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O poeta que poderia ter sido : António Franco Alexandre

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA MESTRADO EM LITEARATURAS PORTUGUESA E AFRICANAS DE LÍNGUA

PORTUGUESA

PAULO RICARDO BRAZ DE SOUSA

O POETA QUE PODERIA TER SIDO: ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

NITERÓI 2013

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PAULO RICARDO BRAZ DE SOUSA

O POETA QUE PODERIA TER SIDO: ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

Orientador: Prof. Dr. LUIS MAFFEI

Niterói 2013

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa. Área de Concentração: Estudos de Literatura.

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S725 Sousa, Paulo Ricardo Braz de.

O poeta que poderia ter sido: António Franco Alexandre / Paulo Ricardo Braz de Sousa. – 2013.

154 f.

Orientador: Luis Maffei.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2013.

Bibliografia: f. 149-154.

1. Poesia portuguesa. 2. Alexandre, António Franco, 1944-; crítica e interpretação. 3. Erotismo na literatura. 4. Representação. 5. Ética. I. Maffei, Luis. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de

Letras. III. Título.

CDD 869.1009

1. 371.010981

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PAULO RICARDO BRAZ DE SOUSA

O POETA QUE PODERIA TER SIDO: ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

Prof. Dr. LUIS MAFFEI – Orientador

______________________________________________________________________ Prof. Dr. JORGE FERNANDES DA SILVEIRA

Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª IDA FERREIRA ALVES

Universidade Federal Fluminense

SUPLENTES

Prof.ª Dr.ª SOFIA SOUSA E SILVA – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof.ª Dr.ª MARIA LÚCIA WILTSHIRE DE OLIVEIRA – Universidade Federal Fluminense

Niterói 2013

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa. Área de Concentração: Estudos de Literatura.

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Aos amigos, de quem roubei as melhores ideias

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AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, pelo afeto, paciência e incentivo.

Ao Maffei, pela poesia e por estes anos de diálogo e amizade construídos a todo dia. A Ida, pela atenção com que sempre me recebeu e pela imensurável contribuição para a realização deste trabalho. Ao Jorge Fernandes da Silveira, horizonte de pensamento sobre todas as letras. Também a Lucia Helena, duo de carinho e inteligência sem igual, e a Sofia, pela leitura cuidadosa que fez do projeto que originou esta dissertação.

A tantos amigos: ao Kigenes, pela interlocução e presença iluminada sem a qual todo este estudo seria outra coisa. A Beatriz Helena, pelo companheirismo e ternura visceral. A Vanessa, exemplo maior de generosidade. A Ana Beatriz, personalidade singularíssima (e múltipla), pelas agradáveis conversas. Ao Renato, pelas melhores aulas de matemática que um estudante de literatura pode ter e ao Luiz Paulo, amigo de sempre.

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Não quero ser quem sou, é evidente

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RESUMO

Este é um trabalho sobre a poesia de António Franco Alexandre. A leitura aqui proposta é focada em sua obra Aracne (2004) e tem como eixo fulcral de análise a ideia da metamorfose. Articulando esta noção aos procedimentos criativos do autor, observamos como são conjugados, ainda, erotismo e representação de forma a se construir uma ética da poesia. Ao perpassar uma trilha literária que se desloca da narrativa mitológica, homônima ao título estudado, até o livro-poema, esta dissertação tenciona, igualmente, visitar tanto a tradição lírica portuguesa como nomes do cânone universal, notando as suas repercussões em diferença no jogo intertextual promovido pela obra em questão. Palavras-chave: António Franco Alexandre; metamorfose; erotismo; representação; ética.

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ABSTRACT

This is an essay about the António Franco Alexandre’s poetry. The reading proposed here is focused on his work Aracne (2004) and has as its analysis axis the idea of metamorphosis. Articulating this notion to creative procedures of the author, we also observe how eroticism and representation are combined in order to build an ethic of poetry. Describing a literary path that goes from the homonym myth to the poem, this dissertation equally intends to visit the Portuguese lyric tradition as much as the universal canon, noting its impact on intertextual game promoted by the work in question.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ………..………10

1.1 Teoria e prática de Aracne ………..14

1.2 Mapa do percurso ...25

2. DO MUNDO DE ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE ...29

2.1 Os anos 70 e o problema do regresso ao real ...36

2.2 A escrita translúcida de António Franco Alexandre ...45

2.3 Música para os olhos: outras fantasias políticas ...54

3. DO MITO AO POEMA: PRIMEIRAS METAMORFOSES ...70

3.1 A burlesca queda de Aracne ...80

3.2 Do amor sacrificial ...94

3.3 Da ascese lírica ...109

4. O POEMA E OS SEUS GESTOS DE AMOR: TRAUMATISMO DO ESPANTO OU A ÉTICA EM ARACNE ...127

5. ANTICLÍMAX ...144

6. REFERÊNCIAS ...149

6.1 Fontes primárias ...149

6.2 Entrevistas ...149

6.3 Fontes teórico-críticas ...149

6.3.1 Sobre António Franco Alexandre ...149

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1 – INTRODUÇÃO

Se tivéssemos que demarcar alguns dos traços específicos que caracterizam a poética de António Franco Alexandre, certamente nos perderíamos em seus versos. Não bastasse uma produção que já abrange mais de quatro décadas, deparamo-nos com um autor muito afim a renovações em seu trabalho. Já Fernando Pinto do Amaral destacara, em texto de 1991, as constantes metamorfoses que a poesia alexandrina ensaia (AMARAL, 1991, p. 106), sem contar que, desde então, tais mudanças tornaram-se ainda mais acentuadas. Por outro lado, a tarefa apresenta uma série de complicações na medida em que mergulhamos, efetivamente, na obra de AFA1: trata-se de uma linguagem esquiva, refratária, comprometida com um sentido outro próprio da poesia (CRUZ, 2008, p. 301), logo, a busca por localizar as balizas que sustentam esta edificação pode parecer, em outras palavras de Gastão Cruz, “uma viagem sem regresso” (CRUZ, 2008, p. 302), ou, como coloca o AFA d’A pequena face, cumprir certa prova de quem se tentou “de tecer um rumor em muros de água” (ALEXANDRE, 1996, p. 175).

Será Rosa Maria Martelo, todavia, quem, com extrema lucidez, situará a obra de AFA (precisamente o mais recente AFA) em meio às tensões da poesia portuguesa depois de 1961. Destaco a palavra tensão justamente por a ensaísta apontar para caminhos de leitura desta obra que se encontram num espaço entre, referente à discussão em torno dos deslocamentos concernentes a uma tradição de modernidade “na qual a tentativa de articular arte e vida nunca estivera, na verdade, ausente” (MARTELO, 2007, p. 42). Ora, o que fica expresso no texto de Rosa Martelo é que esta poesia, fugindo de sínteses redutoras, buscaria coordenar as experiências textualistas, características dos poetas que vieram à tona na década de 60 (dentre os quais são assinalados Herberto Helder, Ruy Belo, assim como os jovens autores reunidos em

Poesia 61), com uma abordagem de aspectos mais próximos do prosaísmo da

cotidianidade, ou aquilo a que se chamou regresso ao sentido nos anos 70 (denominação, aliás, vista como indevida para certos críticos, tais como Gastão Cruz). Esclarecendo o quadro, será o próprio AFA quem afirmará que

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A poesia é (...), das artes da linguagem, o lugar do rigor, da precisão, da forma sensível organizada intelectualmente. Nem não se sabe que malabarismo verbal indiferente, nem mítica expansão de sensibilidades mal sofridas, mas afirmação do mundo e da linguagem, num gesto só, viver, escrever, apreender, criar, indissolúveis. (ALEXANDRE, 1984, p. 65-66).

