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"Eu tive uma vida que foi bem mais que uma escola! Agora só falta estudar" : a elaboração de conhecimentos e de subjetividades na educação de jovens e adultos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

“Eu tive uma vida que foi bem mais que uma escola! Agora só falta

estudar!” – Elaboração de conhecimentos e de subjetividades na

educação de jovens e adultos

Autor: Cláudio Borges da Silva

Orientadora: Profa. Dra. Roseli Aparecida Cação Fontana

Este exemplar corresponde à redação final da Tese defendida por Cláudio Borges da Silva e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: 26/02/2007 Assinatura:... Orientadora COMISSÃO JULGADORA: ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ 2007

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Resumo

O presente trabalho aborda os processos de elaboração de conhecimentos e de subjetividades na EJA. Partindo de uma situação compartilhada de ensino, no contexto de aulas de história, procura apreender indícios dos modos como os alunos significam objetos de conhecimento e, neste processo de conhecer, constituem-se, elaborando dimensões de sua subjetividade relacionadas a sua inserção na escola, na família, no trabalho, na igreja. Na trama de elaboração de sentidos, indiciada nas relações de ensino, saberes escolares e saberes construídos em diferentes âmbitos da vida cotidiana mediatizaram-se em possibilidades dialógicas diversas. A produção dessa investigação esteve orientada pela interlocução com os pressupostos teórico-metodológicos de autores que concebem a elaboração do conhecimento e a constituição da subjetividade humana como produzidas em relações sociais concretas, definidas histórico-culturalmente, mediadas semioticamente, cuja compreensão é possível mediante a análise dos processos de significação nelas produzidos. O estudo possibilitou entrever a diversidade de sujeitos que freqüentam cursos de educação de jovens e adultos em seus processos de constituição e de elaboração do conhecimento e as implicações pedagógicas dela decorrentes.

Abstract

The present work concentrates on the knowledge production process and in the subjectivities regarding the education of young and adults. Considering a co-operative education procedure, particularly the history matter, it tried to understand how students become subject of knowledge and, in this same process, how they reveal dimensions of their subjectivity concerning school, family, workplace, and church. In the scenery of senses elaboration, found in the education process, school learning and learning process obtained in different places of daily life are connected in diverse dialogical possibilities. This investigation was based on the theoretical and methodological principles of authors that believe that, the elaboration of knowledge and human subjectivity are the results of social interactions, historical and culturally defined, through semiotic expression, which understanding become possible by analysing the meaning produced by them. The research tried to the reveal the diversity of the actors who attend courses for young and adults in their process of elaborating knowledge and the educational results produced by it.

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Para Lurdinha, Clara e

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Agradecimentos

À Lurdinha, companheira inseparável, meu grande amor, pelo apoio sempre, pelas tantas leituras, inúmeras conversas, preciosas sugestões, por todos os sacrifícios.

À Clara e Lívia que enchem minha vida de sentido, por toda compreensão e carinho!

À Roseli, amiga e orientadora,

por ter me guiado com paciência, sabedoria e erudição pelos meandros da pesquisa e também da docência... sem palavras...

Aos meus alunos jovens e adultos, em especial aqueles da turma de 2003, que tanto têm me ensinado a ser professor...

A meus pais, Cecília e Edyr, pela revisão, pelo carinho e pelo apoio constantes.

À Dani pelo acolhimento, amizade e pela prazerosa partilha da docência.

Aos meus familiares Ricardo, Lúcia, Felipe, João, Marina, Maria José, Nem, Taís, Tamâra, Silvia, Carlinhos, Cláudio pelo convívio e tantos cuidados.

Aos meus colegas professores do Guará, Kazuko, Valéria, Sandra, Alcineu, Chico, Marisa, Beth, Daniela, Ivone, Valéria pelo convívio agradável e pela partilha das alegrias e frustrações cotidianas

À Joseli, Onice, Sonia e Ana e Renato, pelas cuidadosas leituras e indicações.

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Às colegas do grupo AULA, em especial à Geisa com quem compartilho a paixão pela EJA e à Leila pela força nos últimos dias.

A Agremis e Carlinhos pelo precioso suporte técnico.

Aos colegas da UNIMEP Virgínia, Chico, Donato, Valéria, Fernando e Joseli, que têm me proporcionado um convívio intelectual estimulante.

À Fernanda pela força na transcrição das fitas.

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E

PÍGRAFES

I

NSPIRADORAS

“Eu tive uma vida que foi bem mais que uma escola! Agora só falta estudar!”

“Não estou aqui para conseguir um trabalho melhor, mas para ficar mais esperto, saber como as coisas funcionam. Minha esposa mesmo diz que fiquei melhor depois que vim para a escola. Aprendi a lidar melhor com as pessoas, socializar, ouvir e trocar idéias.”

“Então agora chegou no final, você viu o quanto é bom! Diferente porque ... o que que eu tava querendo aprender? Aprender ler e escrever. Eu não tava muito preocupado com história. E a história, eu tenho muita história, às vezes até de vida, e muitas coisas, essas coisas antigas e tal. Um pouco, como eu convivi, eu tive muito dessas coisas. Então às vezes eu falava ‘pô eu acho que história e essas coisas aí eu já tenho muito!’ Mas acaba de... acaba de você ter mais certeza daquilo. Você, como se diz, você às vezes, é... é que nem aprender ler e escrever. Eu sabia algumas

coisas mas não sabia as palavras e o significado daquilo. É a

mesma coisa. Então se trata de completar. Eu acho assim."

(Falas de Eduardo, aluno de um programa de Educação de Jovens e Adultos da FUMEC – Fundação Municipal para Educação Comunitária, ligada à Secretaria Municipal de Educação de Campinas -, em diferentes momentos do ano letivo de 2003.)1

1 Trata-se de nome fictício de modo a preservar a identidade do sujeito. As falas foram registradas pelo

pesquisador em diário de campo e em gravações em áudio, durante as aulas de História, desenvolvidas, ao longo do ano de 2003 com um grupo referente à etapa conclusiva do primeiro segmento do ensino

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Sumário

À guisa de apresentação____________________________________________________1

Capítulo 1 – Experiência, conhecimento e sentido – Interlocuções_________________8 1. “A localidade dos educandos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo” – A interlocução com Paulo Freire_____________________________9 2. “A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais radicalmente, todo o processo educacional” – A interlocução com E. P. Thompson______________________ 16 3. “Todas as funções mentais superiores são relações sociais internalizadas”

– A interlocução com Vygotsky_____________________________________________26 4. “Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela”

– A interlocução com Bakhtin_______________________________________________31

Capítulo 2 – O percurso metodológico_______________________________________38 1. As interlocuções com a micro-história: aproximações e possibilidades_____________42 2. O encontro com os sujeitos da pesquisa______________________________________46 3. “Arrancando pelo cacho, fazemos os bagos cair no chão” (Simone Weill) – Os desafios da aproximação e da construção dos dados da pesquisa___________________________50

Capítulo 3 – Sujeitos analfabetos e pouco escolarizados: sentidos tecidos na história_________________________________________________________________55 1. (Des)legitimando saberes e práticas: restrição de direitos e produção do analfabeto_______________________________________________________________58 2. Lourenço Filho_________________________________________________________62 3. Paschoal Lemme_______________________________________________________ 72

Capítulo 4 – Experimentando-se em leituras, lendo a experiência________________81 1. O documentário________________________________________________________82 2. O trabalho planejado: a aula-debate_________________________________________87

