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EVOLUÇÃO E DIFERENCIAÇÃO DOS SISTEMAS AGRÁRIOS: A SITUAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR DE CERRO LARGO E SALVADOR DAS MISSÕES

EVOLUTION AND DIFFERENTIATION OF AGRARIAN SYSTEMS: THE SITUATION OF FAMILY FARMING IN CERRO LARGO AND SALVADOR DAS

MISSÕES

Jeferson Tonin

Engenheiro Agrônomo Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil jeferson.tonin@hotmail.com

José Tobias Marks Machado

Engenheiro Agrônomo Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil tobias.machado@hotmailcom

Daniela Garcez Wives

Doutora em Desenvolvimento Rural Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, Brasil garcezd@gmail.com

* Recebido em: 03/07/2017 * Aceito em: 22/07/2017

RESUMO

A partir dos anos 2000, inúmeras políticas públicas foram formuladas e direcionadas para o público que hoje compõe a agricultura familiar no Brasil. No entanto, a recente extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 2002, e que possuía como um dos públicos alvo os agricultores familiares, tem suscitado muitas incertezas e preocupações quanto ao futuro da agricultura familiar enquanto categoria social. Além disso, é plausível pontuar que em termos de análise sobre o desenvolvimento da agricultura familiar são raros os trabalhos que tenham como escopo elucidar as especificidades envoltas aos processos de exclusão social entre essa categoria. Objetiva-se com este trabalho, analisar a evolução e diferenciação da agricultura de Cerro Largo e Salvador das Missões, ambos localizados no noroeste do RS. Este esforço foi realizado através de uma revisão da literatura já produzida sobre o tema. A reconstrução da história da agricultura de Cerro largo e Salvador das Missões permitiu perceber as grandes dinâmicas pelas quais passou a agricultura ao longo do tempo. Embora alguns estudos tenham salientado uma necessidade de aprofundamento na intensificação produtiva para desenvolver o rural brasileiro, essa é apenas uma forma, no nosso entendimento, de se aumentar as disparidades sociais e de se gerar uma maior exclusão produtiva, além de potencializar problemas ambientais.

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PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento Rural; Diferenciação Social; Sistemas de

Produção.

ABSTRACT

From 2000s onwards, several public policies have been formulated and directed to the public that nowadays makes up family agriculture in Brazil. However, the recent extinction of the Ministry of Agrarian Development (MDA), which was established in 2002 and which had family farmers as a target audience, has raised many uncertainties and concerns about the future of family farming as a social category. In addition, it is plausible to point out that in terms of analysis on the development of family agriculture, there are few works that have as scope to elucidate the specificities involved in the processes of social exclusion among this category. The objective of this work is to analyze the evolution and differentiation of the agriculture of Cerro Largo and Salvador das Missões, both located in the northwest of the brazilian state of Rio Grande do Sul. This effort was carried out through a literature review already produced on the subject. The reconstruction of the history of agriculture in Cerro Largo and Salvador das Missões made it possible to perceive the great dynamics that agriculture has undergone over time. Although some studies have emphasized a need to deepen the productive intensification to develop the brazilian farming, this is only one way, in our understanding, to increase social disparities and generate greater productive exclusion, besides potentiating environmental problems.

KEY-WORDS: Rural development, Social differentiation, Production systems. 1. INTRODUÇÃO

A agricultura familiar figura como categoria social no cenário nacional a mais de 20 anos. Segundo Grisa (2014), foram três as confluências e articulações centrais para que em 1995 fosse lançado o Programa de Fortalecimento da Agricultura, o PRONAF. Sendo estas, a organização dos movimentos sociais do que na época chamava-se de pequenos produtores, os argumentos dos representantes da academia que respaldavam tal categoria como central para o desenvolvimento rural, e a existência de um estado neoliberal que objetivava corrigir as falhas de mercado na agricultura. A partir desse programa inúmeras políticas voltadas à agricultura familiar foram criadas e implementadas, principalmente nos anos 2000.

No entanto, a recente extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 2002, e que possuía como público alvo os agricultores familiares, tem suscitado muitas incertezas e preocupações quanto ao futuro da agricultura familiar enquanto categoria social. No meio acadêmico Guanziroli e Sabbato (2015) descreve que o debate entre o simpáticos e críticos desta categoria tem ganhado forte polarização nos últimos tempos, fazendo com que a discussão retroaja a patamares que se encontrara em 1980. Ainda na opinião dos autores, tal fato seria a consequência de uma falta de aprofundamento teórico durante as duas últimas décadas sobre o tema da agricultura familiar.

Embora não se possa concordar totalmente com os argumentos movidos Guanziroli e seus colaboradores, é plausível pontuar que em termos de análise sobre o desenvolvimento da agricultura familiar são raros os trabalhos que tenham como escopo elucidar as especificidades envoltas aos processos de exclusão social entre essa categoria. Assentamo-nos no pressuposto que um processo de desenvolvimento agrícola que implique na sistemática marginalização social e exclusão de parte dos agricultores do processo produtivo não pode ser considerado como viável (SILVA NETO, 2014). Nesse sentido, Dufumier (2007) destaca que

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a análise crítica sobre os processos de diferenciação social, que caracterizam a dinâmica da agricultura de um modo geral, é um aspecto central nas análises que fazem uso da abordagem da agricultura em termos de sistemas agrários, como é o caso deste trabalho.

Assim, objetiva-se com este trabalho analisar a evolução e diferenciação da agricultura de Cerro Largo e Salvador das Missões. Estes municípios são caracterizados pela massiva presença da agricultura familiar e, por meio da reconstituição dos sistemas agrários desses municípios, além do resgate da história agrária local, buscaremos compreender as origens das diferenciações sociais, bem como a dinâmica da agricultura atual. Como há certa literatura já produzida sobre o tema, trata-se, nesse caso, de uma revisão da literatura.

