fornecia, "a prática tropicalista incorporava o caráter expressivo do momento às experiências culturais e artísticas que vinham se processando no Brasil e internacionalmente; trabalhava essas informações segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos artísticos e com atinada sensibilidade pelas coisas do Brasil" (1987: 20).

Assim como os maestros Julio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen, Rogério Duprat participou deste movimento como arranjador. No entanto, no início da década de 1960, antes de sua participação no Tropicalismo, Duprat já havia atuado em diferentes campos musicais. Como arranjador, em 1962, assinou três discos: Natal bem brasileiro (coletânea de temas natalinos arranjados ao estilo de marcha rancho) e, no ano seguinte, os discos Dedicado a você (novos arranjos para o repertório popular da década de 1960) e Clássicos da bossa nova (temas de música erudita arranjados ao estilo de bossa nova). Ainda em 1963, além de sua participação no movimento Música Nova, havia sido premiado com o filme A ilha, como melhor trilha sonora, e também incursionado na música para computador com a peça Klavibm II.

A partir da segunda metade da década de 1960, a aproximação de Duprat com a música popular tornou-se mais acentuada. Desestimulado a compor música erudita para uma pequena elite, passou a intensificar seus trabalhos no âmbito popular: "Chega desse negócio de coisinha da música erudita enfiada só dentro do teatro, para meia dúzia de milionários e tal. A gente tem é de sair, fazer música na rua com o meios que houver. Foi aí que cheguei perto da música popular" (ShowBizz, 2000: 57).

Nessa época, vislumbrou juntamente com o produtor Solano Ribeiro a possibilidade de realização de um projeto musical popular que se diferenciasse dos demais. Segundo Calado, eles "pretendiam adaptar a música sertaneja ao ritmo do rock (1995: 103). No entanto, Duprat afirma que o projeto não se restringia apenas à música sertaneja, mas,"todo e qualquer ritmo brasileiro passível de integrar-se com as guitarras", ou seja, seu objetivo era transferir o

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instrumental do rock para a música popular brasileira: "Seria uma 'injeção' de modernidade. A 'bronca' era que só se fazia sambas e tocados com os instrumentos acústicos brasileiros" (Entrevista, nov.,1999). O uso da guitarra não era apenas um novo recurso dos instrumentos eletrônicos ao ambiente acústico musical da música popular brasileira. Duprat acrescenta que "um novo tipo de comportamento se apresentava nos anos 60 e incluir a guitarra, à nossa música, era fazer valer os elementos desse novo comportamento" (Idem). Para que seu projeto se realizasse, Duprat observou diversas bandas de rock da época, no entanto, apenas uma chamou-lhe a atenção. Tratava-se do grupo O'Seis que costumava apresentar-se em alguns programas de TV e ensaiavam no fundo de um quintal, num bairro da Pompéia, em São Paulo. Apesar desse projeto não ter se concretizado, para Duprat, o grupo O'Seis era melhor do que tudo o que tinha visto: "Parecia com os The Beatles, com seu humor e seu jeito de cantar" (Vibrations, 1999: 43). Posteriormente, esse grupo tornou-se conhecido como Os Mutantes.

As preocupações de Duprat acerca das renovações na música popular abriram espaço para uma aproximação com os compositores baianos, inicialmente Gilberto Gil e, posteriormente, aqueles que integrariam o que seria chamado movimento Tropicalista.

No ano de 1967, Rogério Duprat fora indicado, como arranjador, pelo maestro Julio Medaglia, ao cantor e compositor Gilberto Gil,

que colaborava com a equipe de produção do festival da TV Record - a seleção das canções para as três eliminatórias aconteceu na casa do maestro, no bairro da Lapa. Na verdade, Medaglia até já começara a escrever o arranjo orquestral de “Domingo no Parque”, mas ao ser convocado para integrar o júri do evento, teve que interromper o trabalho. Assim, acabou indicando Duprat, assegurando que ele tinha bagagem musical e criatividade de sobra para desempenhar o papel de George Martin, na linha beatle que Gil imaginara para sua composição. (Calado, 1997: 123)

Gilberto Gil idealizava um arranjo para sua canção “Domingo no parque” que se assemelhasse ao estilo da banda inglesa The Beatles. Calado diz que ele "pretendia combinar a sonoridade nordestina do quarteto com uma orquestra, porém dando à música um tratamento sonoro mais pop, exatamente como o produtor George Martin fizera nos arranjos de Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club. Para isso, observou, uma guitarra elétrica seria essencial no arranjo da canção" (Calado, 1997:122). A fim de tornar possível a idéia de Gil, Duprat o apresentou aos integrantes do grupo Os Mutantes que, de fato, participaram desse arranjo.

