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Rubim Santos Leão de Aquino (1929-2013): ensino e militância política na trajetória de um professor de história

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ensino e militância política na trajetória

de um professor de história

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Rubim Santos Leão de Aquino (1929-2013): Teaching and Political Militancy in the Trajectory of a History Teacher

Libânia Nacif Xavier* Resumo

O artigo apresenta algumas reflexões proporcionadas pela exploração do ar-quivo do professor Rubim Santos Leão Aquino (1929-2013), com vistas a com-preender sua trajetória profissional (Dubar, 1998), entendida como mode-lar da trajetória de outros professores de sua geração (Sirinelli, 1996b) que compartilhavam uma estrutura de sen-timento comum e que os aproximaria de uma brasilidade

romântico-revolu-cionária. Para qualificar esse acervo

do-cumental e com ele estabelecermos um diálogo profícuo, recorremos ao con-ceito de artesanato intelectual (Mills, 2009), adequado para captar a narrativa que Aquino construiu sobre sua trajetó-ria, por meio de organização e preser-vação dos registros de suas atividades. As negociações entre diferentes modos de exercer o seu trabalho de mediação cultural (Sirinelli, 1996a; Gomes;

Han-Abstract

This paper presents some reflections provided by the exploration of the ar-chive of Professor Rubim Santos Leão Aquino (1929-2013), with a view to un-derstanding his professional trajectory (Dubar, 1998). This will be understood as modeling the trajectory of other teachers of his generation (Sirinelli, 1996b) who shared a common feeling structure. In order to qualify the docu-ments and establish a fruitful dialogue with them, we turn to the concept of

intellectual craftsmanship (Mills, 2009),

adequate to capture the narrative that Aquino built on his own trajectory, through the organization and preserva-tion of the records of his activities. Ne-gotiations between different ways of exercising his work of cultural media-tion (Sirinelli, 1996a; Gomes; Hansen, 2016), especially as a teacher, but also, attending different institutional spaces

* Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Faculdade de Educação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), 2015-2019. libanianacif@gmail.com

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O estudo da trajetória do professor Rubim Santos Leão de Aquino, objeto do presente artigo, se insere numa reflexão mais ampla, cujo interesse central se volta para melhor apreender aspectos particulares da história da profissão docente. O projeto de pesquisa sobre o qual se apoiam os resultados aqui apre-sentados focaliza os processos de formação e profissionalização docentes, suas estratégias associativas e as características de sua cultura profissional, desta-cando as trajetórias de professores que fizeram oposição a regimes autoritários e se envolveram em processos de construção democrática.

A noção de trajetória profissional, tal como propõe Claude Dubar (2005), permite uma percepção contextualizada das práticas sociais e da produção simbólica que, enquanto vão sendo produzidas, também contribuem para pro-duzir o percurso biográfico dos indivíduos. Para além de expressarem as suas subjetividades, os bens simbólicos então produzidos interpretam e produzem explicações a respeito do país, de seu campo profissional e dos acontecimentos políticos.

Inquirimos as motivações e estratégias docentes de intervenção na carrei-ra e na formulação de conhecimentos específicos acerca da conjuntucarrei-ra política do país, não apenas em sala de aula, mas também em outros campos de atua-ção, tais como o sindical, o midiático e o editorial. Nesse empenho, temos analisado as trajetórias de professores que lograram articular as suas práticas profissionais a projetos de construção democrática, investigando as suas for-mas particulares de atuação nas escolas, nos sindicatos e em outros espaços de mediação cultural (Sirinelli, 1986; 1996b) e disseminação do conhecimento.

O trabalho de mediação e disseminação dos conhecimentos históricos fez de Aquino um pesquisador atento às notícias divulgadas nos jornais, por meio dos quais ele constituiu uma série de dossiês temáticos versando sobre assuntos sen, 2016), frequentando diferentes

es-paços institucionais e variadas redes de sociabilidade política e intelectual, o constituíram como professor, historia-dor e militante.

Palavras-chave: trajetórias biográfi-cas; história da profissão docente; ensino de história.

and varied networks of political and in-tellectual sociability, built his identity as a teacher, historian and militant. Keywords: biographical trajectories; history of the teaching profession; tea-ching history.