Para tanto, além dessa introdução e da seção conclusiva, o artigo será dividido em mais quatro partes. De imediato, na próxima seção serão ressaltados aspectos metodológicos da teoria dos sistemas agrários. Na segunda seção será feito o zoneamento agroambiental regional via dados secundários e dados coletados a campo. Em seguida serão apresentados os Sistemas Agrários identificados no decorre da pesquisa, os quais compõem a história da agricultura local. Na seção final, será apresentada e discutida a dinâmica da agricultura familiar dos dois municípios.

2. TEORIA DOS SISTEMAS AGRÁRIOS

Nos estudos que almejam distinguir a realidade rural, o enfoque sistêmico permite abordar o objeto de estudo de forma ampla e holística. Sendo que por ele é possível serem analisadas as inter-relações complexas de causa e efeito entre os diferentes elementos, sem perder de vista as especificidades nem tão pouco a noção global em que estão imbricados os fenômenos e a realidade rural (WIVES, 2008). Nesse sentido, Silva Neto e Basso (2015) argumentam que dentre as diferentes óticas de análise das situações agrícolas, a teoria dos Sistemas Agrários se distingue das demais por tratar a agricultura como constituída por uma série de sistemas em constante evolução, cada qual com problemas específicos relativos ao seu próprio desenvolvimento.

O que é denominado de Teoria dos Sistemas Agrários consiste em uma interpretação histórica e evolutiva do desenvolvimento da agricultura, como proposta por Dufumier (2004) e Mazoyer; Roudart (2010), cujas consequências metodológicas se expressam no método chamado “Análise-Diagnóstico de Sistemas Agrários”, ADSA (DUFUMIER, 2007). De acordo com Silva Neto (2007) a aplicação dos procedimentos da ADSA é indissociável de uma visão histórica evolutiva ampla, em que a natureza complexa da agricultura deve ser reconhecida. Metodologicamente a ADSA aborda a realidade agrária em termos de sistemas em diferentes níveis (DUFUMIER,2007), segundo Miguel (2009) são três os níveis de análise. Para o escopo desse trabalho será utilizado apenas o primeiro nível disponibilizado por essa teoria, o Sistema Agrário1.

O Sistema Agrário corresponde ao modo específico de exploração do ecossistema, sendo resultante de transformações históricas profundas e adaptações geográficas de larga escala. Indicando assim, uma relação sistêmica entre os elementos do tipo antrópico e do tipo natural (MIGUEL, 2009). A análise feita nesse nível objetiva serem detectadas as tendências históricas que regem as grandes mudanças da agricultura, sendo que para sua caracterização as seguintes variáveis são consideradas essências: (i) o ecossistema cultivado enquanto produto histórico das transformações promovidas pelo homem sobre o ecossistema natural;

1

O segundo e o terceiro nível correspondem ao sistema social-produtivo e aos sistemas de criação e cultivo, respectivamente. Para mais informações ver Miguel (2014).

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(ii)os meios de produção, as ferramentas, máquinas e materiais biológicos (plantas cultivadas

e animais domésticos), resultantes dos processos de adaptação, seleção e melhoramento desenvolvidos historicamente pelos agricultores e outros agentes; (iii) a força de trabalho e as

relações de produção às quais ela está submetida (trabalho familiar, assalariamento e

parceria), que regem a repartição do produto e condicionam fortemente os critérios de investimento dos agricultores; (iv) o modo de exploração e reprodução do ecossistema

cultivado resultante da forma específica como os instrumentos de produção empregados, em

função das características do ecossistema, da distribuição dos meios de produção, da força de trabalho disponível e das relações de produção vigentes (MIGUEL, 2009).

O estudo da organização, do funcionamento e das inter-relações entre esses quatro elementos principais permitem o entendimento da dinâmica de um Sistema Agrário. Sendo que esta inter-relação se desdobra em um ecossistema historicamente constituído por meio da sua exploração e renovação via um sistema social. Com isso costuma-se dizer que:

“Há desenvolvimento geral quando todos os tipos de exploração progridem, desenvolvendo suas atividades, aumentando suas dimensões econômicas [e sociais]. O desenvolvimento é inegável quando certas unidades progridem muito mais depressa que outras. No entanto, ele é contraditório quando certas unidades progridem enquanto outras estão em crise e regridem. A crise de um sistema agrário é considerada geral quando todos os tipos de unidades de produção regridem e tendem a desaparecer (MAZOYER; ROUDART, 2009, p. 29)”.

Desse modo, ao longo do tempo podem surgir, desenvolver, declinar e suceder-se, em uma dada área, Sistemas Agrários que constituem as etapas de uma série evolutiva própria dessa região.

Seguindo os preceitos metodológicos dessa teoria, para o âmbito desse trabalho a análise da agricultura se fez em duas etapas, o zoneamento regional e caracterização da evolução dos sistemas agrários. Tratando-se da primeira etapa fez-se uma leitura da paisagem, via saídas à campo, a qual serviu para o reconhecimento das condições de solo, relevo, vegetação do local estudado. A caracterização dos sistemas agrários buscou a reconstituição da evolução histórica da agricultura e os processos de diferenciação social entre os agricultores. As informações foram coletadas principalmente por meio de entrevistas com indivíduos que acompanharam as transformações sofridas pela agricultura durante as últimas décadas.

3. ZONEAMENTO REGIONAL

3.1 Delimitação geográfica, população e agricultura familiar

Cerro Largo e Salvador das Missões são municípios vizinhos e se encontram localizados geograficamente na região das Missões, no Noroeste do Rio Grande do Sul, como pode ser analisado na Figura 1.

