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DILEMAS DE UM ESTADO (DEMOCRÁTICO) MULTICULTURAL: O direito como reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas.

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(DEMOCRáTICO) MULTICULTURAL:

O

direitO cOmOrecOnhecimentOcultural nassOciedades demOcráticascOntempOrâneas

ADRIANO OLINTO MEIRELLES1

RESUMO

A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disforme, formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças únicas e ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um espaço territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma demo-cracia de direito. O presente artigo tem por objetivo ressaltar a importância do multiculturalismo na defesa e reconhecimento da diversidade cultural e o papel do direito, inclusive mediante o incentivo na criação de direitos cultu-rais. Num primeiro momento, busca-se fornecer noções sobre multicultura-lismo, para em seguida, ressaltar a importância do reconhecimento da diver-sidade cultural enquanto objetivo das teorias multiculturais. Numa terceira etapa, trata-se de demonstrar a importância do reconhecimento da diferença para a concretização de Estados democráticos e, por fim, a importância do Direito como instrumento para efetivar o reconhecimento cultural nas so-ciedades democráticas contemporâneas. Ressalta-se que não será analisada nenhuma abordagem multicultural específica, mas serão levantadas apenas questões gerais importantes para incentivar o debate multicultural e o direito.

Palavra-chaves: Multiculturalismo; direito; reconhecimento.

1 Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas. Especialista em Filosofia Política pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e em Ensino pela Universidade Católica de Brasília. Bacharelado em DIREITO pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Licenciatura em FILOSOFIA pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor Assistente e Pesquisador do Centro Universitário UNA. Professor Assistente e Pesquisador do Centro Universitário Unibh. Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”.

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ABSTRACT

The XXI century society presents itself paradoxical, complex and formless, formed by numerous identity groups that have unique differences and similarities while consistent, all within a delimited territorial space as states; those established under a law of democracy . This article aims to highlight the importance of mul-ticulturalism in the defense and recognition of cultural diversity and the role of law, including by encouraging the creation of cultural rights. At first, we seek to provide notions of multiculturalism, to then highlight the importance of recog-nizing cultural diversity as a goal of multicultural theories. In a third step, it is to demonstrate the importance of recognizing the difference to the achievement of democratic states and, finally, the importance of law as an instrument to effect cul-tural recognition in contemporary democratic societies. It is noteworthy that not be considered any specific multicultural approach, but will be raised only general issues important to encourage the multicultural debate and the right.

Keywords: Multiculturalism; right; recognition.

1. INTRODUÇÃO

A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disfor-me, formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças úni-cas e ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um espaço territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma democracia de direito.

A práxis cidadã do Estado (pós) moderno influencia o todo do Estado democrático através da forma como ele se expressa nas escolhas individuais e coletivas. A cidadania já não se vislumbra como sendo apenas condição de uma comunidade que tenha a mesma origem, no sentido de nacionalidade ou o pertencer a uma determinada comunidade no sentido Aristotélico2 do

2 Para Aristóteles o meio mais adequado de definir o cidadão para os regimes democráticos é defini-lo como aquele que pertence a um Estado, considerando membro àquele que participa da vida política e pode ser eleito, “... logo que um homem seja considerado apto para participar nas magistraturas deliberativas ou judiciais pode ser considerado um cidadão daquele Estado e sempre que haja um número de tais pessoas, suficientemente grande para assegurar a auto suficiência política, temos um Estado”. Considera-se, ainda como forma de adquirir a cidadania o nascer sob o solo de determinado Estado, com genitores daquele mesmo lócus, trazendo assim o fator san-guíneo, sem excluir outras formas aquisitivas derivadas de cidadania. (ver: ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.)

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termo, mas sim como sendo uma forma de exercício, dentro da sociedade democrática, de direitos e deveres na construção de um ambiente que já ultra-passa os limites do Estado tomando como globalizado.

A essa maneira como se juntam a nova sistemática podemos denominar sociedade ou quem sabe arriscar e chamá-lo de Estado multicultural, basean-do na diversidade das demandas e na multiplicidade cultural dentro de um espaço que se estende além da concepção territorial do Estado Moderno, mas que ainda cabe uma análise interna como forma de melhor organizarmos as idéias referentes aos problemas de realização da cidadania dentro desse am-biente diferenciado.

2. MULTICULTURALISMO E PLURALIDADE CULTURAL

2.1. Compreensão do termo multiculturalismo

Stuart Hall (2003) faz uma distinção entre os termos multiculturalismo e multicultural. Este último conceito, essencialmente qualificativo, compreende no contexto da sociedade a existência de diversas comunidades culturais que apresentam características e problemas de governabilidade, as quais pressu-põem uma convivência e uma tentativa de construção de uma vida em comum. O multiculturalismo, por sua vez, é um substantivo, englobando um conjunto de estratégias e políticas elaboradas e aplicadas em sociedades multiculturais, que procuram regular e administrar os problemas que estão afetos às questões vinculadas, à diversidade e multiplicidade. O termo Multiculturalismo é em-pregado no singular e se traduz numa filosofia ou doutrina que fundamenta as estratégias multiculturais. Por outro lado, a definição do vocábulo “multicul-tural”, aplica-se ao que é plural, a exemplo do que ocorre com os diversos tipos de sociedade multicultural. As sociedades que são culturalmente heterogêne-as, por definição são multiculturais. Os Estados Unidos da América e a França são exemplos de sociedade multiculturais, às quais se distinguem do Estado-nação moderno, que é tipicamente constitucional e liberal, que no contexto Ocidental apresentam como pressuposto básico a homogeneidade cultural, que estrutura-se a partir de valores universais, individualistas e seculares.