Portanto, há intrínseca a esta concepção de labor poético a ideia de uma conjugação afirmativa entre as duas instâncias, que sejam mundo e linguagem, de forma que a constituição incessante deste enlace necessita, fundamentalmente, da intervenção neste espaço, um corte sobre o corpo textual o qual proporcionará a construção de sentido. É certo, um texto precisa de seu leitor:

Leitor, ou crítico, terão antes de mais que entrar no espaço de pensamento vivo, no instrumento e lugar de conhecimento que o poema é, que discutir a lição de real que o poema é, sob pena de se ficarem pela nulidade da impressão toscamente “subjectiva”. (ALEXANDRE, 1984, p. 66).

Pois é exatamente neste espaço de confluência que pretendo desenvolver a análise de uma das obras do poeta. Aracne (2004), texto de maturidade de AFA, discute com propriedade o problema da interlocução, observando-a como esta ponte entre a arte e a vida. Habitar este “espaço de pensamento vivo” é a proposta essencialmente ética que nos é sugerida no instante de partilha de experiências em que se faz a leitura, ou como é indicado numa espécie de definição de sua arte poética: “Se me prendo ao teu rumor ausente / não é que me consuma numa imagem / ou deseje real o imaginado; / é por outro real em ti presente.” (ALEXANDRE, 2002, p. 23). Nestes versos, a reivindicação de um encontro entre obra e leitor ganha uma expressividade interessante, de forma que o exercício de alteridade como morte do autor por meio da escritura busca, consecutivamente, o outro; está à espreita de ouvidos que possam tomar estas palavras e rearranjá-las, fazer delas o instrumento de conhecimento para a transformação do mundo. O que se pode depreender deste movimento é certa complacência entre os elementos do par dialético perda e ganho, posto que a própria condição simultânea de

ausência e presença, característica do signo linguístico, conforma o estado desejante em

que se coloca o eu lírico. No entanto, como vemos, não interessa a esta poesia a perda pela perda, mas sim os efeitos provocados pela inscrição do sujeito em seu texto ao metamorfosear-se no corpo do outro. Ou como, em seu conhecido soneto, diria Camões, poeta cujo intertexto com AFA será, também, matéria de estudo mais detido nesta dissertação: “[Amor] É um cuidar que ganha em se perder”.

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Texto quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre

tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha). (BARTHES, 2008, p. 74-75).

Barthes aponta para um delir-se do sujeito em seu texto de maneira que o sentido não mais se constitui como atributo dado em sua totalidade, mas gerado continuamente, logo, o sujeito em questão não mais pode ser compreendido como entidade estanque, pelo contrário, está fadado a constantes metamorfoses, só se pode dar a entender em movimento. A obra de AFA aqui estudada assim se inicia: “Gregor transformou-se em barata gigante. / Eu não: fiz-me aranhiço, / tão leve que uma leve brisa o faz / oscilar em seu fio de baba lisa.” (ALEXANDRE, 2004, p. 7). Deixando de lado, a princípio, o complexo de referências que já pode nos saltar aos olhos (Camões, Rimbaud, Kafka), somos tomados pelo curioso quadro de um eu lírico transmutado em aranha e, deste primeiro passo em seguida, são tecidas, em estrutura episódica, as suas pequenas aventuras lírico-amorosas. Interessa-nos, sobretudo, atentar à imagem do sujeito em trânsito, oscilante entre o eu e o outro. A prática radical de metalinguagem por meio da qual se dissipa o eu lírico concebe o movimento de alteridade que, consecutivamente, impossibilita o leitor de demarcar com precisão o terreno por onde caminha, instituindo, assim, os efeitos de indecidibilidade que Rosa Martelo diagnostica em seus versos (MARTELO, 2009, p. 265). Ora, a linguagem de AFA não só se apresenta como falta ao seu receptor, fazendo-o investir-se num exercício de leitura vertical (como o quer a estrutura do poema), como expõe estas lacunas de sentido, o espaço oco do texto (MARTELO, 2009, p. 280-281), sendo frequente o jogo de espelhamento entre obra e leitor. Assim como afirma o eu lírico de Aracne que “É verdade que a morte se embaraça / na trança irregular da minha tela;” (ALEXANDRE, 2004, p. 27), não sabemos ao certo se também nós, leitores, não morremos aos poucos ao nos enredar em sua teia, para que então se gerem outros sentidos: novos sentidos.

Nesta altura, cumpre ressaltar o papel fundamental desempenhado pelo erotismo na poesia alexandrina. É por meio de tal perspectiva de investigação que, enfim, pretendo pôr em causa esta que, possivelmente, seria uma das temáticas mais recorrentes em seus textos. Na esteira da leitura de Fernando Pinto do Amaral, que enxerga no eros desta obra a irreversibilidade do apagamento dos sujeitos amantes a

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partir do encontro de seus corpos, busca-se determinar como, a partir da escritura do outro no tecido poético, se conformam as figurações eróticas em Aracne. Desta forma, tal fenômeno interessa, sobretudo, na medida em que se observam as problemáticas envolvidas no encontro entre obra e leitor, desvelando a prática de construção de sentido como movimento lírico-amoroso. Como tento discutir, o erotismo no texto de AFA põe em questão as severas implicações éticas da poesia portuguesa contemporânea ao se situar naquele espaço de tensão em que se procura articular vida e arte. A encenação dos movimentos de metamorfose que levam à transformação do amador na cousa amada reivindicada pela obra alexandrina é dos mais relevantes objetos de estudo para esta pesquisa. Assim, o encontro (erótico) entre obra e leitor é o que possibilitaria fazer vibrar os fios que amarram mundo e linguagem e suscitaria a afirmação de ambos a partir deste mesmo enfrentamento.

1.1 – Teoria e prática de Aracne

Parece-me coerente a ideia de que o estudo sobre uma obra literária não deva se fechar nas hipóteses teóricas levantadas sobre um dado assunto. Definir um objeto de análise em literatura pode já parecer uma prática árdua, quanto mais se sobre ele são impostas as amarras conceituais que, mais cedo ou mais tarde, irão se abrir como um fundo falso. Não quero ser demasiadamente duro com a teoria, nem assim deveria agir; sobre este aspecto, ressalto, contudo, os inúmeros desníveis que os textos certamente implicarão entre si. Deve-se lembrar que, no caso de AFA, a escolha pela determinação de um suporte crítico que se pretenda adequado transforma-se num desafio terrível ao leitor, sob o risco iminente de se cair num confrontamento vazio de impressões argumentativas que não levariam a lugar algum. É destacada, assim, a exigência do trabalho conjunto com certo complexo teórico, de maneira que uma variedade de suportes, enfim, permita um exercício mais efetivo na tarefa pretendida.

Afinal, é necessário o método. Neste caso, a leitura d’O erotismo, de Bataille, é relevante, justamente por o ensaísta apresentar um posicionamento metodológico esquivo ao discurso ortodoxamente científico. Pensar a questão do erotismo exige um enfrentamento do próprio pavor que nos provoca o encontro com o desconhecido, o que mantém, portanto, aquela mesma dinâmica do desejo, a qual nos impulsiona inevitavelmente em sua direção. “Creio que o erotismo tem para os homens um sentido que o esforço científico não pode atingir.” (BATAILLE, 2004, p. 12). Assim Bataille se expõe afirmando partir à procura de uma perspectiva da qual “sobressaísse a unidade do

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espírito humano.” (BATAILLE, 2004, p. 12), em oposição aos esforços analíticos da ciência. Esta leitura nos ensina a compreender as distintas partes, aqui estudadas, como segmentos interdependentes a conformar um corpo crítico sobre a poesia de AFA. Poder caminhar por estas trilhas abertas pelo ensaísta é o que acredito ter basilar importância quanto à discussão do tema do erotismo em Aracne. Deste modo, as rotas desviantes que o poeta nos oferece nos obrigam sempre a rever e reformular o trato com o texto, o que, todavia, não prejudica a seriedade da atividade crítica.