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Figura 1: Localização dos municípios de Cerro Largo e Salvador das Missões

Fonte: Adaptado de SAF/MDA (2015) pelos autores.

Juntos os dois municípios apresentam uma extensão de 271,92 km² e uma população pouco maior que 15,3 mil habitantes (Tabela 1). Dessa população, mais de cinco mil habitantes residem na zona rural, sendo que Salvador das Missões se caracteriza por ter uma população rural maior que a urbana, segundo censo demográfico de 2010.

Tabela 1: Extensão, população e dados referentes a agricultura familiar (A.F.) dos municípios

de Cerro Largo e Salvador das Missões.

Município Área (km²) População urbana População rural População total Cerro Largo 177,88 9.340 3.323 12.663 Salvador das Missões 94,04 850 1.815 2.665 Total 271,92 10.190 5.138 15.328 Município de estabelecimentos da A.F. Pessoal ocupado na A.F Documento de aptidão ao PRONAF* % da população rural ocupada na A.F. Cerro Largo 891 2.470 1.012 74,33 Salvador das Missões 475 1.271 427 70,02 Total 1.366 3.741 1.439 **72,18

Fonte: IBGE (2010; 2006); SAF/MDA (2015).

*

DAP/pessoa física

**média

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uma forte presença da agricultura familiar, sendo que a porcentagem da população que reside no meio rural e se ocupa com a agricultura familiar ultrapassa 70% em ambos municípios, conforme Tabela 1.

3.2 Características agroambientais

O Rio Grande do Sul, de forma geral, é composto por duas grandes formações vegetais, sendo uma de campo e outra de floresta (ZARTH, 1997; MIGUEL, 2009), de forma que, grosso modo, a formação florestal predomina na metade norte do estado e a formação de campo na metade sul (FRANTZ; SILVA NETO, 2015). Esta característica implica a existência de duas grandes linhas de evolução e diferenciação dos sistemas agrários. Uma ocorrente em áreas fisiográficas originalmente cobertas por uma vegetação de campo e outra referente às áreas fisiográficas originalmente cobertas por uma vegetação de floresta (MIGUEL, 2009). Foram nas regiões cobertas por matas, da metade norte, que se ocuparam os três processos de colonização da agricultura entre o período de 1830 à 1940, tal como definido por Silva Neto (1994).

Como anteriormente destacado, a delimitação do espaço agrário no qual se debruça este estudo corresponde aos limites políticos dos municípios de Cerro Largo e Salvador das Missões, que apresentam como característica geral as áreas de florestas do estado e terem sido alvos dos projetos de colonização. Estudando o espaço agrário gaúcho Suetergaray & Guasselli (2004) dividem o estado em cinco grandes unidades da paisagem a partir de características do relevo, uso do solo e cobertura vegetal. Segunda a classificação proposta pelos autores, os municípios aqui estudados se inserem na unidade classificada como Planalto

Basáltico.

O Planalto Basáltico caracteriza-se por apresentar uma superfície ondulada e altitudes com variação entre 260 e 320 metros. As classes de solo principalmente encontradas são as dos cambissolos, neossolos regolíticos e litólicos, nitossolos e latossolos, sendo que o seuuso é principalmente marcado pela exploração agrícola. Quanto à cobertura vegetal original, há ocorrência de floresta ombrófila densa ou mista e floresta estacional decidual (STRECK et al., 2008; MIGUEL, 2013).

Embora estas características destacadas correspondam ao perfil geral do empírico analisado, a leitura da paisagem a campo permitiu a divisão da paisagem local em duas unidades, que por sua vez apresentam maior homogeneidade interna. Dado que ambos os municípios têm como característica terem uma vegetação original de floresta, se teve como critério para a divisão das duas paisagens as características de solo e relevo. De modo que a

unidade de paisagem I, corresponde a locais onde há a predominância de solos profundos e

médios e um relevo variando entre ondulado a fortemente ondulado. Já a unidade de

paisagem II é marcada por um relevo variando entre ondulado a fortemente ondulado,

possuindo solos com perfil raso e comum presença de afloramentos rochosos.

Essa diferença entre as unidades de paisagem não condiciona de forma diferenciada a evolução dos sistemas agrários em um primeiro momento. Porém, como será visto a seguir, ela se torna importante na medida em que a evolução da agricultura se aproxima do período contemporâneo.

4. EVOLUÇÃO E DIFERENCIAÇÃO DOS SISTEMAS AGRÁRIOS

Como já destacado no tópico anterior, os municípios de Cerro Largo e Salvador das Missões estão localizados numa região predominantemente marcada pela presença de floresta, sendo que não há, portanto, uma região em que o campo nativo seja predominante. Dessa forma, a proposta de evolução e diferenciação dos sistemas agrários aqui

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defendida procura estabelecer as grandes linhas ou os principais traços que marcaram a história agrária destes municípios.

4.1 Sistema Agrário Indígena

O Sistema Agrário Indígena teve início com a colonização do espaço agrário gaúcho por populações pré-colombianas de caçadores/coletores (especialmente do grupo Gês), aos quais se juntaram, mais recentemente, populações indígenas de agricultores/caçadores - especialmente Tupi-Guaranis (MIGUEL, 2013). Considera-se que os indígenas ocuparam a grande maioria do espaço agrário gaúcho (regiões de campo e floresta), no entanto, para Frantz e Silva Neto (2015), as regiões de floresta – como é o caso de Cerro Largo e Salvador das Missões – eram ocupadas principalmente pelos Caingangues e pelos Guaranis. Sendo estes últimos, os primeiros cultivadores deste território por volta do século 5º de nossa era.