O multiculturalismo não é fenômeno recente. Dentro da sociedade e do Estado, vem ocorrendo de forma lenta e gradual, com aceleramento cres-cente nas ultimas décadas. Hall (2003) aponta alguns fatores ou mudanças

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históricas decisivas que fizeram diferença para a formação da sociedade em que hoje vivemos: primeiro, o fim do velho sistema imperial europeu, sendo a questão multicultural uma questão pós-colonial; segundo, o fim da Guerra Fria, o fim do comunismo e a tentativa de instalação de uma nova ordem mundial; terceira a globalização, aqui destacada a globalização contemporâ-nea com a compreensão do espaço/tempo, com tendência cultural homoge-neizante e que traz consigo um sistema de conformação da diferença, como forma de resistência implicando numa concepção de poder mais discursivo do que normalmente vinha sendo encontrado até então.

A noção de multiculturalismo é hoje cada vez mais utilizada, não so-mente nos meios acadêmicos e políticos, como no cotidiano, por uma gama variada de pessoas, estando seu significado associado a diversos sentido, o que faz com que essa proliferação do termo não contribua para estabilizar ou esclarecer seu significado.

O termo multiculturalismo pode ter diversas leituras associadas a contextos específicos e diferenciadas dos Estados, o que vem acarretando a criação de diferentes interpretações explicativas do termo. Do mesmo modo como ocorre com as abordagens teóricas da política, da moral, das institui-ções democráticas, das normas jurídicas, dentre outras, ou seja, em termos conceptuais, importa notar que o multiculturalismo é um termo polissêmico e existem, pelo menos, dois sentidos diferentes em que este pode ser utiliza-do. Uma teoria do multiculturalismo pode tanto privilegiar uma perspectiva descritiva como também prescritiva3. No primeiro caso, uma teoria

multicul-tural descritiva reporta a um fato da vida humana e social, que é a diversidade cultural étnica, religiosa, ou seja, um certo cosmopolitismo que atualmente é fácil de ver em qualquer grande cidade da Europa e da América do Norte, ao passo que no segundo caso, o objetivo da teoria multicultural é prescrever, determinar formas concretas ou mais razoáveis, legítimas, associadas às cha-madas políticas de reconhecimento da identidade e/ou da diferença que os poderes públicos prosseguem, ou deveriam prosseguir em nome dos grupos

3 Jean-Claude Forquin (1993; 2000), afirma que o termo multiculturalismo apresenta dois senti-dos: um sentido descritivo e um normativo ou prescritivo. Para ele, o multiculturalismo, no sentido descritivo, designa a situação objetiva de um país onde existem grupos de origem étnica ou geográ-fica diversa, falando línguas diversas, que não compartilham nem os mesmos modos de vida nem os mesmos valores. O sentido descritivo reflete a realidade multicultural, multiracial, multi-étnica, multireligiosa de uma determinada sociedade. Quanto ao segundo sentido do multiculturalismo de caráter normativo, ou prescritivo, diz respeito às propostas, às políticas utilizadas relacionadas a se trabalhar a realidade multicultural.

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minoritários e/ou “subalternos”, ficando claro que as abordagens teóricas podem conjugar as duas perspectivas. Nas seções que seguem neste capítulo, privilegia-se a abordagem teórico-prescritiva do multiculturalismo, mas antes de adentrar neste viés, é necessário descrever o multiculturalismo como um fato social para melhor compreender os motivos que irão justificar a necessi-dade do enfoque teórico.

O multiculturalismo, entendido como a situação de convivência de gru-pos diferenciados culturalmente sob um mesmo território, não é um fato novo, mas vem ganhando expressão diante dos processos de deslocamentos huma-nos, principalmente nestes tempos globais, o que se pode denotar numa serie de acontecimentos que ocorrem nas sociedades contemporâneas como refle-xo desta situação multicultural, tais como a existência de uma pluralidade de culturas criadas pelos movimentos migratórios que modificam os quadros de-mográficos culturais dos países, como exemplo, dos Estados Unidos, Canadá; os movimentos de grupos nacionalistas que reivindicam maior autonomia ou até mesmo secessão frente a seus Estados como os kurdos, Chechenos4; a

existência de novos movimentos racismos de cunho sociocultural; o cresci-mento do movicresci-mento fundamentalistas que não aceitam diversidade cultural; a atuação dos novos movimentos sociais em busca de acesso a cultura, política e ao direito tais como os movimentos feministas, dos homossexuais etc. Em menor ou maior grau, a questão do multiculturalismo está presente em todos os países caracterizados por instituições democráticas, por uma população heterogênea e por uma economia pós-industrial em vias de globalização.