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contemporâneos. Tornou-se autor de apostilas e, depois, de livros didáticos de história que alcançaram grande repercussão na época de seu lançamento. Atuando como professor de história do Ensino Médio em escolas privadas da cidade do Rio de Janeiro, desde a década de 1960 e até o final da primeira dé-cada deste século, Aquino compôs um Acervo de materiais didáticos, livros e dossiês temáticos que expõem o modo artesanal (Mills, 2009) como ele cons-truiu sua própria identidade profissional.

O tema ganha relevância renovada no atual contexto, de graves ataques aos processos e regras democráticos, incidindo sobre a liberdade de pensamen-to e expressão de professores atuantes nas escolas de educação básica, assim como nas instituições de ensino superior. A emergência de movimentos da sociedade civil, como aqueles ligados à educação doméstica e o autodenomi-nado Escola sem Partido, tem dissemiautodenomi-nado suspeitas sobre o trabalho dos pro-fessores, propugnando o controle moral e político-ideológico sobre o seu trabalho. Em paralelo, os processos de privatização, apostilamento2 e mercan-tilização do ensino com a formação de conglomerados, primeiro no ensino superior e mais recentemente na educação básica,3 estão exigindo nossa aten-ção e discernimento.

A abordagem da trajetória do professor Aquino permite iluminar as me-mórias de professores que também enfrentam condições políticas adversas no contexto atual, dando a ver em que medida a resistência às políticas autoritá-rias e a defesa da democracia e da justiça social são atributos formadores das identidades profissionais de professores que comungam uma visão da história engajada em projetos de construção democrática. Como pretendemos de-monstrar, sua trajetória é marcada por forte crença no poder da história, quan-do apropriada de moquan-do crítico e consistente. Revela, ainda, a persistência com que ele e outros professores de seu grupo de referência colocaram os conheci-mentos sobre a história de cada um, do país e do mundo a serviço da mudança social e política. Por fim, demonstra o quanto a partilha de um projeto comum, ainda que com diferentes matizes, enobrece o exercício de uma profissão que lida, permanentemente, com longas jornadas de trabalho e com uma dispersão extenuante de espaços, públicos e demandas, além de contar com salários nem sempre atrativos.

Como já assinalamos, a observação das relações e vínculos evocados no ofício de ensinar e na militância política do professor Aquino se deram em

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diálogo com o arquivo por ele legado. Para compartilhar as questões que nos mobilizaram nesse diálogo, dividimos o artigo em seis tópicos. O primeiro apresenta e descreve, ainda que brevemente, o referido arquivo; o segundo reúne alguns dados biográficos de seu detentor; o terceiro tece considerações a respeito de seu método de ensinar a disciplina história nas escolas onde atuou, com base nos documentos que ele preservou. O quarto tópico apresenta os espaços e redes de sociabilidade política e intelectual que ele frequentou. O quinto sinaliza a presença de traços de humanismo e marxismo em suas con-cepções da história, do ensino e da política. O sexto e último tópico defende a hipótese de que as modificações sociais e políticas que marcaram os anos 1990 e 2000 geraram novas estruturas de sentimento (Ridenti, 2000), diferentes da-quelas que constituíram as referências identitárias de Aquino e seu grupo, introduzindo novos valores e modos de ensinar, de se posicionar no âmbito político e de se relacionar afetivamente.4

1. Um Professor paradigmático

Aquino nasceu em 2 de março de 1929; ingressou na então Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) em 1958, obtendo os diplomas de bacharel e li-cenciado em História em 1963, época em que se ampliou sensivelmente a de-manda de ingresso no curso superior. Depois de formado, lecionou em cursos de pré-vestibular da Zona Sul do Rio de Janeiro – como os Cursos Boechat, Hélio Alonso e Miguel Couto-Bahiense – e em escolas da rede particular, tais como o Colégio São Vicente de Paulo e o Liceu Franco-Brasileiro, onde per-maneceu até a aposentadoria. Aquino também lecionou em instituições de ensino superior, como a Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e a Faculdade Gama Filho, embora a atuação no ensino superior não tenha sido uma prioridade em sua carreira, conforme declarou em entrevista publicada na revista Estudos Históricos (Aquino, 2008).