Essas populações exploravam os recursos naturais de maneira direta e realizavam a agricultura de derrubada-queimada (MIGUEL, 2013). Este sistema é praticado em terrenos previamente desmatados por uma roçada, ou seja, por um abate seguido de queimada, mas sem destocagem. As parcelas desmatadas eram cultivadas apenas durante um, dois ou no máximo três anos, raramente mais que isso, sendo em seguida destinadas ao pousio florestal por um ou vários decênios, até serem novamente desmatadas e cultivadas. Esse sistema de cultivo é o mesmo apontado por Mazoyer e Roudart (2010) para o caso das regiões agrícolas, originalmente cobertas por florestas na Europa.

Este modo de cultivo impôs aos Guaranis um continuo translado de suas aldeias em busca de novas terras, e consequentemente levava-os ao enfrentamento direto com outros grupos indígenas, cujas guerras resultaram também na incorporação de outras tribos (HAAS, 2008). No entanto, não se deve deduzir daí que os cultivadores de derrubada-queimada eram nômades, ao contrário, eram geralmente sedentários que viviam agrupados em vilarejos e cujos cultivos se deslocam num raio de alguns quilômetros em torno das habitações.

Cultivavam principalmente mandioca, milho, batata-doce, feijão, abóbora, fumo, erva-mate e algodão, sendo que sua alimentação era complementada com a caça e a pesca (FRANTZ; SILVA NETO, 2015). Além disso, é necessário destacar o papel desempenhado pela erva-mate, uma planta de ocorrência natural e muito explorada neste sistema agrário (ANDREATTA, 2003). As ferramentas utilizadas eram manuais e a grande maioria da produção era destinada ao autoconsumo, podendo haver, no entanto, trocas entre comunidades próximas, principalmente de sementes.

Convém destacar que a agricultura de derrubada e queimada é amplamente atribuída aos Guarani e aos Caingangues, mas não aos Minuanos e Charruas, uma vez que estes últimos habitam principalmente regiões de campo, cuja vegetação rasteira e de hábito prostrado impediam o cultivo da terra com as ferramentas e as técnicas utilizadas neste período. Dito de outra forma, os Guaranis, ao praticar este tipo de agricultura, optavam, sempre, por ocupar regiões de florestas, como é o caso dos municípios de Cerro Largo e Salvador das Missões.

A divisão do trabalho era com base na idade e no sexo, cabendo aos homens a derrubada das árvores e queimada, o preparo do solo para o plantio, que geralmente era realizado por meio de um mutirão, além de tarefas de pesca, caça, produção de armas e instrumento e a construção das casas. Ao passo que as mulheres eram responsáveis pelo plantio, pelos cuidados com a lavoura e também pelas tarefas domésticas (TESCHE, 2007).

A crise de um sistema agrário pode se dar de forma abrupta ou então pode ocorrer gradualmente ao longo do tempo. O sistema agrário indígena é marcado pelo primeiro processo, uma vez que ocorreu na primeira metade do século XVII eventos que viriam a transformar profundamente o espaço agrário local. No ano de 1626 houve a chegada dos

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jesuítas na localidade em que hoje é o município de Rolador, o qual faz divisa política com ambos municípios aqui estudados, e neste ano inicia-se a construção da Redução de Nossa

Senhora da Candelária do Caaçapamini, a partir da qual altera-se toda dinâmica do espaço

agrário e põe fim ao sistema agrário indígena.

4.2 Sistema Agrário Jesuíta

A presença portuguesa e espanhola no espaço agrário gaúcho viria a alterar profundamente as dinâmicas ali estabelecidas por seus, até então, únicos habitantes: os índios. Enquanto os padres jesuítas portugueses, a partir de sua sede no Rio de Janeiro, adentram o território ao sul de Laguna até Rio Grande entre os anos 1605 e 1640, os seus colegas espanhóis penetram pelo leste do Rio Uruguai e fundam, de 1626 a 1636, 18 reduções jesuíticas (FRANTZ; SILVA NETO, 2015). Com formação nas áreas de ciências sociais, agronômicas e exatas, os padres jesuítas utilizaram da técnica de aproximação, com o estudo da língua nativa, e a obtenção da confiança do cacique, para que a catequização e dominação dos Guaranis, mas desta vez sem a agressividade física (HAAS, 2008).

Com a chegada dos jesuítas da Companhia de Jesus (nesta região principalmente na pessoa do padre Roque González de Santacruz), fundou-se em 1627 a Redução de Nossa

Senhora da Candelária do Caaçapamini no território do atual município vizinho,

Rolador-RS. É importante destacar que os jesuítas, em 1636, abandonam esta região pelo temor da ação dos bandeirantes paulistas e voltam apenas algumas décadas depois, em 1687, para então formar os “Sete Povos das Missões” (GOMES, 1980).

A ação jesuítica tinha por objetivo a catequese do índio pelo convencimento cultural e religioso, inserindo-o de forma ativa e funcional na dinâmica expansionista do colonialismo mercantil, ou seja, tinha interesse no próprio ser do índio, seu corpo enquanto capacidade de trabalho e sua alma por um intenso processo de aculturação (RUCKERT, 1997).

Certo está que os jesuítas priorizavam realizar os aldeamentos em regiões de campo nativo, uma vez que tinham por característica extensas criações de gado, no entanto demandavam também regiões de florestas as quais eram utilizadas para o cultivo do solo e a produção de alimentos propriamente dita. Assim, estando Cerro Largo e Salvador das Missões imediatamente ao lado de Rolador (onde houve uma redução) e sendo estes municípios compostos por mata nativa, pressupõe-se que a área pertencente a estes municípios tenha sido amplamente utilizada para realização da agricultura.