Os grupos (baseados na multiplicidade cultural) que formam o conjunto social apresentam necessidades diversas, que diante de um Estado enfraqueci-do (seja por sua crise econômica, moral, política...) e insuficiente na respostas

4 A divisão territorial ou a secessão podem resolver conflitos étnicos, entre povos que não queiram mais viver juntas, por meio da repartição do espaço nacional. Nem sempre essa divisão territorial e/ou secessão, com a criação de novos Estados, é uma política de coersão, já que ela pode se basear no direito à autodeterminação dos povos. É comum, no entanto, que uma divisão territorial ou uma secessão, ao invés de acalmar a região, acabe por criar conflitos ou originar migrações de populações, especialmente quando os recursos naturais se tornam escassos em um dos territórios formados.

É exemplo dessa ação a formação do Bangladesh, que era parte do Paquistão, por imposição britâ-nica durante o domínio colonial da Ásia Meridional, e a URSS, que era formada desde o começo do século XX por 15 repúblicas, sob hegemonia da Rússia, que se esfacelou a partir de 1990. São também citados como exemplos modernos de possibilidade de secessão: o Québec, no Canadá, onde predo-mina a população de origem francesa; os bascos do norte da Espanha; os corsos, na ilha da Córsega, possessão francesa; os escoceses e galeses da Grã-Bretanha; e o Tibete, na China, dentre outros.

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por demandas mínimas que garantam a dignidade, o que se tem encontrado em maior quantidade é a exclusão social, a marginalização, o abandono, a discriminação, vê-se o cidadão cada dia mais distante do Estado e vice-versa. Em contraposição ao ambiente crítico buscam-se possibilidades não utópicas de um Estado Democrático que privilegie a participação diversificada e igua-litária no dia a dia da comunidade, e que garantam o acesso à realização dos direitos humanos e fundamentais, e todas as demais nuanças que envolvem a cidadania ativa e completa.

É diante do fato do multiculturalismo e de suas conseqüências no interior dos Estados nacionais que se realça a importância das soluções, em termos normativos, para suas questões, justificando assim, a realização de uma gama de medidas políticas e estudos acadêmicos frente à proliferação de reivindica-ções de caráter étnico-cultural resultantes deste convívio sócio-cultural.

Nesse sentido é que o multiculturalismo pode ser compreendido sob um enfoque teórico de caráter normativo que tem por objetivo prescrever manei-ras de solucionar os problemas provenientes da convivência entre as pessoas e os diferentes grupos culturais existentes nas sociedades plurais que buscam, na coexistência conjunta, manter suas pautas culturais e sociais. Entretanto, apesar das diferentes propostas teóricas multiculturais existentes, enfati-zam-se apenas as propostas que apresentam como resposta ao gerenciamento das demandas culturais, caminhos contrários as práticas assimilacionistas,5

segregadoras e até mesmo genocidas postas em práticas pelos Estados nacio-nais (SILVA, 2006).

A respeito do sentido do termo multiculturalismo, afirma Touraine (1997) que muitas vezes este é entendido como um nacionalismo agressivo, mas, para o autor, não há nada mais distante do multiculturalismo que a frag-mentação do mundo em espaços culturais que idealizam a homogeneidade e a pureza e onde um poder comunitário toma o lugar da unidade de uma cultura. Segundo Touraine (1997), cultura e comunidade não devem ser con-fundidas porque as sociedades modernas, constantemente abertas a mudan-ças, não possuem uma unidade cultural total e também porque as culturas são constantemente renovadas a partir de novos acontecimentos e de novas

5 Entendendo como processo de absorção de uma cultura por outra, recebendo metaforica-mente a designação de cadinho de raças. Já o conceito de mosaico étnico (integração de diferentes peças da sociedade reunidas em um arranjo) é utilizado para designar formas menos arbitrarias de integração. CASHMORE, Ellis. Verbet: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, tradução de Dinah Klevej. São Paulo: Summuns, 2000, p. 271-273.

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experiências. Assim, “o multiculturalismo não é nem uma fragmentação sem limites do espaço cultural, nem um melting pot6 cultural mundial: procura combinar a diversidade das experiências culturais com a produção e a difusão de massa dos bens culturais” (TOURAINE, 1997, p. 224-225).

Em sua concepção original, a expressão multiculturalismo designa “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 26). Considerando as dificuldades de precisão do termo, no entanto, pode-se afirmar que multiculturalismo se tornou rapidamente um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. O termo mul-ticulturalismo, porém, pode continuar a ser associado a projetos e conteúdos emancipatórios e contra-hegemônicos, baseados em lutas pelo reconheci-mento da diferença (SANTOS; NUNES, 2003). Assim,

A ideia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de

6 O caldeirão é uma metáfora para uma heterogênea sociedade cada vez mais homogênea, os diferentes elementos “derretendo juntos” em um todo harmonioso, com uma cultura comum. É particularmente utilizado para descrever a assimilação de imigrantes para os Estados Unidos; a metáfora de ponto de fusão juntos foi em uso por década de 1780.

