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A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas | Julgar

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Maria Inês Costa (Juíza de direito em regime de estágio)

Resumo: com o presente artigo pretendeu-se, por um lado, uma primeira

abordagem à audição pessoal e directa do beneficiário por parte do Juiz – meio de prova obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores – e, por outro, detectar e reflectir sobre as dúvidas que esta audição, que se quer “pessoal” e “directa”, tem suscitado na prática judiciária, na sua compatibilização com a realidade problematizante do dia-a-dia dos nossos tribunais, destacando as situações de mudança de domicílio por parte do beneficiário na pendência da acção, assim como, em última análise, da eventual conformidade daquela audição – deprecada ou realizada através de meios de comunicação à distância – com os princípios ordenadores da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (razão de ser da alteração legislativa).

Palavras chave: CDPD; audição do beneficiário; imediação; autonomia;

alteração de domicílio, competência; desafios.

1 O presente texto foi elaborado no decurso do estágio de formação de Magistrados, sob a coordenação da Exma. Desembargadora Carla Inês Câmara, a quem apresentamos um especial e sentido agradecimento pelos valiosos ensinamentos no início de um “despertar” para a realidade problematizante da vida judiciária.

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I. Introdução

Numa altura em que, em virtude da evolução social e demográfica, a população tem vindo a envelhecer e a esperança média de vida a aumentar, a sociedade moderna enfrenta a complexa problemática da “desarmonia entre

gerações”2.

Neste desequilíbrio geracional surgem, com particular relevo, os cidadãos adultos especialmente vulneráveis, seja em razão da idade ou de outra situação de maior vulnerabilidade (diagnóstico psiquiátrico, deficiência, …).

É precisamente em virtude destas condições que se torna problemática a manutenção da autonomia em relação a estes adultos especialmente vulneráveis, uma vez que a certa altura das suas vidas se vêem “desapossados” das suas decisões, conduzidos a uma espécie de alienação social (sem retorno), em resultado da construção de cruéis papéis sociais que caracterizam a sociedade – nas palavras de BAUMAN3 –, “líquida” em que vivemos e que leva ao gradual e silencioso afastamento do indivíduo da vida em sociedade.

Essa tomada de consciência da necessidade de cuidado acrescido com as pessoas carecidas de maior protecção deu lugar a um movimento jurídico internacional de peso – onde se destaca a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência4 – e o Direito Civil, como não podia deixar

de ser, não foi excepção, não obstante tradicionalmente virado para a actividade do cidadão na plena posse de todas as faculdades5.

2 NEVES, Alexandra Chícharo das, O estatuto jurídico dos “Cidadãos Invisíveis”, O longo caminho

para a plena cidadania das pessoas com deficiência, Tese para obtenção do grau de Doutor em

Direito, UAL, Lisboa, setembro de 2011, disponível em https://repositorio.ual.pt. 3 BAUMAN, Zygmunt, Amor Líquido, Relógio d’água, 2003.

4 Portugal ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) no ano de 2009 (em simultâneo com o Protocolo Facultativo), pelas Resoluções da Assembleia da República n.º 56/2009 e 57/2009, ambas de 30 de julho. E ratificou-os pelas Decisões do Presidente da República n.º 71/2009 e 72/2009, ambas de 30 de julho.

5 MONTEIRO, Menezes Cordeiro e António Pinto, Da situação jurídica do maior acompanhado,

Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores, Revista de Direito Civil, n.º 3, Almedina, 2018, pág. 473.

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Seguindo as exigências dos tempos, Portugal6 implementou o novo regime

jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto – e abandonou o sistema dualista e rígido dos institutos da interdição/inabilitação que provinha do Código Civil de 19667 – introduzindo um regime monista,

flexível, norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa”, construindo assim um modelo de acompanhamento – e não já de substituição – da pessoa carecida de protecção8.

As alterações incidiram sobretudo nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil (interdição e inabilitação), sobre as regras do processo correspondente (artigos 891.º a 905.º do Código de Processo Civil – transformado em processo urgente e ao qual se aplicam as regras da jurisdição voluntária) e em disposições dispersas do Código Civil que estabelecem restrições à capacidade, mas sempre na perspectiva da menor limitação possível à capacidade do maior que necessita de acompanhamento.

Tal como também já sucedia anteriormente com a interdição e a inabilitação9 é ao tribunal que compete a decisão de aferir se há ou não lugar ao

regime do acompanhamento; mas agora manda a lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e directamente, o beneficiário, só assim ficando em condições de adoptar as “soluções à medida” das necessidades de cada caso, que deverão ser sempre orientadas à socialização do maior numa perspectiva de cidadania inclusiva.

6 Quanto à evolução económico-social e demográfica, vd. ALVAREZ M., SOUSA. T., SÁ R. E TEIXEIRA Z., A longevidade e o Envelhecimento: Escritos de Direito da Saúde – Envelhecimento, edição FAF, fevereiro de 2018 e ainda COSTA, Marta, A desejável flexibilidade da incapacidade das pessoas

maiores de idade, Lusíada, Direito, Lisboa, n.º 7 (2010).

7 COSTA, Américo de Campos, Incapacidades e formas do seu suprimento – anteprojecto do Código

Civil, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961.

8 O legislador português subscreveu assim as novas tendências mundiais e europeias, perfilhando a “doutrina da alternativa menos restritiva” situando a pessoa carecida de protecção numa posição de igualdade de direitos em relação aos demais. Neste sentido, vd. na doutrina, MOREIRA, Sónia,

A reforma do regime das incapacidades: o maior acompanhado, Temas de Direito e Bioética – Vol.

I, Novas questões do Direito da Saúde, dezembro de 2018.

9 Cf. nomeadamente, CORDEIRO, Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 409-427; VASCONCELOS, Pais de, Teoria Geral

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Uma das principais novidades do novo regime do maior acompanhado respeita, precisamente, à audição do beneficiário (artigos 139.º do Código Civil e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), onde se prevê a reintrodução da audição pessoal e directa do beneficiário, apelidada de “interrogatório” na redacção do Código de Processo Civil de 2013, com longa tradição jurídico-processual no nosso ordenamento jurídico.

Desaparece a regra introduzida pela redacção do Código de Processo Civil 2013 e que permitia o decretamento da interdição/inabilitação sem o interrogatório do requerido, na ausência de contestação, prevendo-se agora a audição do beneficiário por parte do juiz enquanto meio de prova obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (cf. n.º 2 e 3 do artigo 897.º do Código de Processo Civil).

A pessoa carecida de protecção é assim chamada ao palco da vida judiciária, sendo não só convidada a participar como também a “conversar” no processo decisório que lhe respeita.

