CIÊNCIA E
IDEOIOGIA*
PAUL RICOEURUnívenidade de Nantene, Flança
Permitam-me prestar homenagem â memória
do Doutor Angélico
iniciando este estudosob
a inspiração daquele a quem Santo Tomás chamava deo
Filósofo. No prólogo daÉtics
a Nicômaco, encontramosa
æguinte passagem: 'Nossa tarefa terá sido satisfatoriamente executada se fornecermos os esclarecimentos que comporta anatureza do tema de que tratamos. Não se deve, com efeito, procurar indiferentemente o mesmo rigor em todas as discussões, assim como tampouco o exigimos nas produções da arte. As coisas belas
e
as coisas justas que constituemo objeto
da política,dlo
margem
a
tais
divergênciase
incertezas que alguns chegarama
acredilar que essascoisas
só
existempor
convençâ'oe
nãopor
naturezå... Assim, quando tratamos de temas como essese
quando partimos de tais princípios, deve¡rros nos contentar em mostrara
verdade de maneira grosseira e aproximada... É, nesse nìesmo espfrito, por-tanto, que deverão ser acolhidas as diversas opiniões que emitimos aqui, pois é carac-terfstico de um homem cultivado só procuraro
rigor
para cada gdnero de coisa na medida ern que o admite a naturezå do tema... Assim, pois, julga bem num domfnio determinado aquele que recebeu uma educaçlo apropriada, ao passo que, enì matérias que excluenr qualquer especializaçã-o,é bom
juiz
aquele que recebeu uma cultura geral..."(1094 B, II
- 1095 A 2).Por que introduzi esse texto? Não pela comodidade da epígrafe e do exórdio, mas em funçâ'o da disciplina mesma
do
raciocfnio. Pretendo mostrar, com efeito, que o fenômeno da ideologia pode receber uma apreciação relativamente positiva se obser-varmosa
tese especificamente aristotélic¿ da pluralidade dos nfveis de cientificidade. Aristóteles, com efeito, nosdiz
várias coisas na passagem transcrita; que a polfticatrata de
coisas variáveise
instáveis, queo
ponto
de partida dos raciocínios nesse domrnio são fatos geralmente verdadeiros, mas nem sempre verdadeiros; que ojuiz
nessa matériaé o
homem cultivadoe
nãoo
especialista; que é necessário,por
con-seguinte, contentar-se em mostrar a verdade de maneira gosseira e aproximada (ou, segundouma outra
tradução, "grossomodo
e
esquematicamerrte");e,
fìnalmente, que assim é porque o problema é de natureza prática.*
ra vez em francês na Revuep. 328-356, sob o títuìo de
publicado em comemolaçâo
22 Puul Ricoeur
Esse
texto tem
função de advertdncia nolimiar
da nossa investigaçâ'o. Poderá nos preteger,com efeito, das armadilhas múltiplas com que nos ameaça o tema da ideologia (tema esse que, diga-se de passagem, eu jantais teria escolhido esPonlaneamente; aocontrário,
ele mefoi
dado e cuo
aceitei sob a forma de um desafìo). Ora, acabo demencionar armadilhas muJtiplas. Elas são de dois tipos e a sua identificaç5'o servlrá de introduçao às duas primeiras parles propriamente críticas da minha exposição.
O
primeiro problema com que nos defrontamos é, antes de mais nada, a definiç5oinicial do
fenómeno que pretcndemos investigar. E já aqui surgem várias armadilhas. A primeira consiste em considerarconlo
eyidentee
não problemálica uma análise em termos de classes sociais. lssolrojc
nos parece inteiramenle natural,tal
é a força damarca qr¡e
o
marxismoimprirniu
ao
problemada
ideologia, embora tenha sido Napoleãoo
primeiro
a
fazer dessetermo uma
arma de combate(fato
que, qomo veremos adiantc, lalvez não deva ser definitivamente esquecido). Adotar de imediatoa
análise da ideologia em [ermos de classes sociais signilìca ao mesmo tempo aprisio nar-se numa polérnica estérila favor ou contra o
marxismo. Ora, necessitamos hoje deum
pensamento que se mantenhalivre
diante de qualquer operação de intimidação que esses adversários exercem uns sobre es outros, deum
pensamento que tenha aaudácia
e
a
capacidarJe deatravesvr Marx,
sem segui-lo nem combatéJo. Creio que Merleau-Ponty fala, em algum lugar, de um pensamento a-marxista: é exatamente isso que tambénr procuro praticar.Para evitar essa primeira armadilha, contudo,
é
necessário esquivar uma segunda, que consisteem definir
inicialmente a ideologia pela sua funçã-o de justificação, não apenas em relaçâ'o a uma classe qualquer, mas em relaçãoa uma
classe dominunte. Parece-me necessário escapar ao fascínio exercido pelo problema da dominaçã-o e con-siderarum
fenômeno mais amplo,o
da integraçã'o social, do qual a dominação é cer-tamente uma dimensão, mas não a condição única e essencial. Ora, só admitimos semquesticinamento que a ideologia é uma função da dominação porque também já admi-timos sem
crltica
que ela é um fenômeno essencialmente negativo, primo do erro e da mentira e irmã'o da ilusão. Na literatura contemporánea que trata da questâ'o, os auto-resjá
nem mais sequer examinam a idéia, que passou a ser absolutamente natural, de quea
ideologiaé
uma representação falso, cuja funçâ'o consiste em dissimular a per-tinéncia* * dos indivíduos, pertinência essa professadapor um
indivíduo ou por umgupo
e
que esses tém interesse emnão
reconhecer. Ora, senÍo
quisermos esquivar essa problemálica da distorção interessadae
inconsciente, nem, tampouco, aceitá-la como dada, torna-se necesvário,me
parece, afrouxar os laços entre teoria da ideolo-giae
estratégiada
suspeita, ainda que venhamosa
mostrar mais adiante, através da**
Por razões de econonria, o termo "pertinôncia"traduzi¡á a exprcssâo francesa "oppørtetunce", que significa "o fato (ou a propriedade) de pcrlencer a", "o fato (ou a propriedade) de ser (oufazer) parte de" e, mais especificamente,
"o
fato para unì indivíduo ou grupo de pertencer a uma coletividade qualqucr (raça, país, classe, parlido, cultura, tradiçao, etc)". O conceilo queCiência e ldeología 23
descriçâ-o e da análise,
por
queo
fenómeno da ideologia requer a suspeição como res-posta.Ora, esse primeiro questionamento das idéias adquiridas jd incorporadas à deûnição
inicial
do fenómeno, é solid¡irio de um segundo questionamento, cujo objeto é oesta-tuto
epistemológico da própria teoria das ideologias. O nreu tema: ideologia e verdade, se refere mais especifìcamente a essa segunda linha de interrogação. Ora, uma série dearmadilhas também nos espera nessa direção. Para conreçar, admite-se apressadamente que
o
homem da suspeita não está, elepróprio,
contaminado pela tara que ele denun-cia; a ideologia éo
pensamento do meu adversário, é o pensamenlodooutro.Ele
não sabe disso, mas ø1, sei.Ora,
o
problema é saber se existe um ponto de vista sobre a ação capaz de desligar-se da condiçâ'o ideológicado
conhecimento engajadona
praxis. Há uma outra pre-tensão vinculada a essa primeira: certos autores afirmanr que não apenas existe um lugar não ideológico, mas que esse lugar é o lugar de uma ciêncio, compardvel à ciénciadeEuclidesparaageometriaeâdeGalileuedeNewtonparaafísicaeacosmologia.