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3. “Então já que o termo é preconceito, o tema aqui é preconceito, vamos falar!”______ 88 4. “Como eu vou passar para os meus filhos o que eu não aprendi?!”________________ 98 5. “Você tem capacidade de comandar o negócio, você tem conhecimento!. Mas a ‘disgramada’ da leitura você não tem!”______________________________________ 106

Capítulo 5 – A constituição dos sujeitos em meio às práticas de leitura e escrita escolares______________________________________________________________ 112 1. “Não adianta querer saber e não... aprender e não saber. E não saber e aprender. É muito mais vantagem aprender e saber”____________________________________________118 2. “O que eu não gostava que tivesse numa escola era ler e escrever”_______________ 127 3. “Eu queria que você me esclarecesse é essa idéia de que uma coisa pode ser assim, mas pode também ser diferente”_______________________________________________ 134

Considerações finais_____________________________________________________144

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À G

UISA DE

A

PRESENTAÇÃO

_____________________________________________________

Conheci Eduardo em um programa de educação de jovens e adultos da Secretaria Municipal de Educação de Campinas. Ele freqüentava uma turma que finalizava o primeiro segmento do ensino fundamental, com a qual, ao longo do ano de 2003, desenvolvi, em parceria com a professora Manuela, um trabalho na área de história.

Eduardo tinha, então, 31 anos. Nascido no interior do Paraná viera para Campinas, adolescente, junto com os pais e os irmãos. Sua trajetória na escola foi curta. Ingressou na primeira série com sete anos, e nela permaneceu apenas por seis meses. “Não deu certo por causa da necessidade de trabalhar”, justificou de início. Ao longo do nosso convívio relatou experiências que indicavam que à necessidade de trabalhar somara-se outro motivo.

“Quando eu tinha seis anos, minha mãe viajou para São Paulo para fazer um tratamento de saúde. Eu fiquei, dos seis até os sete anos, sem ver minha mãe. Eu e meus irmãos ficamos com meu pai. A tristeza foi tanta que não gosto nem de lembrar. Logo depois, eu entrei na escola. Eu era muito bagunceiro, agitado. A professora até que conversava comigo. Um dia, perdeu a paciência e mandou uma carta para o pai, dizendo que eu não precisava mais ir à escola.”

A partir daí, a vida foi trabalhar com a família na lavoura. Dessa experiência, Eduardo nos falou durante as aulas, presenteando-nos com relatos envolventes, nos quais o acompanhávamos em suas brincadeiras de garoto, fazendo guerra com sabugos de milho, ou saboreando fruta no pé. Outras histórias eram acompanhadas da exibição de cicatrizes que o trabalho prematuro deixara no seu corpo.

Em Campinas, fez um pouco de tudo: jardinagem, construção, pintura. Mas gostava mesmo era de trabalhar com borracharia, atividade na qual se firmou, chegando a ter um pequeno estabelecimento próprio. Quando nos conhecemos, estava temporariamente parado, buscando um ponto melhor para voltar a se instalar como borracheiro.

Como muitos outros alunos dos programas de EJA, Eduardo acumulara uma série de experiências e de saberes em função de sua participação em diferentes grupos de socialização e de uma trajetória como trabalhador itinerante, em diferentes tarefas e cantos

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do nosso país. “Aprendi muita coisa, não tenho diploma de nada, mas, por ter aprendido tantas coisas na vida, vejo alguém fazendo alguma coisa e logo aprendo a fazer também”.

Impossibilitado de freqüentar ou permanecer na escola enquanto criança, também ele, a exemplo de tantos outros, fazia um grande esforço para tentar retomar a escolarização na condição de adulto, levando-me a indagar sobre o que ele buscava na escola e como esta poderia estar organizada de forma a aproximar-se de seus interesses e expectativas.

Nocaso de Eduardo, uma das principais motivações para voltar a estudar, depois de tentativas sem êxito, era o filho de sete anos. “Tudo eu falava ‘não sei, pergunta pra mãe’, ‘não sei, pergunta pra mãe’, chega uma hora que você fala ‘tem que parar e estudar pra mode d’eu ficar aí no meio da turma trocando uma idéia’, porque senão aí cê fica meio de lado, sempre falando ‘não’.” Como o pequeno não gostava muito da escola, Eduardo considerara que se ele próprio retomasse os estudos poderia ser um incentivo. E foi o que ocorreu. Por estar estudando, Eduardo foi percebendo que era capaz e se sentindo seguro para ajudar o filho nas lições da escola, passando a dividir com a esposa essa tarefa.

Eduardo era um aluno assíduo e sua atenção aguçada durante as aulas alimentava uma curiosidade que, por vezes, traduzia-se em questões dirigidas a nós, professores, como naquela noite em que conversávamos sobre o modo como um mesmo texto pode ser lido de modos diferentes: “Uma coisa que eu queria que você me esclarecesse é essa idéia de que uma coisa pode ser assim mas pode também ser diferente.” Ou quando tratávamos da diversidade dos costumes dos povos indígenas, ocasião em que ele se desculpou por achar que “o que ia falar não tinha muito a ver com o assunto”, mas tinha ficado com vontade de saber mais sobre os ciganos. Aliás, sobre os ciganos, ele também tinha uma história para contar...

Graças ao seu envolvimento e participação, eu e Manuela tínhamos pistas importantes sobre como nossas propostas estavam sendo entendidas e apropriadas pelos alunos e indicadores preciosos para repensarmos os rumos que imprimíamos ao trabalho docente, já que, falando de modo direto e espontâneo, ele expressava suas idéias no calor da elaboração.

“Quer saber de uma coisa: eu não entendi nada! Não tenho receio de falar não! E quer saber, a maioria ficou que nem eu, só que tem é medo de falar!” - comentou depois de

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assistirmos ao filme “A Missão”, destacando a dificuldade sentida por ele, como leitor iniciante, para acompanhar as legendas do filme.

Em nossas interlocuções em sala de aula, o modo como ele enunciava a escola e a importância dela em sua vida encantava-me.

Nesses enunciados, entre os quais selecionei aqueles que elegi como epígrafes inspiradoras deste trabalho, a escola ocupa um lugar específico em relação aos aprendizados e saberes elaborados e apropriados em outras relações e instituições sociais: “Eu tive uma vida que foi bem mais que uma escola. Agora só falta estudar!” Ainda que os saberes da vida possam ser bem mais que uma escola, eles não se confundem com os saberes escolares e não prescindem destes. Na diferença, ambos complementam-se: “Eu sabia algumas coisas, mas não sabia as palavras e o significado daquilo (...). Então se trata de completar.” E a complementação, tal qual sugerida em seus dizeres, não tem um objetivo ou um efeito pragmático – “conseguir um trabalho melhor” –, mas um efeito sobre ele próprio, sobre seu modo de estar no mundo e de compreendê-lo (“ficar mais esperto, saber como as coisas funcionam”), sobre seu modo de participar das relações sociais (“aprendi a lidar melhor com as pessoas, socializar, ouvir e trocar idéias”).

Produzidos no contexto das relações de ensino vividas na sala de aula, os enunciados de Eduardo não cindem os saberes escolares e os saberes da vida em conhecimento legítimo e conhecimento não legítimo e nem pendem em favor de um ou de outro, produzindo um sentido diferente daquele, historicamente estabilizado, que costuma circular no interior da própria escola.