Cada vez mais a palavra sentido me tem instigado. Bataille escreve que o erotismo tem um sentido que o esforço científico não atinge. Há de se concordar com ele na medida em que se compreende a noção de instabilidade intrinsecamente ligada ao movimento erótico. Qual o sentido do amor? A pergunta retórica é menos uma busca por posicionamentos firmes em relação à natureza do amor do que uma provocação. Interessam-me de forma mais contundente as possibilidades significativas que a interrogação me sugere: deseja-se entender o que seja o amor? Ou seria mais preciso indicar um seu direcionamento objetivo? Pode-se tratar ainda de inferir a que qualidade sensível ele se associa? Independente das proposições adotadas, uma coisa fica patente: a indiferenciação2 no seio da experiência erótica faz de sua constituição como valor, no mínimo, um problema.

O manejo com a obra do ensaísta francês pretende uma abordagem instrumental que não se reduza a uma dobra das questões levantadas pelo poema livro de AFA3. A proposta, aqui, busca se fundar na tentativa de articular poesia e crítica de forma que, a partir do confrontamento entre os textos, possam se ampliar os horizontes de pesquisa por meio das problematizações suscitadas. Um primeiro problema que se nos apresenta, como já referido, diz respeito à constituição valorativa da experiência erótica. Como afirma Bataille: “o erotismo é considerado uma experiência ligada à experiência da vida, não como objeto de uma ciência, mas da paixão, mais profundamente, de uma contemplação poética.” (BATAILLE, 2004, p. 14). Ora, se entregar às faculdades de discernimento concernente ao pathos amoroso compreende, naturalmente, uma perspectivação em desequilíbrio. À desordem própria do erotismo é acompanhada sua (in)sujeição analítica. Partindo deste ponto de vista, podemos destacar, como veremos

2 Assinala-se, aqui, a ideia de continuidade desenvolvida por Bataille, a qual empreende, por meio do

erotismo, uma dissolução do indivíduo. Neste ponto, negligencia-se o próprio potencial da diferença como propulsor do desejo, o que não acarreta uma negação da afirmativa anotada, dado que o erotismo se pretende uma superação desta condição.

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nas seções a seguir, alguns aspectos relativos a tal problemática postos em discussão na obra alexandrina.

*

Quando Bataille declara que o erotismo é “aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2004, p. 19), a noção de ambivalência me parece iluminar esta assertiva mais do que propriamente uma ideia de superação (a qual é muito afim a tal movimento). Natural é a observação dos opostos complementares aliados à lógica amorosa na medida em que são pensados como valor ético, posto que, num momento limite, são notados em sua íntima contradição. Isto se explica, também, pela confluência entre contenção e excesso, o que caracteriza o homem no erotismo, distanciando-o da animalidade. Pensando em Aracne, detenho-me a princípio numa questão que, por mais que pareça irrelevante, toma as rédeas do texto: o eu lírico da referida obra transforma-se num aranhiço, revela-transforma-se, de antemão, um transforma-ser em trânsito. Não penso, aqui, numa analogia com a reprodução dos animálculos de Bataille4 (a qual se associa a um movimento de continuidade visto como rudimentar pelo ensaísta5), mas na concepção de metamorfose e na indiferenciação proveniente de tal fenômeno. Como o próprio Bataille nos explica, somos seres descontínuos. Tal descontinuidade é percebida na solidão experimentada pelo homem na singularidade de sua existência, a separação dos corpos que nos relega a uma distância supostamente intransponível. Todavia, este mesmo abismo aberto, que marca a diferença entre os seres, é a porta para o desejo.

O erotismo é, essencialmente, encontro com o outro. Da prisão vivenciada na descontinuidade lança-se em direção a experiência de morte que o movimento erótico ensaia (uma pequena morte) (BATAILLE, 2004, p. 156). Deste modo, este não é um salto para o vazio, trata-se de uma morte transitiva, de uma experiência da continuidade do ser no outro. Um tal exercício de deslocamento proporciona não somente uma fusão dos corpos – a transformação do amador na cousa amada, no dizer de Camões –, como uma mudança do corpo em si após o vislumbre do espanto provocado pela continuidade.

Lemos em Aracne: “O corpo, é certo, “todo de olhos feito”, / é o mais belo e mais sensível fruto / da natureza, e a todos causa espanto;” (ALEXANDRE, 2004, p. 12). A beleza apontada nestes versos importa na medida em que a concebemos nos

4

(BATAILLE, 2004, p. 25).

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Vale lembrar, aliás, que, na obra alexandrina, o eu lírico transmutado em aranha deseja um encontro com seu amante humano; imagem que, mais adiante, procura-se conceber como a con-fusão dos corpos enamorados, no diálogo obra/leitor.

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limites de um transbordamento. Como objeto de desejo erótico, impõe-se a interdição unicamente para se resultar, do encontro entre os amantes, a transgressão. E desta transgressão supõem-se as mais vertiginosas manifestações de angústia e horror propiciadas pela projeção na continuidade, na medida em que de forma mais brutal transpõem-se os limites precisos da interdição. A expressão do belo exaltado pelo eu lírico é uma ameaça, por si só um dilaceramento, posto que compreende em sua constituição as formas do ilimitado. Nas palavras de Bataille: “O limite só é dado para ser excedido. O medo (o horror) não indica a verdadeira decisão. Ao contrário, ele incita, por via indireta, a transposição dos limites.” (BATAILLE, 2004, p. 226). A presença da beleza é uma constante na apreciação do ser amado pelo aranhiço, demarcando, assim, a fronteira a ser transposta pelo desejo, a qual é devassada, “numa raiva de apetite”, expondo-se radicalmente a confluência entre humanidade e bestialidade. A figura do híbrido, imageticamente representada pelo vampiro em dado momento, corrobora para a ilustração desta queda. Aqui, a certeza de fazer o Mal é a própria rendição ao excesso no encontro com o corpo do amado, é algo que se pode inferir na observação de elementos que oferecem a dimensão do sagrado6. A posição ascética em que se coloca o aranhiço também nos ajuda a compreender certo sentido de elevação, entretanto, uma elevação pela carne, consumada na experiência erótica:

Não que sejamos santos; também eu, o mais sábio de todos os insectos (aracnídeo seria mais correcto;

faço-me aqui servir do que me excede), asceta, anacoreta, e confessado adepto de rigorosa dieta vegetal

por respeito da vida no universo, às vezes, numa raiva de apetite, lanço os meus fios de caça, e apanho algum bicho menor, algum mosquito,

a consumir, de preferência, em verso. (ALEXANDRE, 2004, p. 13).

Fica evidente, neste trecho, a configuração do deslimite próprio do erotismo, então muito próxima da violência que caracteriza este movimento. Este eu lírico, que se faz servir do que o excede, apresenta constantemente indícios de uma ideia de projeto, muito cara a esta poesia. Um exercício de alteridade se conforma, então, às especificidades de uma possessão erótico-lírica no poema de AFA. A relação desta poesia com a questão da continuidade, discutida anteriormente, se faz, assim, por meio

6 Neste caso, a ideia de sagrado em nada tem que ver com a concepção do cristianismo, em que se dá a

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do relacionamento entre obra e leitor, o que nos sugere outras problemáticas, como veremos mais adiante.

*

A obra Ascese, de Nikos Kazantzákis, vem ao encontro de tais questões levantadas, cumprindo associar o exercício ascético encerrado no texto de AFA à construção de sua poética. A narrativa de Kazantzákis interessa no sentido de trazer à baila apontamentos referentes ao problema da liberdade que podem contribuir para o enriquecimento de certas meditações poéticas presentes em Aracne. Uma incessante luta para o autoconhecimento, tendo em vista a inexorável condição de ignorância do homem perante as questões fundamentais é um ponto de partida.

Qual é a essência de nosso Deus? A luta pela liberdade. Dentro das trevas indestrutíveis, uma linha de fogo ascende e assinala o curso do Invisível. Qual é o nosso dever? Ascender com ele por essa linha ensanguentada. (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 122).