É r¡mfalo
notiível que essa pretensão, particularmente viva nos marxistas mais eleatas, seja exalanrenle a mesnra que Aristóteles, em matéria de ética e de polftica, condenava nos platônicos da sr¡a época, e à qual ele opunhao
pluralismo dos métodos eo
plu-ralisnlo d<ts grarrs derigor
e de verdade.Ora, lroje crn dia lcmos razões novas para justifìcar esse pluralismo, resultantes de toda
a
reflcxão mode¡na sobre a condição especificamente histórica da compreensão dahislória. lisvr
simples observação, quejá
antecipatodo
unr desenvolvimentoulte-rior,
indica
r¡uca
naturez.a dzr tclaçãoenlre
ciënciae
ideologia dependetanto
do sentido que podcnros dar à noção de ciéncia nas malé¡ias práticas e polfticas quanto do sentido t¡ue conferimos à própria ideologia.As duas linhas de discr¡ssão discriminadas acima deverão convergir para uma questâo que constilrri, rle certa nraneira, a questão de confiança; ela será objeto de exame na terceira parte desle artigo. Se nâo há ciéncia capaz de fugir à condiçã'o ideológica do saber
prálico, é
rrccessário renunciar pura e simplesmente â oposição entre cidncia eideologia?
Apesar das sólidas razões que indicam essa conclusão, tentarei salvar a oposiçã'o, renunciando, enlretanto, a formulá-la nos termos de uma alternativa e de uma disjun-ção. Para
tanto,
lentareiatribuir
um sentido mais modesto-
isto
é, menos taxativo, e menos pretencioso â noçâ'o de uma crt'tíca das ideologias, localiz¿ndotal
crftica no quadro de uma interpretação que sabe estar ela própria historicamente situada, mas qu'e se esforça, apesar disso,por introduzir,
na medida do seu possível, umfätor
dedistanciaçâ'o
no
trabalho que permanentemente retomamos afim
de reinterpretarmosas nossas heranças culturais.
Este é o horizonte
do
presente ensaio: só a busca de uma relação intimamente dia-lética entre ciéncia e ideologia me parece compatfvel como
grau de verdade ao qual, como nos dizia Aristóteles, podemos pretender nas coisas práticas e poUticas.24 Paul Ricoeur
LAruÍlise dos critérios do fenômeno ideológico
Assim, minha tentativa de descrição do fenônpno ideológico não será feita, inicial-mente, no nível de uma análise em termm de classes sociais e de classe dominante. Em lugar de
partir do
conceito de ideologia que coneslnnde a essa análise, pretendo, ao contrário, chegar a ele. Será essa a minha maneira de "atravessar" o marxismo.Esse trabalho será executado em três etapas.
Meu ponto de partida é dado pela análise weberiana do conceito de ação social e
de relação social. Para Max Weber, há ação social quando o comportamento humano é
significante para os agentes individuais e quando
o
comportanìento de um está orien-tado em funçãodo
comportamento do outro.A
ese duplo fenômeno de sigrifìcação da ação e de orientação mútua, a idéia de relação social vem acrescentar a idéia de Uma certa estabilidade e previsibilidade de um sistema de significações. Ora, é nesse nível do carâler significante, mutuamente orientadoe
socialmente integradoda
ação, que o fenômeno ideológico aparece enr toda a sua originalidade. Ele está ligado à necessidadeque tern um
grupo socialde
sedar
asi
mesmo uma imagemde
sipróprio,
de serepresentar,
no
sentidoteatral da
palavr4 de sepôr
emjogo
e em oena. Esseé
o prirneiro traço do qual pretendo partir.Por que é assim? Num artigo que muito
nr
impressionou e inspirour , Jacques Ellul considera como primitiva, a esse respeito, a relação que uma determinada comunidadehistérica
mantémcom
o
ato
fundador que a instaurou: Declaração Americana dos Direitos, Revolução Frances4 Revolução de Outubro,etc.
A
ideologiaé
função da distância que separaa
rnemória social deum
surgimento que,no
entanto, é preciso repetir. Seu papel não consiste apenas emdifundir
a convicção para alémdo
clrculo dos pais fundadores, afim
de torná-lao
credo detodo
ogupo;
consiste tambémem perpetuar, alémdo
período de efervescênci4 a energia inicial dessa convicção. É nessadistância, característic¿ de todæ as situações posteriora, que intervêm as imagens e æ interpretações; é sempre numa interpretação que o modela retroativamente, através de uma representação de si mesmo, que urn ato de fundação pode ser retornado e reatuali zado. Talvez
não
existagrupo
social sem essa relação indireta como
seu próprio surgimento.É por
isso queo
fenômeno ideológico começa bem cedo, pois, com a domesticação pela lembrança, começa, sem dúvida, o coff¡enso, mas também a conven ção e a racionalização. Nesse momento, a ideologia deixa de ser mobilizadora para setornar justificadora;
ou
melhor, ela só continua a ser mobilizadora sob a condição deser justificadora.
Daí o segundo traço da ideologia que aparece nesse primeiro nível: o seu dinamismo.
A
ideologia faz partedo
quepoderíamc
chamar de uma teoria da motivação social. Ela é para a prariis socialo
que é um motivo para um projeto individual: um motivo é ao rn€smotempo
aquilo quejustifìca e
aquilo que arrasta.Asim
como um motivo, rp"gu"¡.Ellu.l,"re
1ô^19-médialgrg d_e_t'idéologie",em'Dëmythivtbn et ldëologie. pubticado por
Cíência e ldeologio 25
também a ideologia argumenta: ela é movida pela vontade de demonstra¡ que o grupo que a professa
tem
razão de ser o que é. Nâ'o devemos, contudo,tirar
dal um argu-mento precipitado contra a ideologia, pois seu papel mediador permanece insubstituí-vel. Esse papel se exprime nisto que a ideologia, na medida em que é também iustificø-çäo e projeto, é sempre maisdo
qu,e umreflexo. Esse cuâter "gerador" da ideologia seexpressa no poder fundador de ægundo grau que ela exerce em relação aos empreendi-mentos e instituições que dela recebem a crença no caráter justo e necessário da açâ'o institufda,
Como, porém, a ideologia preserva o seu dinamismo? Um terceiro traço æ apresen-ta aqui: toda ideologia é simplificadora e esquemática
.
Ela é um escþerna de interpre-tação, um código deslinado a fornecer uma visão de conjunto, não apenæ do próprio grupo, mas da história e, no limite, do mundo. Ese caráter"codificado"
da ideologia éinerente à sua função justificadora; sua capacidade de transformação só se mantém na medida
em que
as idéiæ que ela veicula tornam-se opiniões, na medida em que o pensamento perde o rigor para aumentar a zua eñcácia social, como se só a ideologia fosse capaz de mediatizar, não só a memória dos atos fundadores, mas os próprios sistemas de pensamento. Assim, tudo pode se tornar ideológico: a ética, a religião, afilosofia. "Essa t¡ansformação de um sistema de pensamento em sistema de crença", diz
Ellul,
i
o
fenômeno ideológico.A
idealização da imagem que um grupo tem de si mesmo nada mais é do que um corolário dessa esquemalização. Corn efeito, é através de uma imagenr idealizada queum
grupo auto-representa a sua própria existência, eé essa imagem que, por um efeito retroativo, reforça o código interpretativo. Podemos constatá-lo a
partir
do fato de que, desde as primeiras celebrações dos acontecimentos fundadores,já
aparecem os fenômenos de ritualização e de estereotipia; umvocabulá-rio
já
nasceu e,junto
com ele, uma ordem de "denominações corretas": éo
reinado dos ¡srzos.A
ideologia é por excelência o reinado dos ismos: liberalismq socialismo, etc. Talvez só existam isrnos, mesrno para o pensamento especulativo, por assimilação aesse nível de discurso: espiritualismo, materialismo, etc.
Esse terceiro traço permite perceber
o
que chamarei de caráter dóxico da ideologia:o
nível epistemologico da ideologia é oda opinião, da doxu'dos gregos. Ou, sepreferir-mos
a
terminologia freudiana,é
o momento da racionalização. É por isso que ela seexprime habitualmente em máximas, slogans, e formas lapidares. E é por isso também que nada se aproxima mais da fórmula retôrica - arte do pr<lvável e do persuasivo - do que a ideologia. Essa aproximação sugere gue a coesão sociai sô poderá ser ass€gurada se não
for
ultrapassado o optirnum dóxico correspondente ao nível cultural médio do grupo considerado. Mais uma vez, contudo, não devemos denunciar precipitadamente afraude
ou
a patologia:o
esquematismo, aidealizrylo,a
retórica são o preço a pagar pela efìcácia social dæ idéias.Com o quarto traço que passo agora a apresentar, começam a se precisar os caracte-res negativos geralmente associados
a uma
ideologia.A
característica em questão, porém, não é comprometedora em si mesma. Ela consiste niSto que ocódþ
interpre-26 Paul Ricoeur
tativo de uma ideologia é muito mais algo em (Ne os homens habitam e Pensam do que uma concepção que eles formulam.
