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Limites não declarados, terras em comum: registros de terra em Alagoinhas ( )

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ANTONIO HERTES GOMES DE SANTANA

1 Introdução: A Lei de Terras de 1850 e seus impactos no meio rural:

A década de 1850 foi marcada por significativas transformações políticas, econômicas e sociais no império do Brasil. Uma dessas transformações ocorreu no meio rural, a partir da aprovação da Lei de Terras, que estabelecia normas sobre a posse, manutenção, uso e comercialização de terras. Ao tratar desse período, relacionando a questão da escravidão com a Lei de Terras, Sidney Chalhoub afirma que

O ano de 1850 é um divisor de águas na vida política e social do Império. O fim do tráfico africano ilegal interrompeu o principal fluxo de mão de obra para a cafeicultura fluminense e paulista, o que obrigou o governo imperial a imaginar alternativas. Uma delas foi a Lei de Terras, que buscou regularizar a questão fundiária em geral, mas cujo objetivo, na ótica do governo, era permitir a utilização e venda de terras públicas para obter os recursos necessários à implantação de políticas para atrair colonos europeus. (CHALHOUB, 2012, p. 38)

O interesse das autoridades em fazer valer essa lei devia-se, em linhas gerais, à necessidade de limitar e defender a propriedade privada, num período em que a escravidão passava por uma crise, com o fim do tráfico e consequentemente a redução da mão de obra escrava, com as concessões e compras de alforrias, com as fugas, entre outros fatores1.

Registrar as terras podia significar a garantia do direito de propriedade de alguns sujeitos; era limitar ou dificultar o acesso a outros sujeitos e assegurar um maior valor a esse bem, que em décadas anteriores não era tão valorizado como o preço do escravo. Aliás, com a abolição da escravidão e quanto mais se aproximava o século XX, os preços da terra subiram significativamente. Portanto, mesmo que possuísse poucos escravos nesse período, o

Mestre em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); professor do ensino básico da

rede estadual de ensino da Bahia.

1 Uma vasta produção historiográfica tem discutido esse tema no Brasil. Autores como João José Reis, Sidney Chalhoub, Flávio Gomes, são apenas alguns dos vários que abordam a crise no sistema escravista.

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proprietário de terras tinha uma significativa importância social, visto esse contexto de monopolização e mercantilização da terra. (MATTOS, 2009).

A partir da Lei de Terras, a compra passou a ser a única forma de obtenção de terras devolutas, regra estabelecida no artigo 1º. Assim, para quem era pobre e despossuído de terra, as dificuldades aumentaram ainda mais, ao contrário dos grandes produtores agrícolas, que conseguiram manter em suas mãos boa parte desse bem, ao longo da segunda metade do século XIX.

Sendo o registro de terras uma determinação legal, era de se esperar que todos os proprietários registrassem suas terras, mas a realidade foi diferente. Como lembra Márcia Motta, nem todos os proprietários registraram, ou pela cultura de usufruir o bem sem a necessidade de um documento oficial, ou como motivação para disputas pelas posses de terras que não tinham demarcações ou limites estabelecidos (MOTTA, 1998). Mesmo assim, levemos em conta a possibilidade de a grande maioria dos proprietários registrarem suas terras conforme estabelecia a lei, até mesmo porque era talvez mais cômodo ou mais rápido do que resolver uma querela na justiça, por exemplo. As resoluções de problemas envolvendo disputas no âmbito da justiça podiam durar anos ou décadas, além de envolver diversas pessoas e custos desnecessários.