No século XVIII e XIX, a metáfora de um “cadinho “ou” melting pot (s)” foi usado para descrever a fusão de diferentes nacionalidades, etnias e culturas. Foi utilizado em conjunto com os conceitos dos Estados Unidos como uma república ideal e uma “cidade sobre uma colina” ou nova terra prometida. Era uma metáfora para o processo idealizado de imigração e colonização pela qual diferentes nacionalidades, culturas e “raças” (um termo que pode englobar nacionalidade, etnia e raça) foram a mistura em uma comunidade nova e virtuosa, e era ligado a utópica visões do surgi-mento de um “novo homem americano”. Enquanto o “derretisurgi-mento” era de uso comum o termo exato “melting pot” entrou em uso geral em 1908, após a estréia da peça The Melting Pot por Israel Zangwill. Judeu inglês cuja história tem sido esquecido, mas cujo tema central não tem. Sua pro-dução foi intitulada “The Melting Pot” e sua mensagem ainda detém um poder tremendo no imagi-nário nacional - a promessa de que todos os imigrantes podem ser transformados em americanos, uma nova liga forjado em um cadinho de democracia, liberdade e responsabilidade cívica. Em 1908, quando a peça estreou em Washington, nos Estados Unidos estava no meio de absorver o maior fluxo de imigrantes na sua história - irlandeses e alemães, seguidos pelos italianos e euro-peus do Leste, católicos e judeus -cerca de 18 milhões de novos cidadãos entre 1890 e 1920. Hoje, os Estados Unidos está passando por sua segunda grande vaga de imigração, um movimen-to de pessoas que tem profundas implicações para uma sociedade que por tradição é uma ho-menagem às suas raízes de imigrantes, ao mesmo tempo em que confronta de forma complexo e profundamente enraizado divisões étnicas e raciais. Os imigrantes de hoje não vêm da Europa, mas predominantemente a partir do mundo ainda em desenvolvimento da Ásia e América Latina. Esta mudança, de acordo com os historiadores sociais, demógrafos e outros estudiosos, vão testar severamente a premissa do melting pot fabuloso, a idéia, tão central para a identidade nacional, que este país pode transformar as pessoas de todas as cores e fundo em “uma América.” By William Booth. Washington Post Staff Writer. Sunday, February 22, 1998; Page A1.

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historias distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipató-rias do multiculturalismo, alimentando os debates e iniciativas sobre novas definições de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania. (SANTOS; NUNES, 2003, p. 33).

Como lembra Touraine (2004) o reconhecimento do multiculturalismo ou, mais simplesmente, das minorias e da diversidade cultural só pode ser intelectualmente fundado se houver o reconhecimento de que o principio de igualdade não é separável do principio de diferenciação, para tanto, devemos reconhecer que vivemos numa sociedade multifacetada, que abriga inúmeras culturas, costumes, formas de vida, e, reconhecê-las com igual peso no mo-mento da tomada de decisões, bem como atribuir igual força a todos pode ser o primeiro caminho para superar esse déficit, mas o que percebemos é a to-mada de um caminho exatamente inverso, qual seja, a tentativa de massificar a pluralidade, ignorando a diferença.

2.2. Multiculturalismo e reconhecimento

2.2.1. Do reconhecimento social na contemporaneidade: diversidade cultural e democracia

O multiculturalismo, como ressalta Costa e Werle, visa ao reconheci-mento institucional mediante direitos dos diferentes valores e aspectos cultu-rais presentes numa sociedade, ou seja,

O multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhe-cimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconheci-mento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o ‘reconhecimento das necessidades particulares’ dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos. Trata de afirmar, como direito básico e universal que os cidadãos tem necessidade de um contexto cul-tural seguro para dar significado e orientação a seus modos de conduzir a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vincula-ções normativas, representa um importante campo de reconhecimento para os indivíduos e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças

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culturais apresenta-se como ampliação do leque de oportunidades de reconhecimento. (COSTA and WERLE, 2000, p.82)

O pensamento moderno não buscou a negociação de espaços com o diferente, tornou-se mais fácil ignorá-la, e isso ocorreu não somente nas re-lações privadas, a venda nos olhos foi mais eficaz na relação horizontal entre sujeito e Estado e isso pode ser facilmente visto na exemplificação da positi-vação das normas, que com o projeto de igualdade perante a lei, ignorou a diferença, e foi lançada na sociedade como se pudesse alcançar a justiça e a regulação das relações como se todos estivessem em uma situação idêntica o que, ao fim e ao cabo, impede o exercício dos direitos/deveres não passando da formalidade estrita.

Uma teoria de direitos corretamente entendida exige uma política de re-conhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos de vida nos quais sua identidade se forma. Isto não exige um modelo alter-nativo que corrija o projeto individualista do sistema de direitos através de outras perspectivas normativas. Tudo o que é exigido é a atualização consistente do sistema de direitos (HABERMAS, 1994, p. 113)

A ideia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valo-rização das necessidades particulares dos indivíduos, enquanto membros de grupos culturais específicos (GUTMANN, 1993), ou seja, de seus valores e diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado somente ocorre em virtude de serem tais indivíduos parte de uma sociedade maior, da qual necessitam serem tratados como iguais para poderem participar de maneira integral e paritária da vida social. Nesse sentido, é estabelecido uma ideia de reconhecimento que percebe o individuo enquanto membro de uma comunidade nacional e enquanto membro de um grupo cultural especifico.