Esta novidade corresponde, conforme se discutirá infra, à inflexão da opção que o legislador tomou por altura da reforma do Código Processo Civil em 2013, colocando, contudo, problemas ao nível da sua efectivação, aqui se destacando as situações de mudança de domicílio por parte do beneficiário na pendência da acção, bem como, em última análise, da eventual (des)conformidade com os princípios ordenadores da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de uma audição feita por deprecada ou realizada através de meios de comunicação à distância.

II. A Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o direito interno – a mudança de paradigma

A “desarmonia entre gerações” que caracteriza a sociedade contemporânea levou a que internacionalmente se tomasse consciência da necessidade de assegurar às pessoas maiores carecidas de protecção em razão da sua maior

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vulnerabilidade o pleno e igual gozo dos seus direitos e a primazia da sua autonomia tendo, neste ponto, sido adoptada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que apresenta como objecto «(…) promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de

todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente (…) em condições de igualdade com os outros» (cf. artigo 1.º).

Prevê a referida Convenção no seu artigo 12.º, n.º 2, com a epígrafe «Reconhecimento igual perante a lei», que as pessoas com deficiência têm igual capacidade jurídica que as outras em todos os aspectos da sua vida, refutando assim totalmente a ideia de incapacidade das pessoas com discapacidade.

Ainda no n.º 4 II parte do artigo 12.º refere a Convenção que «tais garantias

asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa (…), são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa (…)»10.

Consagra assim a Convenção, através do seu artigo 12.º, um novo paradigma da capacidade jurídica como direito humano, declarando que a igualdade de capacidade jurídica, em relação a qualquer pessoa, indica que deve ser a mesma a decidir por si, em consonância com a sua vontade e desejos, e não através de outros, ainda que em sua representação11.

Entre nós, no âmbito do Código Civil de 1966 a protecção de pessoa maior em situação de vulnerabilidade, em razão da idade ou de outra condição, era assegurada através da declaração de incapacidade de exercício de direitos, mais

10 FERNANDES, Diana Isabel Mota, A interdição e inabilitação no Ordenamento Jurídico Português:

Notas de enquadramento de direito material e breve reflexão face ao direito supranacional,

Interdição e Inabilitação, pág. 263, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015, disponível on line; COSTA, Marta, The effectiveness of fundamental rights in private law: restrictions on the right to

adopt in light of the Portuguese Constitution, European Review of Private Law, Vol. 16, n.º 5, 2008.

11 GOMES, Joaquim Correia, Autonomia e (In)capacidades: Passado, Presente e Futuro, Actas do seminário “Autonomia e capacitação: os desafios dos cidadãos portadores de deficiência”, FDUP, Porto, 17 de abril de 2018.

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concretamente por via da interdição ou inabilitação – cf. artigos 138.º, n.º 2, e 156.º do Código Civil12.

O regime dualista de interdição/inabilitação mostrava-se, assim, não só desadequado à satisfação das necessidades das pessoas com incapacidade, aferindo-se desconforme com as obrigações assumidas internacionalmente pelo Estado Português – que seguindo os ventos internacionais ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) no ano de 2009 (em simultâneo com o Protocolo Facultativo)13 – e ainda dissonante do

princípio da dignidade da pessoa humana consagrado na Constituição (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa)14.

Com a reforma operada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, foram revogados os precedentes institutos da interdição e da inabilitação, tendo sido estabelecido o novo regime jurídico do maior acompanhado que acolheu os princípios de âmbito internacional plasmados na CDPD.

No regime jurídico do maior acompanhado a lógica das medidas de acompanhamento passa agora por definir judicialmente os tipos de actos para cuja prática válida o maior, agora considerado capaz de gozo e de exercício, necessita da intervenção de um acompanhante, porque, por razões de saúde, de deficiência ou de comportamento, não está em condições de exercer convenientemente, por si só, os seus direitos ou deveres (artigo 138.º do Código Civil)15.

O regime do acompanhamento apresenta uma maior flexibilidade, respeitando na medida do possível e – na senda do estabelecido na CDPD – a

12 MONTEIRO, António Pinto, Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da

Lei n.º 49/2018, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua, CEJ,

Fevereiro de 2019, disponível on line.

13 Ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de maio, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de julho.

14 Cf. CANOTILHO, Gomes / Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007 vd. também para uma análise constitucional da problemática das pessoas com deficiência, ARAÚJO, António de, Cidadãos portadores de deficiência, O seu lugar na

Constituição da República, Coimbra Editora, Coimbra.

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vontade e autonomia das pessoas, limitando-as ao necessário e permitindo ao tribunal eleger e ajustar em cada caso as medidas de acompanhamento (representação, assistência, ou intervenções de outro tipo – cf. artigo 145.º do Código Civil) que melhor logrem alcançar o objectivo de assegurar o bem-estar do beneficiário e o completo exercício da capacidade de agir por parte deste 16.

III. A audição do beneficiário no Regime Jurídico do Maior Acompanhado: a inflexão da reforma de 2013

Uma das principais novidades no que respeita à instrução do processo no regime jurídico do maior acompanhado passa pela (re)introdução da audição pessoal e directa do beneficiário pelo juiz, apelidada de interrogatório no Código de Processo Civil de 2013.

Já no domínio do Código Civil de 196617esta audição vinha prevista

enquanto diligência de realização obrigatória por parte do Juiz, a quem incumbia proceder ao denominado “interrogatório” do requerido, o qual, além de viabilizar o exercício oral do contraditório, proporcionava ao Juiz um contacto directo e pessoal com aquele, avaliando assim as exactas necessidades de substituição daquela pessoa em concreto de modo a aferir qual dos institutos – interdição/inabilitação – deveria aplicar.

Com a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil e revogou o então em vigor, o interrogatório passou a ter lugar somente em situações em que fosse apresentada contestação18, pelo que,

quando tal não ocorresse e caso o Juiz não fizesse uso dos seus poderes de gestão 16 MONTEIRO, António Pinto, Das incapacidades …, ob. cit., págs. 31 e 35. Ainda na doutrina, para uma visão crítica do novo regime, vd. VASCONCELOS, Pedro Leitão Pais de, O exercício de direitos

pessoais e a celebração de negócios da vida corrente pelo acompanhado, Direitos das Pessoas com

Deficiência – 2019, Coleção Formação Contínua, CEJ, 2019, págs. 121 a 136, disponível on line. 17 Com longa tradição jurídico processual também no longínquo CPC de 1876 se encontrava consagrada a obrigatoriedade do interrogatório, no seu artigo 419.º, § 3.º- cf. VIEIRA, Fernando e PAZ, Margarida, A supressão do interrogatório no processo de interdição: novos e diferentes

incapazes? A complexidade da simplificação, Revista do Ministério Público, 139, Julho:Setembro

2014, págs. 61 a 109.

18 Com relevância, sobre o interrogatório do requerido, vd. LUÍS, Sandra dos Reis, A Convenção das

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processual (cf. artigo 6.º do Código de Processo Civil), este não tinha qualquer contacto pessoal e directo com aquele a quem potencialmente iria coarctar o seu direito à capacidade civil.