Os proprietários que registraram suas terras conforme determinava a lei podiam se valer do direito à propriedade, que passava a ser confirmado num documento escrito, o registro eclesiástico. Em uma sociedade (como a ocidental, eurocêntrica) onde os registros escritos tinham mais valor e poder de fato, os proprietários devidamente registrados podiam usufruir do seu direito com menos preocupação. Como salienta Thompson, é como se “o ato da escrita possuísse um poder misterioso”. (THOMPSON, 2010, p. 130)

Apesar de não serem um retrato da estrutura fundiária de uma região, já que contêm erros, informações incompletas ou não verdadeiras, como apontou Motta (MOTTA, 1998, p. 175), os registros de terra enquanto documentos históricos podem permitir a nós, historiadores, ao menos levantar uma série de questões a respeito das condições socioeconômicas, das relações entre os sujeitos, do processo de ocupação dos territórios, além de uma melhor compreensão acerca dos conflitos sociais no meio rural daquele contexto. A

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título de exemplificação, podemos observar nos registros: 1) a proporção de sujeitos que registraram suas terras e o número total da população de uma localidade, tentando entender uma possível desigualdade social; 2) os tamanhos e os valores das terras declaradas, visando analisar a concentração desse bem em determinados grupos ou sujeitos sociais; 3) os meios de obtenção, atentando para possíveis relações paternalistas ou agenciamentos; 4) os limites declarados e as relações entre vizinhos, para tentar compreender conflitos e/ou solidariedades no processo de ocupação e utilização do bem.

Discutir o contexto de transformação da terra em bem privado e de valorização comercial no meio rural de Alagoinhas (Bahia) é o principal objetivo deste trabalho. Vale salientar, portanto, que nesse momento o uso da terra não estava restrito à subsistência, mas relacionava-se à logica capitalista do direito de propriedade2. Como lembrara Thompson, “sem dúvida, as notações capitalistas dos direitos de propriedade surgiram dos longos processos materiais de mudança agrária, quando o uso da terra se desprendeu dos imperativos de subsistência e a terra se tornou acessível ao mercado”. (THOMPSON, 2010, p. 134).

A partir da aprovação da Lei de Terras de 1850 - que estabelecia normas sobre a posse, manutenção, uso e comercialização de terras no império brasileiro - muitos pequenos, médios e grandes proprietários em Alagoinhas3 tiveram que resolver conflitos e outras querelas por conta da precariedade dos limites de suas terras. Através da análise dos registros eclesiásticos de terras desse município, ocorridos nos anos finais da década de 1850, é possível levantar muitos questionamentos, conceitos, problemas que dizem respeito à temática da questão fundiária. Por que grande parte dos proprietários não declaravam seus limites, alegando serem suas terras em comum? O que significava “terras em comum” naquele contexto? Será que o processo de reconhecimento da terra como um bem privado se deu tardiamente na região aqui estudada?

2 Apesar de ser recorrente, em Alagoinhas e região, os gêneros agrícolas de primeira necessidade voltados para o consumo interno, alguns bens importantes como o fumo e a pecuária eram comercializados em mercados de outras regiões. Há indícios também de bens para exportação. Portanto, é possível fazer uma relação com a lógica capitalista.

3 Na dissertação de mestrado, faço uma breve análise do quem seriam considerados pequenos, médios e grandes proprietários na região de Alagoinhas, em comparação com estudos de outras regiões vizinhas. Ver: SANTANA, 2015, p. 18-20.

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Os conflitos no meio rural naquele período podiam estar diretamente inseridos na lógica dessa transformação da terra em propriedade privada e, no caso de Alagoinhas, ainda mais por haver dificuldade em proteger essas propriedades, como tem mostrado outras fontes (processos crimes e correspondências de autoridades, por exemplo).

2 Os registros de terras em Alagoinhas: nem tudo era declarado:

Entre os anos de 1857 e 1860, quase uma década após a implantação da Lei de Terras do Império do Brasil, os sujeitos que possuíam terras no município de Alagoinhas (localizado na província da Bahia) se dirigiram ao vigário da localidade, Antonio Martins da Silva Telles, para declarar a existência e posse desse bem, gerando dois livros de registros eclesiásticos, contendo aproximadamente 450 propriedades no total4. A maioria dos sujeitos que se apresentaram como proprietários eram cônjuges, alegando obter os bens por compra ou por herança. Alguns poucos eram irmãos ou tutores de órfãos e outros eram possuidores das terras por doação ou outro tipo de concessão.