Dessa forma, nas florestas os índios continuavam produzindo em sistema de derrubada e queimada, mas desta vez com a utilização de instrumentos de metais introduzidos na região pelos jesuítas (ANDREATTA, 2009). Dentre as culturas agrícolas que foram inseridas pelos jesuítas neste território destaca-se o trigo, o linho e a cana de açúcar (THIES, 2016). Além disso, grande parte do gado inserido e criado também pelos jesuítas destinava-se à alimentação de todos que ali habitavam.

A partir desse período, portanto, introduziram-se bovinos de raças ibéricas e se disseminaram rapidamente pelas regiões de campos, de forma que os bovinos eram caçados visando à exploração do couro (MIGUEL, 2013). Gomes (1980) também relata que até a primeira entrada dos padres na região não havia registro de nenhuma espécie de gado e nem mesmo de equinos, sendo que os jesuítas trouxeram do outro lado do rio Uruguai alguns equinos, gado vacum e inclusive bovinos leiteiros.

O final deste sistema agrário ocorre por volta de 1756quando em consequência do Tratado de Madri, assinado em 1750, os jesuítas e os indígenas foram expulsos pelos exércitos portugueses e espanhóis (GOMES, 1980). A efetivação deste tratado se deu, dentre outros motivos, em função de que a extração do couro e a produção de erva-mate (duas

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principais atividades desenvolvidas por estes grupos) despertaram o interesse dos colonizadores e esta foi uma das razões que levou à aliança entre Portugal e Espanha, que culminou na expulsão dos jesuítas (ANDREATTA, 2009).

4.3 Sistema Agrário Caboclo

A expulsão dos jesuítas altera não apenas a dinâmica agrária da região de campos, mas também nas regiões de floresta, visto que também eram ocupadas pelo sistema produtivo jesuítico. Com a saída dos jesuítas da região uma parte dos índios remanescentes dos conflitos com espanhóis e portugueses, agora em número bem menor, passa a ser empurrados para o interior das florestas (SILVA NETO, 1994), e principalmente em regiões com fácil acesso à agua.

Neste processo surge a figura do caboclo, que passa a ocupar, no próximo século, grande parte das regiões de floresta – mas também de campo – do Rio Grande do Sul. Por se tratar de uma categoria bastante heterogênea, sua origem e definição é algo que merece atenção nestas investigações. Para Frantz e Silva Neto (2015), eram trabalhadores em terras de campo e mato e com origens as mais variadas. Dentre algumas citadas pelos autores destaca-se a possibilidade de serem descendentes (i) de índios sobreviventes dos diversos conflitos, (ii) de encontros fortuitos e geralmente violentos entre militares e a população civil durante os períodos de conflitos para o controle da região (iii) de bandeirantes e tropeiros paulistas.

Os caboclos também praticavam o sistema de derrubada e queimada, sendo que as ferramentas utilizadas para a produção de alimentos (milho, feijão, amendoim, batata-doce) eram geralmente manuais. Embora essas atividades fossem essencialmente para assegurar o autoconsumo, essas populações mantiveram vínculos com o mercado, principalmente através da venda de erva-mate e alguns excedentes agrícolas (MIGUEL, 2013). Além disso, é necessário mencionar que nas regiões de campo este marco temporal aqui definido coincide com a o início de um período marcado pela atuação dos tropeiros na captura de muares, e principalmente pela criação das estâncias. Os caboclos, não raramente trabalhavam para estes estancieiros como forma de obter um complemento de renda. Ou melhor, “além da extração e comercialização da erva-mate, que dava ao caboclo uma relativa autonomia, ele também trabalhava como assalariado nas estâncias, enquanto os demais membros da família trabalhavam em áreas de floresta” (ANDREATTA, 2003).

Tratava-se, portanto, de agricultores pobres que estiveram presentes ao longo processo de formação da agropecuária gaúcha, mas sempre procurando modalidades de sobrevivência em torno de eixos dominantes do desenvolvimento socioeconômico do Estado, de cujos benefícios eram sistematicamente excluídos (FRANTZ; SILVA NETO, 2015).

Esta dinâmica agrária perdura até a chegada das frentes de colonização na região, que datam as primeiras décadas do século 20 (CALLEGARO; TREVISAN, 2015) que, por ocuparem as áreas de floresta predominantemente, contrastavam frontalmente com os interesses dos caboclos, pondo fim a este sistema agrário.

4.4 Sistema Agrário Colonial Inicial

No final do século XIX, a pressão demográfica sobre as colônias velhas, situadas nas proximidades de Porto Alegre e fundadas sob o sistema de pequenas propriedades, impulsionaram colonos excedentes para as novas áreas disponíveis nas matas do planalto basáltico, transformando definitivamente estas regiões e tornando-as zonas agrícolas (ZARTH, 1997). As frentes de colonização ocupam prioritariamente áreas de floresta em função de que praticavam a agricultura de derrubada e queimada e também porque nestas

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áreas os estancieiros gaúchos não tinham objeção alguma às frentes de colonização, desde que não ocupassem suas áreas de campo (FRANTZ; SILVA NETO, 2015).

Os caboclos, por sua vez, que ali habitavam foram expulsos destas regiões – com topografia pouco acidentada e com solos de maior qualidade – e migraram para regiões ainda não ocupadas pelos colonizadores, aproximando-se da margem do Rio Uruguai, onde hoje localizam-se municípios como Porto Lucena e Porto Vera Cruz, por exemplo. Nestas áreas, todavia, os condicionantes ambientais dificultavam o cultivo do solo e a produção de alimentos, gerando uma grande diferenciação social.