No livro Balanço da bossa e outras bossas, Gilberto Gil tece comentários sobre o processo criativo do arranjo de “Domingo no parque” ao lado de Duprat:

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Rogério tem, em relação à música erudita, uma posição muito semelhante à que nós temos em relação à música popular. Essa posição de insatisfação ante os valores já impostos. Ele quer desenvolver a música erudita, ele não quer sujeitá-la a um sentido acadêmico. Eu acho que é, precisamente, por essa coincidência de propósitos, que a aproximação era inevitável. Por exemplo: quem procurar saber como foi feito o arranjo de “Domingo no parque”, fica sabendo que ele se processou nesse nível de aproximação, de programação conjunta, por nós dois. Eu mostrei a Rogerio a música e as idéias que eu já tinha e ele as enriqueceu com os dados técnicos que ele manuseia e eu não: a orquestração, o conhecimento da instrumentação. Mas a decupagem do arranjo, a determinação de que climas funcionariam em determinadas partes, que tipos de instrumento, que tipos de emoção, todas essas coisas foram planejadas juntamente por mim e pelo Rogério. Inclusive, o arranjo foi feito gradativamente. Nós nos sentamos, durante 4 ou 5 dias, em tardes consecutivas e fomos discutindo, formulamos, reformulamos e até no estúdio ainda fizemos modificações em função das sonoridades que resultavam. Foi um trabalho realmente feito em conjunto. (Campos, 1993: 195)

Para Favaretto, “Domingo no parque” causou impacto pela complexidade construtiva do arranjo que ele e Rogério Duprat realizaram, segundo uma concepção cinematográfica:

[...] assim como a interpretação contraponteada de Gil. Aquilo que se poderia tornar apenas a narração de uma tragédia amorosa, vivida em ambiente popular, tornou-se uma féerie em que letra, música e canto compõem uma cena de movimentos variados, à imagem da festa sincrética que é o parque de diversões. O processo de construção lembra as montagens eisensteinianas; letra, música, sons, ruídos, palavras e gritos são sincronizados, interpenetrando-se como vozes em rotação. (1979: 9)

Augusto de Campos também esteve atento à riqueza de informações presente no arranjo de “Domingo no parque”, quando observou que a junção de fragmentos documentais (ruídos no parque) com o uso de instrumentos orquestrais somada ao ritmo marcadamente regional, a exemplo da capoeira, com o berimbau associado aos instrumentos elétricos e à vocalização típica de Gil, deu origem a um arranjo bastante complexo e assinala que,

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[...] aqui deve ser lembrada a contribuição do arranjador, Rogério Duprat, no caso, essencial, e em si mesma um ma rco para a música popular brasileira. Marco de uma colaboração que muitos julgariam impossível entre um compositor de música popular e um compositor de vanguarda (embora Rogério não goste de ser chamado assim, seus conhecimentos e sua prática de alta cultura musical contemporânea não suportam outra classificação). Esse encontro, tão bem sucedido, mostra que já não há barreiras intransponíveis entre a música popular e a erudita. (1993: 154)

Fruto de uma colaboração inusitada entre um compositor popular preocupado com a reformulação da canção e um músico com formação suficiente para traduzir tal reformulação. O arranjo da canção “Domingo no parque” pode ser considerado, não apenas um marco para a música popular brasileira, como Campos sugeriu, mas um marco na carreira de Duprat a inauguração de um estilo sincrético que ele adotaria, a partir de então, na maioria de seus arranjos. Ruídos, gritos e instrumentos regionais somados a instrumentos elétricos e orquestrais compõem o ambiente sonoro de “Domingo no parque”. Esse recurso de fazer coexistir elementos aparentemente disparatados, em uma mesma canção, tornou-se uma de suas marcas estilísticas como arranjador. E além disso, não se pode esquecer que Duprat, como compositor de trilhas sonoras, trouxe a seu trabalho de arranjador influências dessa experiência. É possível que Favaretto, ao relacionar o arranjo de “Domingo no parque” a concepções cinematográficas, tenha percebido tais influências.

Junto com seus trabalhos ao lado dos tropicalistas, veio o reconhecimento de um público cada vez maior. Sua notoriedade como arranjador deveu-se especialmente a este trabalho ao lado de Gilberto Gil pelo qual obteve o prêmio de melhor arranjo do III Festival Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967, destacando-se, ainda, diversos prêmios recebidos, o prêmio Roquete Pinto de melhor arranjador do ano de 1967 e o Troféu André Kostelanetz, como melhor arranjo do Festival Internacional da Canção (TV Globo), nos anos de 1968 e 1970.