Várias foram as vozes críticas da doutrina que referenciaram que, na ausência de interrogatório judicial, o Código de Processo Civil de 2013 reservava para o Tribunal um papel de «chancela homologatória da decisão médica» sem qualquer controlo efectivo sobre a mesma (em matéria de direitos indisponíveis)19, dificilmente com respaldo constitucional e contrariando

frontalmente os princípios consagrados na CDPD (nomeadamente no que concerne ao direito de a pessoa visada ser pessoalmente ouvida em qualquer procedimento que pudesse afectar a sua capacidade jurídica20).

Com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que revogou o regime anterior e aprovou o regime jurídico do maior acompanhado – numa verdadeira inflexão à reforma de 2013 –, procedeu-se à (re)introdução da obrigatoriedade de audição do visado, percebendo-se agora que a audição do maior susceptível de medidas de acompanhamento constitui uma diligência de prova a ter lugar em todos os processos de acompanhamento, independentemente de ter havido, ou não, contestação (cf. artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil e 897.º, n.º 1 e 2, e 898.º do Código de Processo Civil)21, dando assim

concretização aos princípios constantes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (nomeadamente ao princípio do «respeito pela dignidade

inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas» – artigo 3.º, alínea a)) e impondo o estabelecido no artigo 12.º, n.º 4, do

19 Em sentido oposto, alguma jurisprudência entendia que a opinião dos peritos médicos, sobretudo se fossem peritos em psiquiatria, tinha mais valor do que os resultados do interrogatório do requerido, que apenas daria azo a uma impressão. Propugnando este entendimento, vd., entre outros, Ac. STJ de 19/11/2015, Relator: Silva Gonçalves, Processo n.º 63/2000; Ac. TRL de 30/06/1994, Relator: Abranches Martins, CJ XIX, 1994, Tomo 3, 142-144 (144/II), onde se entendeu dispensar a diligência do interrogatório judicial, dado o sentido concludente da restante prova pericial.

20 Cf. VIEIRA, Fernando e PAZ, Margarida, A supressão do interrogatório…, ob. cit., págs. 61 a 109. 21 SOUSA, Miguel Teixeira de, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos

processuais, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua, CEJ,

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mesmo normativo legal, isto é, o respeito pela «vontade e as preferências da

pessoa com deficiência».

IV. Dúvidas, notas e implicações da audição de beneficiário na prática judiciária

4.1. Obrigatoriedade da audição

Uma primeira questão que se coloca a propósito da audição do beneficiário atém-se a indagar se a mesma é de realização obrigatória em todos os processos de acompanhamento ou se, pelo contrário, pode ser dispensada e em que condições.

A obrigatoriedade da audição é especialmente vincada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, pela utilização pelo legislador das expressões “em qualquer caso” e “sempre”, não deixando dúvida sobre a intenção daquele no sentido de que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais seja invariavelmente precedida da audição do beneficiário pelo juiz (alterando, como já mencionado, o regime anterior, que só a exigia se fosse deduzida contestação – cf. n.º 2 do artigo 896.º do Código de Processo Civil, na sua versão anterior)22.

Note-se, aliás, que no decurso do processo legislativo o legislador aceitou a sugestão apresentada pelo Conselho Superior da Magistratura de aditamento da expressão «pessoal e directa» após «audição», afastando a hipótese de redução dessa audição ao simples chamamento aos autos e ulterior resposta do requerido23.

Por referência à correspondente finalidade, estabelece o n.º 1 do artigo 898.º (com a epígrafe audição pessoal) do Código de Processo Civil, que «A

audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas».

22 VIEIRA, Fernando e PAZ, Margarida, A supressão do interrogatório …, ob. cit., págs. 61 a 109. 23 Parecer do Conselho Superior da Magistratura sobre a Proposta de Lei n.º 110/XIII, disponível em http://app.parlamento.pt

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Assim, a prossecução da sobredita finalidade aconselha que se proceda a uma observação da situação real em que se encontra o beneficiário de modo a que o juiz decida as medidas de acompanhamento após adquirir uma imagem dessa situação que coincida com a realidade, sem o crivo da narrativa inserta nos articulados24.

Apenas através da audição do beneficiário poderá o juiz compreender efectivamente o contexto vivencial daquele, nomeadamente no que concerne à densidade da sua (in)capacidade para a prática de actos e, por conseguinte, apenas dessa forma poderá aproveitar na plenitude a maleabilidade que a lei lhe confere no que tange a fixar as medidas de acompanhamento, personalizando-as à medida da situação do destinatário, afastando a aplicação de medidas estanques, pré-concebidas e, afinal, potencialmente desajustadas em relação às efectivas e concretas necessidades da pessoa que delas beneficiará.

Assinale-se que é frequente os documentos médicos que constam do processo corresponderem a descrições sumárias das patologias, com pouca alusão ao caso, sendo essa mais uma razão para que o tribunal, na avaliação a fazer, não deva cingir-se aos relatórios periciais: o juiz é o «perito dos peritos» e a audição pessoal e directa assume particular importância permitindo complementar o exame médico, possibilitando averiguar as limitações do caso em apreço e assegurando ao beneficiário o seu direito a ser ouvido e expressar a sua vontade – na medida das suas limitações – sobre o seu futuro25.

Entre nós, tem sido entendimento dominante na Jurisprudência dos Tribunais superiores que a audição directa do beneficiário por parte do juiz deve ocorrer sempre, sem excepção e ainda que o relatório pericial deixe antever que o estado mental do requerido a inviabiliza na prática, não podendo ser dispensada sem que se comprove essa impossibilidade por parte do juiz26.

24 Cf. Ac. TRC de 04/06/2019, Processo n.º 647/18.9T8ACB.C1, Relator: Alberto Ruço, disponível em www.dgsi.pt.

25 MONTEIRO, António Pinto, Das incapacidades…, ob. cit., pág. 38.

26 Neste sentido, vd. Ac. TRE de 10/10/2019, Processo n.º 1110/18.3T8ABF.1, Relator: Ana Margarida Leite, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere: «no âmbito do processo especial de

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Nesta linha, também o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem entendido, no que concerne aos adultos incapazes e no que respeita à aplicação do artigo 5.º, n.º 4, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (que, sublinhe-se, por via da Constituição, tem um valor supra-legal) que é essencial que tais pessoas tenham a possibilidade de ser ouvidas pelo tribunal – Cf. Caso Megyeri c.

Germany, Acórdão de 12 de Maio de 1992, Queixa n.º 13770/88; e Caso Stanev c. Bulgaria, Acórdão de 17 de Janeiro de 2012, Queixa n.º 36760/0627.