Ernpregando outra linguagem, direi que uma ideologia é
qeratôria
e não temática. Não a temos como um tema diante dm olhos; ao contrário, ela opera às nossas costas. Não pensamos sobre ela; anteg éapartir
dela que pensamm. Vemdaíapæsibilidade de dissimulação, de distorçã'o que, a partir de Marx, ligou-se à kléia de imageminverti
da da nossa prôpria posição na sociedade. Ora, talvez seja impossível,paraumindiví-duo e mais ainda para um gfupo, formular tudo, tematizar tudo, pôr tudo como objeto de pensamento.
É
essa impossibilidade - e a ela voltarei detalhadamente ao criticar a idéia de reflexãototal
-
que îaz com que a ideologia sejapor
natrreza uma instância nãocrítica.
Ora, parece certo que a não transparência de rrcssos codigos culturais é uma condição da produção das mensagens sociais.O quinto traço complica e agrava esse estatuto não reflexivo e não tranryarente da ideologia. Refiro-me à inércia, ao atraso que pareoe
cuacteizat
o fenômeno ideológi-co. Essa característica parece constituir o aspectoteryorol
específico da ideologia. Ela significa que o novo sô pode ser recebido a partir do típico, ele próprio proveniente dasedimentação da experiência social.
É
aquiçe
a
função de dissimulação poderá æ inserir. Essa função s€ exerce de maneira particular em relação a certas realidades que, embora efetivamente vividas pelo grupo, são inassimiláveis pelo esquemadireta.
Todogrupo
apresenta traçosde ortodoxia,
de intolerância coma
marginalidade. Talvez nenhuma sociedade radicalmente pluralista, radicalmente permissiva seja possível. Em algunr ponto sempre há algo intolerável. Algo intolerável a partir do qual há intolerân-cia.O
intolerável começa quando a novidade ameaça gravemente a possibilidade para o grupo de se re-conhecer, de se re-encontrar. Esse traço pareoe, portanto, contradizer a primeira funçãoda
ideologia, que consiste em prolongara
onda de impacto do atofundador.
\Ora, essa energia inicial, justamente, poszui uma capacidade limitada; ela obedece à lei de usura.
A
ideologia é, ao mesmo tempo, efeito de usura e resistência a ela- Esse paradoxo está inscrito na própria funçãoinicial
da ideologia, a qual consiste em perpetuar um ato fundadorinicial
sobi as espécies da "representação". Épor
isso que da é simulta-neamente interpretação do real e obturação do possfvel. Toda interpretação æ prodrz num campolimitado;
mas, em relação às possibilidades de interpretação que perten-cem ao elãinicial do
acontecimento,a
ideologia efetuaum
maior estreitamento decampo. É nese sentido que se pode falar de fechamento ideológico e até de cegueira ideológica. Mesmo quando
o
fenômeno se torna patológico, contudo, ele ainda guarda alguma coisada
sua funçã'o inicial.É
impossfvel que uma ûomada de consciência serealne de
outro
modo que nÍio através de umcódþ
ideológico. Assim, a ideologia éafetada pela inelutável esquematização que lhe está ligpda; ao afetar
a si
mesma, aideologia se sedimenta, ao passo que mudam os fatos e as situações. É esse paradoxo que nos conduz ao limiar da tão crifatizada função de dissùruloçõo.
Ciência e ldeologia 27
Nesse ponto, nossa análise atirrge o segundo conceito de ideologia. Penso que há um predomínio
nítido
da função de dissimulação quando se produz a conjunção entre afunção geral de integraçõo, que consideramos
até
agora,e
a
função particular de dominaçõo,ligada aos aspectos hierárquicos da organização social.Se insisti em apresentar a análise do segundo conceito de ideologia depois da análise prececlente,
foi
conro
objetivo de chegar a esæ segundo conceito em lugar de dele partir. Corn efeito, para compreender a cristalização do fenôneno ideológico diante do problema cla autoridade, é necessário compreender antes as demais funções da ideolo' gia.Aquilo
que a ideologia interpreta e justifìca é, por exceléncia, a relação com asautoridades,
o
sistenra de autoridade. Para explicar esse fenômeno, recorrerei nova-mente a Max Weber nas suas conhecidas análises sobre a autoridade e a dominação.Toda autoridade, observa ele, procura se legitimar e os sistemas políticos se distin' guem segundo
os tipos
respectivos'de legitimação. Ora,a
análise mostra que, se éverdade que toda pretensâo à legitimidade é correlativa a urna crença, por parte dos indivíduos, nessa mesma legitfunidade, é essencialmente dissimétrica, contudo, a rela-çâo entre
a
¡rretensã'o emitida pela autoridade e a crença que lhe corresponde. Direi que semprehá
mais na pretens¿io que vem da autoridadedo
que na crença dada àautoridade. Vejo aí
um
fenômeno irredutível de maiyvalia, no sentido de um excesso da demanda de legitimação em relação à oferta de crença- Talvez seja essa a verdadeira maisvalia, no sentido de que toda autoridade sempre exige mais do que a nossa crença pode carregar, no duplo sentido de dar e de suportar. É aqui que a ideologia se afirma comoo
amplificador da mais-valia e, ao mesmo tempo, como o sistema justificador da dominação.Esse segundo conceito
de
ideologia está estreitamente ligado ao Precedente, na medida em queo
próprio fenômeno de autoridade é coextensivo à constituição de um grupo. O ato fundador de um grupo, que se autorepresenta ideológicamente, épolíti-co
na sua essência mesma. Urna comunidade histórica, comoÉric
Weil tantas vezes mostrou,só
setorna
realidadepolítica
ao tornar-se capazde
decisão; nascedaf
o fenômeno da dorninação.É por
essa razão que a ideologia-dissimulaçã'o interfere em todos os dernais traços da ideologia-integraçâ.o e, de forma especial, no caráter de não transpareñcia que se vincula à fungão mediadora da ideologia. Max Weber nos ensinou que nâo existe legitirnação inteiramente transparente. Embora não se possa identificar toda autoridade com a sua forma carismática, há uma opacidade essencial nofenôme-no
de
autoridade:na
realidade, nós nãoo
quersmos, antes,é
nele que queremos. Finallnente, nenhurn fenômeno ratifica tão integralmente o ca¡áter de inércia daideo-logia quanto
o
fenórnenoda
autoridadee
da
dominação. Pessoalmente, semprerE-intrigou
e
inquietou
algo que gostariade
chamar dea
repetitividade dopolítico;ca-da
poderimita
e
repeteum poder
anterior:todo príncipe
quer ser César, todo Cé' sarquer
ser Alexandre,todo
Alexandrequer
helenizarum
déspota oriental.Assim, o caráter de distorção e de dissimulação da ideologia só passa a predominar quando
o
seu papel mediador encontrao
fenõmeno da dominação.No
entanto, na28 Paul Ricoeur
medida mesma
em que a
integração deum
grupo jamais se reduz inteiramente aofenômeno da autoridade e da dominação, nenr lodos os traços da ideologia que vincu-lamos acima ao seu papel mediador são totalmentc absorvidos na função de dissimula-ção, à qual muitas vezes, contudo, se procura rcduzi-la.
Chegamos assim ao
limiar
do terceiro conceito de ideologia, o conceito propriamen-te marxista. Gostalia de mostrar que ele assume toda a sua importância quando inte-grado aos dois conceitos anter¡ores. O que traz ele de novo? Essencialmente, a idéia de uma distorção, de uma defonnação por inverúo:"E
se, em todas as ideologias, escreve. Marx,
os homens e as stras relações nos aparecem colocados de cabeça para baixo, conro numa comero obscurü, esse fenômeno decorre do seu processo de vida histórica, exatamente comoa
inversão dos objetos na retina 'decorre de seu processo de vida diretamcntefísico."