Cabe lembrar que, nas décadas de 1950 e 1960, os exames vestibulares eram múltiplos, isto é, ocorriam nas diversas instituições de ensino superior de modo autônomo, o que permitia que um candidato pudesse se inscrever em mais de um exame. Essa situação mudaria com a Reforma Universitária de 1968, que promoveu a unificação do exame vestibular. Porém, embora a uni-ficação tenha racionalizado a ocupação das vagas com a chamada dos

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candidatos excedentes para ocuparem as vagas que haviam ficado ociosas, a concorrência permaneceu muito acentuada. Isso levou a que os cursinhos pré--vestibulares se institucionalizassem e se tornassem um atraente nicho de ocu-pação de professores, seja pelo salário bem mais alto que a média, seja pelo prestígio que se associava à imagem pública dos professores de cursinho, mais capacitados para trabalharem com uma extensa lista de conteúdos em suas áreas disciplinares, além de deterem o poder de preparar o aluno para ingressar na universidade, contribuindo para aumentar as suas chances de obter um futuro mais promissor.

A implantação do Regime Militar, a partir de março de1964, resultou em algumas restrições e constrangimentos a artistas e intelectuais. Apesar disso, Aquino expunha abertamente suas críticas ao Regime e seu alinhamento a organizações de esquerda, o que o levou a enfrentar a prisão, em maio de 1973.5 Atuou no Comitê Brasileiro pela Anistia, na Comissão de mortos e desapare-cidos. Após a promulgação da Lei de Anistia, em 1979, passou a colaborar com o Grupo Tortura Nunca Mais, tornando-se seu vice-presidente, com mandato de 1985 a 1987. Foi segundo secretário e, posteriormente, diretor do Departamento de Educação e Cultura do Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio), entre 1993 e 1996.

Aquino escreveu diversos livros, entre os de cunho didático e paradidáti-co, assim como livros que resultaram de pesquisas sobre o modus operandi do regime militar, estudando as formas e aparelhos de tortura e pesquisando o paradeiro de militantes de esquerda que se encontravam desaparecidos (cf. Aquino, 2010). Seu currículo é marcado por inúmeras atividades de mediação cultural, incluindo palestras, cursos de formação política e de inclusão social, participação em programas de rádio e TV e cursos de formação continuada para professores, entre outras.

Faleceu em 16 de janeiro de 2013, aos 83 anos, deixando o apartamento de sala e três quartos, onde morava, em Copacabana, repleto de livros, discos e CDs, filmes, placas e medalhas, entre outros objetos que compõem o acervo que legou aos seus herdeiros. Junto a esse material veio, também, a responsa-bilidade de encontrar locais de guarda e de disponibilização para a consulta pública, satisfazendo um ideal que ele acalentava, o de democratizar a memória e o conhecimento histórico.

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2. O Arquivo como diário de bordo

A coleção de documentos que estamos tomando como fonte de dados constitui parte de um acervo bem maior e mais diversifi cado (Figura 1).6 Nesse recorte denominado pedagógico, o acervo reúne livros de sua autoria; materiais levantados para a redação de publicações e para preparação de aulas, com destaque para ilustrações, mapas e charges; algumas correspondências institu-cionais e muitos roteiros, resumos, planos de aula e apostilas de diferentes escolas nas quais ele atuou. Encontramos, também, os seus discursos de para-ninfo, cartas trocadas com pais de alunos e alguns manuscritos. Há um con-junto que foi denominado pela família como biblioteca pedagógica, que reúne os livros de sua autoria (entre livros didáticos, paradidáticos e de divulgação), publicações resultantes de dissertações e teses sobre livros didáticos e outras temáticas educacionais; livros de referência, tais como atlas e dicionários te-máticos, além de vários livros didáticos, sobretudo de origem francesa.