Ascese: prática de rigorosa disciplina que visa o aperfeiçoamento espiritual ou a excelência no domínio de dado conhecimento. Por meio desta brevíssima asserção – que aqui se presta a serviço da praticidade –, pode-se engendrar as concepções, também pertinentes, de elevação, do desenvolvimento de determinado saber que possibilite “o acesso a um estudo superior”. Como já é possível observar, a ascese, que então interessa para este trabalho, está intrinsecamente ligada a um desejo de liberdade; processo que, afinal, deve ser configurado como uma incessante batalha entre duas forças antagônicas que movimentam o Universo (uma descendente, outra ascendente), ou, mais precisamente, a busca por este instante de suspensão na confluência entre ambas as potências. A primeira delas compreende a destruição, a inércia, a ruína. Já a última diz respeito a um impulso de constante ação, sem, no entanto, prometer mais que este Grito pela marcha adiante, a passagem por entre gerações do gosto pela aventura humana a qual almeja ultrapassar sua própria condição para abraçar a eternidade.

No entanto, no âmbito da obra de AFA, tal concepção de liberdade pode parecer-nos absurda, já que, de acordo com a própria dinâmica do erotismo (como o estamos estudando), é preciso determinar os limites de uma interdição. A atividade erótica necessita da constituição destas fronteiras para que, assim, seja possível engendrar-se a transgressão. Sem interdição, não há o que se transgredir; sem a violência da transgressão, não há o gozo erótico. O encontro com o sagrado que procuramos entender em Aracne partiria da premissa de que o material poético, essencialmente, pressupõe uma fratura sobre a ordem, assimilando-se, deste modo, ao confrontamento

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da continuidade a qual é revelada pelo encontro sexual dos corpos. Este o movimento de ação e retração, muito bem observado por Rosa Martelo, o qual é permitido se desenvolver tendo em vista o estabelecimento do limite a ser consecutivamente transgredido. Sendo a vida um excesso, porque empreende a todo instante (e para a sua continuidade) o extravasamento do encontro erótico, observamos, consequentemente, o tempo como instância relativa à constituição ética do erotismo. Leiamos o fragmento de Bataille:

O curso natural significa a barreira derrubada. A barreira derrubada significa o curso natural. A barreira derrubada não é a morte. Mas, da mesma maneira que a violência da morte derruba inteiramente – definitivamente – o edifício da vida, a violência sexual derruba em um ponto, durante algum tempo, a estrutura desse edifício. (BATAILLE, 2004, p. 166).

Ora, é porque possui consciência que o homem se reconhece um ser para a morte. O transcorrer do tempo nos revela a face da morte e a brevidade da vida: “É breve a vida; mal sabemos / fiar um fio, e conceber a seda, / já se gastou a areia na ampulheta;” (ALEXANDRE, 2004, p. 36). A atividade poética, assimilada ao gesto amoroso, empreende este corte sobre o véu do tempo, a vontade de superá-lo. Entretanto, ao exigir a sua superação, o reconstitui, promovendo incessantemente isto que Bataille denomina o curso natural da vida. A ideia de liberdade, que aqui se supõe, não pode ser mais que provisória; em Aracne evidencia-se esta busca por uma espécie de tempo fora do tempo, a superação da morte no encontro erótico com o outro. Mas o desencanto perante a passagem do tempo nos revela a outra face da existência: o seu termo na morte intransitiva, a queda no vazio. Explica-nos o eu lírico de Aracne que não há como escapar a tal perspectiva, “porque o tempo / é, como eu, um mero fabricante / de véus e teias que os humanos rasgam / sem sentir como nelas estão presos.” (ALEXANDRE, 2004, p. 37). Contra o seu próprio desaparecimento, o que o aranhiço almeja está próximo de um movimento ascético pela carne, a presentificação do sagrado conduzida pela violência do choque entre os corpos amantes que o leva à experiência da continuidade.

O sentido de elevação assinalado em Aracne assume uma perspectiva deveras particular, em meio à tensão provocada entre a pulsão sexual e a linguagem, na medida em que se coaduna a um projeto de constituição lírica que se move num espaço de confluência entre corpo e material poético. Entretanto, Aracne é, acima de tudo, um texto afirmativo, entende as contradições de seu tempo como consequentes manifestações da própria natureza humana. Deste modo, eis o diálogo (im)possível na

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obra de AFA, o horizonte que encerra a luta pela liberdade (mesmo que sejamos sempre a presa de sua teia), impulso de criação constante, o ânimo que move, neste caso especificamente, a produção poética por meio da interlocução.

O que é notável, entretanto, é a predisposição à fluidez da lírica de AFA que, consequentemente, não se permite habitar outro espaço senão aquele em que se defronta com suas próprias dúvidas perante uma realidade em constante mudança. A (in)apreensão dos sentidos (do corpo erótico) em sua obra faz com que a leitura obrigatoriamente partilhe de tal estado de incompletude em que a palavra encenada se coloca em questão, na ânsia de significar mais do que é capaz de dizer. Fernando Pinto do Amaral, ao explicitar a experiência de contato com este “intenso campo de força da nossa atual poesia”, afirma que “aos que a ele quiserem entregar-se, a primeira recomendação será que não exijam, no final do seu percurso, a recompensa de uma interpretação unívoca, certa, segura, estável.” (AMARAL, 1991, p. 106).

Tal hesitação provinda do questionamento levantado sobre o/no próprio material poético arrisca ainda uma possibilidade de busca pelo conhecimento: tarefa urdida nas frágeis malhas de seu verso, oscilante entre a ignorância e a sabedoria. E, afinal, parece-me efetivaparece-mente um lugar sábio este habitado pela poesia de AFA, tendo em vista que o “acesso a um estudo superior” compreende a queda (de amor) ou a consciência de seu desconhecimento, a visão aguda sobre um mar de signos refratários, que, inequivocamente, desviam nossa leitura. Afinal, a experiência (essencialmente erótica) manifesta em sua (d)obra – projeto de alteridade que leva da morte do eu lírico a uma nova existência no corpo do amado (leitor) – constitui-se à maneira de um mistério, continuamente à espreita da revelação por vir. Assim o aranhiço prevê a sua transformação: “E quem me diz que, belo então que fosse, / conservaria ainda o privilégio / de me sentar no teu joelho, e ver / os exactos mistérios do teu sexo?” (ALEXANDRE, 2004, p. 11).

*

Como observamos anteriormente, em Aracne são postas em conflito duas concepções de morte, entre o agônico movimento de continuidade característico do erotismo (de afirmação da própria vida) e a morte física intransitiva. O que se deve ressaltar deste quadro é o fato de o aranhiço enamorado estar constantemente à espreita dos dois abismos abertos à sua frente. Separando um do outro, há a interlocução. É ela que, supostamente, dribla o esquecimento e lança à eternidade a palavra proferida: o Grito visto em Kazantzákis.

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Quando descer à teia derradeira não se verá no mundo alteração, ou só talvez alguma mosca mais contente. Em noites de luar, na alta esquina, ficará a brilhar, mas sem ser vista,

a estrela que tracei como armadilha. (ALEXANDRE, 2004, p. 7).

Os versos de AFA, numa espécie de sinistra (e não menos irônica) antecipação de fala dirigida aos seus contemporâneos, já supõem o castigo terrível (SENA, 1977, p. 99)7 após uma morte que não implica “no mundo alteração”. O jogo, aqui, é em torno do duplo alteração/alteridade. Por trás de um dissimulado tom blasé frente à curva cadente de sua teia, o aranhiço é obrigado a se defrontar com a face mais amarga da existência: a solidão do ser descontínuo em direção à morte. Por outro lado, com um tanto de mistério, adivinha a sua estrela a brilhar, como uma armadilha. Sob a lógica aqui pretendida, a ausência de interlocução é a abertura ao vazio, a queda derradeira que não propicia mudança alguma no real, enquanto que o projeto de alteridade desejado pelo eu lírico é a possibilidade de engendrar o encontro erótico, a transformação do sujeito e do mundo. A oscilação em que se encontra o aranhiço é, afinal, estado de suspensão entre o eu e o outro, entre a obra e o leitor, entre a arte e a vida. Voltamos ao ponto de onde partimos.