É justamente para realização destes preceitos que o termo reconheci-mento deve ser vinculado à noção de respeito à diferença indo além da mera Tolerância. Isto porque a tolerância reflete a aceitação da mais vasta gama de opiniões e diferenças culturais, enquanto não ameacem e causem danos às pessoas de forma direta. Já o respeito é muito mais seletivo, embora as pesso-as não tenham que estar de acordo com uma posição para respeitar, deve-se compreender que suas opiniões e diferenças refletem um ponto de vista moral defensável, que as pessoas podem ou não compartilhar, mas devem por isso

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respeitar, desde que sejam desacordos morais respeitáveis, não incluindo o ódio racial e étnico.

Uma sociedade multicultural vinculada à inclusão de uma vasta gama de respeitáveis desacordos morais oferece a oportunidade aos indivíduos de defender suas opiniões perante as demais pessoas com seriedade moral, mesmo frente àquelas que estão em desacordo e assim ter a oportunida-de oportunida-de apreenoportunida-der com as diferenças. (GUTMANN, 1993, p.40).

Assim, a questão do reconhecimento está ligada (além da questão da identidade7) a igualdade e a liberdade, e essa igualdade passa pela

diversi-dade, pelo respeito recíproco da diversidiversi-dade, que por si só garante a liberda-de liberda-de ação. Esse é pressuposto liberda-de um ambiente liberda-democrático. Como leciona Habermas:

A lei é formal, individualista, coercitiva, positiva e aprovada processual-mente, mas uma ordem legal somente será legítima quando salvaguardar a autonomia dos cidadãos a um nível igual, onde os cidadãos somente serão autônomos quando os dirigentes da lei também se vislumbrarem como seus autores, por consequência, seus autores são livres apenas en-quanto participantes em processos legislativos que são regulados de tal maneira e tomam lugar em formas de comunicação tais que todas as pessoas presumirem que os regulamentos aprovados dessa maneira me-recem uma aprovação motivada geral e racionalmente, como também o próprio processo democrático tem de ser legalmente institucionali-zado, o princípio da soberania popular exige os direitos fundamentais antes de tudo, o direito à liberdade de escolha e de ação individual iguais (HABERMAS, 1994, p. 121-122).

O multiculturalismo prima pela “exigência de reconhecimento da diver-sidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência de várias etnias e/ou raças que edificaram e constituem o espaço público de uma sociedade multirracial.” (SILVERIO, 1999, p.47).

No entanto, o tipo de diversidades culturais reconhecidas e defendidas pelas teorias multiculturais são de diferentes formas, o que inclusive acarreta

7 A questão acerca da identidade e reconhecimento será desenvolvida no próximo capítulo deste trabalho.

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o estabelecimento de diferentes concepções de multiculturalismo8. Dessa

ma-neira, estas teorias podem tanto abarcar reivindicações das minorias nacio-nais e grupos étnicos, ou ainda, um segundo tipo de reivindicações de grupos sociais desfavorecidos, que não possuem uma base étnica, política e nacional, sendo provenientes de movimentos sociais (SEMPRINI, 1999), tais como os homossexuais e mulheres9.

As minorias, caracterizadas por uma propriedade particular (raça, cor da pele, orientação sexual etc.) transformam sua fraqueza em força pela atuação de seus movimentos sociais (negros, mulheres, gays). Questões tradicionalmente consideradas da esfera privada – economia domésti-ca, relação homem-mulher – ingressam na esfera públidomésti-ca, tornando-se questões púbicas. A relevância moral leva à fonte positiva de identifi-cação e, daí, à representação pública, nos casos de eleição de mulheres, negros ou gays para o parlamento (VIEIRA, 2001, p. 235).

Enquanto elemento central para a temática do multiculturalismo e à jus-tificação da necessidade de reconhecimento, a cultura apresenta um impor-tante papel na vida dos grupos e indivíduos presentes nas sociedades, pois, ela é entendida como significados interpretativos de um contexto, ou seja, como teias de significado que o homem tece em seu meio, não sendo vista como “uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpre-tativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p. 4).

De um modo geral,

a cultura é entendida como uma maneira de um grupo social compre-ender a vida. Cultura é tudo aquilo que um determinado grupo social “cultua”, isto é, inclui seus valores e suas tradições. Cada grupo social detém uma determinada cultura, com diferentes características; entre-tanto, essa questão também diz respeito à cultura dominante dentro de um grupo. (MACHADO, 2002, p. 25)

8 Para Adela Cortina, os autênticos problemas multiculturais são estabelecidos quando há o enfrentamento entre distintas cosmovisões, formas de conceber o sentido da vida e da morte, diversas formas de organização moral e social. CORTINA, Adela. Ciudadano del mundo, p. 190. 9 Embora haja significantes diferenças entre os tipos de reivindicações realizadas pelas duas categorias de diversidade cultural, ambas possuem em comum a luta pelo acesso à política de reconhecimentos de defesa das diferenças que as constituem.