Os novos contingentes demográficos e a ferrovia, construída na década de 1890 no atual município de Ijuí, deram um grande impulso à tímida agricultura local, aproveitando-se da fertilidade natural dos solos virgens (ZARTH, 1997). É importante destacar que em Cerro Largo e Salvador das Missões este processo foi um pouco mais tardio, visto que se tratam de regiões mais distantes das colônias velhas, como é o caso também do município de Santa Rosa (MACHADO, 2001), cuja colônia foi fundada em 1915 com o objetivo de limitar a invasão das terras por parte dos posseiros, promover a valorização fundiária e intensificar o controle sobre os caboclos. Estes, últimos, como descreve Zarth (1997), nunca foram prioridade para os agentes do governo e inclusive eram vistos como sendo o “símbolo do atraso e do tradicionalismo, ao contrário dos imigrantes europeus, apresentados como símbolo do progresso e do desenvolvimento”.

A coleta de dados no campo permitiu evidenciar que de Cerro Largo e Salvador das Missões se consolidou nas duas primeiras décadas do século XX e foi fortemente marcado pela etnia alemã, cujas famílias eram oriundas das colônias velhas do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma colonização privada e não mais organizada pelo Estado, na qual lotes de 25 hectares eram adquiridos por estas famílias. Outros estudos preliminares s também destacam essa dinâmica da colonização (MACHADO et al., 2016; TONIN et al., 2016).

Ocorreu, nesta época, o início da derrubada e queimada da mata nativa para posterior cultivo das áreas, através de plantio e semeadura manual. Mais tarde, porém, esses colonos não tardaram a implantar, ao menos parcialmente, sistemas de cultivo com tração animal leve. Como característica da agricultura colonial grande parte da produção era destinada ao autoconsumo, e apenas parcos excedentes agrícolas ao mercado (MIGUEL, 2013). As principais atividades que eram desenvolvidas baseavam-se na produção de fumo, feijão e suínos.

Através das entrevistas realizadas é possível afirmar que no início deste período quase a totalidade da produção era destinada exclusivamente ao autoconsumo, podendo eventualmente haver trocas entre as famílias. Com o passar do tempo, já por volta da década de 30, alguns produtos passam a ter mais importância econômica, dentre os quais, destaca-se a banha e o feijão. Estes produtos eram comercializados com os atravessadores, e estes eram responsáveis por realizar a mediação entre o produtor o consumidor final. Estas figuras, em grande medida, tiveram uma acumulação de capital superior àquela observada pelos primeiros colonos imigrantes. Este sistema agrário se estende até a década de 60, quando da alteração ou da modificação dos meios de produção, como ferramentas ou espécies melhoradas.

4.5 Sistema Agrário Colonial Contemporâneo

No início dos anos 1960 o Sistema Agrário Colonial encontrava-se consolidado, sendo que no caso de Cerro Largo, a totalidade do território encontrava-se dividido e ocupado por colonos que detinham uma colônia de terra (25 hectares). Como salientado anteriormente, o modo de exploração da agricultura colonial baseava-se na agricultura de derrubada e queimada, a qual se caracteriza por um sistema eficiente de exploração e renovação da

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fertilidade do solo, quando desenvolvido de maneira organizada e respeitando-se o período de pousio, tal como sinalizado por Mazoyer & Roudart (2010). No entanto, dada a característica de crescente produção de excedentes da agricultura colonial, bem como a maior possibilidade de integração desta aos mercados se desencadeou uma utilização intensiva do solo pelos agricultores, sem preocupação com a utilização de pousio, havendo por consequência uma paulatina diminuição da fertilidade. Callegaro e Trevisan (2015) destacam que essa dinâmica se desdobrou na grande crise da agricultura colonial em toda a região noroeste do Rio Grande do Sul, a partir dos anos 1950.

O agravamento dos problemas de fertilidade do solo e crise da agricultura colonial, nos anos 1960, coincidem temporalmente com o mesmo período do início da modernização da agricultura brasileira e difusão do pacote tecnológico da segunda revolução agrícola dos tempos modernos. Ainda de forma pouco generalizada e incipiente, se nota a utilização de insumos e equipamentos de origem industrial pelos agricultores nesse período. Soma-se a isso, uma segunda mudança que marca a crise do sistema agrário colonial, a qual é marcada pela desarticulação da cadeia do porco banha e, articulação do novo mercado do porco carne. O desenvolvimento da indústria de óleos vegetais e consequente perda do valor da banha, impõem aos agricultores mudanças em seus sistemas de produção, sendo necessária conversão para sistemas de produção utilizando raças aptas para a produção do mercado de carne.

A partir desse momento é notada uma crescente integração ao mercado à jusante dos sistemas de produção dos agricultores, os quais passam a depender da busca de meios de produção, tal como fertilizantes e raças aptas a posterior venda no mercado. Porém essa dinâmica ganha força e maior generalização para o conjunto, maior, dos agricultores apenas a partir dos anos 1970. Neste período também começa a despontar o aumento da soja no desenvolvimento da agricultura. Essa generalização da utilização de insumos e de aumento de cultivos mais intensivos relaciona-se intimamente com a conjuntura política e macroeconômica do período.

Segundo Frantz e Silva Neto (2015), o crédito rural, foi o principal difusor do uso de calcário, adubos, inseticidas e fungicidas. Porém a política de crédito apresentava a obrigatoriedade de introdução, por parte do agricultor, de uma cultura de verão em sucessão ao trigo, onde a soja passa a ganhar destaque progressivo. A interrupção temporária de exportação da oleaginosa em 1972 pelos EUA, em um contexto de valorização mundial, beneficia o Rio Grande de Sul. Além das políticas de crédito é observada na região, em Santa Rosa, destacamos o estabelecimento em 1970 da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (FEPAGRO), a qual centrava suas atividades principalmente no melhoramento de raças e suínos aptas a produção de carne.