Se a escola é enunciada por ele como um lugar de aprendizagens diversificadas - onde se pode entender aspectos da realidade, aprender a conviver e a se comunicar melhor com os outros, aprender as palavras para nomear as coisas que já sabia, atribuir significados à história vivida, apropriar-se da leitura e da escrita - os aprendizados construídos ao longo da vida também são enunciados como fontes de ensino e de aprendizados que lhes permitiram conhecer costumes, práticas, concepções, modos de produzir pela observação.

Distintas em suas formas e esferas de atuação, essas formas de conhecimento convivem e articulam-se em sua experiência, redimensionando expectativas em relação aos aprendizados possibilitados por uma e outra, viabilizando, pela própria diferença, a consciência dos aprendizados construídos: “O que que eu tava querendo aprender?

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Aprender ler e escrever. Eu não tava muito preocupado com história. (...) Então às vezes eu falava ‘pô eu acho que história e essas coisas aí eu já tenho muito!’ Mas acaba de... acaba de você ter mais certeza daquilo. Você, como se diz, você às vezes, é... é que nem aprender ler e escrever. Eu sabia algumas coisas mas não sabia as palavras e o significado daquilo. É a mesma coisa. Então se trata de completar. Eu acho assim."

Dizeres como esses, não só evocam temas centrais envolvidos na discussão sobre o papel da escola para os jovens e adultos, como também redimensionam justificativas que historicamente foram construídas para a escolarização das classes populares em nosso país, reinstalando as diferenças de classe no jogo da igualdade jurídica proclamada pelo discurso republicano, que preconizava a massificação da escolarização como um caminho para a construção da nação e do povo brasileiro.

Tendo inicialmente, como horizonte, as relações entre educação-civilização-progresso, o discurso republicano atribuía à escola a tarefa de transformar “os trabalhadores livres” em “cidadãos urbanos”, através da superação de seus particularismos históricos (seus costumes locais, suas concepções ancestrais e valores, seus modos de utilizar a língua, etc.) e da incorporação de práticas e conhecimentos considerados legítimos do ponto de vista daqueles detidos pelos setores dominantes, tais como a leitura, a escrita, a norma gramatical considerada culta, as formas de disciplinamento do corpo, da voz, dos gestos, etc..

Os enunciados de Eduardo não aderem à importância dos chamados conhecimentos legítimos nem ao caráter redentor da escola e do conhecimento letrado. Elaborados a partir de um lugar social específico - o daqueles cujo acesso à chamada escola democrática e universal durante a infância e adolescência ficou restrito - tais enunciados questionam o caráter iluminista desses conhecimentos e da própria escola, uma vez que ambos não contribuem para a proclamada transformação das condições de profunda desigualdade social.

Falando também do lugar social daqueles que conhecem e produzem formas de saber que são diferentes e que têm funções sociais distintas daquelas legitimadas pelo poder dominante, os enunciados de Eduardo, reivindicam o acesso aos conhecimentos letrados e escolares. Nesse sentido, mesmo que de modo não deliberado, implicam no reconhecimento de que essas formas distintas de conhecimento convivem em conflito e contradição.

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Ao longo de minha trajetória como professor na educação de jovens e adultos, tive oportunidade de aproximar-me de enunciados ricos e provocativos, como os elaborados por Eduardo em nossas interlocuções em aula. Tais enunciados sempre me instigaram a investigar como os sentidos críticos e singulares, neles inscritos, se produziam nas relações de ensino.

Considerando a apropriação dos saberes escolares e sua ressignificação como um processo cultural, em sentido amplo, que não se esgota na imediaticidade das relações vividas na escola, propus-me, em 2001, a traçar a história de elaboração de alguns dos conhecimentos por mim compartilhados com meus alunos. Definia-se assim meu projeto de doutorado, no qual, inicialmente pretendia focalizar como a disciplina de história mediava a relação entre memória e identidade.

Redefinido o projeto inicial, em 2003, ao estabelecer os princípios norteadores do trabalho de campo a ser desenvolvido, no qual pretendia documentar as interlocuções produzidas em sala de aula, na disciplina de história, ao longo de um ano letivo, encontrei-me com o grupo de jovens e adultos de que Eduardo fazia parte.

Nas interlocuções compartilhadas entre nós, ao longo daquele ano, documentadas em diário de campo e em gravações em áudio, procurei apreender indícios dos modos como os alunos significavam objetos de conhecimento propostos nas relações de ensino escolares, como os articulavam a suas experiências e como, nesse processo de conhecer, constituíam-se, elaborando dimensões de sua subjetividade, relacionadas a sua inserção na escola, na família, no trabalho.

O foco escolhido para a investigação, tal qual acima apresentado, inscreve-se em um debate que não é novo e que envolve diferentes concepções sobre o ensinar e o aprender, sobre as relações entre o social e o individual, sobre os sentidos do conhecer na escola e sobre o tratamento conferido às relações entre o científico e o popular, o letrado e o não-letrado, os saberes escolares e os saberes construídos em outras esferas da vida cotidiana. Sistematizados por diferentes autores, os temas do debate, acima referidos, aparecem em diferentes campos de conhecimento, como o dos estudos da linguagem, psicologia, história, antropologia, pedagogia, entre outros.

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O estudo, ora apresentado, procura contribuir com esta discussão, ao se propor a apreender, no e pelo discurso, relações entre saberes nos processos educativos no contexto histórico concreto de uma classe de EJA.

No capítulo 1, acompanhado pelas imagens produzidas sobre o analfabeto, adentro o campo das teorizações sobre as relações entre subjetividade e escolarização, já anunciando os referenciais teóricos que sustentam esta pesquisa. Retomo, então, alguns autores que marcaram minha trajetória na configuração da problemática acerca das relações entre saberes no processo de aprendizado escolar, destacando, particularmente, como esses autores conceberam as relações entre experiência, conhecimento e sentidos.

Apresentadas essas concepções em sua relação com o percurso da pesquisa, abordo no capítulo 2, as implicações teórico-metodológicas delas decorrentes.

Enveredando pela história, procuro reconstruir, no terceiro capítulo, alguns dos modos como jovens e adultos das classes populares foram concebidos em relação com os processos e saberes escolares, nos projetos que orientaram as políticas de massificação da escolarização e suas formas de implementação, ao longo do século passado, no Brasil. Procuro identificar também como perspectivas distintas, como as de base liberal – que absorviam as diferenças de classe em favor da universalização das relações jurídicas, apresentando a escola como o elemento decisivo de uma política de justiça social - e de base marxista – cujos projetos definiam-se como propostas educativas de classe – participaram das concepções formuladas sobre os sujeitos analfabetos e pouco escolarizados, alimentando não só as discussões, mas disputas e negociações entre projetos político-pedagógicos distintos.

O quarto e quinto capítulos dizem respeito ao trabalho desenvolvido na sala de aula. Após descrever as condições de produção das relações de ensino ali produzidas e documentadas, aproximo-me - no e pelo discurso, através de episódios recortados de eventos mais amplos - de indícios das trajetórias de elaboração, pelos alunos, dos conhecimentos postos em circulação nessas relações. Procuro também destacar e perseguir indícios dos processos de constituição, em curso no vir-a-ser desses sujeitos.

Cada um deles focaliza momentos distintos da relação desses sujeitos com objetos de conhecimento trabalhados durante as aulas. No capítulo 4 aproximo-me de elaborações produzidas pelos alunos no contexto de interpretação de um documentário que trata dos

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desafios da condição de analfabeto em sociedades letradas. No último capítulo procuro compreender os sentidos produzidos em meio às enunciações relativas aos processos de apropriação da leitura e da escrita pelos alunos.