Deix¿uei de lado,por
enquanto, o caráter metafórico dessa passa-gem,pois.voltarei
a
esse aspecto na segunda partedo
artigo, consagrada âs condi-ções dosher
sobre a ideologia.O
que me i¡lteressa no nromento éo
novo conteúdo descritivo presente na citaçâ'o acima. O fato decisivo é que a ideologia, nesse texto, édefinida
simultaneamente pela sua funçãoe pelo
seu conteúdo. Sehá
inversão, éporque uma determinada produçâ'o dos homens é enquanto
tal,
inversão. Para Marx (que, nesse ponto,segue
Feuerbach), essa função é a religião; essa não é sirnplesmen-,teum
exemplo de ideologiE masa
ideologia por exceldncia.É
ela, corn efeito, que,
realua a inversão entre céu e terra e faz com que os homcns caminhem sobre a cabeg. O que Marx tenta pensar apartir
desse modelo é um processo geral através do qual aatividade real,
o
processo de vida real deixa de ser a base para ser substituído por.
aquilo que os homens dizern, inraginam e representanr.A
ideologia é este engano que nos faz toma¡ a imagem pelo real, o reflexo pelo original.Como se pode þerceber, essa descrição se apôia na crítica genealógica das produções qtre passanr do real para
o
imaginiírio, críltcaque efetua, por sua vez, uma inversão da inversão.A
descrição, portanto, nãoé
inocente: ela dápor
adrnitida a redução, em-preendidapor
Feuerbach,tie
todoo
idcalismo alemão e de toda a fiiosofia à religião eda
religião aum reflexo
invertido. Isso não significa,é
claro, que Marx selimite
arepetir
Feuerbach,já
que,à
redução ern idéias, ele acrescenta a redução na prática, redução essa destinada a revolucionar a base da ideologia.Meu problema, neste nível da,análiæ, consiste em apreender
o
potencial descritivo gue nos é apresentadopor
essa genealogia; quanto à própriagenealogia, nós a questio naremos mais adiante doponto
de vista das suas pretensões à cientificidade. Antes de mais nada, parece-me queo
queMarx,trouxe
foi
uma especificaçõodo
conceito de ideologia, a qual supõe os dois outros conceitosjá
analisados acima. De que maneira, comefeito,
ilusões, fantasiasou
fantasmagorias poderiamter
uma efìcácia histôrica qualquer se a ideologia não possuisse um papel mediadorjá
incorporudo, enquanto suaconstituiçõo simbólica
(no
sentido dado por Mauss e llvi-Strauss), ao laço social mais elementar? Ora, isso nos impede de falar de uma atividade real pré-idcológica ou não ideológica. Além disso, se a relação entre don-rinação e ideologia não fosse maisprimiti-Ciêncía e ldeologia 29
dominante, mas do fato de definir a ideologia por um conteíldo específico - a religião
-e não peia sua função. Essa limitação é herança de Feuerbach, como o atesta a quarta
tese sobre Feuerbach. Ora,
a
extensâ'o potencial da tepe mafxista é bcm maior do que sua aplicaçãoà
religiãona
fase
mo, aplicação que, diga-se depassagem, patece-me
perfeitament
a religião constitua o seìrsenti-do
autêntico numaoutra
esfera
discuno'Na
reali<iade,a
tese marxista se aplicade direito a todo
sistema cle pensamento que tem uma mesrna função; esse aqpectofoi
muito
bem percebidopor
Horkfieimer,Adomo,
Marcuse, Habermase
outros autores <la escola deFrankfurt.
A
ciência e a tecnologia podem também funcionar como ideologias numa determinada fase da história.É, necessário,por
cons
ó
ideológico'O
fato
d
o
ões entre océueat
,
Palavranomundo, mas
de
urna imagem invertida da vida.Nese
caso, ela nada mais é do que aideologia denunciada por Marx.
A
mesma coisa, entretarito, pode ocorrer' e certamente ocorre,com a
ciênciae com a
teCnologiaa partir do
rnomento em que' sob sua prétensão à cientifìcidade, elas dissimulam sua função de justifìcaçâ'o frente ao sistema militar-industrial do capitalismo avançado.Assim, a conþnção do critério marxista com os outros critérios da ideologia pode liberar ó potencial crítico contido no primeiro e evenfualmente aplicá-lo contra os usos ideológicos do marxismo que logo adiante examinarei.
Essas consequênciæ secundárias, contudo, não
nos
devem fazer gsqueCera
tese30 Paul Ricoeur
Ora, com isso, nosso segundo problema se apresenta imediatamente em toda a sua
intensidade: qual
é o
estatuto epistemológicodo
discurso sobre a ideologia? Existe algum lugar não ideolôgico de onde seja pæsível falar cientifìcamente da ideologia? ll.Ciências sociais e ideologiaTodas as querelas atuais sobre a ideologia partem da rejeição, implícita ou explícita,
do
argumento de Aristóteles sobreo
caráter grosseiro e esquemático da argumentação naquelas ciências queo
Filósofo ainda englobava sobo
nome depolítica
e que osmodernos
passaram
a
chamar
sucessivamente
de:
Moral
Sciences, Geisteswissenschaften, cióncias humanas, cióncias sociais, ciéncias sociais cn'ticas,fara
culminar, finalmente, na crítica das ideologias da escola de Frankfurt.Or4 o
que me surpreende nas discussões contenporâneas nÍ[o é apenæ - não é tantoo
que nelas sediz
sobre a ideologia, mas a pretensãode
dizê-lo a partir de um lugar não ideolôgico chamado ciência. Assin¡tudo
o que sedZ
sobre a ideologia passa a serdominado
por
aquilo que se presuflre ser ciênciae
ao qual se opõe a ideologia. Na minha opinião, são os dois termos, na antítese ciência-ideologia, que devem ser simul-taneanrcnte repostos em questão. Sea
ideologia, nesses debates, perdeo
seu papel mediador, retendo apenaso
seu papel mistificador de consciência falsa, é porque ela écontraposta a uma ciência ela mesma definida pelo seu estatuto não ideológico. Ora, existe tal ciência?
lIá
duas etapas a distinguir na discussão dessa questão, segundo o sentido - positiviv ta ou não - em que se toma a palavra ciência.Comecemos pela acepção positivista. Minha tese, aqui,
é a
de que essa é a única, acepção que permitiria dar um sentido claro e inequívoco à oposiçlio ciência-ideologia mas que, infelizmente,a
ciência social não satisfaz, pelo merros no nível das teorias englobanteseÍÌ
que sesitua
o
debate,ao critério
positivode
cientifìcidade. Com efeito,foi
ao
se tornar positiva que a física matemática de Galileu conseguiu excluir definitivamentedo
campocientífico
o
impetus da física pré-galileana, assim como aastronomia de Kepler, de Copérnico e de Newton corseguiu encerïar definitivamente a
carreira da astronomia ptolomaica.
A
teoria social gfobal estaria numa mesrna relação com a ideologia se fosse capazde
satisfazer aos níesmos critérios que essas ciências positivas.Or4
a
ftaqueza epistemológica de uma teoria social globalé
diretamente proporcionalà força
com a qualela
denunciaa
ideologia Não encontramos, com efeito, nenhuma teoria social que tenha alcançado o estatuto de cientificidade capaz de autorizá-la a emPtegar de forma taxativa, para rnarcar a zua distância da ideologia, otermo de
corte epistemológico. Corno escrevia recentemente um jovemfilósofo
do Québec, Maurice I-aguex,autor
deum
notável artigointitulado:
"l)
uso abusivo da relação ciência'ideologia'a: só devem ser considerados como cientffïcos "os resultadosCiêncis e Ideologia 31
intelectuais que, ao mesmo tempo, permitem uma explicação satisfatória de fenôme nos que permaneciam até então ininteliglveis (no nível superficial em que se tentava em vão explicá-los) e que resistem com êxito às tentativas de falsifìcaçâ'o a que se tenta
zubmetê-los sistemática e rigorosarnente (verifìcação no sentido popperiano de não-fal-sificação)"
(p.