Em introdução a O arco e a lira, após longa enumeração de possibilidades de se definir o que sejam poesia e poema, Octavio Paz assim afirma sobre este último: “o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana.” (PAZ, 1982, p. 16). Como já foi assinalado, a ideia de um valor ético atribuído à poesia interessa, aqui, na medida em que é relativizada perante a transitoriedade do tempo. A morte ocupa este espaço ambíguo, em que se manifesta como limite a se manter enquanto se é transposto. Compreendamos o vazio designado pelo ensaísta como uma abertura expansiva ao nada que a experiência da morte supostamente suscita. Assim podemos ler em Duende, por exemplo: “(...) de novo amarei; e esquecido / este mundo, outra terra inventarei. / Incansável teólogo, assim provo / como é eterno agora este só dia.” (ALEXANDRE, 2002, p. 17).

7

Jorge de Sena em “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”. A referência aos versos “Não importa nada: que o castigo / será terrível.” (SENA, 1977, p. 99), os quais demarcam uma guinada no poema seniano, suscita, mais que a mudança observada na passagem do poeta em estado de vitimização para seu regozijo final, uma leitura do momento limite que é a transformação. Este texto, vale lembrar, consta em

Metamorfoses e ocupa lugar central na obra (se desconsiderarmos os poemas de “Post-Metamorfose” e os

“Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena”) , o que sugere que o leiamos com maior atenção, ainda mais se levarmos em conta tratar-se de um autor tão afim a matemáticas desta ordem. A noção de continuidade assinalada no poema de Sena nos ensina esta coincidente afirmação da vida e da palavra poética frente à miséria de uma “morte natural” (SENA, 1977, p. 139); também assim (embora não de forma tão impetuosa, mas, de qualquer maneira, com seus desejos de transmutação) AFA reage em seus versos.

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Orientado pela ideia de projeto – muito bem articulada no texto de AFA – que o eu lírico inscreve em Aracne, podemos observar as tensões implicadas nos questionamentos concernentes à fugacidade da vida lidos na referida obra, de maneira que o sentido de transcendência articulado à produção artística torna-se ainda mais evidente. A poesia alexandrina, explicitamente, deseja o outro. E o salto ensaiado por este movimento de alteridade é mera passagem, ponte entre a fantasia e o real.

Vai tão pequena a teia, que lamento ter perdido o meu tempo em outros jogos, pois com talento e tempo poderia

abandonar a fria geometria e desenhar figuras, tão reais que nelas revelasse

a verdade maior da fantasia. (ALEXANDRE, 2004, p. 15).

Está evidente, o tempo é fator de fundamental importância para o entendimento desta ética que, então, se pretende problematizar. Neste âmbito, os versos de Aracne em destaque corroboram esta premissa. O lamento do eu lírico é em virtude da perda de tempo; da mesma maneira, a constituição de um projeto poético em que se efetiva a projeção do eu a partir do atravessamento proporcionado pela palavra é trabalho encerrado no tempo. Contudo, também não deixa de ser busca da eternidade no outro.

Herbert Marcuse, em sua obra Eros e civilização, apresenta algumas reflexões pertinentes acerca deste tema. A partir da ideia de que a poesia assume o dever ético de fazer representar o movimento de continuidade, na suplantação da fugacidade da existência, o que se observa é, justamente, uma articulação entre Eros e instinto de morte. A sociedade fundada no princípio de desempenho é, por si só, afirmação da racionalidade por meio de um logos repressivo, o que, consequentemente, fez instaurar uma ordem de domínio no seio das relações de trabalho. Neste contexto, o próprio tempo e sua negatividade final (a morte) são concebidos como elementos inibidores de uma realidade não-repressiva, posto que encerram em seu corpo a ansiedade inescapável da consciência da finitude. Por outro lado, instaurada sob a égide de um logos erótico, observa-se uma utópica sociedade livre da existência alienada, a qual encontra a aprovação da intemporalidade pelo princípio de prazer. Este panorama nos apresenta a ambivalência numa perspectivação da vida, de modo que sua condição em constante ameaça é prenúncio, ora de um derradeiro apagamento na morte intransitiva, ora de um salto para a eternidade na experiência erótica.

A afirmação de uma ética, neste quadro, parte do estado de incerteza em que se situa o homem, sobre o qual pesa a responsabilidade da ação moral num mundo que

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impõe esta demanda, mesmo que fundada no engano, de forma efetiva. Se é mesmo a poesia, em suas mais variadas formas, “bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana”, neste sentido concorre a traçar profundas afinidades com a reflexão ética, posto que esta também se defronta com questionamentos relativos às fragilidades funcionais quanto a sua implementação. Afinal, por que devemos ser éticos? A discussão percorre uma infinidade de abordagens em que a preocupação no relacionamento com o outro pode se desdobrar em instigantes problemas. Zygmunt Bauman, em sua obra Amor líquido, emprenha-se ao pensar nos problemas das relações humanas no mundo contemporâneo. Em dado momento, assim podemos ler um seu comentário sobre a questão da confiança:

Em nossa sociedade supostamente adepta da reflexão, não é provável que se reforce muito a confiança. Um exame ponderado dos dados fornecidos pelas evidências da vida aponta na direção oposta, revelando repetidamente a perpétua inconstância das regras e a fragilidade dos laços. (BAUMAN, 2004, p. 114).

É interessante observar o quanto o poema de AFA pode se colocar neste espaço de intenso diálogo com o breve apontamento feito por Bauman. Frente à fragilidade dos laços humanos, a poesia se impõe como um gesto de confiança. Assim o aranhiço deseja (con) fiar ao seu leitor os seguintes versos: “a recta, a espiral, e o nada / que só à filigrana se consente, / são todo o meu orgulho, e no final / ter desenhado esse lugar exacto / onde em segredo posso ser humano.” (ALEXANDRE, 2004, p. 16). Infere-se o trabalho em conjunto na constituição do labor poético, sendo a obra de AFA, em certa medida, um chamamento a este dever, à luta com a palavra. A transformação do eu lírico ganha esta potência secreta, a partir do encanto provocado pela experiência da metamorfose do verbo em matéria humana. No entanto, esta passagem se ocupa, inevitavelmente, de uma linguagem nova que a resguarda em seu excesso característico. O logos erótico que podemos ler em Marcuse acusa mesmo uma concepção de ser em termos a-lógicos; sendo a incerteza o espaço por excelência onde a ética pode florescer, o erotismo na poesia de AFA concorre a este quadro a articular-se com esta mesma ética num único movimento. Assim lemos em Aracne um eu lírico que, não só se esforça em dizer o que sua linguagem não suporta, como nos revela este extravasamento de sentido da fala em falta, aproximando-se de “algo que passa entre as palavras e escapa à lexicalização, ou mesmo à discursivização” (MARTELO, 2009, p. 266); talvez o verbo que transcenda a inteligibilidade do logos racional repressivo e nos atire em meio à fugaz liberdade vivenciada no prazer do texto: “A teia sem enredo é minha ideia fixa, /

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puro cristal, como os da neve, abstracto, / tão claro como o mero abecedário / onde as palavras falam, sem barulho;” (ALEXANDRE, 2004, p. 16).

Rosa Martelo afirma que “Deste paradoxo resulta uma estranha condição de leitura, notoriamente marcada, (...), pela incerteza hermenêutica, ou talvez mais justamente por uma hermenêutica da incerteza.” (MARTELO, 2009, p. 269). Se partirmos deste princípio, podemos inferir da poesia alexandrina seu veemente compromisso ético quando chama para si a responsabilidade de levar adiante a palavra retida na “grande Teia” (ALEXANDRE, 2004, p. 28) e distender os frágeis fios em direção ao outro. Sobre este movimento paira a incerteza. O destino que cumprirão estas palavras ditas é um caminho indecifrável, isto que oscila entre o rumor da voz e um ouvido impertinente. Enfrentar os desafios desta empreitada é o que faz a poesia de AFA, assim como a de tantos outros, de diferentes modos. A obra de Gastão Cruz, A

moeda do tempo, em muito pode nos ajudar a compreender este fenômeno. Podemos

ler, no poema “O próprio mundo”, por exemplo, a imagem de um corpo poético milenar em consonância com uma efetiva prática de transformação da realidade, por meio do encontro com o outro:

Os poetas que emudeceram continuam escritos no mundo: passa

para a paisagem vista a paisagem resultante de olhar e do exercício de todos os sentidos na poesia; olhando estes pinhais, outros revejo envolvidos na música das sílabas porque a voz produziu

os tons originais que a luz anima sem copiar do mundo o aroma e o brilho mas sendo o próprio mundo original

que imita os versos e os ilimita”. (CRUZ, 2009, p. 356-357).