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C

APÍTULO

I

____________________________________________________________

E

XPERIÊNCIA

,

CONHECIMENTO E SENTIDO

INTERLOCUÇÕES

Meu envolvimento com a educação de jovens e adultos remonta a 1994, quando comecei a ministrar aulas de história em um curso regular noturno referente ao segundo segmento do ensino fundamental, na periferia de Campinas. Tendo iniciado minhas atividades docentes poucos anos antes, trabalhando com adolescentes, fui, pouco a pouco, arrebatado pela experiência de ensinar a um público que, na condição de jovem e adulto, chegava à sala de aula com uma série de experiências e de saberes elaborados em diferentes grupos de socialização e em suas trajetórias como trabalhadores e migrantes.

Impossibilitados de freqüentar ou permanecer na escola enquanto crianças e, em geral, fazendo um grande esforço para tentar retomá-la na condição de adultos, esses alunos levavam-me a indagar sobre o que buscavam na escola e a buscar alternativas que aproximassem o ensino e aprendizado escolares das suas expectativas e interesses.

Tais preocupações tornaram mais aguda a necessidade de conhecer melhor os jovens e adultos com quem trabalhava, o que requeria um olhar atento para suas trajetórias escolares e de vida, para os modos como se apropriavam dos saberes escolares e como os relacionavam com suas experiências.

Em minhas interlocuções com os alunos, pude reunir uma série de indicadores que me ajudaram a compreender que a passagem pela escola dizia respeito àquilo que se ensinava, aos modos como se ensinava e como se aprendia nessa instituição e também aos sentimentos de fracasso, à sensação de incapacidade, à descoberta de um potencial de conhecer pouco desenvolvido, à satisfação de aprender, que, não raro, coexistiam em um

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mesmo indivíduo. Tais indicadores assinalavam que a experiência da escolarização não afetava os sujeitos exclusivamente no âmbito da cognição, mas de sua afetividade e constituição como sujeitos, em uma sociedade em que a escolarização define critérios de hierarquização entre os indivíduos que são enunciados juridicamente como iguais perante a lei.

Essa compreensão mobilizou-me, como professor, a pensar a organização de meu trabalho pedagógico em uma escola que não favorecesse uma nova exclusão e essa meta implicou, por sua vez, a interlocução mais sistemática com um conjunto de teóricos, com cuja produção entrara em contato ao longo de minha experiência como aluno, professor e pesquisador.

Retomar essas interlocuções nas condições em que foram se estabelecendo, ajuda-me a explicitar as preocupações centrais desse trabalho no percurso de sua eajuda-mergência e definição, bem como a dar visibilidade aos modelos explicativos a que recorri. Sabidamente ideológicas, as escolhas teórico-metodológicas entretecem-se à história das relações vividas por aqueles que as fazem, em contextos reais de sua existência.

Dessa perspectiva, apresentar a pesquisa supõe contar uma história. Mais precisamente a história de momentos do trabalho de um professor, em que se destacam inquietações e perguntas, em que se desenha a busca por compreendê-las teoricamente e encaminhá-las praticamente, em que se produzem explicações provisórias, que se consolidam ou são abandonadas. Enfim, momentos marcados pelo esforço em elevar uma experiência a sua inteligibilidade. Nesse percurso, a pesquisa, como um projeto de conhecimento que é, revela-se como momento de conhecer a si mesmo e ao outro, nas relações que se estabeleceram com esse outro.

“A LOCALIDADE DOS EDUCANDOS É O PONTO DE PARTIDA PARA O CONHECIMENTO QUE ELES VÃO CRIANDO DO MUNDO” – A INTERLOCUÇÃO COM PAULO FREIRE.

Um desses encontros foi com Paulo Freire. Um primeiro contato ocorreu com a leitura de “Pedagogia do Oprimido”, nas brechas de meu trabalho como bancário em São

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Paulo. Outras leituras seguiram-se a essa e, alguns anos mais tarde, já morando em Campinas e atuando como professor de História, no ensino público, tive a oportunidade de fazer um curso com Paulo Freire na Faculdade de Educação da UNICAMP. Nesse curso, Freire propôs discussões sobre os rascunhos que dariam origem ao livro “Pedagogia da Esperança”, uma re-leitura da “Pedagogia do Oprimido”.

Foi numa tarde do curso, em janeiro de 1990 , que nosso mestre se ausentou por alguns minutos para atender um telefonema na recepção da faculdade e retornou dizendo que havia acabado de aceitar o convite de Luíza Erundina para assumir a Secretaria de Educação do Município de São Paulo.

A gestão da Secretaria de Educação paulistana, iniciada por Paulo Freire e concluída por Mário Sérgio Cortella, representou um marco importante na busca de construção de uma “educação pública popular”. As iniciativas promovidas no âmbito da educação de jovens e adultos tornaram-se referência para outras administrações.

Quando comecei meu trabalho como educador de EJA na rede municipal de Campinas, alguns dos pressupostos da gestão freireana norteavam as iniciativas de formação continuada dos educadores e de reformulação curricular. Nesse âmbito, vídeos, palestras, assessorias, publicações fortaleceram a aproximação com aquela instigante experiência de gestão pública, na qual se destacavam indicações importantes a respeito dos alunos de EJA e de como a escola deveria ser estruturada no que diz respeito à seleção de conhecimentos, à organização de tempos e espaços para atender à especificidade desse público.

Essas indicações eram derivadas das teses freireanas sobre os processos em que os sujeitos das classes populares, não ou pouco escolarizados, constituem-se e elaboram conhecimentos em contextos educativos, escolares e não escolares. Tais teses nortearam a perspectiva pedagógica assumida em meu trabalho como professor e na presente investigação, no que tange aos seguintes pressupostos: o inacabamento dos seres humanos e o diálogo como condição de seu processo de vir-a-ser, o caráter político da educação e o estatuto atribuído às praticas sociais e aos saberes a ela associados, nos processos educativos formais.

A dimensão histórica constituinte da realidade e dos indivíduos é um dos pilares do pensamento freireano. Os indivíduos não estão prontos, mas fazem-se humanos, à medida

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em participam das práticas culturais de grupos específicos, tomando consciência de sua humanidade e de sua incompletude:

Nós nos tornamos hábeis para imaginativa e curiosamente ‘tomar distância’ de nós mesmos, da vida que portamos, e para nos dispormos a saber em torno dela. Em certo momento não apenas

vivíamos, mas começamos a saber que vivíamos, daí que nos tivesse sido possível saber que

sabíamos e, portanto, saber que poderíamos saber mais. O que não podemos, como seres imaginativos e curiosos, é parar de aprender e de buscar, de pesquisar a razão de ser das coisas. Não podermos existir sem nos interrogar sobre o amanhã, sobre o que virá, a favor de que, contra que, a favor de quem, contra quem virá; sem nos interrogar em torno de como fazer concreto o ‘inédito viável’ demandando de nós a luta por ele.(Freire, 1992, p. 98 – grifos do autor)

A máxima de que “os homens não se educam sozinhos, eles se educam em comunhão” revela o modo como Freire concebe as relações sociais como relações educativas e o papel intrínseco do outro e do diálogo no processo de conhecer.