202). O ponto importante aqui não está na formulação separada dessesdois critérios, mas, ao contrário, no seu funcionamento conjunto. Uma teoria pode ter grande força explicativa e, no entanto, estar debilmente apoiada em tentativas rigoro' sas de falsificação. Ora, é justamente essa coincidência dos dois critérios que ainda não
se encontra, e que talvez jamais se encontre,nas teorias globais em ciências sociais. Ou
encontramos, nesse domínio, teorias unifïcadoras mas não verifìcadas, ou então conta-mos com teorias parciais bem verificadas (como em demoglafia e, em geral, em todos os segmentos teóricos com base matemática ou estatística), mas que, por essa razão mesma, renunciam à ambição de serem integradoras. Via de regra, os que denunciam com maior arrogância a ideologia de seus adversários são aqueles que defendem teorias que, embora unificadoras, são pouco exigentes em matéria de verificação e de falsifica-ção. Gostaria agora de tentar demonstrar algumas ciladas em que podemos iacilmente cair ao tratar desse problema.
Um argurnento
corente
consiste em dizer que a ideologia é um discurso de superfí-cie que ignora as suas próprias motivações reais. Esse argumento torna-se mais impres-sionante ainda quando os que o defendem opõenr o caráter inconsciente dessas motiva-ções reais ao caráter simplesmente consciente das motivações públicæ ou ofieiais. Ora, é importante observar que o simples fato de invocar o real, ainda que inconsciente, não é algo que constitua, em si mesmo, uma garantia de cientificidade. Sem dúvida, mudar de plano, passando do ilusório para o real, do consciente parao
inconsciente, é uma operação que possuipor
si mesma uma gfande força explicativa. Mas é justamente esaforça explicativa que constitui ela própria uma verdadeira armadilha epistemológica.
A
mudança de plano, com efeito, é algo que apresenta de imediato uma grande satisfação de ordem intelectual levando-nos a acreditar que a simples abertura do campo incons-ciente e a transferência
do
discurso explicativo para esse campojá
constituem, por si mesmas e enquanto tais, uma operação de cientifìcidade.Essa ingenuidade epistemolôgica é reforçada pela convicção de que
já
reduzimos ofator
de subjetividade na explicação quando a deslocamos do plano das racionalizações conscientes parao
da realidade inconsciente.E,
de fato, se compararmos o marúsmo de Althusser com a sociologia de Max Weber, encontramoe uma explicação por motiva-ções subjetivas dos agentes sociais substituída pela consideração de conjuntos estrutu-rais de ondefoi
eliminada a subjetividade. No entanto, essa eliminação da subjetividade no que se refere aos agentes históricos não garante em absoluto que o sociólogo mesmo que faz a ciência tenha elepróprio
acedido a um discurso sem sujeito. Ora, é aqui que operao
que charho de armadilha epistemológica. Mediante uma confusão semântica que constitui um verdadeiro sôfìsma, passa-se a considerar a explicação efetuada por estruturas e nãopor
subjetividades como um discurso sem nenhum sujeito específ32 Pøti Ricoeur
como portador. Com
iso,
afrorxa-se também a vigilância na ordem da verificqão e da falsifìcação.Tal
cilada é tanto mais perigosa que, nolimite,
a satisfação alcançada naordem
na como obstáculo e máscara emrelação à exigencia deverifica
sto que a teoria denuncia como ideologia: uma raciona-lizaçãoVárias táticas foram empregadas a
fìm
de escondera
ftaquezaepistemolqgica dessaposição; menciona¡ei apenas duas dentre elas.
De um lado, alguns autores procuraram oompensar a ausência de verifìcações empí-ricas com um reforço do aparelho formal. Ora, tal expediente ainda é uma manei¡a de fortalecer
o
critério
explicativo às custasdo
critério veri-fìcacionista.E
mais, tenho aimpressão de que um pensamento desmistifìcador como o de Mam perde as suas ar¡nas mais efìcazes quando reduzido
ao
planodo
formalismo.com
efeito, sua principal acusação ao perisamento econômico da sua época nâ'o consiste, justamente, no fato de ele se redrzi¡ a conceber "rnodelos esvaeiados de qualquer densidade autêntica"3?For outro lado,
procurou-seno
reforço mútuo de vá¡ias disciplinas críticas uma compensação para as insuficiências epistemológicasde
cada uma delas. Assim é, por exemplo, que assistinns a uma espécie de cruzamento entre a teoria social das ideolo-que s€mdhor
:":tr,i;
sãonega
critérios de explicação e de falsificação que estão emquestão
inado a dizer que, no caso em exame, perdemos de um ladoCom
efeiûo,o
proço a. pAE^r pelo reforço mútuodo
poder explicativo das duasCiência e ldeologia 33
rnodelo positivista da ciência a
fim
de dar um sentido aceitável à idéia de teoria social e, ao mesmo tempo, ret€r as vantagensdo
modelo afim
deinstituir
um verdadeiro corte epistemológico entre a ciência e a ideologia. E é isso, infelizmente, o que muitas vezes ocorre nos discunos contemporáneos sobre a ideologia.Exploremos,
pois,
esta segundavi4
reservando para a terceira partedo
artigo aquestão de saber que nova relação emerge entre ciência e ideologia quando abandona-mos os critérios positivistas da teoria social.
A
ægunda acepçãoçe
podemos conferir à palavra ciênciana
sua relaça'o com aideologia
é
uma acepçâocntica.
Essa denominação estáem
conformidade com o requisito dos hegelianos de esquerda que, ao modificarem o termo kantiano de crftica, exigiam uma crítica verdadeiramente crftica. O próprio Marx, aliás, mesmo no período quehoje se afirma estar situado depois do corte episterirológico dos anos 47, não hesita em dar ao Cøpital o sub-título de:"Crítica
da economiapolítica".
A
questão que se põe, então,é
a seguinte: concebida como crítica, pode a teoria social acedera um
estatuto inteiramente nãoideológico, segundo os seus próprios critérios de ideologia?Essa pergunta apresenta três difìculdades e é
a
terceira delas que engirá atenção especial, pois da zua resolução depende a possibilidade de atribuir um estatuto zceitâ-vel à dialética ciência-ideologia.A
primeira difìculdade que encontro no problema é a seguinte: ao atribuir à crítica o 'estatuto de uma cidncia combatente, como evitar abandoná-la aos fenómenos quase:patológicos denunciados no adversário? Qu¿ndo falo de ciência combatente, refiro-me sobretudo
à
interpretaçãoleninista
do
marxismo, retomadacom tanto vigor
por Althusser'no seu ersaio intitulado Lénine et la phílosopllle.. Nesse trabalho, Althusser sustenta duas teses simultâneas. De umlado,
queo
marxismo representao
terceiro grande corte radical na história do pensamento, encontrandose o primeirono
nasci-mento da geometria com Euclidese
o
segundo no nascimento da física matemática com Galileu; da mesma maneira, Marx teria, segundo Althusser, inaugurado os contor-nos de um novo continente dramado História. Vamos admiti-lo, ainda que a História como saber e saber de si tenha certamente outros ancestrais. Mas não é esseo
ponto que apresenta dificuldade: o problemático está na pretensão simultânea de traçar o queI¡nin
chamavaa linha do partido
entre essa ciênciae a
ciência burguesa e, dessamÂneira,
de
conceberuma
ciência partidâria,no
sentidoforte
da expressão. Aqui reside o perigo de que a ciência marxista se tranbforme em ideologia segundo os seuspróprios critérios. Sob esæ aspecto, o destino posterior do ma¡xismo ccrrobora
6
tenp-res mais pessimistas.Assir¡
para citar apenas um exemplo, a análise em clæses sociais eem especial a tese segundo a qual só existem fundamentalmente duas classes, depois de
ter
sido uma hipótese de trabalho extremâmente fecunda, tornou-se um dogma que impede de considerar sem preconceitos as novæ estratifìcações sociais das sociedades industriais avançadasou
as formações de classes,num
sentidonovo
clo termo, nas sociedades socialistas, para não mencionar os fenômenos nacionalistas, quedihcilmen-34 Paul Ricoeur
te se prestam a uma andlise sem termos de classes sociais.