Assim, a omissão da audição do beneficiário por parte do juiz enquanto acto imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil, e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e por tal susceptível de influir na decisão final, configura irregularidade geradora de nulidade processual ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do mesmo Código, determinando não só a anulação da decisão proferida como também a realização da diligência omitida28.

Uma vez que com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, vem prevista a aplicação à lide de maior acompanhado das regras dos processos

acompanhamento de maior, deve o juiz proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário, ato que lhe é imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC»; também Ac. TRC de

10/12/2019, Relator: Isaías Pádua, Processo n.º 7779/18.1T8CBR.C1, CJ, N.º 298, Ano XLIV, Tomo V, 2019, Coimbra, págs. 21-25, quanto ao beneficiário «(…) procura-se que este, na medida do possível,

isto é, na exata medida em que as suas capacidades e incapacidades o permitam fazer, participe na tomada das decisões relativamente à sua pessoa e/ou património e tenha a última palavra sobre esses assuntos, não sendo aquele, pura e simplesmente, “substituído”, mas sim tratado de acordo com o seu estatuto de pessoa humana (…)».Ainda neste sentido, vd. Ac. do TRC de 04/06/2019,

Relator: Alberto Ruço, Processo n.º 577/18.4CTB.C1, Ac. TRG de 12/09/2019, Relator: José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 228/17.4T8PTL.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

27 Cf. Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Interdição e Inabilitação, Coleção Formação Contínua, CEJ, maio de 2015, págs. 303 e seguintes, disponível on line.

28 Neste sentido, na jurisprudência, vd. Ac. TRC de 3/3/2010, Relator: Isaías Pádua, Processo n.º 858/18.7T8CNT-A.C1, disponível em www.dgsi.pt onde se refere que «a sra. Juiz a quo não

dispunha de poder para dispensar (como dispensou) a audição pessoal e direta da beneficiária, e ao fazê-lo, através da invocação das regras que regem os processos de jurisdição voluntária, tal conduziu à nulidade do acto e dos subsequentes que dele dependem (artºs. 195.º, nºs. 1 e 2, do CPC)».

Também o TRC na recente decisão datada de 04/06/2019, Relator: Maria João Areias, Processo n.º 577/18.4T8CTB.C1, disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, vd. ainda Ac. TRL de 08/10/2019, Processo n.º 9922/18.1T8LSB-A.L1 7ª Secção, Relator: Diogo Ravara, disponível em www.dgsi.pt onde se decidiu que em processo de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e directa do beneficiário é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada. Qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.

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de jurisdição voluntária – artigo 891.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – pode questionar-se da possibilidade de o juiz arredar a realização da audição do beneficiário, impondo-a apenas quando a diligência se lhe afigure útil e necessária, definindo assim – o juiz do caso – as diligências probatórias tidas por necessárias e úteis para a solução do litígio, não pautado por critérios normativos e de legalidade estrita, mas antes com recurso a «critérios de conveniência e

oportunidade».

Os tribunais superiores já tiveram oportunidade de se pronunciar quanto a esta questão, conforme se pode ler no Ac. TRL de 08/10/2019 (Processo n.º 9922/18.1T8LSB-A.L1 7.ª Secção, Relator: Diogo Ravara, disponível em

www.dgsi.pt) sendo entendimento das instâncias superiores, que não obstante o

processo especial de maior acompanhado seguir as regras dos processos de jurisdição voluntária, nos termos do disposto nos artigos 986.°, n.º 2 e 987.° do Código de Processo Civil «(…) tal não significa que estes poderes habilitem o juiz a

dispensar uma diligência de importância central no contexto desta forma processual.

Com efeito, em bom rigor, o artigo 987. ° do Código de Processo Civil não se reporta a questões processuais, mas sim à decisão da causa.

E o artigo 986. °, n.º 2 não pode aplicar-se às situações em que uma disposição reguladora da especial tramitação de uma forma de processo de jurisdição voluntária consagra expressamente a obrigatoriedade de determinada diligência.

Mas ainda que assim não fosse, bastaria a ponderação das consequências que do processo de maior acompanhado podem advir para a pessoa do beneficiário para concluir que a audição pessoal e direta deste configura a mais importante garantia de defesa do mesmo contra eventuais abusos ou erros de julgamento (…)».

Na senda desta jurisprudência, consideramos que, uma vez que no processo especial de maior acompanhado não há lugar à realização de audiência final (entendida enquanto julgamento), a audição do beneficiário se configura

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como um dos actos de maior relevo a praticar na lide, pelo que a hipótese de a dispensar com recurso a critérios de conveniência e oportunidade comprometeria não só o direito do beneficiário de ser ouvido (que é de per se um dos mais relevantes princípios plasmados na CDPD – razão de ser da lei que regula o regime do maior acompanhado), como também violaria o disposto no artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o qual, enquanto disposição reguladora da especial tramitação de uma forma de processo de jurisdição voluntária, consagra expressamente a obrigatoriedade de determinada diligência (no caso a audição do beneficiário).

Contudo, poderá ainda questionar-se se se afigura possível flexibilizar a literalidade da norma que prevê a audição do beneficiário, agora com recurso ao princípio da adequação formal de maneira a possibilitar a sua dispensa.

Dispõe o artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe dever de gestão processual, que cabe ao juiz dirigir activamente o processo, tramitando-o ctramitando-omtramitando-o se de um caminhtramitando-o se tratasse – atramitando-o fim necessáritramitando-o a que se destina: a justa composição do litígio.

Para tanto, ao juiz é ainda permitido, com recurso ao princípio da adequação formal – cf. artigo 547.º do Código de Processo Civil –, adaptar a tramitação legalmente prevista, à especificidade da causa29.

Entre as instâncias superiores tem sido entendido, citando o Ac. do TRC de 14/10/2014 (Relator: Carvalho Martins, Processo n.º 507/10.1T2AVR-C.C1, disponível em www.dgsi.pt), que o recurso ao princípio da adequação formal «não

transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo». Ainda por referência ao referido aresto, inscreve-se no seu

âmbito que os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses 29 Cf. nomeadamente, RODRIGUES, Fernando Pereira, O novo processo civil – os princípios

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não especialmente previstas e, daí que o poder – dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado às especificidades da causa e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo.

O TRC na recente decisão datada de 04/06/2019 (Relator: Maria João Areias, Processo n.º 577/18.4T8CTB.C1, disponível em www.dgsi.pt), por seu turno, considerou que «a utilização dos poderes de gestão processual e de adequação

formal terá de ter em consideração os princípios subjacentes a este novo regime, entre os quais destaca que: o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário; sempre que possível deverá ter em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva (…)».

Face à importância que a diligência instrutória da audição do beneficiário assume na lide (e a que supra se fez alusão) fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntária, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artigo 891.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ou da gestão e adequação formal – cf. artigo 6.º e 547.º do Código de Processo Civil) prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever30.