Rogério Duprat foi o diretor musical e arranjador da grande maioria dos trabalhos tropicalistas, e isso inclui Tropicália ou Panis et Circensis, de1968, disco coletivo que os tropicalistas gravaram em São Paulo, comumente associado ao ápice musical do movimento Tropicalista. Caetano Veloso coordenou o projeto e selecionou o repertório, que também destacava canções inéditas de Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com a produção de Manoel Barenbein (Calado, 1997: 194). Nesse mesmo ano, Duprat assinou o arranjo da canção “É Proibido proibir” e, no ano seguinte, o arranjo da canção “Baby”, ambas de Caetano Veloso que considera esta última um sucesso pelo fato de ter sido revelada na "voz de Gal Costa e no arranjo de Duprat, uma

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obra-prima do tropicalismo" (Veloso, 1997: 280). A respeito da atuação de Duprat como arranjador, o maestro Julio Medaglia diz:

Realmente ele não foi fazer 'média' com a música popular. Foi levar todo o seu talento, a sua inteligência brilhante e a sua capacidade técnica que trazia de outras faces culturais e sobretudo, o espírito da época, daquela década de 1960, onde ele atuou. Tudo isso prevê um gigantesco caldeirão orquestrado, tão bem, talvez como nenhum outro tenha feito. (Entrevista à TV Cultura, série Arranjadores, agosto, 1992)

Seus arranjos refletem um estilo bastante personalista. Esse aspecto pode ser percebido, por exemplo, na música “Coração Materno”, uma das faixas incluídas no álbum Tropicália ou Panis et Circensis, anteriormente mencionado. Calado a considera como uma clássica canção-dramalhão do cantor e compositor Vicente Celestino que "resultou em um dos mais bem-acabados produtos da tática tropicalista de reler obras cafonas. Caetano conseguiu isso com uma interpretação suave, que atenuou a pieguice original da canção, criando um contraste com o tom melodramático do arranjo de cordas de Duprat" (1997: 194). Caetano Veloso impressionado com o arranjo dessa canção, tece comentários:

Salve o arranjo de “Coração Materno”, que coisa deslumbrante ele fez! Sabe, que eu na hora de gravar fiquei comovido, impressionado...é lindo aquilo! Porque mantém a grandiosidade de idéia, tem a dose de irônia exata e ao mesmo tempo, você sente uma cultura de orquestração operística. Era uma coisa, que na verdade, um desejo do Vicente Celestino, que não estava bem realizado no Vicente Celestino, quer dizer, numa versão que deveria ser uma versão caricata que era a minha, estava muito menos caricata. Muitos dos elementos constitutivos daquele estilo estavam melhores representados no arranjo de Rogério, do que na gravação do Vicente Celestino, mais a sério, indo mais fundo naquilo. (Entrevista ao programa Ensaio, out., 1992)

A necessidade de colocar em prática tudo o que sabia fazer em música fez com que Duprat fundisse diferentes estilos, muitas vezes, em um só arranjo. Dessa forma, acrescentava às canções, para as quais o arranjo estava sendo elaborado, uma forma muito particular de compor as cordas e os metais, ou seja, suas orquestrações ganhavam praticamente uma autonomia paralela, permanecendo ao mesmo tempo integradas harmoniosamente às estruturas das canções. Muito embora vinculados às canções, seus arranjos, muitas vezes, assumiam um caráter composicional. O compositor Tom Zé, em

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entrevista, mostra a correspondência existente entre os arranjos de Duprat e as canções tropicalistas:

Durante toda a atuação do Rogério no Tropicalismo era como se houvesse uma alma única que trabalhasse todas as coisas. Aquilo estava de tal modo enriquecido, ritmado, em todos os sentidos. Como música popular de ter charme, balanço, de ter tantas coisas bem colocadas instrumentalmente na parte de sopros, de cordas, de coisas da banda e com a linguagem das bandas daquele tempo. Tudo muito bem adequado, como também na inteligência dos arranjos. Aí, nesse sentido, da inteligência mais universitária, oficial que eram as citações, o vestir, o botar dentro de uma moldura. Parecia que a música não existia sem aquela roupa. Quando fomos colocar a voz no disco Tropicália eu me lembro que comentei com os meninos, o Gil e o Caetano: "Vocês são uns caras de uma sorte que não tem tamanho. Entregar as músicas para uma pessoa e a pessoa entregar essa coisa tão brilhante". Essa colaboração tão importante é que nunca ouvi falar. A relação do Rogério em ouvir a canção e procurar uma moldura, enriquecendo com citações da linguagem nacional ou internacional. Se as citações não fossem muito bem feitas tornavam-se banais. O Gil e os Mutantes encontravam no Rogério o pensamento criativo para orquestra. Isso é muito difícil entre a sensibilidade das pessoas. (Entrevista, outubro, 1995)