,nin¿a mais grave que essa cegueira diante do real, a oficialtzação
dt
doufiinaefetua-da pelo partido
p
ideologização: æsimc,omo se pode
acu
dorninante, tambemo
marxismofunci
ao poder do partidoenquanto vanguarda da clæse operária
e
em relação ao poder do grupo dirþente nointerior
do prôprio partido. Essa função þstifìcadora com referência ao poder de um grupo dominante explica o fato de que a esclerose do nu¡xismo ofereça o mais impres sionante exemplo de ideologianm
tempos modefnos. O paradoxo é queo
maDdsmo depois de Man< tornou-se a mais extraordinária exemplifìcação do seu próprio conc.eito de ideologia enquanto expressão continuada da relação com a realidade e enquanto ocultação dessa relação. É nesse momento preciso que talvez seja relevante lembrar quefoi
Napoleão quem transfortnouo
respeitável termo de ideologiae
de ideólogo em expressão de polêmica e de escámio.Essas observações æveras não signifìcavam que o marxismo seja falso. Ao contrário, signifìcam que a funçâ'o crítica do ma¡xismo só poderá ser liberada e evidenciada se a
utilização da obra de Mam
for
totalmente dissociada do exercício de um poder ou de uma autoridade e das bulas de ortodoxia; se suas análises forem submetidas ao teste de uma aplicação diretaà
economia contemporânea, comoo próprio
Marxo
fez
com referência à economia de meados do século pasado; se, fìnalmente o marxismo voltar a sef um instrumento de trabalho entre outros; em suma, se o Capital tornar'se como oZiønøiustra
de Nietzsche que, como dizia seu autor, era"um
livro para todos e para ninguém".A
ægunda difìculdade se refere am obstáculos que se opõem à explicação da forma' ção das ideologias em termos não ideológicos.Como veremos, minhas observações
a
esse respeito coincidem com os de Jacques Taminiaux*** ,
embora nãome
arrisque, corno ele,ao ponto
de situar Man< na linguagem da ontoteologia. Visto que os termos de origem, defìm
e de zujeito apre' sentam tamanhapolisemia
e que recebem sigrrificações contextuaistão
diferentes, hesitoem
rcalizartais
aproximações.Insistirei
antes, nalinha
de uma obserrraçãoanterior
deixadaem
suqpenso,no
papel mediador queos
conceitos hegelianos efeurbachianos exerceram na conceitualização marxista. Mam, é claro, acrescenta muito
à crítica
feurbachiana, mâs, quando falade
ideologi4 ele ainda Permanece na suadependência.
É
preciso, inicialmente, conoeber todaa filosofia
alemã como um oomentário da religião e esta gomo uma inversão da relação entre o céu e a terra, para que se por¡sa, a seguir apresentara crltica
como uma inversão da inversão. Ora, é algo que chama a aterçãoo
fato de
Man
encontrar dificuldades irnensas em pensar essa relação em ***Ricoeur se refe¡e aqui ao artigo de Jacques Taminiaux intitulado"Sur Marx, I'art et Iavéité,
publicado no mesnxr núme¡o da Rewe Philosophíque de
Lqpoh (v.
nota*), às píginas 3ll-327. (Nota do tradutor)rCiëncia e ldeologiø 35
termos não metafóricos: metáfora da inversão da imagem retiniana, metáfera da cabeça e dos pés, do solo e do céu, metáfora do reflexo e do eco, metáfora da sublimação no sentido químico da palavra, isto é, da volatilização de um corpo sólido em um resíduo etéreo, metáfora
da
fixação nas nuvens,e
assimpor
diante. Como observa Sa¡ah Kofman num ensaios ma¡cado pela influência de Derrida, essas metáforÍili permanecemaprisionadas numa rede de imagens especulares e num sistema de oposições: teoria-prá-tica, real-imaginário, luz-obscuridade, que atestam que o conc€ito de ideologia
enquan-to
inversão de uma inversão ainda pertence à metafísica. Poder-se-ia, no entanto, dizer que a ideologia, depois do corte epistemológico, não mais sen4 pensadaideológicamen-te? O texto
do Capital sobreo
fetichismo da mercadoria não deixa esperanças a esserespeito; a forma fantasmagôrica de que a relação de valor <los produtos do trabalho se
reveste
ao
setomar
mercadoria,é
algo que permaneceum
enigma que, longe de explicara
ilusão religiosa, apóia-seao contrá¡io
sobreel4
pelo
menos sob forma analógica. Além disso, a religião-
forma mãe da ideologia - fornece bem m¿is do que asimples analogia, pois é ainda ela o "segredo" da própria mercadoria. Como diz Sarah Kofman,
o
fetiche da mercadoria não é"o
reflexo das relações reais, mas o reflexo deum
mundojá
transformado,já
encantado. Reflexo de reflexo, fantasmade
fantas-ma"6. Ess€ fracasso em pensar de modo não metafôrico a produção da ilusão apresenta como que às avessas- estamos, afinal no terreno das inversões de inversão!- a dificulda-de tão enfatizada por Aristóteles de pensar a participação emPlatão. A¡istóteles dizia quea
participação não passava de metáforae
de discurso vazio.No
caso que nos ocupa, a participação funciona às avessas, não da idéia em relação à sua sombra, mas da coisaem
relação a seu reflexo. Nos dois casos, porérn,é a
mesma dificuldade que encontramos.Ora, a primeira a¡ráLlise que apresentamos neste trabalho pode elucidar a razã.o do fracasso apontado. Se é verdade que as imagens que um grupo social forma acerca de si mesmo são interpretações que pertencem de imediato à constituição do laço social; em outros termos, se
o vínculo
socialé
elepróprio
simbólico-
é absolutamenteinútil,
então, tentar derivar iais imagens de alguma coisa anterior que seria o real, a atividade real,
o
processo de vida real, dos quais haveria secunda¡iamente reflexos e ecos. Um discurso não ideológico sobre a ideologia encontra aqui a impossibilidade de atingir um real social anterior à simbolização. Esa difìculdade confuma a minha idéia de que não se podepartir
do
fenômeno da inversão para explicara
irleologia; é necessário, ao contrário, concebêlo como especificação de um fenômenomuito
mais fundamental, ligado à representação do laço social que se dá imediatamente depois da sua constitui-ção simbólica.O
disfarceé um
episôdio secundário da símbolização.Daí
decorre, ameu ver,
o
fracasso de qualquer tentativa dedefinir
uma realidade social que seria inicialmente transparente e, a seguir, secundariamente obscurecida, e que poderíamos apreender na sua transparência original, aquém do reflexo idealizante.o
que me parecessarah Kofnran,
Camera Obscura. De I'icléologie,Editions Galilée, 1973.
óKof-un, op. cit., p.
36 P. øul Ricoeur
bem mais fecundo em Mam é a idéia de que a transparência não está atrás de nós, na origem, mas
à
nossa frente,no
termo deum
processo histórico talvez interminável.It*tS
condições, porém, devemos ter a coragem de concluir que a prépria separaçãoda ciencia e da ideologia é a idéia-lirnite, o limite de um trabalho irrterno de diferenciaçãcr,
e que não contamos atualmente comuma noçâ'o não-ideológica da gánese da ideologia. Ainda näo enfrentamos, contudo, a dificuldade rnais fundamental, ligada à impossi-bilidade de exercer uma crítica absolutamente radical. Uma consciência radicalmente crítica, com efeito, só poderia resulta¡ de uma reflexão total.