Figura 1 – Localização geral da documentação do Acervo Rubim Santos Leão de Aquino

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O acervo composto por Aquino ao longo de sua vida nos remete a um professor em tempo integral, denotando o acúmulo de diferentes tipos de ma-teriais. A heterogeneidade visível nos diferentes suportes para os conteúdos de interesse – áudio, visual e textual – em suas diversas formas e gêneros – jorna-lístico, acadêmico, didático e literário – sugere, ainda, as mudanças tecnológi-cas que ocorreram no período, assim como a busca de uma abordagem multidisciplinar que permeia o referido material, mobilizando conhecimentos históricos, sociológicos, econômicos e geográficos, em suas relações com a cultura e a ciência.

Entre as múltiplas narrativas que esse acervo encerra, alguns documentos deixam ver as relações de seu detentor com as tensões, as lutas e as conquistas daqueles que viveram os anos de recrudescimento do regime militar e os anos da distensão democrática, que culminaram com a promulgação da Constituição de 1988. Já a documentação sobre as décadas de 1980 e 1990 expõe aconteci-mentos extremos, como a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da União Soviética (1991). Tal ambiência política vai repercutir nas práticas profissionais e políticas de nosso personagem, que abraça a missão de promover uma ver-dadeira campanha de sensibilização sobre os problemas nacionais.

O seu arquivo é, ele próprio, expressão do tempo que ele dedicava a gistrar novos conhecimentos necessários para suas aulas e livros. Ele nos re-mete à expressão artesanato intelectual, cunhada por Charles W. Mills (2009). Para esse sociólogo, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio, sempre que encontra condições favoráveis para aperfeiçoar o seu ofício. Esse trabalho de construção de si como pessoa e como profissional é que constitui, na visão desse autor, o artesanato intelectual. Para que ele se realize, observa Mills, é necessário organizar um diário de campo, ou um arquivo pessoal, que ao reu-nir o que se faz como profissional e como pessoa, acaba compondo uma his-tória – a hishis-tória de uma trajehis-tória pessoal/profissional, que é única. Porém, ainda que única e particular, a trajetória de Aquino constitui um móvel de autorreflexão sobre as nossas próprias experiências como professores, histo-riadores e cidadãos.

Trata-se de um acervo que foi sendo constituído dia a dia, desde a hora em que o professor se sentava à mesa para tomar o café da manhã, ocasião na qual lia os jornais e já ia recortando as notícias e reportagens que iria reter para for-mar dossiês temáticos (que, em vista das normas de descrição arquivística, a

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equipe que organizou o referido acervo optou por designar como Dossiê – ver Figura 2). Esses itens parecem ter exercido dupla função: a primeira era informá--lo sobre os acontecimentos contemporâneos, e a segunda era constituir um conjunto de fontes de informação que embasariam as suas aulas, atualizando os assuntos e fornecendo diferentes visões sobre um mesmo processo histórico.

Figura 2 – Dossiês encadernados e Dossiê aberto

Esse comportamento por assim dizer ritualístico, tornou-se o hábito de toda uma vida e resultou na composição de mais de 70 volumes encadernados com capa rígida, com cerca de 300 páginas cada, distribuídos numa prateleira que se espraiava acima e em toda a extensão do corredor de seu apartamento. A maior parte desses volumes tratava da história contemporânea, de locais e culturas sobre as quais não havia, ainda, estudos consistentes e acessíveis.

Por fi m, acrescentamos que o conceito de artesanato intelectual de Mills tornou-se adequado para captar a narrativa construída por Aquino sobre sua própria trajetória, mediante organização e preservação dos registros de suas atividades. As negociações entre diferentes modos de exercer o seu trabalho de mediação política e intelectual – frequentando diferentes espaços institu-cionais e variadas redes de sociabilidades – o constituíram como professor, historiador e militante. E será na perspectiva dessa tríade identitária que pre-tendemos abordar as questões que nos motivaram a conhecer as suas causas políticas e as suas táticas de mediação intelectual, certos de que esse exercício de análise nos ajudará a compreender nossas próprias causas e táticas, no

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precário equilíbrio que estrutura a nossa profissão – de professores e historia-dores – e o mundo à nossa volta.