Em seguida, Tom Zé comenta a importância da presença de Duprat, assim como dos maestros Damiano Cozzella e Julio Medaglia para o enriquecimento do tipo de linguagem utilizada pelos tropicalistas:

No disco Tropicália ele fez o arranjo da minha música “Parque industrial”. Nós combinamos quais músicas íamos botar no disco e depois mandamos para Rogério. Era fácil lidar com ele porque estava sempre bem humorado, pedia sugestões, estava sempre disposto a remodelar o que ele fazia. Os primeiros arranjos, mandamos para arranjadores do Rio. Quando as músicas voltaram arranjadas a impressão que dava é que essas músicas eram outras. Nunca conversei com o Caetano sobre isso, mas ele fez um comentário na contracapa de um de seus discos: "Estas músicas que um dia foram minhas". Não vejo outra referência sobre isso. Quando

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não era o caso do Cozzella, do Julio ou do Rogério, o susto que a gente tomava era muito grande.

O tropicalismo deve ao Cozzella e principalmente ao Duprat e ao Medaglia, mais do que se credita a eles. Acho que se não tivessem presentes naquele momento com aquela formação do pós-moderno e com o mesmo espírito crítico que foi uma das prerrogativas estéticas mais praticadas no tropicalismo, não teria sido tão rico de linguagem e de força como foi. (Idem)

De maneira geral, a maioria dos álbuns dos anos 60 ou 70 arranjados por Duprat são imediatamente reconhecíveis por suas interferências sonoras, citações de músicas já conhecidas, ruídos, diálogos, mudanças de andamentos, enfim, um mund o de colagens sonoras que revela algo de novo a cada escuta, e como ele mesmo acrescenta:

Coisas que faziam parte da música erudita, a desordem sonora, todos os valores de Cage. Eu fazia happening com partituras escritas para aparelhos domésticos, com coro lendo jornais do dia. Era tudo o que os tropicalistas esperavam e que nós já praticávamos há 10 anos. (Vibrations, 1999: 42)

No final da década de 1960, Duprat chegou a ser bastante conhecido por um público mais abrangente e foi nesse período que gravou, no estúdio Scatena, com produção de Manoel Barenbein, o LP A banda tropicalista do Duprat (1968). Contando com a participação do grupo Os Mutantes, esse disco destaca, além de algumas orquestrações para clássicos da MPB, como “Chega de saudade” de Tom Jobim e músicas do tropicalismo, como “Baby” de Caetano Veloso e “Bat macumba” de Gilberto Gil, músicas de John Lennon e Paul McCartney. Ao contrário do que se poderia pensar, Duprat não ficou satisfeito com o resultado:

Não gosto muito daquilo. Eles forçaram muito, aquela foto... O pai de Edu Lobo era produtor [executivo]- já falecido, Deus o tenha em bom lugar-, mas não entendia as coisas. Então me fizeram subir em cima da mesa para bater fotografia... Coisa tão boba, ingênua, cretina, mas, enfim, acabei fazendo porque queria, tem umas coisas que eu gosto. Mas ele sofreu um pouco do efeito desse negócio do repertório, de me forçarem um pouco alguma música internacional, mais comercializada (Showbizz, 2000: 59).

Surpreendentemente, no mesmo ano em que seu disco fora gravado, Duprat declarou, em uma entrevista ao Jornal da Tarde, que o movimento tropicalista era "coisa encerrada, um rótulo que não lhe interessava mais, uma etapa superada" (1968: não p.).

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Quanto aos festivais, declarou à imprensa da época ter desistido devido à sua péssima qualidade, acrescentando, ainda, o fato de não suportar mais os discursos solenes das entregas de prêmios. É importante lembrar que o prêmio de melhor arranjador, em 1968, do Festival da Globo, Duprat não foi recebê-lo, atribuindo sua atitude à sua opinião de que "para fazer 'média' com Os Mutantes o júri agiu assim," e que, além do mais, para ele, esse título temporário nada significava (Jornal da Tarde, 1968: não p.).