Permitam-me desenvolver
um
pouco mais detalhadamente esse argrlnento,o
qual não atinge os t¡abalhos de ciências sociais que não têrn a pretensão de constihúremuma
teoriatotal, afeta¡do
diretamente,no
entanto, toda teoria sociai, inclusi,ve omarismo,
com pretensão totalizante.Para elaborar meu ÍIrgum€nto sobre esse
ponto,
começareipor
consideriu os dois modelos de explicação que Jean Ladrière distingue num importante textometodológr-co
reprorluzidono
seulivto
L'urticulation
du
sensl
Não
é
difícil
reconhecer a operação desses rnodelosnos
doistipos
fundamentais de interpretaçâodo
préprio ma¡xismo quehoje
circularn Pretendonnstrar
que a pressuposição de uma reflexão total é tão inelutável num modelo quanto no outlo."Podern¡s propor dois modelos de explicaçäo, diz ladrière, a explicação em terrnos
de projetos e a explicação em termos de sjstemas" @.
aÐ.
c-onsideremos o primeiro modelo. É evidente que a sociologia compreensiva de Max Weber faz parte desse nndelo, mas é igualmentc ãvidente que também faz parte dele o marvismo segrrndo Gramsci, Lukåcs,
Ernst Bloch
e
Goldmann.ora"
esse primeiro modelo torna extremamentedifícil
a posição de "neutralidade axiolôgica" reivindicada por Max Webert'A
explicação em termm deprojeto
é necessariamente urna explica-ção na qual o próprio teórico está implicado, exigindo. portanto que ele esclareçaã sua própria situação e o seu projeto ern relação à sua situação. E aqui intervém uptãr*po-sição tácita da reflexão total.
o
seg'ndo modelo de explicação escaparia a essa pressuposição possível? Àprimci
ra,vista, poderia parecer que sim:
já
que, nesse caso, não nos propomos a explicar aação em termos de projetos, não estamos obrigados a elucidar cornpietamente a nature.
za
doprojeto,'
nâ'o estando, portanto, obrigados a efetuar uma reflexãotot¿l.
Não obstante æ aparências, entretanto, na medida em que uma explicação desselipo
pre-tende sertotal, o
cientista também se encontra inelutavelmente nelã implicadoitravésdo
seu instrumento de interpretação.O ponto crítico
da teoria dos sistemas reside, como moslra Ladrière no ensaio mencionado, rra necessidade de elaborar urna teoria relativaà
evolução dos sistemæ.ora,
"nessetrabalhq
observa ele,o
cientista será?Jean l¿d¡ière, "signes et ooncepts en science", em: L'articulotion du sens (Bibliothèque des Sciences Religieuses), 1970, pp, 4G50.
ôMu* Weber, "Le sens
de la neutralité axiologique dans les scrences sociologiques et économiques", em: Esrøis sur la thëorie de la scìence, traduçaio franceu, Plon, l9ó5, pp. 399-478.
Ciência e ldeologiø
i7
levado, seja a inspirar-se em teorias relativæ aos sistemas físicos ou biolôgicos (servin-dose,
por
exemplo, de um modelo cibernético), seja a apoiar-se em teorias de caráter filosôfico (e,portanto, nãocientífico),
baseando-se,pof
exemplo, numa filosofÌa detipo
dialético'
(p.42).
Ora, sejaqual
for
o
caminho adotado, encontraremos em ambos uma exigênciade
completude correspondente à exigência de reflexão totai já encontradano
caso da explicação emternþs de
projetos. Pressupõe-se tacitamente toda uma fìlosofia, "segundo a qual existe efetivamente, a cada instante, um ponto devista da totalidade e segundo a qual, além disso, é posslvel explicitar e descrever esse
ponto
de vista
num
discurso apropriado. Somos novamente obrigados, conclui I¿drière, a invocar um discurso de outrotipo"
(p, 43).Assirq a explicação em termos de sistemas não tem melhor sorte do que a explica'
ção em
termos de projetos.Esa última
só consegue isentar ahistória
de qualquer condição ideológicapor
supor tacitamente a possibilidade de efetuar uma reflexão total. Embora sob outra forma, a explicação em termos de sistemæ também supõe queo
cientista
possaaceder
aum ponto
de vista definido como capaz de exprirnir atotalidade. Oïa, isso equivale à reflexão total nahipôtese anterior.
Essa é a razão fundamental pela qual a teoria social jamais pode fugir totalmente da condição ideológica: ela não pode nem efetuar a reflexão total, nern aceder a um ponto de
vista
capaz de exprimir a totalidade, ponto de vista ese que poderia liberta-la da mediação ideológica a que estão submetidos os outros membros do grupo social.llL
A
dialëtica da ciência e da ideoloyiaA
pergunta que, na introdução, chameide
tta questão de confiança", apresenta-se agora nos seguintes termos:o
que se pode fazer da oposição-
mal pensada e talvez impensável - da ciência e da ideologia?Devemos abandoná-la pura e sirnplesmente? Confesso que muitas vezes, ao refletir sobre esse quebra-cabeç4 estive bem perto de pensar assim No entanto, se não quiser-mos perder os benefícios de uma tensão que não se pode reduzir nem a uma simples antítese sem movimento nem a uma oposição que am¡inaria os gêneros, creio que não devemos renunciar à opmição em questão.
Túvez
seja necessário, porém, num trabalho que pode apresentar um glande valor terapêutico, que nos aproximemos inicialmente das fronteiras da nãodistinção. Pelo menosfoi
esseo
benefício que encontrei ao reler a obrajâ
antigae
injustamente esquecida (pelo menosno
continente europeu) queKarl
Manheim,jâ
eml929,havra
escrito enr alemão sob
o título
de ldeologieund
Utopie.A
virtude desse livro está emtirar
todas as consequências da descoberta do cuâlerrecorrente da acusação de ideolc> gia e assumir até ofim
o impacto retroativo, o transbordamento da ideologia sobre aposição própria de todo aquele que tenta aplicar ao outro a crítica ideolôgica.
Karl
Manheimatribui
ao marxismoo
mérito da descoberta de que a ideologia não constitui um erro local, explicável psicológicamente, se.ndo, ao contrário, umaestrutu-t/
38 Pøul
Ricoatr
ra de pensamento que se pode atribuir a um gruIxl, a uma clæse ou a uma nação. I-ogo a seguir,
porén¡
ele critica o manrismo por ter parado a meio caminhoe
por
não ter aplicado a si mesmo a manobra da desconfìaça e da suspeita.Or4
segundo Manheim, o marxismo não pode rnais impedir a reação em cadeia, dadoo
fenômeno fundamental de desintegração da unidade cultural e espiritual que faz com que todo discurso entre em guerra com todo discurso. O que aæntece, porén¡ quando assim passamos de uma suspeição restrita para uma suspeição generalizada? Karl Manheim responde: Passamos de uma ciência combatente para u¡na ciência pacífica, a saber, a sociologia do conheci-mento, fundada por Troeltsdr, Max Weber e Max Sdreler. Oçe
antes fora uma arma de proletariado torna-se agora um método de pesquisa visando trazer àluz o condicio-namento social de todo pensamento.Ka¡l Manheim genenlna
o
conceito de ideologia nos seguintes termm. Para ele, æ ideologias se defìnem esencialmente pela sua não-congruência, pela zua discordância com relação à realidade social. Elas diferem das utopias apenas por traços secundáriæ. As ideologias são, via de regra, professadas pela classe dirigente e são æ classes subpri-vilegiadas que as denunciaíL As utopias são, em geral, professadas pelas classes æcerrdentes. As ideologias se
voltam
paratrás, æ
utopias sevoltam para
a frente. As ideologias se aþstam à realidade que elas justificam e dissimulam; as utopias atacam defrente a
realidade, fazendoa explodir. Embora certamente consideniveis, essasqnsi
ções entre uûopia e ideologia nunca são decisivæ e totais, como se pode constatar no
próprio Mam,
que clæsifica os socialismos utôpicos entre os fantasmas ideologicos. Além disso, só a históriaulterior
decidirá se urna utopia era o que pretendia ser,isto é,uma visão nova capaz de mudar
o
cun¡o da história. O pontoinportante,
contudo, éque a oposição entre utopia e ideologia não pode ser total; ambas se destacam
apartir
de um fundo comum de não-congruência (por atraso ou por antecipação) em relaçäo a um conceito de realidade que só vem a s€ revelar na prática efetiva. A ação só é possf-vel æ essa distllncia não torna irnpossível a constante adaptação do homem a wna reali" dade em fluxo permanente.Admitamos
conn hþóæse de
trabalho esseconceito
generaluado de ideologia, æsociadode
forma bastante complexa ao conceito deutopi4 o
qual se apresenta àsvezes oomo uma de suas espécies e às vezes oomo um gênero contrário.