Ao investigar esses livros de registros de terra em Alagoinhas, o pesquisador deve estranhar o fato de terem sido os registros iniciados no final da década, relativamente tardio, se levarmos em conta o caráter emergencial da lei. O vigário Telles até observou, no fechamento de um dos livros, que o prazo final se aproximava5. É muito difícil, se não impossível, sabermos o que de fato ocasionou essa demora, pois até então não foi encontrado nenhum outro documento que explique tal coisa, mas é possível fazer algumas inferências a partir de questionamentos baseados na análise de outra documentação e do diálogo com a historiografia sobre o tema.

Em se tratando do meio rural, é válido salientar que as leis se baseavam nos costumes locais, mais até do que em um documento escrito produzido por uma autoridade ou um grupo externo à realidade local. O conceito de costume é tratado aqui na perspectiva thompsoniana,

4 APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção de Arquivos Colonial e Provincial. Maços 4641 e 4642. 5 Na verdade o prazo final seria justamente o ano de 1857, como tem mostrado MOTTA, ao estudar a região do vale do Paraíba.

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que o observa como uma práxis local. (THOMPSON, 2010, p. 86). Assim, pelos menos a princípio, talvez não fizesse parte dos costumes de Alagoinhas o ato de reconhecer as terras via documento escrito e como propriedades privadas de uso restrito, mas a partir de práticas reconhecidas culturalmente pelos indivíduos daquela localidade. Podiam ser práticas rotineiras reconhecidas por todos em Alagoinhas: o uso de terras em aberto para colheita e criação de animais; o uso de rios e riachos que passavam pelas terras de outrem para pesca e parada de animais; a concessão de pedaços de terras a pessoas fora do vínculo familiar, entre outras6. E essas práticas não estavam, necessariamente, previstas em leis escritas. A cultura escrita pode ter sido manifestada tardiamente ou apenas por alguns grupos daquela sociedade7. Portanto, não é de se estranhar que tenham deixado para o último momento o registro das terras em documento escrito.

O número relativamente pequeno de propriedades registradas pode indicar de fato uma concentração de terras nas mãos de poucos indivíduos ou a ausência da maioria dos proprietários nos registros. Dentre uma população que se aproximava dos 15 mil habitantes, inclusive de maioria livre ou liberta e que se declarava lavradora8, é no mínimo espantoso que houvesse apenas 449 propriedades. Acreditamos então na possibilidade de a maioria dos possuidores não terem registrado suas terras naquele contexto da lei. Como salientou Márcia Motta, em pesquisa pioneira sobre a Lei de Terras no Rio de Janeiro, nem todos os proprietários registraram suas terras, muitas vezes como uma estratégia para barganhar, se apossando de terrenos de outros sujeitos. Como veremos mais adiante, alguns conflitos corriqueiros como o furto de gado, podiam ter alguma relação com um problema maior: a questão da posse de terras.

Os livros eclesiásticos de terra são formados por declarações dos possuidores das terras, contendo nessas declarações: “o nome do possuidor, designação da Freguesia em que estão situadas; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida; e seus

6 Todas essas práticas eram frequentes na localidade, como atestam alguns documentos. Ver: SANTANA, A. H. G. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho em Alagoinhas e Inhambupe (1860-1890). Dissertação de mestrado, UFRRJ, 2015.

7 Não é de se estranhar, para aquele contexto, o número relativamente grande de pessoas que não sabiam ler e escrever e que, portanto pediam a terceiros que assinassem o documento, ao seu rogo.

8 Para saber mais sobre o perfil da população de Alagoinhas na segunda metade do século XIX, ver: SANTANA, op. cit., Recenseamento do Império do Brasil de 1872. Vale ressaltar que a categoria lavrador é bastante complexa, como tem mostrado Hebe Mattos, podendo incluir pessoas com ou sem posses de terras.

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limites”. (MOTTA, 1998, p. 168, apud Regulamento para Lei de Terras). Vale ressaltar que muitos declarantes passavam informações incompletas e não verdadeiras. (MOTTA, 1998, p. 170).