É que a relação de conhecimento não termina no objeto, ou seja, a relação não é exclusiva de um sujeito cognoscente com o objeto cognoscível. Se prolonga a outro sujeito, tornando-se, no fundo, uma relação sujeito-objeto-sujeito.(Freire, 1992, p. 120)

Esse processo de inscrição dos indivíduos no mundo da cultura não ocorre a partir de um lugar neutro. A compreensão de si mesmo e do mundo é produzida em contextos sociais específicos, marcados por relações de poder. Nesse sentido, o ato educativo é eminentemente político. Ele se produz no âmago das lutas ideológicas, em que se confrontam visões de mundo e interesses distintos.

Nessa perspectiva, Freire assume claramente um lugar de crítica ao caráter desumanizante da sociedade capitalista e inscreve seu pensamento numa tradição que busca a superação dessa sociedade que se reproduz a partir da perpetuação das desigualdades sociais. No processo de transformação social, a educação tem, em sua concepção, um papel fundamental de conscientização.

Rejeitando, tanto a concepção idealista segundo a qual a consciência determinaria a realidade social, quanto a perspectiva determinista segundo a qual a consciência seria um mero reflexo das condições de existência, Freire define a consciência como condicionada e

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também condicionante e a conscientização como um processo de transformação da consciência real em consciência possível, processo do qual o educador participa como mediador.

Embora envolvido em processos institucionais relacionados à alfabetização de adultos desde o final dos anos 50, o pensamento pedagógico freireano prioriza, até o início anos 90 do século passado, os processos educativos que acontecem para além dos muros da escola.

O período em que se encontrava no exílio, entre 1964 e 1979, marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas advindas da ditadura militar no Brasil, acentuou a desconfiança de Freire com relação à possibilidade de desenvolvimento de uma educação emancipatória, nos marcos das instituições formais de ensino. Essa desconfiança se evidencia nos trabalhos produzidos pelo Instituto de Ação Cultural (IDAC), organização que ele fundou com outros brasileiros exilados, em Genebra, com o intuito de assessorar movimentos sociais. Nos livros “Cuidado, escola!” (1980) e “A vida na escola e a escola da vida” (1982), a equipe do IDAC tece severas críticas ao caráter autoritário e discriminador da instituição escolar, embora aponte possíveis caminhos para sua renovação. Em outra obra intitulada “Vivendo e aprendendo: experiências do IDAC em educação popular” (1980), o foco recai sobre a dimensão pedagógica das lutas sociais empreendidas em diferentes âmbitos, durante os anos 70 do século passado: nos processos de luta pela libertação nacional de ex-colônias portuguesas na África, na conquista dos sindicatos italianos por horas de estudo para os trabalhadores, ou ainda, nas ações educativas desenvolvidas no contexto dos movimentos de mulheres na Suíça. Sua proposta centra-se, nessa obra, no entendimento e na participação nos processos educativos nos quais as classes populares e minorias sociais estavam envolvidas, defendendo que a educação escolarizada tem muito o que aprender com a pedagogia dos movimentos sociais.

No início dos anos 90, quando assume a Secretaria de Educação do governo da cidade de São Paulo, Freire passa a dedicar uma especial atenção a questões referentes ao trabalho educativo escolar. Nesse âmbito, como no da educação não escolar, Paulo Freire compreende o ato educativo como processo formativo humano inscrito nas relações sociais e, portanto, como um ato político. É partindo dessa perspectiva que ele compreende e explica os saberes populares e sua relação com os saberes científicos, como uma relação

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marcada pela dominação e opressão que, contraditoriamente, contém a possibilidade de conscientização das condições em que se produz e de seus efeitos sobre os indivíduos que dela participam.

Na “Pedagogia do Oprimido”, publicado originalmente em espanhol, em 1968, Freire se refere ao comportamento e à percepção da realidade por parte dos oprimidos como expressão, em momentos diversos, da estrutura de dominação. Esta condição traduz-se na dualidade existencial do oprimido que, “hospedando o opressor”, assume modos de pensar e agir fatalistas, marcados pela autodesvalia, pelo senso de incapacidade. Segundo Freire, este fatalismo, fruto de uma situação histórica e sociológica, não é um traço essencial da forma de ser do povo. Destaco a seguir dois trechos em que o autor caracteriza a consciência oprimida, orientada pela lógica do opressor, ainda que marcada pela ambigüidade:

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade. Falam de si como os que não sabem e do ‘doutor’ como o que sabe e a quem devem escutar. (Freire, 1983, p. 54)

Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentem como se fossem uma quase ‘coisa’ possuída pelo opressor. Enquanto, no seu afã de possuir, para este, como afirmamos, ser é ter a custa quase sempre dos que não têm, para os oprimidos, num momento de sua experiência existencial, ser nem sempre é ainda parecer com o opressor, mas é estar sob ele, É depender. Daí que os oprimidos sejam dependentes emocionais. (Freire, 1983, p. 56)

Quando, na “Pedagogia do Oprimido”, Freire se refere aos setores populares como “seres ambíguos”, faz isso, entendendo que metade são eles mesmos e a outra metade, o “opressor hospedado”. O autor atribui ao “opressor hospedado” a responsabilidade pelos traços acima esboçados da consciência dos oprimidos (introjeção do sentimento de incapacidade, de uma visão inautêntica de si e do mundo, a condição de “quase-coisa possuída pelo opressor” e de “dependendentes emocionais”), e assume que é através da luta pela transformação da condição de domínio e exploração e pela problematização da “falsa consciência dos oprimidos”, que o processo de libertação pode vir a se efetivar.

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Nessa obra, produzida num momento de profundos enfrentamentos sociais na América Latina, o educador pernambucano discute o papel político da educação em sua articulação com os movimentos sociais. Daí dirigir-se não só aos animadores dos círculos de cultura, mas também às lideranças revolucionárias, analisando a dimensão educativa de suas tarefas sociais.

Nesse contexto, Freire destaca que embora o papel da liderança revolucionária seja imprescindível para que os setores oprimidos possam superar a “consciência real” e alcançar a “consciência possível”, a relação entre eles deve necessariamente ser dialógica. A idéia de diálogo, tal qual expressa por Freire, é a de intercâmbio entre interlocutores, em que saberes e perspectivas ideológicas distintas explicitam-se, confrontam-se e caminham em direção à síntese dialética. Fora dessa condição, considera ele, as relações educativas no movimento social repetiriam a lógica autoritária que orienta o modo de pensar e agir dos opressores. “O conhecimento experiencial das massas em torno da realidade, fecundado pelo conhecimento crítico da liderança, transforma-se em razão da realidade.” (Freire, 1983 p. 157)

Muitos erros e equívocos comete a liderança ao não levar em conta esta coisa tão real, que é a visão do mundo que o povo tenha ou esteja tendo. Visão do mundo em que se vão encontrar explícitos e implícitos os seus anseios, as suas dúvidas, a sua esperança, a sua forma de ver a liderança, a sua percepção de si mesmo e do opressor, as suas crenças religiosas, quase sempre sincréticas, o seu fatalismo, a sua reação rebelde. E tudo isto, como já afirmamos, não pode ser encarado separadamente, porque, em interação, se encontra compondo uma totalidade.

(...) Esta [síntese cultural], na teoria dialógica da ação, por isso mesmo que é síntese, não implica em que devem ficar os objetivos da ação revolucionária amarrados às aspirações contidas na visão do mundo do povo.

Ao ser assim, em nome do respeito à visão popular do mundo, respeito que realmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquela visão.