3. Um modo de ensinar a história

Estudar e compreender uma trajetória profissional como a do professor Aquino nos interessou, justamente, por contrariar o modus operandi que tem regido as nossas formas de atuação profissional, sempre premidas pela pressa, imersas na competitividade e no individualismo que as lógicas avaliativas e de reconhecimento profissional vêm gerando. A formação de redes de sociabili-dade e intercâmbio profissional, trabalhando para transmitir conhecimentos úteis à compreensão da história e de sua utilidade prática, constitui eixos que articularam as atividades desempenhadas por Aquino ao longo de sua trajetó-ria. Tais crenças e modos de agir configuraram, assim, uma militância política baseada na produção e mediação dos conhecimentos históricos, visando a sua disseminação para um público o mais amplo possível e em prol da formação de uma consciência cívica que, para se realizar como tal, deveria ser crítica, também.

Tais perspectivas nos levaram a buscar as conexões existentes entre os documentos pessoais, os processos pedagógicos e a profissão docente; o debate intelectual e os movimentos políticos, sociais e culturais que se articularam nos contextos históricos que ele atravessou. Para nos orientarmos nessa empreita-da, formulamos questões norteadoras que abordaremos em três movimentos: 1) Como ele praticou o trabalho de mediação do conhecimento histórico para adequá-lo ao ensino? 2) O que significou ensinar história durante o regime militar, e como esse contexto afetou sua vida e seu trabalho? E diante disso, que estratégias ele mobilizou para contornar as limitações ideológicas e polí-ticas que marcaram o período? 3) Em que medida seu acervo pessoal exibe características comuns a um grupo profissional – os professores – e de áreas específicas de elaboração intelectual – no caso, o ensino de história?

No arquivo, encontramos resumos, planos ou roteiros de aula, listas de conteúdos acompanhadas de recortes de jornal, entre muitos outros modos de organizar a massa de informações a serem preservadas. Esses documentos sugerem o que muitos professores de história fazem (com base no exemplo de

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Aquino) para tornarem compreensíveis para o público escolar conteúdos ex-tremamente complexos (ver exemplos de roteiro de aula na Figura 3).

Figura 3 – Roteiros de aula

Tais registros nos dão a medida do quanto a produção dos saberes docentes, tal como referiu Maurice Tardif (2002), envolvem processos contextualizados, interativos e personalizados, não se submetendo, como pode parecer, a uma padronização estática. Isso porque os contextos das salas de aula são heterogê-neos e dinâmicos, assim como variam os acontecimentos do contexto social e político mais amplo, a cada dia, a cada hora. Essas dinâmicas geram a necessi-dade de o professor de história promover constantes atualizações e ajustes em seus roteiros e planos de aulas, trabalhando incessantemente sobre um material aparentemente replicado, mas que, sob um olhar mais atento, mostra que foi recebendo incessantes atualizações e adaptações, pelo acréscimo de manuscritos e recortes de jornais ou pela junção de diferentes roteiros de aula.7

No Relatório das Atividades de Prática de Pesquisa no Colégio de Aplicação (CAp-UFRJ), ainda como aluno do curso de História, Aquino (1962,

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p. 4) problematiza o desconhecimento de muitos estudantes que ingressavam na Faculdade sem saberem qual era “a utilidade prática de ciência da história”. Nesse ponto, ele apresenta as suas críticas à FNFi que, em sua opinião, “nem bem formava professores, nem bem formava pesquisadores”.

Para ele, a FNFi comungava uma visão ultrapassada do conhecimento histórico, tratado como “saber enciclopédico, absoluto e estático”, exigindo dos alunos um “saber hiper especializado de fatos, detalhes, noções, muitas vezes desnecessários”. No entanto, Aquino reconhece que, apesar de tudo, corporificava-se em seu íntimo a certeza de que “a História é fundamental para a compreensão, tanto do passado como do presente e, quiçá, do futuro da humanidade” (Aquino, 1962, p. 4).

Em artigo publicado no Boletim de História da FNFi (Aquino, 1963) ele enfatiza o objetivo de repensar o “ensino de História do e no Brasil” com base na renovação dos livros didáticos. Esse interesse tornou-se a base de um pro-jeto que o acompanhou ao longo de sua trajetória, tendo começado a se mate-rializar em 1978 (Aquino et al., 1978), quando publicou o primeiro de uma série de livros didáticos. Ao todo, foram três coleções, a saber: História das Sociedades; Fazendo a História (1985) e Você é a História (1995-1996).