Nos registros de Alagoinhas encontramos algumas informações importantes que nos ajudam a compreender melhor a dinâmica do meio rural naquela sociedade. Dentre essas informações, podemos destacar:

1) Os nomes das principais localidades rurais que nem sempre aparecem em outra documentação. Há uma diversidade de fazendas, sítios, entre outras denominações no município. Boa parte dos estudos sobre a região trata do meio urbano, enfatizando a modernização a partir da implantação da rede ferroviária9 e, geralmente esquece dessa variedade de lugares no meio rural que tiveram participação política, econômica e social no processo de construção da história. O censo demográfico só apresenta a divisão do município em freguesias ou paróquias, não mostrando também o quanto importante e grande foi o meio rural. Aliás, a partir da análise desses registros eclesiásticos de terra, duvidamos se Alagoinhas já era tão modernizada, tão urbanizada como mostraram alguns pesquisadores, ou se havia predominância das atividades e cultura do campo.

2) O tamanho ou extensão da propriedade. É recorrente, na documentação, a denominação “porção de terras”. Uma ou outra vez aparece o termo “tarefa de terra” e menos frequente “posse” ou “sorte” de terras. Não dá para saber, precisamente, quais os significados desses termos naquele contexto, até mesmo porque poucos declarantes detalhavam, de fato, as medidas das propriedades, mas se comparadas às outras denominações, como “fazenda”, “sesmaria”, por exemplo, podemos entender que a maioria delas era propriedade de tamanho pequeno. Além disso, se levarmos em conta os valores atribuídos a essas “porções” ou “tarefas” de terra, comparando com outras de diferentes denominações, acreditamos ainda mais nessa ideia, mesmo sabendo que naquele período a terra ainda não tinha tanto valor econômico.

9 Podemos citar, entre outras produções historiográficas: GONÇALVES, Jocélia Novais. Modernidade na província: Alagoinhas, 1853-1930 (Monografia de Especialização em História Política), UNEB, Alagoinhas e LIMA, Keite M. S. Nascimento. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em Alagoinhas (1868-1929), Dissertação de mestrado, UFBA, 2010.

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3) Em relação aos valores declarados, é notório quantias relativamente baixas, na faixa dos 100 a 200 mil reis, se tomarmos como referência o preço médio de uma rês na localidade durante o período, que estava na faixa dos 30 mil10. Muitos proprietários não declaravam os

preços das terras e poucos registraram valores acima de um conto de réis. Talvez fosse mais fácil para quem comprava o bem saber o valor exato do que quem adquiria por herança ou outros meios.

As informações mais curiosas, que deram origem a esse trabalho, dizem respeito aos limites declarados nos registros. Geralmente esses limites são, para nós pesquisadores, muito precários (podem ser um rio, um riacho11, uma estrada, uma pedra, uma árvore, uma cancela, etc.) mas, para aquela época, eram marcos territoriais certamente bastante conhecidos pelos moradores. (MOTTA, 1998, p. 182). Na maioria das declarações, cada proprietário possui muitos vizinhos e, em vários momentos eles se “encontram” no documento. Esses vizinhos são os chamados confrontantes, indivíduos que, pela lei, deviam ser citados para o reconhecimento das terras. Em outras palavras, ao declarar suas terras, um proprietário devia declarar também seus confrontantes e os confrontantes deviam, portanto, se reconhecerem, senão seria muito difícil a validação das informações. Como lembra MOTTA,

Registrar ou não sua terra, contar ou não com o reconhecimento de seus confrontantes era, em suma, uma questão difícil e estava relacionada à existência ou não de uma teia de relações pessoais já consolidada, capaz de legitimar os limites territoriais declarados. (MOTTA, 1998, p. 189)

Nesse aspecto, em Alagoinhas a maioria dos declarantes não só citaram seus confrontantes como houve coincidências nos nomes desses sujeitos. Aliás, até mesmo os dias dos registros eram coincidentes, como se fizessem no mesmo momento, indicando uma possível solidariedade entre eles.