Casos há, contudo, em que poderá, na prática, resultar inviabilizada a audição do beneficiário, nomeadamente devido a enfermidade de tal forma grave que obstaculize qualquer forma de comunicação com o mesmo (v.g., os casos em que o beneficiário se encontra em estado vegetativo). Porém, mesmo esse circunstancialismo deve ser aferido concretamente, nomeadamente através da verificação de elementos sólidos (v.g., prova de natureza clínica, se possível 30 Em sentido oposto, na jurisprudência, vd. Ac. TRL de 26/09/2019, Relator: António Santos, Processo n.º 735/17.9T8LSB-A.L1.L1, disponível em www.dgsi.pt onde se refere que «Ainda que

formalmente o processo de acompanhamento de maiores não possa ser considerado um processo de jurisdição voluntária, certo é que em termos substanciais passa a sê-lo, razão porque, podendo o Juiz investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, é-lhe igualmente conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa ( cf. art.º 986.º, n.º 2, do CPC )»; Ainda neste

sentido, Ac. TRP de 10/07/2019, Relator: Maria José Simões, Processo n.º 6651/99.7TVPRT-J.P1, disponível em www.dgsi.pt.

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provinda de mais do que uma fonte), afigurando-se-nos ainda que a impossibilidade de comunicar deverá ser tendencialmente duradoura, sendo que, em caso de dúvida sobre a impossibilidade de audição, deverá sempre o juiz optar por tentar a sua efectivação, enfatizando-se que a dispensa da audição do beneficiário é sempre a excepção.

O julgador no exercício dos poderes/deveres de averiguação que lhe assistem deve determinar todas as diligências que se afigurem úteis ou necessárias para formar a sua convicção quanto àquela que seria a vontade manifestada pelo beneficiário, caso a pudesse exprimir/exteriorizar.

Assim, nos casos em que se verifique a referida impossibilidade de o beneficiário comunicar, a diligência de audição poderá ser dispensada por inviabilidade de realização da mesma, fazendo assim o Juiz uso dos seus poderes de gestão processual e adequação formal – cf. artigos 6.º e 547.º do Código de Processo Civil31- não deixando de ter aqui aplicação o princípio da limitação dos

actos, não sendo lícito realizar no processo actos inúteis (cf. artigo 130.º do Código de Processo Civil). Importa, aliás, considerar que a alusão a “dispensada” e a “actos inúteis” se tem como verdadeiramente inapropriada, pois que não resulta subjacente à referida dispensa um qualquer juízo de conveniência, mas sim a conclusão por uma impossibilidade de audição assente em circunstâncias objectivas, inequívocas e, tendencialmente, permanentes.

31 Neste sentido, na jurisprudência, entre outros, v.g. beneficiário em coma vd. Ac. TRL de 16/9/2019, processo n.º 12596/17.3T8LSBA.L1.L1-2, Relator: Laurinda Gemas, Ac. TRL de 11/12/2019, Relator: Laurinda Gemas, Processo n.º 5287/18.0T8FNC.L disponíveis em www.dgsi.pt. Também na doutrina, ALVES, Cláudia David, O acompanhamento das pessoas com deficiência – Questões

práticas do novo regime jurídico do maior acompanhado, Direitos das Pessoas com Deficiência –

2019, Coleção Formação Contínua, CEJ, Lisboa, Dezembro de 2019, disponível on line «reconhece

que existem situações (por exemplo, o deficiente profundo, o doente de Alzheimer em estado muito avançado ou o paciente em coma dépassé) em que o beneficiário não tem, nem manifesta, qualquer vontade, pelo que não se logrará concretizar a sua audição pessoal e directa, mas nestes casos deverá o juiz, no exercício dos poderes/deveres de averiguação que lhe assistem, determinar todas as diligências que se afigurem úteis ou necessárias para formar a sua convicção quanto àquela que seria a vontade manifestada pelo beneficiário, caso a pudesse exprimir/exteriorizar».

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4.2. A concretização da audição

Nos processos de maior acompanhado a audição pessoal e directa do beneficiário tem lugar, em regra, nas instalações do tribunal, nos termos do disposto nos artigos 143.º, n.º 2 e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Contudo, a lei prevê como novidade, nos termos do artigo 897.º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Civil, que em caso de impossibilidade de deslocação do requerido ao tribunal (por se encontrar acamado ou por padecer de alguma grave limitação no plano da locomoção, por razões de doença), é o próprio tribunal a deslocar-se, ao local onde o requerido se encontre (residência, lar, hospital).

Note-se que a acção tendente a decretar medidas de acompanhamento é proposta «no lugar do domicílio» do requerido/beneficiário, sendo que este é aferido nos termos dos artigos 82.º, n.ºs 1 e 2, e 85.º, n.ºs 4 e 5, do Código Civil.

Pode dar-se a situação de, no decurso do processo de acompanhamento, o requerido/beneficiário ver alterado o seu domicílio habitual para outra circunscrição territorial – previamente ao momento da realização da audição – por vicissitudes várias, como, por exemplo, a família cuidadora deslocar-se para outro concelho, ou mesmo o próprio beneficiário ser internado numa Unidade de Cuidados Continuados ou num lar (instituições tantas vezes longínquas face às dificuldades de assegurar vagas) situados noutro concelho.

Veja-se que a alteração de domicílio e residência por parte do beneficiário configura um direito pessoal que este mantém a todo o tempo, salvo restrição expressa a decidir em sede de sentença (cf. artigo 147.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).

Questiona-se, nessa hipótese – de alteração do domicílio habitual do beneficiário na pendência da acção – se o Tribunal, oficiosamente, poderá conhecer da excepção de incompetência em razão do território a que se refere o artigo 102.º, do Código de Processo Civil.

Contudo, quanto ao momento de fixação da competência, refere o artigo 38.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, que esta «(…) fixa-se no

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momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei».

Assim sendo, da conjugação dos preceitos legais a que se fez referência e na falta de normativo que preveja os casos de mudança de domicílio por parte do beneficiário de medidas de acompanhamento, resulta evidente que são irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente ao momento de fixação da competência32 (leia-se, no início da acção), o que obsta a que o

processo de maior acompanhado seja remetido para o tribunal do novo domicílio, não subsistindo incompetência em razão do território33.

Ademais, ainda que se concebesse, meramente em abstracto, que a alteração superveniente do domicílio do beneficiário acarretaria a incompetência do tribunal da propositura da acção, sempre resultaria prejudicado o conhecimento oficioso da mesma. Com efeito, na ausência de previsão legal, o tribunal vê-se confrontado com a problemática de não poder oficiosamente suscitar a questão da incompetência territorial, porquanto não só o pressuposto processual da competência se fixa no momento em que a acção se propõe, como também a alteração do domicílio habitual por banda do beneficiário não configura um dos casos de conhecimento oficioso previstos no artigo 104.º do Código de Processo Civil.