Nem invasão da liderança na visão popular do mundo, nem adaptação da liderança, às aspirações, muitas vezes ingênuas, do povo. (...)

A solução está na síntese.(Freire, 1983, p. 216)

Quando Paulo Freire revisita a “Pedagogia do Oprimido”, descortinando os processos de elaboração e os desdobramentos desta obra, são outros os termos com que se refere aos saberes populares e ao processo de transformação social, através da prática

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educativa. Ele se volta, por força de sua experiência à frente de uma Secretaria de Educação, para a análise da escola e das possibilidades de uma aproximação e compromisso de suas práticas e modos de organização com os interesses das classes populares. Nesse contexto, as teses fundamentais são mantidas, mas suas análises focalizam a dinâmica escolar e suas sugestões e encaminhamentos são dirigidos aos professores progressistas, ou seja, àqueles que se sentem comprometidos com as classes populares e com a transformação social.

...volto a insistir na necessidade imperiosa que tem o educador e ou educadora progressista de se familiarizar com a sintaxe, com a semântica dos grupos populares, de entender como fazem eles sua leitura do mundo, de perceber sua ‘manhas’ indispensáveis à cultura de resistência que vai se constituindo e sem a qual não podem defender-se da violência a que estão submetidos.

Entender o sentido de suas festas no corpo da cultura de resistência, sentir sua religiosidade de forma respeitosa, numa perspectiva dialética e não apenas como se fosse expressão pura de sua alienação.(Freire, 1992, p. 107)

Ou ainda em outro momento:

...não podemos deixar de lado, desprezado como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros.

Este é, aliás, um dos temas fundamentais da etnociência, hoje, o de como evitar a dicotomia entre esses saberes, o popular e o erudito ou de como compreender e experimentar a dialética entre o que Snyders chama ‘cultura primeira’ e ‘cultura elaborada’.

Respeitar esses saberes, de que falo tanto, para ir mais além deles, jamais poderia significar – numa leitura séria, radical, por isso crítica, sectária nunca, rigorosa, bem-feita, competente, de meus textos – dever ficar o educador ou a educadora aderida a eles, os saberes de experiência feitos.

O respeito a esses saberes se insere no horizonte maior em que eles se geram – o horizonte do contexto cultural, que não pode ser entendido fora de seu corte de classe, até mesmo em sociedades de tal forma complexas em que a caracterização daquele corte é menos facilmente apreensível.

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O respeito, então ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. A localidade dos educandos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo. ‘Seu’ mundo, em última análise é a primeira e inevitável face do mundo mesmo. (Freire, 1992, p. 86)

A centralidade dos conhecimentos dos alunos e de suas práticas no processo de organização da escola e do trabalho docente, tal qual defendida por Freire, e a relação dialética por ele reconhecida entre os saberes populares e eruditos aproximam-se dos estudos de autores inscritos na tradição marxista, que concebem a formação humana como um processo histórico-cultural, no qual as dimensões simbólica e material da vida social devem ser investigadas em seus complexos processos de articulação, nunca definidos a priori, a partir de uma relação mecanicista. Dentre estes autores cabe destacar o inglês Edward Thompson, no campo da história, Vygotsky no campo do desenvolvimento humano e Bakhtin no dos estudos da linguagem.

“A EXPERIÊNCIA MODIFICA, ÀS VEZES DE MANEIRA SUTIL E ÁS VEZES MAIS RADICALMENTE, TODO O PROCESSO EDUCACIONAL” – A INTERLOCUÇÃO COM E. P.THOMPSON.

O contato com a história social inglesa ocorreu desde o início de meu curso de graduação em história, em 1984. Dentre as várias marcas que tal perspectiva historiográfica deixou em minha formação, destaco aqui o conceito de “experiência”. Em seu livro “A miséria da teoria”, Thompson dedica um capítulo a este conceito, tratando-o como “termo ausente” em sua análise do modelo teórico althusseriano. Segundo o historiador inglês, o potencial da tradição marxista na explicação da realidade social, sob a perspectiva althusseriana, estaria comprometido em função do privilegiamento da estrutura abstrata do modelo teórico em detrimento das evidências empíricas e da subordinação dos aspectos culturais (normas, valores, linguagem, etc) à esfera econômica da sociedade. Para Thompson, a fecundidade do marxismo deveria ser colocada à prova num diálogo efetivo entre conceitos e evidências históricas. Além disso, as explicações para os processos históricos deveriam levar em conta determinações de ordens diversas e suas relações,

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procurando superar uma relação de causalidade invariável entre infra e superestrutura. Antes mesmo da publicação da “Miséria da teoria”, em 1978, uma das principais obras de Thompson, “A formação da classe operária inglesa”, sinalizava as potencialidades do conceito de experiência. Nesta obra, o autor procura desenvolver uma de suas teses mais conhecidas e polêmicas: a idéia de que a classe operária não surgiu em função da instituição do sistema fabril, mas se constituiu num processo lento, relacionado às tradições culturais populares, de caráter democrático ou dissidente, forjadas no final do século XVII e início do século XVIII, em suas tensas relações com setores aristocráticos e burgueses. Para Thompson a constituição da classe é concebida como um processo a ser investigado a partir das relações sociais concretas nas quais os indivíduos estão inseridos e não um dado a priori determinado pelo lugar que os indivíduos ocupam nas relações de produção:

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas.

Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. (Thompson, 1987, p. 9-10)

A trajetória de investigação thompsoniana traduz preocupações específicas que, em certa medida, o aproximam de outros autores, também inscritos na tradição marxista, cujas proposições assumo como referências teóricas para o presente trabalho, tais como Bakthin e Vygotsky. Trata-se de preocupações referentes à compreensão das questões culturais, particularmente aos processos de constituição da consciência. Sobre isso Thompson afirma numa entrevista concedida em 1976, em Nova Iorque, e publicada na Radical History Review:

...hay un ‘silencio’ [em Marx] en relación a reflexiones de tipo cultural y moral, a los modos en que el ser humano está imbricado en relaciones especiales, determinadas, de producción, el modo

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en que estas experiencias materiales se moldean en formas culturales, la manera em que ciertos sistemas de valores son consonantes com ciertos modos de producción y ciertos modos de producción y relaciones de producción son inconcebibles sin sistemas de valores consonantes. Uno no depende del outro. No existe una ideología moral perteneciente a una ‘superestructura’; lo que hay son dos cosas que constituyen las dos caras de la misma moneda. (Thompson, 1989, p. 315)

Num momento anterior, na mesma entrevista, esta perspectiva das investigações de Thompson é novamente explicitada quando ele procura distinguir seu foco de análise daquele assumido nos trabalhos de Perry Anderson:

...mi especial tradición de trabajo, unido em cierta medida a la tradición crítica literária de Raymond Williams y otros, há puesto gran énfasis en la cultura, y Anderson estaba poniendo un nuevo énfasis en el poder. Yo creo que el primero era necesario, aunque creo también que ese énfasis se há acercado a la cultura con algo de ceguera. Creo que este es el nudo de la cuestión. No creo que se refiera realmente a la historia, sino a tipos distintos de consciência histórica transmitida. Se te fijas em su própia obra histórica, Anderson habla mucho de poder y estructuras, y muy poco de la cultura y la interiorización de la experiencia. (Thompson, 1989, p. 310)

Faria Filho, num artigo em que procura analisar as contribuições de Thompson nos estudos sobre história da educação no Brasil, afirma que podemos compreender os estudos acerca da constituição da classe operária inglesa, desenvolvidos pelo historiador inglês, considerando “como elemento central o aprendizado como condição de construção de identidades individuais e coletivas, da cultura e, mesmo, das instituições.” (Faria Filho, 2005 p. 242). Esta perspectiva ampla na forma de conceber a educação materializa-se nas investigações orientadas pela preocupação em compreender os modos como “experiências materiais se transformam em formas culturais” e as “formas de interiorização da experiência”.