Minha pergunta - lancinante pergunta - é a seguinte: de que lugar fala o investigador instalado numa teoria da ideologia genenlr;ada? É forçoso admitir que
tal
lugar não existe, que ele existe menos ainda do que numa teoria da ideologia restrita, na qual sóo
outro
está imersona
ideologia. Dessa vez,no
entanto,o
cientista sabe que ele próprio também está preso na ideologia. Sobese
aspecto,o
debate de Karl lvlanheimconsþ
Íresmo é exemplar pela sua honestidade intelectual sem limites. Ka¡l Manheim sabe, com efeito, que a pretensâ'o weberiana a uma sociolog¡awertfrei,axiologicamen-te
neutra,é
uma ilusão.Ela é
apenasum
estágio, embora necessário:"É
necessário, escreve ele, uma disposição permanente a reconhecer que todoponto
de vista é parti-cula¡ a uma determinada situação e a procur¿u através da análise em que consiste essaCiência e ldeologia 39
particularidade.
Um
reconhecimento claro e explícito das pressuposições metafísicarimpllcitas
que tornamo
conhecimento possívelé
algo que promovemuito
mais aclarifìcação e
o
avanço da pesquisa do que a mera negação verbal da existência dessaspressuposições acompanhada pela sua reintrodução subreptícia pela porta dos fundos"
(p.
80).A
fìcar nesse ponto, porém, caimo,s em pleno relativismo, em plenohistoricis- ,.
mo, e liquidamos com a própria pesquisaX Com efeito, observaKarl
Manheim,qu.-
I não tem pressuposições não propõe questões; quem não propõe questões não pode formular hipótesese, por
isso mesmo não procura mais nada. Ocorreaqui
com o investigadoro
mesmo que se passa com as próprias sociedades: as ideologias são distân-cias, discordânciaem
relaçãoao
curso real das coisas.A
morte das ideologias, no entanto, redunda¡ia na mais estéril lucidez, pois um grupo social sem ideologia e sem utopia seria um grupo sem projeto, sem distanciamento de si próprio, sem representa-ção de si mesmo. Seria uma sociedade sem projeto global, abandonada a uma história fragmentada em acontecimentc idênticos entre si e, portanto, insignificantes.Mas como, então,fazer preszuposições quando se sabe que tudo é relativo? Como tomar uma decisão que não seja
um
golpe de sorte,um
golpe de força lógico, um movimento puramente fìdeísta?Repito
o
quejá
disse anteriormente; é com exemplar coragem de peruamento queKarl
Manheim enfrenta essa difìculdade. Sua tentativa consiste em procurar distinguir,a qualquer preço, um relacionismo de um relativismo. O preço, porérg é uma exigência impossível: re-situar todas as ideologias parciais numa visão total que lhes confìra uma significação relativa, passando assim de uma concepção não avaliativa de puro especta-dor para uma concepção avaliativa que se arrisca a
duq
que esta ideologia écongruen-le
e aquela não. Mais uma vez, vemo-nos reduzidos à impossr'vel exigéncia de um sabertotal:
"Dar ao homem moderno, diz Manheim, uma visão corrigida de um processohis-tórico total"
(p. 69). Assim, é um hegelianismo encabulado que estabelece a diferen-ça entreo
¡elacionismoe o
relativismo:"a
tarefa, afirma ele, consiste em descobrir, através da modifìcaçã'o de normas, de formas e de instituições, um sistema cuja unida-de e significaçâ'o nos cabe compreender"(p.82).E
ele continua mais adinate:"Desco-brir,
na totalidade do complexo histórico, qual é o papel, a significação e o sentido decada componente elementar"
(p.
83)."É
com essetipo
de abordagem sociológica da história que nós mesmos nos identificamos" (p. B3).Esse
é
o
preço a pagar para queo
investigador possa escapar ao ceticismoe
ao cinismo e para poder avaliaro
presente ousando dizer: tais idéias são válidas emtal
situação determinada, tais outras constituem um obstáculo à lucidez e à mudança. Para administrar esse
critério
de acomodaçãoa
uma situação determinada, no entanto, énecessário
que
o
pensadorjá
tenha terminado a sua ciência. Seria necessário, com efeito,já
conhecer a realidade socialtotal
para poder medir as distorções em relação a ela.ora,
é no termo do processo,.justamente, que se determinao
se¡rtido mesmo do real:'"Tentar
escaparà
distorção ideológicae
utópica significa, emúltima
análise, pôr'se em busca do real"(p.
87). Mais uÍra vez, encontramo-nos em círculos, como no40 Paul Ricoeur
caso de Marx, que afirma que
o
real, ao qual inicialmente opomos a ilusão ideológica, só será conhecido no final, quando as ideologias forem disolvidas naprática- Também em Manheimtudo é
circular:"Só
quem tem plena consciênci4diz
ele,do
alcance limitado de todoponto
de vista encontrou o caminho que leva à procurada compreen-sãodo
todo' (p.
93).
E o
inversoþalmente
se impõe:"Uma
visâototal
implica simultaneamente em assimilar e superar as linútações dos pontæ de vista particulares'(p.%).
Desse modo, Karl Manheim se impôs a obrigação
infinita
de vencer o historicismo pelos seus próprios excessos, conduzindo-o de um historicismo parcial para um histori-cismototal.
É
signifìcativo, a esse respeito,o
interesse queKarl
Manheim tambem manifestava em relação ao problema social da intelligentsia.A
síntese dos pontos devista, com efeito, supõe um portador social; ora, tal portador não pode ser uma classe
média, mas um estrato relativamente sem classe, não situado de maneira muito rígida na ordem social. Ora, é a isso que corresponde a intelligenfsr¿ relativamente dewincula-da de
Alfred
Weber, a freíschwebende Intelligeinz.Asirr¡
a própria teoria da ideologia ¡epousa sobrea utopia de um "espírito
totalmente escla¡ecidodo ponto
de vista sociológico" (p. I 75).É necess¡irio confessar, porém, que a tarefà de uma síntese total é impossível. significa isso que ficamos reduzidos, sem nenhum progresso de pensamento, à críti-ca da reflexão
totai?
Saimos simplesmente vencidos desse extenuante combate com ascondições ideológicas de
todo ponto
de vista? Devemos renunciar a qualquerjuízo
r¡eritativosobre a ideologia? Creio que não.Já disse acima que considero a posição de Karl Manheim corno o pon to de retorno a partir do qual podemos perceber a direção de uma solução viável.
As condições da solução me parecem estar contidas num discurso de caráter
hsme
nêutico sobre as condições de toda e qualquer compreeruão de ca¡áter å¡'.sró¡¡co. Nesse
ponto,
torno a encontrar, através de longo caminho de uma discussão sobre as condi-ções de possibilidade de um saber sobre a ideologia, as análises que eu havia realizadono
colóquio de Castelli sobre a ideologiae. Nessas análises eu me situava de imediato, sob a conduta de Gadamer, numa reflexão detipo
heideggeriano, com o propósito de abordaro
fenômeno central da pré-compreensão, cuja estrutura ontológica precede ecomanda todas as dificuldades propriamente epistemológicas que as ciências sociais encontram sob
o
nome de preconceito, de ideologia ou de círculo hermenêutico. Essasdificuldades epistemológicas
-
que
são, de resto, diferentese
irredutíveis entre si-possuem uma mesma origern- Todas elas decorrem da estrutura mesrna de um ser que jamais ocupa a posição soberana de um sujeito c¡lpæ, de põr à distância de si prôprio a totalidade dos seus condicionamentos. No presente estudo, entretanto, decidi
renun-ciar
à
comodidade deum
discursoque
se instala de imediato nurna ontolqgia da pré-compreensão e guejulg
de cima as dificuldades da teoria das ideologias. Preferi.9Paul
Ricoc'l
"H-erméneutiqyg-eÌ critique_des idéologies,,,em :Démythistbn et