O que ora se refere incute um desfasamento geográfico entre o tribunal competente para a tramitação do processo de maior acompanhado e o local onde o beneficiário mantém o seu domicílio (actual), acarretando um maior embaraço no tocante à efectivação da audição, para mais quando o novo centro de interesses daquele pode agora situar-se a centenas de quilómetros da Comarca da 32 Propugnando este entendimento, vd. na doutrina, ALVES, Cláudia David, O acompanhamento

das pessoas com deficiência…, ob. cit., págs. 11 a 30.

33 Alguns tribunais tendem a considerar que os centros de internamento são residências provisórias que não relevam para efeitos de fixação da competência. Neste sentido, a título de exemplo, vd. Ac. TRL de 02/10/2007, Relator: Rosário Gonçalves, Processo n.º 8160/2007-1,

www.dgsi.pt onde se refere que «O internamento num Centro Paroquial constitui uma situação provisória, representando um lar temporário e não uma residência permanente no sentido legal do termo».

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propositura da lide, gerando-se inconvenientes relevantes, quer no que respeita à deslocação do beneficiário (o qual inclusivamente pode estar imobilizado), quer do juiz até àquele.

De molde a dirimir o inconveniente agora identificado podem ser aventadas duas soluções:

– a realização da audição através de meios audiovisuais de comunicação à distância (v.g., a audição por teleconferência ou através da aplicação ‘Webex’, ou outra semelhante); ou

– a expedição de carta precatória.

i. Da (in)viabilidade da realização da audição de beneficiário através de meios audiovisuais de comunicação à distância (v.g., a audição por teleconferência ou ‘Webex’, ou outra)

Questiona-se se o juiz poderá lançar mão de meios de comunicação à distância para efeitos de audição do beneficiário por aplicação do disposto no artigo 520.º do Código de Processo Civil e se, na eventualidade de a audição ser efectuada por videoconferência, se configura verdadeiramente um contacto “pessoal” e “directo” conforme exigido no artigo 898.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Do Parecer do Conselho Superior da Magistratura sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII/3.ª34 resultava que a audição pessoal e directa por parte do juiz decisor

impunha não só o estabelecimento de uma “comunicação” entre o visado e o juiz, mas antes da efectiva audição daquele por este – não com o propósito de simplesmente ouvir o visado, mas com a finalidade de constatar pessoalmente a situação real deste para assim determinar o alcance das concretas medidas que determinará na sua decisão.

34 Disponível em www.parlamento.pt emitido em 4 de março de 2018 e remetido à Assembleia da República, ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

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Na doutrina, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO é do entendimento que o contacto directo com o juiz se afigura essencial para prevenir qualquer conluio (ou mesmo deixar claro na comunidade jurídica essa inexistência de maquinação)35.

Também, NUNO LUÍS LOPES RIBEIRO36 afasta a possibilidade de audição

por qualquer meio tecnológico de transmissão da imagem e som à distância, uma vez que tal possibilidade violaria a intencionalidade das normas e princípios subjacentes a tal alteração, salientando o aditamento na letra da lei da expressão “directa” quanto à audição pessoal do requerido.

É importante atentar ainda na redacção do artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde a audição do beneficiário assume tal importância que o legislador refere mesmo que, quando necessário, o juiz se desloca até àquele de maneira a efectivar a diligência, o que aparenta indicar que esta é sempre presencial, sem excepções, valendo neste âmbito o princípio da imediação enquanto princípio fundamental a que obedece o processo civil (segundo o qual o julgador deverá ter o contacto mais directo possível com o requerido e as fontes de prova pessoal, no conhecimento dos factos relevantes para a decisão37),

devendo o juiz – presencialmente – colocar-lhe questões com o fito de averiguar se o beneficiário está consciente de si próprio, orientado no tempo e no espaço,

35 Cf., MONTEIRO, António Pinto, “O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar

sobre o futuro”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 146.º, n.º 4002 (janeiro – fevereiro

2017), págs. 148 a 154.

36 RIBEIRO, Nuno Luís Lopes, O maior acompanhado – Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua, CEJ, fevereiro de 2019, disponível on line.

37 Também neste sentido na doutrina, SOUSA, Miguel Teixeira de, O regime do acompanhamento

de maiores: alguns aspectos processuais, ob. cit., págs. 39 e seguintes refere que «um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação deste beneficiário, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação (artigo 898.º, n.º 1). Para este efeito há sempre uma audição pessoal e directa do beneficiário, mesmo que, para isso, o juiz tenha de se deslocar onde se encontre esse beneficiário (artigo 897.º, n.º 2; cf. artigo 139.º, n.º 1, Código Civil)».

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de maneira a aferir do seu grau de incapacidade (cf. artigo 897.º do Código de Processo Civil)38.

Deve sublinhar-se que tal formalidade “de levar o Tribunal” à presença de quem dele mais precisa, com a urbanidade que lhe é reconhecida, tem a significativa vantagem de permitir não só que o requerido, quando esteja em condições de o fazer, tome consciência da existência e alcance do processo judicial que corre em juízo, como assegura o respeito dos seus direitos, o contacto do defensor oficioso, assim como do Ministério Público com o mesmo, evitando a existência de possíveis pressões de advogados indicados pelos representantes/familiares para um relatório conveniente.

Assim, a audição através de meios tecnológicos parece contender com o carácter literal da norma a que se vem aludindo e, por outro lado e com maior relevância, afigura-se-nos que conflitua com a própria razão de ser da regra, a qual pretende viabilizar que o juiz possa apreender a situação do beneficiário com a maior exactidão possível, o que não prescinde de um contacto imediato entre ambos, não sendo despiciendo recordar que a aplicação das medidas deve ser o mais personalizada possível.

Incumbe ao julgador aferir da situação do beneficiário, em tempo real, avaliando o modo como as suas declarações são prestadas, as suas reacções, tratando-se, pois, de uma imposição do legislador orientada à concretização de uma finalidade que consiste em que o juiz esteja em condições de decretar uma medida de acompanhamento que vá ao encontro das necessidades do concreto beneficiário que se lhe apresenta.

Ademais, é de ter em atenção que, frequentemente, o beneficiário, devido a enfermidade, tem dificuldades em comunicar, muitas vezes fazendo-o meramente por gestos ou através de monossílabos, não logrando focar a sua atenção, dispersando-a, aferindo-se que essas dificuldades seriam agravadas pela

38 Neste sentido, com interesse, a propósito do interrogatório judicial, vd. VIEIRA, Fernando e PAZ, Margarida, A supressão do interrogatório no processo de interdição…, ob. cit., págs. 61 a 109.

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utilização de meios técnicos de comunicação à distância e apresentando-se o interlocutor através de um ecrã.