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A cultura deve ser concebida desvinculada do mito da cultura pura, “au-têntica” (grifo nosso),

que crea sus propios valores, incomunicables para quienes pertenecen a otro grupo, de forma que a quienes tratan de sali de su grupo social y vivi en otro, no les queda más remedio que abandonar su visión del mundo y abrazar la del grupo de destino. Al contrario: no hay cultura sino como diversidad ( DE LUCAS, 1999, p. 65).

Assim sendo, o enfoque dado pelo multiculturalismo não deve se associar somente a uma cultura dominante e culta, no sentido estrito do termo, como entende uma acepção douta da palavra, mediante a qual proporciona a identi-dade social e estabelece o ordenamento político, jurídico. Como também não, no significado antropológico do conceito, de acordo com o qual todo o ser hu-mano, enquanto animal falante e simbólico vive num ambiente determinado de uma cultura. Enfim, o enfoque multiculturalista valoriza outros vários tipos de culturas, ou pelo menos, os aspectos positivos existentes nas diversas culturas existentes dentro de uma sociedade. (SARTORI, 2001, p. 69).

Evidentemente, que não é suficiente permanecer numa linha de exclu-são do que não pode ser considerado cultura do ponto de vista multicultural. Também, não há mais o que considerar nessa perspectiva, uma vez que o próprio prefixo “multi”, do multiculturalismo refere-se a uma multiplicidade de culturas do ponto de vista qualitativo, bem como a afirmação de que estas culturas são diversas e de modalidades diferentes. No âmbito do multiculturalismo, a cultu-ra pode ser compreendida como uma identidade lingüística, religiosa, étnica, sexual, etc. Há, assim, num âmbito do multiculturalismo, uma heterogeneidade de concepções, sendo que, também, deve-se distinguir, por exemplo, entre di-versidade cultural e didi-versidade étnica. (SARTORI, 2001, p. 70)

A questão da diversidade cultural enquanto elemento principal de cons-tituição do multiculturalismo acaba por se vincular ao debate sobre a trans-formação da democracia (ROSALES, 2001), constituindo-se num desafio à própria democracia, já que “como valor universal a ser defendido e garantido” (PINTO, 1999, p. 56), deve dar respostas ao reconhecimento das diferenças culturais.

O que se pretende alcançar com o desenvolvimento da prática demo-crática é a inclusão da diferença que, mediante o viés multicultural, passa a ser vista de forma positiva, contrariamente à defesa da diferença realizada

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pelos grupos fundamentalistas, que buscam o fechamento de seus grupos em si mesmo, utilizando para isto de atos violentos. Desta forma devem somente ser asseguradas pelo Direito as diferenças culturais que auxiliem no estabele-cimento da igualdade em face das desigualdades.

É justamente o “reconhecimento da condição de diferença que permite uma profícua reflexão sobre a democracia, através da busca de modelos capazes de manter o princípio de igualdade entre todos e, ao mesmo tempo, de acolher as diferenças e necessidades especificas de cada um” (PINTO, 1999, p. 58).

Assim, enfatiza-se que é a partir deste questionamento da democracia pelo multiculturalismo que desponta a “exigência de reconhecimento da di-versidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência das várias etnias e/ou raças que edificam e constituem o espaço público de uma socieda-de” (SILVÉRIO, 1999, p. 47). Ou seja, a necessidade de reconhecimento da di-versidade cultural pelas instituições públicas das sociedades contemporâneas. No tocante ao reconhecimento da diversidade nas sociedades atuais, Gutmann (1993) argumenta que é

difícil encontrar una sociedad democrática o democratizadora que no sea la sede de alguna controvérsia importante sobre si las instituciones públicas debieran reconocer – y cómo – la identidad de las minorias cul-turales y en desventaja. ¿ que significa para los ciudadanos con diferente identidad cultural, a menudo basada en la tenicidad, la raza, el sexo o la religión, reconocernos como iguales en la forma en que se nos trata en política? e (...) Reconocer y tratar como iguales a los miembros de ciertos grupos es algo que hoy parece requerir unas instituciones públicas que reconozcan, y no que pasen por alto, las particularidades culturales, al menos por lo que se refiere a aquellos cuja comprensión de si mismos depende de la vitalidad de su cultura. Este requisito de reconocimiento político de la particularidad cultural – que se extiende a todos – es com-patible con una forma de universalismo que considera entre sus intere-ses básicos la cultura y el contexto cultural que valoran los indivíduos (GUTMANN, 1993, p. 13 e 16)

A necessidade de políticas de reconhecimento não pode ser relega-da apenas à esfera relega-da cultura, mas coadunarelega-da na esfera política, havendo assim, possibilidades diversas de tratamento político dessas demandas por diversidade cultural, alem de possibilitar a abertura para a crítica às

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instituições políticas e mecanismos econômicos que reproduzem desvan-tagens (COSTA, 2001).