O diálogo que este poema nos suscita é entre poetas. Mais do que a angústia da influência, nos sobressalta a configuração de um movimento afluente ou, mais precisamente, confluente. O poema, aqui, é um veio de água lutando entre os meandros de pedra para se juntar aos demais, é inscrição do mundo, “o próprio mundo” afirmado como palavra viva, ilimitada na voz de outros tantos poetas. Retoma-se a ideia de continuidade como acordo selado entre obra e leitor. Neste âmbito, a palavra poética não somente flui para dentro do outro a lhe alterar os modos de ser, mas flui com o outro se derramando amorosamente num mesmo leito. Empenha-se, como numa luta entre amantes, a ensaiar novos movimentos de transformação: “(...) depois, teu igual, talvez te vença / ou me deixe vencer, e te pertença / com a vaidade que me vem de ter /

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o sábio coração de um aranhiço.” (ALEXANDRE, 2004, p. 47). Aracne encerra-se com estes versos, os quais em muito nos fazem lembrar certa passagem de famoso soneto camoniano o qual diz que o “[Amor] É um cuidar que ganha em se perder”. Assim, entre ganhos e perdas, a obra de AFA nos mostra, afinal, que o poema, sendo lugar de pensamento vivo, é, também, espaço de encontro e reconciliação, embora inexoravelmente em diferença. Corpo aberto para a nova metamorfose.

1.2 – Mapa do percurso

Traçando um caminho literário que parte da narrativa mitológica, presente nas

Metamorfoses, de Ovídeo, para chegar até o poema-livro de AFA, Aracne, a discussão

pretendida em torno do tema da metamorfose perpassa uma série de estudos críticos e ensaísticos, além de nomes da poesia portuguesa desde Camões a poetas do século XX e XXI. Entretanto, antes de tratarmos da obra alexandrina referida em específico, propomos um excurso sobre a produção deste poeta, desde seus primeiros textos na década de 70 e consequente afirmação nos anos 80 até o alcance de uma maturidade estética nos 90 e 2000.

Assim, no capítulo “2. Do mundo de AFA”, elaboramos, à guisa de apresentação, um passeio por alguns de seus títulos mais relevantes, destacando as especificidades de sua poética assim como as constantes e características transformações a que ela esteve sujeita desde o princípio. No subcapítulo “2.1 Os anos 70 e o problema do regresso ao

real”, procuramos problematizar a questão levantada pelo poeta e ensaísta Joaquim

Manuel Magalhães, a partir de seus textos em Os dois crepúsculos. Destacando uma perspectiva, talvez, excessivamente geracional relatada pelo autor de Consequência do

lugar, observamos como a poesia de AFA extrapola as premissas indigitadas na

concepção do que então foi denominado regresso ao real. Neste momento, ainda, reconhecemos a importância do trabalho conjunto Cartucho, que reunia poemas de AFA, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães e Hélder Moura Pereira, e a sua profundidade crítica relativamente à conjuntura sócio-política do Portugal pós Revolução dos Cravos.

Prosseguindo, em “2.2 A escrita translúcida de António Franco Alexandre”, centramo-nos na análise dos recursos estilísticos próprios aos modos de criação do poeta. A ideia de uma escrita translúcida advém de comentário de Fernando Pinto do Amaral, cujo estudo é de basilar importância para a constituição deste trabalho. Assim, a relevância de obras como A pequena face e As moradas é apontada e, para tanto, a

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leitura de Poetas de fim de milénio, de Edgard Pereira, assim como de recensões críticas de Carlo Vittorio Cattaneo e Luis Miguel Nava aos textos de AFA, é fundamental para o estudo crítico pretendido.

Em “2.3 Música para os olhos: outras fantasias políticas”, observamos as evoluções da poética alexandrina em seus deslocamentos, sobretudo no campo estilístico-formal, a partir de finais dos anos 90. Além da construção de um texto de mais sintaxe, assim como o flerte com certos procedimentos característicos da prosa, a cada vez mais acentuada encenação de um interlocutor inscrito em suas obras sob o signo de um onipresente e enigmático tu é marca distintiva de sua produção mais recente. Ressaltamos os títulos Quatro Caprichos e o premiado Duende, cuja perícia no labor estético faz situar AFA em lugar de destaque na contemporânea poesia portuguesa.

Percorrido este trajeto, está preparado o terreno para aprofundarmo-nos no estudo analítico de Aracne. Sua última obra publicada até então desdobra um diálogo com as metamorfoses ovidianas (tema que, aliás, já havia sido tratado em textos anteriores, como Uma fábula), partindo de um profícuo intertexto com a narrativa mitológica da personagem homônima ao livro. No capítulo “3. Do mito ao poema: primeiras metamorfoses”, descrevemos justamente os caminhos pelos quais pretendemos enveredar nesta leitura. Articulando a imagem da metamorfose com as ideias de rebaixamento, punição e representação, destacamos alguns pontos de interseção entre o mito e o poema-livro os quais norteiam este trabalho, em vista, não de realizar um exercício comparativo, mas de manter um horizonte crítico fundado na obra em si, assim como em seus deslocamentos intertextuais.

Assim, nossa primeira parada em torno desta obra pretende promover uma reflexão acerca do tema do rebaixamento. O subcapítulo “3.1 A burlesca queda de

Aracne” fundamenta-se, sobretudo, nas leituras de A literatura e o mal, de Georges

Bataille, e Kafka: para uma literatura menor, de Gilles Deleuze, para desencadear uma discussão acerca dos procedimentos discursivos do poeta como modos de desterritorialização. A relação entre erotismo e linguagem na obra de AFA é compreendida como transgressão de uma norma e afirmação da subjetividade no seio da vontade deliberada. Os deslocamentos da palavra poética acompanham, também, os diálogos intertextuais, que transitam entre a conhecida novela do prosador de origem tcheca, A metamorfose, e o cancioneiro medieval.

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Num segundo momento, tratamos da ideia de metamorfose como punição, resultado da desobediência da tecelã relativamente aos desígnios divinos. Ao abordar a condenação ao eterno fiar como sacrifício, coordenando esta perspectiva à noção de suicídio presente no mito, em “3.2 Do amor sacrificial”, as leituras de Maurice Blanchot, em seu O espaço literário, e de Roland Barthes, em Fragmentos de um

discurso amoroso, são de grande importância para esta reflexão. Ressaltamos, ainda, a

intensa interlocução estabelecida entre Aracne e a poesia de Luis de Camões.

O ato de representar é assimilado a uma concepção ascética do fazer poético. Contudo, esta acepção de ascese vai ao encontro de uma religiosidade outra, profana, que se processa numa reconciliação entre carne e espírito. Em “3.3 Da ascese lírica”, discutimos a representação de forma a assimilá-la à constituição de um saber elevado. O domínio técnico na elaboração do tecido textual deve, portanto, conjugar as contraditórias pulsões de criação e destruição, inerentes à natureza humana, para que, por meio da própria teia, o aranhiço possa se fazer amado. Nesse sentido é que também se estabelece um projeto de humanidade (embora se trate de um estatuto humano diferenciado), desejado pelo eu lírico, e que se conforma à afirmação de uma voz entre o homem e o animal: uma voz inumana, alcançada na experiência do sagrado que se pode vivenciar na atividade erótica.