O uso de meios técnicos de comunicação à distância não é, assim, susceptível de permitir ao juiz, no cumprimento dos princípios, aferir das necessidades do beneficiário, nem se aperceber de eventuais pressões sobre o mesmo por pessoas próximas, como familiares que com pouca lisura possam tentar influenciar o requerido no sentido do decretamento de uma medida de acompanhamento que, afinal, só para si próprios seja benéfica.

Impõe-se ainda referir que a própria dinâmica processualmente consagrada a propósito da audição não se conforma com a utilização de meios de comunicação à distância, cabendo não descurar que o artigo 898.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, inclusivamente prevê a possibilidade de o juiz determinar que a audição decorra apenas na presença do beneficiário, procurando-se assegurar que este se sinta livre para, querendo, falar de aspectos da sua vida privada ou do seu relacionamento com familiares ou terceiros39,

aferindo-se que, atenta a vulnerabilidade em que estas pessoas se encontram, uma conversa directa, privada e sigilosa entre o juiz e o beneficiário pode, em concreto, ser recomendável para criar um ambiente de confiança e de molde a prevenir as referidas pressões40, tudo no intento de fazer com que a decisão

beneficie da impressão colhida num contacto vivo, directo e pessoal41.

Dificilmente será viável a audição nos moldes que agora se assinalam se o juiz não estiver no mesmo local do beneficiário, obstando que afira quem se encontra presente e que pode, afinal, influir no relato desta pessoa, não se ignorando, de resto, que os equipamentos de comunicação à distância não

39 SOUSA, Miguel Teixeira de, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos

processuais, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua, CEJ,

Fevereiro de 2019, disponível on line.

40 Neste sentido, vd. ac. TRC de 04/06/2019, Relator: Alberto Ruço, Processo n.º 647/18.9T8ACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.

41 BESSA, Ana Rita Moreira, O actual regime jurídico da interdição e da inabilitação – Uma reflexão

crítica, Dissertação de mestrado apresentada na FDUC, no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em

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permitem que se estabeleça entre os dois pontos que se lhe referem um campo de visão alargada.

Por outro lado, é ainda de salientar que na audição de beneficiário devem estar presentes, para além do juiz e do requerido, o magistrado do Ministério Público (como autor ou representante do requerido), o representante do beneficiário, o patrono oficioso ou o mandatário, o autor e respectivo mandatário (caso a acção não tenha sido proposta pelo Ministério Público) e o perito médico que presidirá ao exame (cf. artigo 898.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) sendo-lhes permitida a formulação de perguntas ainda que mediante intermediação do juiz, circunstancialismo que também agravaria as condições de efectivação daquela diligência na eventualidade de a mesma se realizar através de meios de comunicação à distância. Ademais, dificilmente se conceberá que a intervenção de eventual perito médico pudesse ocorrer sem a sua presença junto do beneficiário.

Não se ignora que a realização da audição através de meios de comunicação à distância poderia evitar deslocações muitas vezes penosas para o beneficiário – em função da sua condição física e psíquica –, cuidadores ou mesmo para o tribunal. Porém, sendo a audição do beneficiário um dos caracteres essenciais do processo de maior acompanhado e não descurando que se visa a adopção de medidas personalizadas e ajustadas o mais possível à condição do beneficiário, afigura-se que a audição apenas poderá ocorrer na presença do juiz, tanto mais que a lei processual aponta, como vimos, nesse sentido, tudo sob pena de se tornar a audição numa mera formalidade desligada da finalidade que lhe resulta ínsita, quase que aproximando o novo regime daquele que vigorou na sequência da reforma do Código de Processo Civil de 2013 em que se assumia o interrogatório com uma diligência menor, insignificante e, assim, dispensável.

É, no entanto, de indagar se subsiste a possibilidade de obter uma solução intermédia, ou seja, que, por um lado, garanta a audição directa e pessoal do

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beneficiário e, por outro, que ainda assim evite deslocações penosas para quem intervém nessa audição, não sendo despiciendo salientar que deslocações significativas, porque naturalmente têm de ser compatibilizadas com o restante serviço judicial, podem bulir com o carácter urgente do processo de maior acompanhado.

ii. Da expedição de carta precatória com vista à realização da audição do beneficiário

Enquanto solução intermédia é de ponderar a expedição de carta precatória com vista à realização da audição do beneficiário, sendo que a este respeito o artigo 172.º do Código de Processo Civil dispõe que «1 – A prática de

atos processuais que exijam intervenção dos serviços judiciários pode ser solicitada a outros tribunais ou autoridades por carta precatória (…)», e, por seu turno, o

artigo 173.º do mesmo diploma legal refere que «As cartas precatórias são

dirigidas ao juízo em cuja área jurisdicional o ato deve ser praticado», cabendo

ainda considerar que o artigo 130.º, n.º 2, alínea e), da L.O.S.J. dispõe que «Os

juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem ainda competência para: (…) e) Cumprir os mandados, cartas, ofícios e comunicações que lhes sejam dirigidos pelos tribunais ou autoridades competentes».

Note-se que a recusa legítima de cumprimento de carta precatória somente poderá ocorrer nas situações a que alude o artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ou seja, quando o Tribunal deprecado não tiver competência para o acto requisitado ou se a requisição for para acto que a lei proíba absolutamente, ainda que, «quando tenha dúvidas sobre a autenticidade da carta,

o tribunal pede ao juiz deprecante as informações de que careça, suspendendo o cumprimento até as obter» (n.º 2).

Assim, uma vez que não existe fundamento legal para recusar o cumprimento de tal carta – nas situações de audição de beneficiário deprecada em razão de mudança de domicílio do mesmo para outra Comarca-, parece-nos

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que nada resta ao Tribunal deprecado que não o cumprimento da respectiva carta precatória procedendo assim à audição pessoal e directa do beneficiário em estrito cumprimento da lei, mormente, do disposto nos artigos 172.º, 173.º e 179.º do Código de Processo Civil.

Na jurisprudência, o STJ, em decisão datada de 9/03/2020 (Processo n.º 2731/19.2T8GMR.S1, Relator: Olindo dos Santos Geraldes, decisão singular não publicada), decidiu que nos casos em que o beneficiário se encontre internado numa Unidade de Cuidados Continuados (acamado), em localidade pertencente a outra Comarca que não aquela onde se encontra pendente a acção especial de acompanhamento de maior em referência, cabe ao tribunal deprecado a competência para audição pessoal do beneficiário, uma vez que, encontrando-se o beneficiário com residência actual em localidade pertencente a essa Comarca e dispondo o respectivo Juízo de competência material para o acto, não pode recusar-se o cumprimento da carta precatória, com fundamento na incompetência para o acto, nomeadamente ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 179.º do Código de Processo Civil.