É importante registrar que as interlocuções entre os pressupostos thompsonianos e as questões educacionais também se fizeram presentes no âmbito do ensino de história na educação básica, em nosso país. Em 1986, quando eu ainda cursava o curso de graduação em história e iniciava a docência no ensino fundamental, pude participar dos debates em torno da polêmica Proposta Curricular de História, elaborada por uma equipe da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) da Secretaria de Educação do

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Estado de São Paulo. Este momento foi marcante em minha formação. Ao mesmo tempo em que tomava contato com algumas concepções teórico-metodológicas no âmbito da historiografia, no curso de graduação, debatíamos sobre seus desdobramentos no que dizia respeito a uma proposta curricular da história, junto a meus colegas professores da rede pública. Dentre aquelas concepções destacava-se a chamada história social inglesa que incluía Thompson, Hobsbawn, Rudé. Alguns princípios dessa Proposta acabaram se tornando referência para as reformulações curriculares que ocorreram em outros estados, na segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90. Como principais eixos poderia destacar: a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, a concepção de alunos e professores como sujeitos da história e da produção do conhecimento, uma concepção de tempo que rompe com a segmentação passado-presente-futuro e os modelos evolutivos a ela relacionados. Os vínculos destes princípios com os pressupostos de Thompson são explicitados em vários trechos da 3ª versão da Proposta, impressa originalmente e posta em discussão em 1986. Na “Introdução” podemos ler:

É por entendermos que o processo de aprendizagem ocorre em situações concretas a partir de sua inserção na realidade socialmente vivida por professores e alunos e que o pensamento ‘...é um trabalho de reflexão que se esforça por elevar uma experiência (não importa qual seja) a sua inteligibilidade, acolhendo a experiência como indeterminada, como não-saber (e não como ignorância) que pede para ser determinado e pensado, isto é, compreendido’ (Chauí) que propomos recuperar experiências sociais para chegar à elaboração do pensar e do fazer histórico. (São Paulo – SEE/CENP, 1989, p. 9-10)

Embora eu tenha procurado evidenciar possíveis aproximações entre pressupostos que orientaram os trabalhos de Thompson e a problemática da educação e da formação humana, o próprio autor abordou esta relação, de forma explícita, no texto “Educação e experiência”. Trata-se de uma palestra proferida em Leeds, em 1968, e publicada como introdução ao livro “Os românticos: A Inglaterra no século revolucionário”. Na Universidade de Leeds, Thompson foi professor de adultos, no setor de extensão, tendo como público: trabalhadores manuais, bancários, funcionários de escritório, profissionais da seguridade social e professores da rede de ensino não universitária. Em seu texto, o autor faz sugestões e reflexões interessantes sobre o que considera um necessário diálogo entre

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experiência e saberes intelectuais. Se no âmbito da produção historiográfica o conceito de experiência possibilitou uma abordagem que descortinou aspectos da vivência dos trabalhadores e de sua formação que até então tinham pouca visibilidade, no texto em questão o autor trata o conceito no âmbito da educação formal e, particularmente, na educação de adultos. Penso que as reflexões que Thompson desenvolve em seu texto acerca da historicidade das relações entre saberes escolares e saberes da experiência trazem pistas e provocações interessantes para problematizarmos e definirmos lugares de observação para se compreenderem as práticas educativas e os processos de elaboração do conhecimento junto ao público jovem e adulto. Por este motivo me deterei no percurso das reflexões desenvolvidas neste texto. Logo no início, o autor explicita a forma como concebe a experiência nos processos educativos:

O que é diferente em relação ao estudante adulto é a experiência que ele traz para a relação. A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais radicalmente, todo o processo educacional; influencia os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo, podendo até mesmo revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas acadêmicas tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo. (Thompson, 2002, p. 13)

O eixo condutor da exposição de Thompson é a abordagem do “contexto histórico e cultural mais amplo no qual essa idéia de “experiência” poderia ser inserida.” Para tanto, procurou investigar o que Raymond Williams identificou como uma crise fundamental da cultura inglesa, no século XIX, que se traduzia sob duas faces: o problema da relação entre experiência e linguagem “letradas” e “populares” e a difícil relação entre sentimento intenso e consciência intelectual. Para desenvolver seu empreendimento, remonta ao romantismo de fins do século XVIII. Inicialmente, Thompson identifica uma distância entre a cultura letrada e a cultura da gente do povo, na Europa de meados do século XVIII. Esta distância teria contribuído para a formação de uma imagem fictícia do camponês, identificado como virtuoso. Na Inglaterra, porém, isto não teria ocorrido. Segundo nosso autor, a cultura inglesa do oitocentos estaria alicerçada no que ele chamou de “paternalismo realista” que, em termos gerais, supunha uma diferença qualitativa entre a cultura educada e a cultura dos pobres: “A cultura de um homem, exatamente como seu prestígio social, era calculada de acordo com a hierarquia de sua classe.”

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Esta perspectiva, segundo Thompson, não implicou numa postura de ignorância ou de desprezo da aristocracia em relação à cultura do povo, mas traduziu-se, em muitos casos, em tolerância e em curiosidade. Prova disso foi a ajuda na promoção de divertimentos populares, ou mesmo a participação neles, ou ainda, a observação e o registro de costumes locais e tradições populares. Entretanto, isso não significou a superação do tom paternalista que concebia a relação entre culturas, em termos de subordinação. Thompson dá exemplos do modo como esta perspectiva paternalista se fez presente também na produção literária de homens pobres de talento, como alguns “poetas camponeses”. A revisão da idéia de subordinação cultural só teria ocorrido no final do século XVIII, sob o impacto da Revolução Francesa, embora o autor afirme que era mais fácil, por parte dos reformadores, a defesa do programa político de igualdade (identificado com o sufrágio da população masculina) do que a superação das atitudes culturais de superioridade. É com Wordsworth que uma ruptura efetiva ter-se-ia dado, mediante a revisão dos pressupostos da cultura refinada. Nas poesias deste autor, faz-se presente a condenação da frivolidade e vulgaridade dos educados, a afirmação do valor do homem comum e uma declaração de fé na fraternidade universal. É importante destacar uma das características dessa concepção mencionada por Thompson:

A igualdade do valor do homem comum, que Wordsworth afirma, repousa em atributos morais e espirituais, desenvolvidos através de experiências no trabalho, no sofrimento e de relações humanas básicas. Baseia-se muito menos em atributos racionais e ele confia muito pouco na educação formal que poderia inibir ou desviar o crescimento calcado na experiência. Wordsworth teria optado sem hesitação por este último, e, na realidade, há passagens nas quais ele parece decidido exatamente a impor essa opção ao leitor. (Thompson, 2002, p. 25)

Embora esta visão de Wordsworth tenha se estendido pelo século XIX, chegando até o século XX, Thompson nos lembra que ela não foi representativa das classes altas de seu tempo. No final do século XIX, na onda contra-revolucionária, o paternalismo teria adquirido uma nova feição, tomando “uma forma mais malévola, mais obstrutiva e mais autoritária”. Este novo paternalismo teria se traduzido, por exemplo, no desejo de dominar e de moldar o desenvolvimento intelectual e cultural do povo, visando sua disciplina social e recuperação moral. Estas idéias teriam majoritariamente orientado a atitude dos homens

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de educação em relação à cultura e à experiência dos que se encontravam fora da cultura letrada.