Neste sentido, o multiculturalismo sugere que o momento da ‘diferença’ é essencial à definição de democracia como um espaço genuinamente hetero-gêneo. Para tanto,

Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um horizonte mais amplo. É essencial que esse es-paço permaneça heterogêneo e pluralístico e que os elementos de ne-gociação dentro do mesmo retenham sua différance. Eles devem resistir ao ímpeto de serem integrados por um processo de equivalência formal, como dita a concepção liberal de cidadania, o que significa recuperar a estratégia assimilacionista do iluminismo através de um longo desvio (HALL, 2003, p. 87).

Diante disso, podemos concluir que o multiculturalismo é um conceito que compreende a diversidade de grupos sociais, respeitando suas diferenças e particularidades. Que existe, por assim dizer, uma distinção sócio-cultural entre os grupos, que lutam pelo reconhecimento social e que se afirmam atra-vés de uma oposição ao modelo de organização social universalista e igualitá-rio da cidadania no Estado democrático de direito. A pluralidade de valores e a diversidade cultural são manifestações próprias do multiculturalismo, que revela a necessidade e a expressão da luta pelo reconhecimento no contexto institucional da sociedade. Os indivíduos assumem a condição de membros integrantes dos grupos culturais determinados. Os sujeitos individuais per-tencentes aos Novos Sujeitos Coletivos10 participam do processo de afirmação

e luta pelo reconhecimento de seus direitos básicos e das suas necessidades particulares. Em principio, os cidadãos devem integrar um contexto cultural estável, que proporciona as significações e a orientação necessária para con-duzirem seus modos de encaminhar a vida.

10 Os Novos Sujeitos Coletivos constituem-se em uma categoria que inclui os grupos sociais ou voluntários que possuem interesses em comum.

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3. CONCLUSÃO: O DIREITO E O RECONHECIMENTO

É interessante ressaltar que as lutas pelo reconhecimento em países de-mocráticos trazem em seu bojo a questão da acomodação dos diversos inte-resses e grupos dentro dos Estados constitucionais, principalmente mediante concretização de direitos. Como explicita Rosales (2001, p. 89) “o que está em jogo no debate multicultural não é somente a tolerância e o respeito da diferença cultural, mas sim sua defesa como direito.”

Assim sendo, “as demandas por reconhecimento da diferença terminam por se converter em uma poderosa exigência de reconhecimento da diferença cultural como direito de grupo” (ROSALES, 2001, p. 81) é neste sentido que “a experiência do multiculturalismo pode assim, caracterizar-se como resul-tado de um reequilíbrio constante entre as demandas de reconhecimento que estabelecem as minorias e a capacidade integradora do sistema político, e em última instância, do sistema constitucional” (ROSALES, 2001, p. 83).

O que se percebe é que as demandas multiculturais vêm proporcionar uma crescente ampliação nos direitos constitucionais na maioria dos países ocidentais.11 Entretanto, não bastam somente as lutas pelo reconhecimento

serem traduzidas em termos normativos constitucionais, mas também em termos de ações políticas no campo institucional mediante a realização de políticas públicas que buscam afirmar e administrar as diferenças culturais, e identitárias utilizando estratégias que contemplem componentes lingüísticos, sociais, econômicos, educativos, entre outros.12

Fica claro que a democracia contemporânea, diante do já mencionado

11 Podemos verificar tal situação, no caso brasileiro, com a inserção na Constituição de 1988 dos direitos dos indígenas e dos negros.

12 No Brasil, estas políticas públicas começam a ser visualizadas por exemplo, nas administra-ções de poderes executivos, que buscam conciliar democracia e diversidade cultural, mediante insti-tucionalização de políticas de cotas para acesso a universidades, tal como ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, após a criação de uma lei estadual do ano de 2001; a instalação de mecanismos de maior participação popular e de redistribuição de riquezas como a instalação do orçamento participativo na gestão do ex-prefeito Olívio Dutra em Porto Alegre (1989-1992), ou ainda como no exemplo da Prefeitura de São Paulo, que no ano de 1992 realizou duas exposições que pretenderam desmistificar a questão indígena e a homogeneidade cultural presente no discurso da nação: Índio no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo cultura e Pátria Amada Esquartejada, sob o comando da Prefeita Luiza Erundina e da Secretária da Cultura Municipal Marilena Chauí.Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de

redistri-buição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: < http//www.

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fato do multiculturalismo, tem utilizado o Direito como meio de integração social, de pacificação de conflitos, de efetivação das muitas reivindicações por demandas ético-culturais, de respeito às diferenças, do reconhecimen-to das identidades etc., ocorrendo assim um deslocamenreconhecimen-to do eixo político para o jurídico.

Nesse sentido, a centralidade do Direito quando relacionada às pautas multiculturais é vista não somente com um mecanismo de regulação social, mas também de simetrização das relações interpessoais, apontando para seu potencial transformador do contexto social. Como explica Semprini (1999, p. 164 e 165) “os multiculturalistas não ignoram a real dimensão da independên-cia entre jurídico e político e à efetiva equidade da justiça”, denotando, porém, que o direito cumpre um papel ativo, pois ele viabiliza a coalização entre as esferas privada e pública, melhor dizendo, o Direito é chamado a formalizar e a regulamentar a incapacidade da esfera privada de acomodar-se à mudança sociocultural.