O primeiro livro publicado traz na capa a pintura de uma espécie de cor-nucópia de onde saem imagens de pessoas envolvidas em rebeliões populares, ocorridas em diferentes tempos e espaços, enquanto o segundo apresenta es-culturas de um artista popular. Assim materializadas nas capas dos livros, as representações do povo são os destaques, configurando a porta de entrada para o universo dos conhecimentos históricos. Tanto faz se aparecem como retrato e representação ou como produção artística de veia popular.8 O importante é, nessa perspectiva, dar visibilidade, colocar no centro e na partida a figura do povo, entendido como agente legítimo da transformação (ver Figura 4).

A presença de músicas e filmes junto ao material pedagógico e historio-gráfico acumulado demonstra como Aquino expandiu o foco da história po-lítica que, tradicionalmente, vinha sendo o eixo sobre o qual se organizava o currículo da disciplina, introduzindo novas abordagens, provenientes da his-tória social, com o estudo das classes subalternas das rebeliões populares, assim como da história cultural, complementando o conteúdo estudado com expres-sões das artes plásticas, da música e da literatura, de modo a aguçar a sensibi-lidade dos alunos, em particular, e dos demais leitores, em geral.

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Figura 4 – Capas dos livros citados

O terceiro livro, publicado em 1981, volta-se para o estudo das sociedades americanas. Em sua Apresentação, os autores lamentam as ausências de Francisco Jacques Moreira de Alvarenga e de Manoel Maurício de Albuquerque. Ambos eram professores de história e ambos sofreram a opressão do regime militar. Maneco, como era chamado carinhosamente, foi perseguido, preso e torturado por seu envolvimento em organizações de esquerda, e Jacques foi executado por ter sido julgado traidor da organização na qual militou.

Evocando a memória deles, Aquino fi rma o compromisso de manter a “vontade redobrada de prosseguir a luta por um mundo mais humano”. Nesse gesto, expressa os sentimentos de indignação e repúdio, partilhados por muitos professores que haviam sido presos ou intimados a depor, que perderam seus postos de trabalho ou foram impedidos de desenvolverem livremente as suas carreiras.

Desse modo, Aquino pautava o debate político que acreditava ser essen-cial e ao mesmo tempo promovia inovações no ensino e nos materiais didáticos de história, visando despertar a atenção e a curiosidade, bem como a refl exão e a capacidade crítica de seus alunos. Na mesma medida, conectava o ensino às questões de seu tempo, dando a ver algumas marcas de geração.

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4. Marcas de geração

A observação das redes de sociabilidade nas quais Aquino transitou, as relações entre os antigos professores e seus ex-alunos, assim como a passagem por determinadas instituições de ensino, se apresentam como uma corrente potente não só de transmissão política e ideológica, como também de conti-nuidade de projetos partilhados. Isso porque são as heranças formativas e as referências políticas e culturais que podem unir e, também, contrapor indiví-duos que pensam, agem e sentem a partir de referências comuns.

Para Marcelo Ridenti (2006, p. 237), a estrutura de sentimento que tem-perou a visão dominante entre as esquerdas brasileiras dos anos 1960 e 1970 foi marcada pela crítica à realidade nacional, associada a certa idealização do homem do povo, visto como simples e, em certa medida, ingênuo. Ainda que o autor se refira, mais diretamente, ao mundo da cultura artística, destacam-se algumas expectativas que eram amplamente compartilhadas, à época, tais co-mo o desejo de mudar a História para construir uma nova sociedade e um homem novo.

Foram variadas as vias de transformação social que os grupos de esquerda experimentaram, atuando por meio da arte e dos meios de comunicação de massa; pela educação escolar e popular; pela ação política e pela luta armada, entre outras formas de militância e resistência.