Muito questionável, porém, é o fato de grande parte das terras ser considerada pelos declarantes como “em comum” e, por isso seus limites ou os confrontantes não foram

10 Esse valor aparece num processo criminal de furto de uma vaca na década seguinte. Ver: SANTANA, 2015. 11 Vale ressaltar que o município de Alagoinhas sempre foi rico em rios, riachos, lagoas muito importantes para as atividades econômicas. O próprio nome da localidade deve-se à presença de muitas pequenas lagoas.

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declarados. O que seria, naquele contexto, “terras em comum”? O que levou muitos sujeitos usarem esse termo nas declarações?

O termo de difícil compreensão, pode remeter ao sentido de “uso comum”, quando diferentes grupos locais usufruíam do bem sem, necessariamente, disputarem pelo direito de posse. Assim como o conceito de costume discutido por Thompson, o uso comum pode estar relacionado ao meio rural, baseado no direito local. Vale ressaltar que, se pensarmos nas relações sociais baseadas apenas na solidariedade, na troca e nos costumes de uso comum da terra, talvez esqueçamos dos conflitos pela posse da mesma.

A lei não obrigava aos declarantes citarem os limites de suas terras. Então, podemos pensar nessa ausência de limites como um costume local baseado numa relação de solidariedade, por um lado, mas também como uma estratégia de disputa pela posse, por outro. Assim, muita gente preferiu nem registrar as terras, já que podia representar uma ameaça, uma possibilidade de contestação por outrem, ou “era preferível, então, registrá-la apenas no essencial, resumindo-se em declarar o lugar onde ela se encontrava e sua extensão”. (MOTTA, 1998, p. 190).

Não sabemos como foram resolvidas essas pendências nos registros, ou melhor, o que os declarantes de fato fizeram para legitimar as posses de suas terras conforme a recomendação legal. O que sabemos é que, na década seguinte à implantação da lei, em Alagoinhas e região, houve vários conflitos por conta de situações corriqueiras, como o furto de gado ou de diferentes gêneros da lavoura que teriam sido uma forma embrionária de questionar o direito à terra.

3 Possíveis conflitos e outras querelas oriundos da precariedade de limites das propriedades:

O meio rural no município de Alagoinhas e região era pauta de debates, fazia parte das preocupações das autoridades durante a segunda metade do século XIX. Desde o ano de 1853, quando a Câmara de Alagoinhas inicia seus trabalhos, após a elevação ao nível de município,

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houve um interesse de representantes do legislativo discutir projetos de leis, posturas, tratando de questões envolvendo a zona rural, tais como o controle sobre a derrubada de árvores, colheita de frutas, pesca, entre outras. Quando a câmara municipal, no ano de 1860, aprovou a postura de número 21, proibindo o “abusivo costume de derrubar árvores para tirar os frutos”, pensava na defesa da propriedade e imposições de mais regras ao trabalhador rural.

Sendo uma prática costumeira, a derrubada de árvores para a colheita dos frutos não fora até então tratada pelas autoridades como uma ação criminosa. A necessidade que a câmara teve de aprovar uma postura que interferia nos costumes sobre o livre acesso às árvores frutíferas ao ressaltar seu caráter de propriedade privada, pode estar relacionada a pelo menos duas questões: primeiro, a pedido dos proprietários locais, que viam no costume da população uma violação do seu direito de propriedade; segundo, à necessidade de um maior controle dos trabalhadores do meio rural, num período de inseguranças e transformações nas relações de trabalho. (SANTANA, 2015, p. 70-71).

Do mesmo modo, o costume de se plantar e criar animais à solta, sem demarcações, devia ser controlado pelas autoridades e proprietários, não só como uma justificativa de defesa da propriedade privada, mas pela manutenção de uma ordem no mundo do trabalho.

Nesse período, o município vizinho, Inhambupe, do qual Alagoinhas fazia parte, também foi palco de debates acerca de querelas envolvendo diversos lavradores e criadores de gado. O que estava em jogo, naquele contexto, era a tomada de medidas, por parte das autoridades locais, para conter conflitos pela propriedade, assegurando o direito à terra a alguns indivíduos, principalmente para diminuir o impacto causado pelo processo de abolição. Em outras palavras,

nos tempos da abolição e do enfraquecimento do poder senhorial, as autoridades locais viram a necessidade de aumentar o controle das práticas que até então eram costumeiras e de estabelecer melhor os limites da propriedade, como no caso dos cercamentos sugeridos pelas câmaras municipais. (SANTANA, 2015, p. 72).