Entretanto, é de destacar que as políticas de reconhecimento, sendo em termos normativos constitucionais ou em termos de políticas públicas apre-sentam certos dilemas. As demandas particulares que transformam direitos em diferenças culturais, muitas vezes podem sobrecarregar o Estado com uma pressão social cuja legitimidade ele não tenha os instrumentos políticos para aferir (SEMPRINI, 1999). Para Rosales (2001), existem condições materiais que limitam a modulação dos princípios que regulam no constitucionalismo liberal o reconhecimento dos direitos, tais como, a falta de recursos para exer-cício dos direitos, tanto materiais quanto cognitivo; a má distribuição dos di-reitos no mundo real, além do problema de sua sustentação, já que requerem custos monetários para práticas políticas.

Outra questão é o fato de que a integração via normativa pode acabar por minimizar a diferença, transformando-a num pressuposto abstrato que não valora a diferença por ela mesma, o que faz com que a diferença seja to-lerada neste sistema democrático liberal e não valorizada mediante a concre-tização de direitos, ou ainda receba uma valorização num sentido superficial e comercial ou de caráter folclórico e pitoresco. O diferente passa a ser visto como aquele que não tem direito, fazendo com que a cultura seja dissolvida em propostas abstratas e identificações universalizantes, o que faz perder a di-mensão da diferença. Assim, não basta resolver os problemas somente na base da igualdade de direito, faltando solução no plano de valoração das diferenças culturais (MONTEIRO, 1996).

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Por fim, como lembra Celi (1999), é necessária para uma real inclusão uma mudança de poder para que de fato haja maior possibilidade de inclusão social das minorias desfavorecidas.

Apesar destes dilemas, não se pode olvidar a necessidade de conceber políticas de reconhecimento dentro de uma teoria crítica do reconhecimento, que albergue a um só tempo reconhecimento e redistribuição, ou seja, uma te-oria que identifique e defenda políticas culturais da diferença que possam ser combinadas com a política social de igualdade (FRASER, 2001). Isto porque “no mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricadas e virtu-almente toda luta contra a injustiça, quando corretamente entendida, implica demandas por redistribuição e reconhecimento” (FRASER, 2001, p. 248).

Ademais as lutas pelas identidades estão presentes em contextos de crescentes desigualdades sociais, sendo que nas sociedades contemporâne-as se encontram presentes tanto injustiçcontemporâne-as sócio-econômiccontemporâne-as como injustiçcontemporâne-as culturais, estando ambas enraizadas em processos e práticas que prejudicam alguns grupos, devendo por isto serem remediadas (FRASER, 2001).

Para fazer frente a esta situação, Nancy Fraser coloca como necessária uma noção de justiça social, que por um lado não se restrinja ao eixo da classe, pois “a contestação abarca agora outros eixos de subordinação, incluindo a di-ferença sexual, a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade” (FRASER, 2002, p. 9) e por outro, “não se cinge só a questões de distribuição, abrangendo agora também questões de representação, identidade e diferença” (FRASER, 2002, p.9). Ou seja, a nova noção de justiça social deve abarcar as preocupações da teoria da justiça distributiva e teoria cultural da justiça, que são difíceis de se relacionar.

Como princípio coadunador entre redistribuição e reconhecimento, a ci-tada autora propõe o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da sociedade interagir entre si como pares. Para isso é necessário tanto uma distribuição de recursos materiais que garantam a independência e voz dos participantes como também padrões institucionalizados de valor cultural que exprimam igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração social (FRASER, 2002). Assim, tem-se uma visão de reconhecimento que promove a interação social respeitosa entre as diferenças e não estimula os enclaves de grupo e a limpeza étnica (FRASER, 2004).

Nessa perspectiva, o que se deve reconhecer (FRASER 2004) é o status de membro individual de um indivíduo pertencente a um grupo específico,

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enquanto parceiro integral na interação social, sendo a política de reconheci-mento voltada à superação da subordinação por meio do estabelecireconheci-mento da parte não reconhecida como membro integral da sociedade, capaz de partici-par como igual da vida social.

Diante do que foi dito, percebe-se que a questão do multiculturalismo, contemporaneamente, constitui como um dos maiores desafios ao Estado –Nação no sentido de como gerenciar a diversidade cultural e seus confli-tos dentro de um país em busca de uma unidade social, colocando à vista a necessidade da incorporação dessas diferenças pelos sistemas democráticos atuais, inclusive em seus ordenamentos jurídico-políticos, bem como de des-mistificar uma pretensa homogeneidade cultural construída a partir do mito da nação, incentivando e respeitando assim, a heterogeneidade. É na seara deste contexto que surge a necessidade do debate do presente tema e o Direito servir de instrumento na luta multicultural.

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Recebido em: 17/09/2014 Aprovado em: 20/10/2014

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