...a educação se apresentava não apenas uma baliza na direção de um universo mental novo e mais amplo, mas também como uma baliza para longe, para fora, do universo da experiência no qual se funda a sensibilidade. Além do mais, na maior parte das áreas durante o século XIX, o universo instruído estava tão saturado de reações de classe que exigia uma rejeição e um desprezo vigorosos da linguagem, costumes e tradições da cultura popular tradicional. O homem trabalhador autodidata, que dedicava suas noites e seus domingos à busca do conhecimento, era também solicitado, a toda hora, a rejeitar todo o cabedal humano de sua infância e de seus companheiros trabalhadores como grosseiro, imoral e ignorante. (Thompson, 2002, p. 32)

Thompson localiza, a partir da década de 1790, um contexto no qual as demandas do próprio movimento da classe trabalhadora sinalizavam para a superação da cultura popular, baseada na experiência. Nesse momento do texto, deixa claro que não está concebendo a cultura popular do século XVIII como “integrada, espontânea e admirável”. Lembra, entretanto, que a historiografia teria silenciado sobre as ambigüidades dessa cultura, destacando aspectos que concorreriam para denegri-la. De qualquer modo, Thompson procura evidenciar que, a partir do final do século XIX, a instituição escolar é concebida a partir dos pressupostos que opõem educação e experiência:

As atitudes em relação à classe social, à cultura popular e à educação tornaram-se ‘estabelecidas’ no período que se seguiu à Revolução Francesa. Durante um século ou mais, a maior parte dos educadores da classe média não conseguia distinguir o trabalho educacional do controle social, e isso impunha com demasiada freqüência uma repressão à validade da experiência da vida dos alunos ou sua própria negação, tal como a que se expressava em dialetos incultos ou nas formas culturais tradicionais. O resultado foi que a educação e a experiência herdadas se opunham uma à outra. E os trabalhadores que, por seus próprios esforços, conseguiam penetrar na cultura letrada viram-se imediatamente no mesmo lugar de tensão, onde a educação trazia consigo o perigo da rejeição por parte de seus camaradas e a autodesconfiança. Essa tensão ainda permanece. (Thompson , 2002, p. 36)

Thompson então se pergunta sobre o destino daquele outro “impulso”, o da igualdade, surgido na mesma época e que estaria presente nas obras de Wordsworth.

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Embora identifique a permanência deste impulso, avalia que talvez a sua fraqueza estivesse na oposição entre educação e experiência concebida em termos de conflito entre o intelecto e o sentimento, resultando numa superestimação deste último. O historiador inglês ressalta um desdobramento temerário deste tipo de concepção que opõe cultura letrada, intelectual à cultura provinda da experiência e da sensibilidade: o irracionalismo e o antiintelectualismo. Embora tal postura representasse uma óbvia reação cultural a uma cultura letrada manipulativa, de dominação de classe, ela não pode ser considerada, segundo nosso autor, como uma “resolução filosófica válida”:

Pode ser verdadeiro e importante insistir que avalianos os homens não por sua classe ou qualidades educacionais, mas sim pelo seu valor moral, mas se os homens – e especialmente se os homens em desvantagem educacional – começam a se avaliar com muita presunção, isso pode servir como desculpa para que abandonem todo o esforço intelectual. (...) Se adotássemos, sem maiores esclarecimentos, o ‘sentimento real e a razão justa’ de Wordsworth, estaríamos abandonando o problema da educação: poderíamos deixá-la a cargo da escola da vida. (Thompson, 2002, p. 38-39)

Segundo Thompson, talvez apenas uma obra no século XIX teria revelado a complexidade daquela relação cultural: o romance Judas, o obscuro, de Hardy. Isso se expressaria na “manutenção do equilíbrio de valores” e na “inter-relação dialética entre as disciplinas intelectuais e a vida em si mesma”. Judas, o personagem principal, é um homem do campo que busca numa cidade industrial, Christminster, a ampliação de seus horizontes. Esta ampliação é identificada particularmente pelo desejo de ingresso numa faculdade, cujo significado é idealizado pelo personagem. A trajetória do personagem descortinaria aquela complexidade acima referida:

É na pedreira que ‘por um momento desceu sobre Judas a verdadeira iluminação; que ali (...) estava um centro de esforço de tanto valor quanto aquele dignificado pelo nome de estudo acadêmico na mais nobre das faculdades’. Não se trata apenas do fato de que trabalhadores e intelectuais estejam integralmente relacionados por laços econômicos e sociais; que ‘sem os trabalhadores manuais nos miseráveis bairros pobres’ de Christminster ‘os leitores diligentes não poderiam ler nem os grandes pensadores viver’. Trata-se também de que só aqui, no contexto real da experiência viva, poderiam as idéias dos pensadores tomar corpo e ser testadas. Judas ‘começou a ver que a vida da cidade era um livro de humanidade infinitamente mais palpitante, variado e sucinto do que a vida acadêmica. (Thompson, 2002, p. 40)

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E logo adiante Thompson procura dar contornos mais precisos àquilo que chamou de necessária manutenção da dialética entre educação e experiência explicitada na obra de Hardy:

Isso não é uma rejeição da cultura letrada em favor da experiência. (...) é uma rejeição da abstração dos valores intelectuais do contexto do qual eles devem ser vividos e uma afirmação de que aqueles que realmente os vivem devem se ater aos valores intelectuais se não quiserem ser acachapados pela ‘desonestidade, costume e medo. (Thompson, 2002, p. 41)

Aqui Thompson interrompe sua reconstrução histórica acerca da relação entre educação e experiência para indagar sobre a atualidade das questões levantadas para o momento em que proferia sua palestra, em 1968.

Tece algumas considerações acerca dessa relevância, afirmando inicialmente que a alienação das culturas era, naquele momento, diferente daquela de cem anos. A cultura popular paroquial teria desaparecido e a cultura do trabalhador, mais articulada politicamente, também vinha perdendo vitalidade. No âmbito da educação elementar, as manifestações da pior qualidade para a dominação cultural e para o controle social estariam sendo combatidas com sucesso pelos educadores.

Mas o que preocupava o historiador inglês era a ameaça que recaía sobre o igualitarismo cultural que ele havia associado a Wordsworth. As necessidades de uma sociedade industrial avançada e as pressões do movimento político trabalhista haviam determinado uma direção inusitada àquelas questões culturais: a educação passou a ser vista exclusivamente como um instrumento de mobilidade social seletiva.

... o sistema trabalha de modo a confundir certos tipos de capacidade (ou facilidade) intelectual com realização humana.

A aprovação social do sucesso educacional é assinalada de uma centena de modos: o sucesso traz recompensa financeira, um estilo de vida profissional, prestígio social. Ela se apóia numa apologia completa da modernização, necessidade tecnológica, igualdade de oportunidades. (Thompson, 2002, p. 42)

Esta nova direção do sistema educacional trabalharia com a idéia de igualdade de mérito bastante distinta daquela de Wordsworth, fomentando uma sensação de fracasso

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