Assim, a formação do sistema agrário contemporâneo é marcada por grandes modificações na agricultura da região. Podendo ser observado um princípio de descapitalização de propriedades inseridas principalmente na unidade de paisagem II, as quais por razão de menor aptidão das terras ou de menor possibilidade de acesso aos meios de produção excluem trabalhadores, levando assim, ao princípio do êxodo rural e aumento das desigualdades na agricultura da região. Durante os anos 1990, há uma ainda maior intensificação do uso insumos de origem industrial tanto na produção de soja como na produção suinícola, cabendo fazer destaque a generalização do uso de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas, no início dos anos 2000.

Nos anos 1990 deve ser pontuado também um aumento de importância da produção de leite, a qual surgiu como alternativa a grande maioria dos agricultores da região, os quais não tinham capitalização suficiente para estabelecer sistemas de produção do suíno tipo carne. No

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entanto, seguido a mesma lógica da agricultura em outras atividades, a atividade leiteira, paulatinamente passou a ser intensificada e sistematicamente imprimindo uma dinâmica de exclusão de agricultores.

Tal dinâmica de exclusão dos agricultores ao longo do tempo e as tendências das dinâmicas futuras será objeto de estudo da próxima seção.

5. DINÂMICA DE DESENVOLVIMENTO E CRISE DA AGRICULTURA LOCAL

Embora a Revolução Verde prometesse a garantia de um maior desenvolvimento da agricultura, esse processo não foi tão harmonioso como se previa, conforme observado nesta análise. Levando em conta sua importância, é válido serem expostos os argumentos utilizados por Mazoyer e Roudart (2010) para caracterizar a dinâmica resultante da modernização na agricultura. Segundo esses autores, a Revolução Verde ou Segunda Revolução Agrícola dos Tempos Modernos abriu caminhos para parte dos agricultores investir em equipamentos e meios de produção desenvolvidos pela indústria. Tais como tratores, sementes, defensivos e adubos químicos, que configuravam o chamado pacote tecnológico. Os altos investimentos em pesquisa para o desenvolvimento desse pacote bem como para a sua difusão, condicionaram aumentos de produtividade, consideráveis, do setor agrícola em boa parte do mundo. Porém, se por um lado, em um primeiro momento, tal fato foi considerado como avanço, por outro, para os agricultores, essa alta disponibilidade de produtos significaria uma queda dos preços agrícolas no médio e longo prazo.

Essa inexorável tendência de desvalorização dos produtos agrícolas condicionou a sistemática exclusão e retrocessos daqueles agricultores que não acumularam meios suficientes para o aumento da produção e compensação da baixa dos preços. Sendo ainda que aqueles que conseguem permanecer na atividade, tendem a tomar os meios de produção - principalmente terra - dos demais recém excluídos; isso para que possam dar sequência ao processo de acumulação crescente e necessário para a não exclusão produtiva. Esse processo Mazoyer e Roudart (2010) caracterizam como dinâmica de desenvolvimento e crise da

agricultura.

No caso da história Cerro Largo e Salvador das Missões, ambos haviam se especializado na produção de porco banha durante a primeira metade do século XX, a qual tratava-se de um produto de fácil conservação, fácil transporte e de alto valor agregado. Além disso, a banha figurava como segundo produto agroindustrial mais importante do Estado nesse período (CANO, 1998). Esse primeiro ciclo virtuoso da agricultura colonial inicial seria central para que alguns agricultores pudessem absorver o pacote da modernização no período que se seguiu. Onde a agricultura local, de um modo geral, abandonaria a produção de banha e passaria a se especializar principalmente na produção de carne suína. No entanto essa reconversão produtiva é que inseriria a agricultura na dinâmica de desenvolvimento e crise, tal como apresentada por Mazoyer e Roudart (2010).

Desse modo, se por um lado as características do ecossistema cultivado não haviam até então incidido sobre as modificações da agricultura, a partir desse período estas se tronariam centrais na diferenciação social entre agricultores. Assim, os agricultores que estavam inseridos em unidades da paisagem II - caracterizada por apresentarem um relevo ondulado e solos rasos - passariam a encontrar dificuldades para absorção do pacote tecnológico e consequentemente teriam sua reprodução, enquanto categoria social ameaçada. Cabe mencionar que no caso da modernização da agricultura brasileira, a utilização de insumos químicos via crédito rural estava condicionada à disponibilidade de terras mecanizáveis (SILVA NETO et al., 2009). Soma-se à essa questão o fato de que a pesquisa agropecuária foi capaz de gerar apenas soluções parciais para os problemas reais da

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agricultura, e a extensão rural, agravando a situação, não dispunha de normas técnicas adaptadas à diversidade das condições de produção e também, em grande medida, desconhecia a realidade socioeconômica de parte dos agricultores (DUFUMIER, 2010).

Como destacado a reconversão do sistema produtivo do porco banha em porco carne significaria a entrada da agricultura local na dinâmica de desenvolvimento e crise. Porém após essa primeira reconversão produtiva, essa dinâmica perpassaria a produção de grãos que ganha impulsos nos anos 1970 e 2000; e a produção de leite, a qual marca a agricultura local desde os anos 1990. Dito de outra forma, indiferentemente do sistema de produção utilizado, a dinâmica de desenvolvimento e crise se torna uma tendência histórica da agricultura local. Sendo que com o passar do tempo a exclusão passa a atingir inclusive os agricultores inseridos nas unidades e paisagem I, que também passam a ter dificuldades para as sequentes necessidades e aumento da produção. Essa dinâmica é bastante comum para a produção de leite e se encontra descrita por Oliveira (2008).