Muitos autores referem-se ao ano de 1968 como o auge do movimento tropicalista. Onze anos depois, em 1979, Duprat dá uma Palestra no Festival de Cinema em Gramado, que não trata especificamente do tropicalismo, mas pode ser considerada uma espécie de balanço do que representaram os anos 60 para a cultura em geral e, mais especificamente, nacional. Nessa palestra, ele diz que os anos 50 representaram para os músicos "a restauração dos dodecafonistas, principalmente Webern, e um momento dos trabalhos super ordenados, até matematicamente, das músicas concreta, serial e eletrônica, com complicadíssimas estruturas e sistemas de notação, para circular entre duas ou três pessoas". Em oposição a essa tendência estruturalista da música dos anos 50, nos anos 60 iniciou-se o "'desbunde', inicialmente com a tímida incorporação de irracionais extraídos de teorias probabilísticas, e logo formando o cordão aleatório, com o sensacional John Cage de baliza" (Gramado, 1979). Duprat destaca como elementos caracterizantes da cultura dos anos 60, os "Beatles, cabelos, papos de comunidades não alinhadas, hippies e contestação". Esses elementos representavam um distanciamento com o que ele chamou de "Kultura com K maiúsculo", ao referir-se ao que considerava uma cultura reacionária, e uma aproximação com a antiarte e a contracultura:

Fomos ficando de mal com a 'Kultura' e chegando mais à de massa. Os do K maiúsculo, que não tinham visto passar nem a primeira banda estruturalista dos 50, pegos de calças curtas, ficaram berrando em defesa da ordem, da estrutura e da grande arte, vejam só! Mas já era a era do grande sonho, caminho sem retorno. O sonho acabou, mas já tinha devastado tudo, demoliu o sistema, gerando terrível abalo cósmico, para a perplexidade das novas gerações dos dancing days de hoje. (Gramado, 1979)

Em 1983, num artigo escrito para a revista Leia, Duprat volta a tratar desse assunto, expondo uma versão mais politizada acerca dos anos 60. Para ele, o AI-5 foi instituído como uma reação do sistema ao descobrir que a verdadeira subversão estava aliada a uma revolução no nível comportamental e no campo da linguagem. A partir disso, o Brasil assistiu a "um verdadeiro rapa, uma atroz e impiedosa caça às bruxas de que não se livraram nem os aparentemente inofensivos Gil e Caetano engaiolados feito bichos nos sujos porões da repressão, junto com outras centenas de cabeças que, cada uma à sua moda, sabiam que tinha que ocorrer mudanças". (Leia, 1983: não p.)

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Duprat é comumente considerado o principal arranjador do tropicalismo. Isso se deve, provavelmente, por ter sido capaz de transitar por diferentes gêneros musicais de maneira singular e, além disso, ter encontrado meios de aliá-los. Ao se tomar contato com seus arranjos, a impressão que fica é a de que ele soube realmente traduzir, por intermédio de seus sons, o conteúdo estético do tropicalismo.Talvez essa seja uma de suas contribuições, ter sido, de fato, um artesão que compilou sonoridades que comungam com as canções do repertório tropicalista, num tipo de união que resultou em um legado para a música popular brasileira.

Assim como os tropicalistas encontraram em Duprat os elementos necessários para as transformações que desejavam operar na música popular brasileira, este por sua vez encontrou um ambiente propício para a viabilização de muitas de suas concepções estéticas, ou como ele mesmo comenta: "Foi a união da fome com a vontade de comer". Entretanto, ele diz humildemente: "Não fui eu que fiquei dando aula para eles; ao contrário, eu aprendi com Os Mutantes, com o Gil, com o Caetano..." (ShowBizz, 2000: 59). Sua postura pode nos levar a pensar que seu papel no tropicalismo era apenas o de um técnico musical a serviço dos ideais estéticos do movimento. Porém, essa visão, difundida muitas vezes por ele próprio, deve ser redimensionada, pois como visto anteriormente, ele foi um dos idealizadores dos princípios estéticos que fundamentaram o movimento Música Nova. Ao apresentá-lo a Gilberto Gil, Julio Medaglia conhecia a potencialidade de Duprat, não apenas no que se referia a seus conhecimentos técnico-musicais, atributo que poderia ter sido encontrado em outro profissional, mas sobretudo, sua concepção estética voltada para a vanguarda, e sua vivência nessa área, estes sim, atributos que somados aos ideais de transformação dos tropicalistas contribuíram para o redirecionamento da música popular brasileira.

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