Passados os movimentos de queda, purgação e superação pelo aranhiço, temos, finalmente, uma rota traçada em vias de compreensão de um gesto ético por esta poesia. No capítulo “4. O poema e os seus gestos de amor: traumatismo do espanto ou a ética em Aracne”, partimos de uma leitura de O sacramento da linguagem, de Giorgio Agamben, acerca das propriedades do juramento e da aprovação discursiva em seu valor ético, para, então, articulá-las aos procedimentos estéticos da obra estudada. Para a construção deste capítulo, o texto Totalidade e infinito, de Emmanuel Levinas, é de imprescindível relevância, assim como o ensaio crítico sobre o pensamento deste filósofo escrito por Luciano Santos, em O sujeito encarnado.

O trabalho ensaístico de Rosa Maria Martelo sobre a obra de AFA está presente em todo este estudo e a sua contribuição para a hipótese de análise aqui pretendida é imensurável. Outros tantos estudiosos da poesia portuguesa contemporânea são visitados em suas leituras preciosas da lírica alexandrina, dentre os quais poderíamos citar os nomes de Ana Luísa Amaral, Gastão Cruz, Pedro Eiras, Luis Maffei, Joaquim Manuel Magalhães, Tatiana Pequeno da Silva. A lista se estende por outros tantos nomes de igual importância, mas cujo esforço por elencá-los pouco acrescenta a esta

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introdução. Mais vale a busca direta na fonte, que podemos encontrar discriminada nas referências no final deste trabalho.

Enfim, em “5. Anticlímax", pela sua brevidade, sequer pretendemos fazer um apanhado das reflexões ensaiadas neste trabalho. Fica, entretanto, um último comentário acerca da relação mundo e linguagem na poesia de AFA – neste capítulo, focando o seu teor dramático –, sem assumir um caráter conclusivo, mas ratificando os esforços contínuos que o leitor deve empreender no estudo de sua obra, os quais, aqui, ao menos assim cremos, já procuramos iniciar.

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2 – DO MUNDO DE ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

À guisa de apresentação do autor e sua obra, faz-se necessário circunscrever a sua nascente atividade poética em meio ao contexto histórico-literário dos anos 70 do século XX português. Não compete, assim, a este texto reivindicar um lugar a esta poesia tendo em vista tão somente um momento de transição política, qual seja este que se demarca pelo fim da ditadura salazarista com a Revolução dos Cravos (1974) e consequente recrudescimento dos conflitos espúrios que levaram a mais de uma década de guerra colonial em África. Tampouco seria proveitosa a abordagem que negligenciasse a relevância destes acontecimentos, mesmo na produção a que se queira mais distante de tais assuntos (e não é este o caso da obra de AFA). Natural que toda construção humana seja histórica, portanto, que fale de um tempo e de precisas condições sociais. Deste modo, é de um tempo de ansiada reforma política e instituição de um Portugal democrático, com suas promessas de liberdade e flores em canos de espingardas, que esta obra se ocuparia. Mas não; não é este o caso de AFA, sequer da poesia sua contemporânea. Acerca da relação do universo editorial com a censura, por exemplo, um dos poetas e ensaístas mais importantes para esta geração confirma tal argumento sobre o momento pós 25 de abril:

(...) o principal da situação alterada em Portugal a partir de 74 não foi o permitir publicar o que era suposto existir por publicar, ou apelar para uma literatura de glorificação das novas realidades sociais – como a princípio se julgou ser necessário fazer (...). Pelo contrário, foi o desviar a realidade portuguesa para um outro contexto, sujeitá-la a uma interacção de novos feixes situacionais, recolocá-la na literatura e compreensão da sua própria história, abri-la para novas possibilidades da moral colectiva. (MAGALHÃES, 1981, p. 253-254).

Este modo de situar-se diante de seu momento histórico ao qual intenta Joaquim Manuel Magalhães em sua poesia e ensaística é sintomático, está evidente, de um desejo de renovação estética. Ora, será este o seu gesto político por excelência, na medida mesmo em que é capaz de apurar sua sensibilidade em relação ao seu tempo e pô-lo em discussão com a seriedade que, consequentemente, o afastaria de soluções artísticas satisfeitíssimas.

Corroborando esta hipótese, se pensarmos como nos ensina João Barrento que o poeta deve, ao seu modo, saber repercutir e canalizar em sua escrita algo como o espírito do tempo (Zeitgeist), então chegaríamos à conclusão de um desventuroso

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prognóstico, pois pouco se atesta em tal poesia que aponte para qualquer otimismo. Pelo contrário, depois de passados os anos de governo ditatorial, outras sombras começam a mostrar a dimensão de sua força sob a forma tortuosa do capitalismo globalizado, a vida de mercado e a cultura do dinheiro, que acabam por traçar o perfil saturnino deste sujeito desencantado com o mundo. Poderíamos indiciar outras razões que contribuem com este quadro, embora o eixo central em torno do qual giram os principais motivos desta poesia seja este; então, podemos falar da falência dos afetos, a gradual perda da experiência, a solidão, a incomunicabilidade, a distância, o tema da precariedade, etc. E será em meio a este panorama que Joaquim Magalhães reivindicará para a poesia de seu tempo um regresso ao real. O que, grosso modo, assim ficou conhecido pelos versos deste poeta não só replicava um tempo de efemeridades, como também (e talvez sobre este ponto recaiam os argumentos mais polêmicos) legitimava os modos de uma poética muito própria em contraposição ao que faziam alguns autores da década anterior à sua.

Rosa Maria Martelo, em ensaio fundamental para a compreensão deste embate a que chega a poesia portuguesa da segunda metade dos novecentos, expõe com argúcia de que maneira se podem ler estes dois momentos como herdeiros de distintas tradições da modernidade. Assim, temos principalmente os poetas de Poesia 61 como aqueles que concentrariam suas preocupações numa corrente mais textualista, enquanto a geração de 70 (portanto, a geração de AFA, Joaquim Magalhães, Al Berto, entre outros tantos) remete seus textos a um retorno ao real, aos sentimentos simples, à recuperação de esquemas discursivos. Como o próprio Joaquim Magalhães faz questão de salientar ao emitir seus juízos quanto a esta poética de 60 (naturalmente reconhecendo a série de diferenças que também as caracteriza), cumpria se verificarem as particularidades de cada autor para distinguir aqueles que, capazes de suplantar os domínios estéticos geracionais, se renovariam (melhor que seja bebendo desta novíssima fonte dos 70, pensaria ele) e, logo, constituiriam uma obra durável. Portanto, aceitando os conselhos do ensaísta, o exercício de pensamento sobre a produção do poeta que ora nos ocupa, também nos obriga a um exame mais detalhado de seus processos de escritura, de forma que possamos entender o seu posicionamento diante deste quadro.

AFA é autor de uma já vasta obra lírica a qual compreende, desde seu livro de estreia, o renegado Distância (1969), até Aracne, um complexo tecido poético de difícil cerzidura. A ideia de que a produção alexandrina apresenta uma série de obstáculos para a crítica, no que tange às tentativas de estabelecer uma unidade a esta obra tão diversificada, já foi assinalada algumas vezes em importantes ensaios de leitores finos

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do poeta. Todavia, sempre me pareceu problemática a precisão deste escolho contra o qual as leituras sobre AFA se defrontavam, exigindo-me um esforço analítico que pudesse depreender as propriedades que encerravam cada texto em um universo muito particular.

Enfim, a este respeito, é evidente uma divisão de seu trabalho em duas partes, nomeadamente entre aquela que compreende os seus primeiros escritos até a publicação de sua antologia Poemas (1996) e a sua produção subsequente a partir de Quatro

caprichos (1999). O corte estilístico que demarca este limite é notório, haja vista,

sobretudo, as ousadas experimentações – desde o recurso a construções de linguagem que o aproximavam da ilegibilidade a partir do uso de imagens completamente inusitadas, colagens poéticas com excessivas referências, presença de várias línguas estrangeiras no corpo do texto, neologismos, ritmos inesperados – que caracterizam este primeiro bloco em relação a uma poesia que flerta com certa narratividade e é mesmo mais sóbria em seus temas e inclinações estilísticas, a qual corresponde a este segundo bloco.