Veja-se, todavia, que também nessa decisão, foi entendimento do STJ que a regra continua a ser que a audição decorre perante o juiz do processo, apenas admitindo que tal não se verifique num contexto de manifesta imobilidade do beneficiário e nos casos em que este tenha mudado de circunscrição territorial, sendo certo que o acto pode ser documentado, para oportuna ponderação pelo juiz deprecante, a quem compete proferir a sentença.

Também na doutrina, CLÁUDIA DAVID ALVES42, entende que a prática a adoptar nos casos a que se fez referência – de mudança de domicílio por parte do beneficiário na pendência da acção – será a de deprecar a audição, referindo contudo que se deve solicitar ao tribunal deprecado o envio do registo sonoro e, se possível (dispondo aquele tribunal de meios para o efeito), visual, da audição.

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Afigura-se-nos, por conseguinte, que a expedição de carta precatória para efeitos de audição do beneficiário poderá, em casos devidamente justificados, ser uma diligência não excluída pelo artigo 130.º, n.º 2, alínea e), da L.O.S.J.

Não havendo uma solução linear e perfeita, crê-se que existe nela algum equilíbrio:

– por um lado, é verdade que se perde a imediação perante o juiz do processo;

– por outro, garante-se o contacto directo do beneficiário perante um juiz que ateste a sua situação/condição de vida e evitam-se transtornos de maior para o próprio beneficiário que se encontra acamado e com mobilidade reduzida, residente em outra circunscrição territorial.

É de indagar, contudo, se a competência para a prolação da sentença incumbirá ao juiz do tribunal no qual foi proposta a acção de maior acompanhado ou se ao juiz que, em contexto de diligência deprecada, procedeu à audição do beneficiário.

Trata-se de questão controvertida, tendo já sido objecto de apreciação dos tribunais superiores em contexto de resolução de conflitos de competências43,

cabendo ainda considerar que é também colocada nos casos em que é o juiz de turno que preside à mencionada audição.

Os Tribunais superiores têm vindo a perfilhar o entendimento de que é competente para proferir a decisão nos processos de maior acompanhado o Juiz que ouviu o requerido/beneficiário, nos termos do disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º do Código de Processo Civil. Assim, por exemplo, a decisão do TRL proferida em 14/11/2019 (Processo n.º 2127/18.3T8PDL.L1, 2.ª Secção, Relator: Guilhermina Freitas, decisão singular não publicada) onde se entendeu que a situação em causa não está directamente prevista no artigo 605.º do Código de Processo Civil, que contempla o “Princípio da plenitude da assistência do juiz”, 43 Neste sentido, vd. na jurisprudência, a propósito de conflito de competências, as seguintes decisões singulares do TRL de 14/11/2019, Processo n.º 2127/18.3T8PDL.L1, 2.ª Secção, Relator: Guilhermina Freitas e do STJ de 9/03/2020, Processo n.º 2731/19.2T8GMR.S1, Relator: Olindo dos Santos Geraldes, não publicadas.

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dado não se tratar da fase de audiência de julgamento, porém, tendo em atenção o disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º, do mesmo diploma legal, sempre seria de equiparar a situação dos autos a essa fase processual, sendo, pois, o juiz que procedeu à audição do requerido o competente para proferir a sentença, face à importância que o regime jurídico do maior acompanhado atribui ao contacto directo e pessoal entre o juiz e o beneficiário, sendo este a quem caberá ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.

Parece-nos que o que importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça.

Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz.

Neste âmbito não existe norma expressa que determine que terá de ser o mesmo juiz a proceder à diligência de audição do beneficiário e a proferir a decisão, sendo que a situação em referência, insiste-se, não vem directamente contemplada no disposto no artigo 605.º ("ex vi" do artigo 549.º), do Código de Processo Civil, que consagra o «Princípio da plenitude da assistência do Juiz», dado que não estamos na fase de audiência de julgamento.

A resposta a esta questão implica necessariamente que se parta de uma ideia firme acerca da ratio das normas que entre nós regulam o regime jurídico do maior acompanhado, em especial as que regulam a audição do beneficiário, em conjugação com os instrumentos internacionais por Portugal ratificados, neste âmbito, onde destacamos a sempre presente Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

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A ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade44, pelo que para assegurar esse

desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato

à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as

suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais45.

Entende-se que a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação.

No actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender.

É ainda de salientar que sendo a audição do beneficiário uma diligência de prova não equiparável a uma audiência final (entendida no sentido de audiência de julgamento) parece não decorrer da lei a obrigatoriedade de gravação da diligência de audição (cf. artigo 155.º, n.º 1, a contrario sensu, do Código de Processo Civil), pelo que devem as respostas oferecidas pelo requerido/beneficiário ser sumariamente vertidas em auto o mais detalhadamente possível, de maneira a possibilitar ao Juiz do processo a tomada de decisão como também a instruir o processo de molde a futuras revisões (isto

44 BARBOSA, Mafalda Miranda, Maiores Acompanhados, Primeiras notas depois da aprovação da

Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, 1.ª Edição, Setembro, 2018, Gestlegal.

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sem prejuízo de a diligência poder ser gravada nos termos possíveis – áudio e/ou vídeo – dependendo das condições técnicas de cada tribunal).

Com este sistema, o juiz do processo fica desde logo com uma ideia sumária do que está em causa (podendo mesmo ouvir a gravação da audição), como reforça a indispensabilidade de, em caso de recurso, o Tribunal superior estar habilitado a poder apreciar este elemento de prova (artigo 493.º do Código de Processo Civil)46.

V. Conclusões e perspectivas

O regime jurídico do maior acompanhado, introduzido na ordem jurídica através da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, abandonando assim soluções estanques, frequentemente desligadas da situação real do destinatário dessas medidas e que inclusivamente podiam, na prática, determinar uma ablação da capacidade para a prática de actos mais densa do que a efectivamente necessária.

O novo regime optou pela adopção de um regime monista orientado para a aplicação de medidas flexíveis e decalcadas a partir da concreta situação do beneficiário, não descurando que a finalidade ínsita ao regime é a de assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.

De molde a que sejam aplicadas as medidas que melhor convirjam com a situação vivencial do beneficiário, é, pois, necessário que o aplicador tome conhecimento efectivo do beneficiário, das suas limitações e, claro, do seu quotidiano. Daí deriva a preocupação do legislador impor a audição pessoal e directa do beneficiário, o que decorre não apenas das normas jurídico-processuais

46 Ainda na vigência do regime pretérito, quanto ao interrogatório judicial vinha sendo entendimento corrente que do auto de interrogatório devia constar o registo das perguntas (que seriam pertinentes) e das respostas, sob pena de anulação. Neste sentido, vd., a titulo de exemplo, Ac. TRP de 7/03/1996, Relator: Alves Velho, CJ XXI, 1996, 2, 182-183 (183/II). Ainda, na doutrina, neste sentido vd. VIEIRA, Margarida Paz e Fernando, A supressão do interrogatório no processo de

Referências

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