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Aliás, o problema da falta de cercas parece ter sido preocupante por algumas décadas, mesmo após a implantação da Lei de Terras e dos debates e aprovação de posturas recomendando as delimitações entre as diferentes propriedades.

A década de 1860, que aparece na documentação oficial da região como um período de debates sobre essas questões, foi também marcada por conflitos pela propriedade, ganhando notoriedade em queixas e processos criminais por furtos de gêneros da lavoura e de gado. O processo em que o escravo Marcelino esteve envolvido como réu pode exemplificar essa situação. No ano de 1866, Marcelino saíra da fazenda Flexas, no município de Inhambupe, para prestar um serviço (ordenado por sua senhora) em Alagoinhas. No meio do caminho encontrara uma vaca solta e apanhou-a para vender no matadouro mais próximo. Todos que viram o escravo com o referido animal, e principalmente os homens que estavam no matadouro no momento do negócio, desconfiaram de Marcelino e o denunciaram ao delegado, que por sua vez, deu voz de prisão. Marcelino ficou preso por mais de um ano, respondeu processo por furto de gado e só foi absolvido da pena porque, com a ajuda de um curador, soube usar sua noções próprias de direito, alegando o fato de o bem (a vaca) ter sido apanhado porque no local havia o costume de se criar animais à solta, muitas vezes sem conhecer os donos e que, para o ato ser considerado de fato um furto, um suposto proprietário deveria prestar a queixa, questionar o seu direito de propriedade, além de ter sua terra cercada. Mas isso não aconteceu e Marcelino tinha conhecimento dessas questões.

4 Uma primeira conclusão:

Se grande parte das terras na região não era cercada, conforme a recomendação das posturas, o direito de uso podia ser comum, baseado nos costumes locais. Então, certamente as justificativas dadas pelos proprietários que declaravam suas terras em comum, não apresentando seus limites nos registros eclesiásticos, estavam relacionadas a esse costume de se plantar, colher e até de criar animais sem que houvesse, necessariamente, uma cerca delimitando cada pedaço de terra.

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Se essas práticas funcionavam bem na maioria do tempo não sabemos, mas era de se esperar que, ao menos enquanto houvesse laços de família, solidariedade entre os pequenos produtores ou entre estes e os médios e grandes proprietários de terra, o costume de não cercar as propriedades não trazia grandes problemas. Mas esse costume de não cercar podia significar uma estratégia de interesse pela disputa da terra. Em outras palavras, num conflito causado pela invasão de animais, destruição de plantações em terrenos alheios, ou até mesmo por furtos de gado que viviam soltos, a disputa pela terra não podia ser descartada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”. In: História do Brasil nação: 1808-2010. Direção Lilia Moritz Schwarcz, volume 2: A construção nacional, 1830-1889. Coordenação José Murilo de Carvalho. Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2012.

FREIRE, Luiz Cleber Moraes. Nem tanto ao mar nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Feira de Santana: Editora UEFS, 2012. GONÇALVES, Jocélia N. Modernidade na província: Alagoinhas 1853-1930. Monografia de Especialização em História Política, Alagoinhas, UNEB.

LIMA, Keite Maria S. N. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em Alagoinhas (1868-1929). Dissertação de Mestrado, UFBA, Salvador, 2010.

MATTOS, Hebe. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, Faperj, 2009.

MOTTA, Márcia Maria M. Nas fronteiras do poder: conflitos de terra e direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

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____________ (org.). Dicionário da terra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis, CASTILLO, Lisa Earl e ALBUQUERQUE, Wlamyra (orgs).

Barganhas e querelas da escravidão: tráfico, alforria e liberdade (séculos XVIII e XIX).

Salvador: EDUFBA, 2014.

SANTANA, A H G. Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho em

Alagoinhas e Inhambupe (1860-1890). Dissertação de mestrado, UFRRJ, 2015

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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