Embora a constituição deste paralelo entre ambas as partes seja de alguma validade (ao menos didática) para uma iniciante apreciação desta poesia, não nos levará muito longe se procuramos precisar os motivos que impõem uma separação mais radical entre seus livros. Assim, poderíamos demarcar o aspecto formal como um elemento de distanciamento entre seus textos que, afinal, induz a uma variedade de ritmos e tempos de leitura, desde o dodecafônico “L’Oubli”, de Sem palavras nem coisas (1974) – haja vista a partição do texto em uma série de fragmentos escrito em línguas estrangeiras; composição entrecortada, ainda, por referências literárias que, muitas vezes, escapam ao leitor e impossibilitam um encadeamento sintático que conforme um todo discursivo –, ou o extenso texto de Oásis (1992) – livro-poema de longo fôlego –, aos cacos imagéticos de Visitação (1983) ou às curtas instâncias numeradas de As moradas 1 & 2 (1987), por exemplo. A verdade é que mesmo dentro de alguns livros, as abordagens estruturais alternam vertiginosamente, guiando o leitor por flutuações rítmicas diversas, caso do já citado Sem palavras nem coisas. Por outro lado, com a maturação da escrita de AFA, esta característica vai se perdendo, dando lugar à unidade que resguarda cada obra separadamente, de modo que se torna cada vez mais difícil atribuir aos seus livros a denominação de recolhas, enquanto a ideia de obra ou projeto parecem-me mais afim às suas disposições críticas. Sobretudo a sua produção mais recente aponta para este caminho de maneira clara, acentuado que é pelo caráter narrativo, que nos coloca diante

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de eu líricos-personagens e ambientações intransferíveis para outro contexto, caso de

Duende (2002) e Aracne.

Estes últimos exemplos são sintomáticos desta percepção. Basta notar, não somente a organização em (in)exatos 52 sonetos de Duende8, mas a presença de uma voz narrativa razoavelmente definida e a elaboração de um breve enredo que não poderiam constar em Aracne, com seu aranhiço poeta-narrador-arquiteto e as suas episódicas desventuras metamórficas. Embora junto de Uma fábula (2001) formem uma espécie de tríade ovidiana lírico-amorosa, estas obras se esbatem em seus próprios limites e obstaculizam uma suposta inter-relação quando notadas as suas distintas constituições formais.

Fernando Pinto do Amaral, sobre esta poesia afirmará que

De facto, desde a obra inicial (...), a sua linguagem tem sofrido assinaláveis metamorfoses que têm transformado cada novo livro num novo universo. Tal processo tem dificultado as leituras globais desta obra, já problemáticas em virtude do facto de as suas “não palavras” contagiarem qualquer discurso crítico. (AMARAL, 1991, p. 106).

O ensaísta aponta, para além das transformações de sua escrita, um paradoxal aspecto persistente, quando cita as “não palavras” d’A pequena face (1983), as quais conformariam, de alguma maneira, parte de sua poética e, a contragosto da ensaística mais cansada, contagiariam a sua leitura crítica. Afora o excedente filosófico advindo de sua formação acadêmica (AFA estudou Matemática e Filosofia) a invadir insistentemente a sua poesia, uma já radical reflexão assentada sobre a natureza da linguagem visita os seus textos desde sempre. Antes de enveredar por estas trilhas, vale determinar o que seriam estas não palavras a que Fernando Pinto do Amaral alude.

Para compreender o que seja tal uso da linguagem referido, podemos partir do texto seminal de Rosa Maria Martelo sobre a poesia de AFA no qual discute a ideia de

sublimação própria de sua escrita. Esta leitura se funda no entendimento desta

expressão relativamente ao universo da química, em que partilha o sentido da mudança de uma substância do estado físico para o gasoso de forma imediata. A noção de que esta poesia se vale da significação para expressar a in-significância surge-nos bem fundada na premissa de depuração da linguagem a que submete os seus textos. Assim, os efeitos de sublimação reiterados pela ensaísta assinalam uma atenção extraordinária

8

Está bem de ver que a referida obra é composta por 52 sonetos, 50 deles em perfeitos decassílabos heroicos. Apenas no primeiro e último poemas, entretanto, a métrica oscila: entre octossílabos naquele e redondilhas menor e maior, assim como octossílabos e alexandrinos neste. Tal organização formal dá-nos a impressão de uma estrutura circular, porém imperfeita nas pontas, como um convite ao leitor para que preencha este espaço.

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ao domínio da palavra poética, reconhecendo, não tão somente nela seus limites precários, mas, simultaneamente, uma explícita intenção de afirmá-la plena como gesto de transformação de mundo. Incapaz de erigir pontes estáveis entre o imaginário e o real, o poeta busca reduzir a palavra ao silêncio primordial em que deixaria de representar para apresentar o mundo em constante metamorfose.

Rosa Martelo, em passagem deste mesmo ensaio já citado, afirma que

(...) para António Franco Alexandre, nunca a poesia é uma resposta ao que falha ou falta, como o tem pretendido ser a poesia de tradição moderna: ela também é propriamente isso que nos mostra ou deixa ver. E não esconde os limites que observa na linguagem. (MARTELO, 2009, p. 280-281).

Conforme. Entretanto, parece-me mais instigante ainda a sua observação deste processo quando o descreve invertendo os termos da proposição. Penso, assim como a ensaísta, que a poesia de AFA apropria-se desta mesma consciência dos limites da linguagem e, ao afirmá-la, bordeja os domínios poéticos que experimentam uma resposta a isto mesmo que lhe falta. Ou seja, também por meio da in-significância busca uma plena significação. A dinâmica, muito bem esclarecida no texto de Rosa Martelo, acerca do binômio discurso/contra discurso que ensaia esta poesia acaba por volatilizar a sua linguagem provocando efeitos de indecidibilidade. Assim, diante de um texto do poeta, o leitor é provocado, simultaneamente, por um sentido de horror e espanto, que o assalta quando ciente do silêncio a falar sob seus versos. De forma que, mantendo-se em suspensão o discurso proferido como potência de se efetivar enunciativamente sob variada perspectiva, a poética alexandrina, por um excesso de movimento, induz à paralisia. Consequentemente a este aspecto, a profusão de significados intercambiáveis produz uma rarefação destes mesmos significados postos em causa, o que é a própria imagem poética.

Estamos, então, de frente a uma concepção de poesia que intenta a cristalização do movimento ao desejar ser o próprio movimento. Ao excesso da vida como ela se nos apresenta, o poeta busca aferir o acesso de sentido correspondente para dizê-lo. É neste mesmo âmbito que Jean-Luc Nancy declara que “Se compreendemos, se acedemos de um modo ou de outro a uma orla de sentido, é poeticamente.” (NANCY, 2005, p. 9). Construída esta relação, a paralisia transforma-se em consagração do instante. Assim o dizemos, pois, como obra humana, o poema é obra histórica, situada num tempo preciso. Todavia, mais além, é transcendência deste mesmo tempo, posto que compreende uma incessante reatualização do objeto significado; suas palavras são,

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segundo afirmação de Octavio Paz, “um começo absoluto.” (PAZ, 2009, p. 52). Ora, não seriam as não palavras de AFA o efeito estético produzido por seus usos da linguagem no anseio de instituí-la como expressão do indizível? “ao fogo em que morremos se levantam / as coisas do vazio que nelas fulge. / o tempo / de inventar-se. o tempo em que o olhar / demora as fontes.” (ALEXANDRE, 1996, p. 45).

Assim, dizer a palavra original corresponde a um tempo de invenção, do homem e do mundo significado. Entretanto, é esta mesma palavra que se revela precária, afirmando a própria insuficiência de engendrar uma transfiguração efetiva da realidade. A poética alexandrina funda-se em meio a esta tensão e, justamente por se situar neste espaço de indecidibilidade, que me parece sintomático o uso de uma expressão como

não palavras por Fernando Pinto do Amaral para designá-la, tendo em vista, ainda, a

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