Uma vez inserida na dinâmica de desenvolvimento e crise, a agricultura familiar local tem se pautado pelo uma intensificação dos sistemas de produção, tanto via utilização de insumos externos provenientes a indústria, como pela necessidade de apropriação de terras. Por ser a soja e o leite as principais atividades agrícolas atualmente desenvolvidas, há uma forte tendência de absorção crescente do pacote tecnológico. No entanto dado o caráter mais extensivo do cultivo da soja, essa produção tem caracterizado pela sua crescente necessidade de aumento das áreas exploradas.

Assim, além do aumento da desigualdade entre agricultores, comum do clássico processo de desenvolvimento e crise, essa dinâmica tem tendido ao agravamento dos problemas ambientais na agricultura. Sendo que nos sistemas de produção intensivos de ambos os municípios são comuns as áreas com degradação dos solos resultantes de uma intensificação demasiada dos sistemas produtivos, por exemplo2.

Deve ficar claro, porém, que a dinâmica de crise aqui apontada não se deve a categoria social a qual vem desenvolvendo a agricultura local a mais de cem anos, ou seja a agricultura familiar. A crítica se refere ao modelo de produção o qual sustenta tal crise e que rege a agricultura hegemonicamente, sendo que em nosso entendimento a própria polarização em relação a agricultura familiar, apontada por Guanziroli e Sabbato (2015), entre outros aspectos, diz respeito ao modelo de desenvolvimento agrícola a ser incentivado.

Assim, autores como Alves e Rocha (2010) e Bunain et al., (2013) têm insistido na tese que para o futuro da agricultura brasileira, deve-se apostar apenas em políticas que busquem a intensificação da mecanização e utilização de tecnologias bioquímicas é que poderão figurar como uma alternativa eficiente e viável para o desenvolvimento rural. Alves e Rocha (2010), admitem ainda que não há nenhuma possibilidade de desenvolvimento agrícola fora de uma tendência de intensificação da produção, de modo que os argumentos mobilizados pelos autores se alinhem em grande medida à discussão e à esperança da modernização da agricultura. Entretanto, inúmeros trabalhos têm se posicionado de maneira oposta a esta interpretação (MATTEI, 2014). Ademais, a própria caracterização da dinâmica de crise da agricultura familiar feita nesse estudo figura como um exemplo empírico a contrapor esse tipo de argumentação sobre o desenvolvimento rural, uma vez que, como analisado, esse modelo de desenvolvimento se manifesta como pouco inclusivo, concentrador e frágil do ponto de vista ambiental. Dessa forma, a implementação de projetos que

2 São alguns exemplos observados dessa fragilização do ambiente de cultivo: perdas de solo por erosão nos

plantios de grãos em áreas declivosas e pouco apropriadas para esse tipo de cultivo. Já nos sistemas leiteiros, com utilização intensiva de ensilagem tem resultados em plantios sucessivos e a manutenção da cobertura de solo. Outro problema é a alta lotação dos rebanhos sobre as pastagens.

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considerem as interpretações conservadoras terá como consequência um agravamento da dinâmica de crise da agricultura.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reconstrução da história da agricultura de Cerro largo e Salvador das Missões permitiu perceber as grandes dinâmicas pelas quais passou a agricultura ao longo do tempo. Pode-se notar que a chegada da colonização no início do século XX, além de pôr fim ao sistema agrário caboclo, excluiu seus remanescentes do processo de desenvolvimento da agricultura que se seguiria. Sendo a agricultura, a partir deste momento, marcada por ser explorada principalmente pelos imigrantes e descendentes europeus, na sua maioria alemães.

Desse modo, é no sistema agrário colonial inicial que se encontram os alicerces da atual agricultura familiar dos dois municípios. No entanto, excluindo-se as características étnicas, não foi durante a evolução deste sistema agrário em que se verificam as maiores diferenciações na agricultura local, mas sim do processo de modernização da agricultura vivido a partir dos anos 1960.

O realinhamento dos sistemas de produção, a partir desse momento, fizeram com que as características ambientais se apesentassem como influentes no desenvolvimento da agricultura, figurando como o primeiro ponto de diferenciação da agricultura familiar. Dito de outra forma, os agricultores que estavam inseridos em áreas com características pouco propícias a motomecanização e absorção do pacote tecnológico, se tornaram marginais nesse processo, sendo aos poucos excluídos. Desde esse período a agricultura vem passando por uma dinâmica em que o desenvolvimento de parte dos agricultores tem significado a exclusão e pauperização de uma parte muito superior de outros, independentemente do cultivo e/ou criação empreendido. Além da desigualdade, a pressão sobre o sistema produtivo é mais um resultado dessa dinâmica.

Embora alguns estudos tenham salientado uma necessidade de aprofundamento na intensificação produtiva para desenvolver o rural brasileiro, essa é apenas uma forma, no nosso entendimento, de se aumentar as disparidades sociais e de se gerar uma maior exclusão produtiva, além de potencializar problemas ambientais. Ou seja, apresenta-se como uma proposta inadequada para o desenvolvimento rural.

Deve-se salientar que o processo ocorrido no município de Cerro Largo e Salvador das Missões não deve ser tratado como um caso isolado. Essa é uma dinâmica que também se estende para outros locais, onde políticas para incentivo da agricultura hegemônica foram e são utilizadas. Assim, cabe por fim mencionar a potencialidade da Teoria dos Sistemas Agrários, a qual permite ter-se uma visão ampla do objeto abordado, tanto em relação ao seu passado como de sua tendência futura.

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