Conforme sublinha Ridenti (2006, p. 234), ainda que essa estrutura de sentimento fosse portadora de uma idealização do povo pelas classes médias urbanas, ela se ancorava em bases empíricas, tais como as Ligas Camponesas e as greves operárias do ABC paulista. O autor considera, ainda, ser essa uma variante nacional de outros componentes internacionais constitutivos dessas estruturas de sentimento, tais como as sucessivas revoluções socialistas do sé-culo XX, notadamente a soviética e a cubana.

Sendo a mais antiga organização de esquerda do Brasil, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) oferecia um ponto de partida para se compreen-der a realidade do país e avaliar as possibilidades de transformação dessa rea-lidade. A partir dessa matriz, uma miríade de organizações de esquerda vai compor as suas concepções e perspectivas de ação, muitas das quais radical-mente opostas à visão do PCB, mas sempre em diálogo com ele.

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Nesse aspecto, a visão de Aquino também foi temperada pela matriz desse partido, que contava com a participação de alguns membros que faziam parte de suas relações familiares. Em discurso como professor homenageado, Aquino menciona Pedro Mota Lima, pai de sua primeira esposa, Sara. Como jornalista e membro do PCB, Motta Lima exerceu influência formadora sobre Aquino, que reputou a ele “a grandeza de ter despertado a sua consciência política para o ideal comunista”.

Enfim, podemos atribuir aos protagonistas de esquerda da geração de Aquino a adesão a uma estrutura de sentimento denominada por Ridenti de brasilidade romântico-revolucionária. O termo romântico articulado a revo lucionário mescla aspectos subjetivos e objetivos partilhados, à época, por intelectuais e artistas, aos quais podemos acrescentar os professores e outros mediadores culturais de esquerda.

Em consonância com essa ambiência política e intelectual, Aquino reflete sobre a função docente, valorizando a educação, isto é, a formação do aluno, mais importante para ele do que o ensino dos conteúdos propriamente. Em suas próprias palavras, “O importante é a formação, acho que o aluno tem de ter consciência política. Tenho que procurar forçá-lo a pensar. Se ele pensar igual a mim, ótimo, mas se ele pensar por ele, ótimo também. O importante é ele não ser um cara passivo, idiota, que possa ser manipulado” (Aquino apud Fonseca, 2006, p. 164).

Fazendo um balaço de sua trajetória, Aquino reconhece ter sido muito difícil conciliar o trabalho, a militância política e a vida afetiva. Menciona a carga de trabalho que chegava a 54 tempos de aula por semana, sem contar as horas extras, muitas vezes saindo de casa às 6 da manhã e retornando à meia--noite. Mas logo reafirma que o magistério nunca foi sacrifício, e que não queria parar de trabalhar. E conclui:

Ser professor é ser educador. E ser professor de história é ser aquele privilegiado que trabalha com a mais política de todas as ciências, por isso não é à toa que foi o grupo mais perseguido durante a ditadura militar. [...] Então, enquanto eu tiver forças, quero continuar brigando. Quero ter espaço para isso na sala de aula, no sindicato. Onde puder, eu vou. [...] Vale a pena ser professor, eu não saberia ser outra coisa! Se fosse fazer uma nova opção profissional, seria de novo professor de história. (Aquino apud Fonseca, 2006, p. 164)

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Com essa citação, Aquino evoca os vínculos existentes entre docência, ensino de história e militância política. Também estabelece relações muito próximas entre os espaços institucionais onde desempenhou as suas funções profissionais e os demais espaços e redes de sociabilidade política e intelectual que frequentou. Segundo sua narrativa, se outra vida tivesse, voltaria a fazer do mesmo, pois era esse o sentido que ele atribuiu à sua vida, com base em sua identidade profissional.

Na próxima seção procuraremos demonstrar que a sua identidade profis-sional foi temperada pela formação humanista, assim como pela adesão ao marxismo como método de intepretação da história.

5. Humanismo e Marxismo

Aquino desenvolveu uma crítica historiográfica – sempre pensando como professor – ancorada em duas linhas de argumentação. A primeira discutia o fosso entre a história pesquisada e a história ensinada nas escolas. A segunda denunciava as manipulações da memória que a história oficial promovia, vi-sando manter o status dominante. As duas críticas conjugadas expressam as dificuldades dos professores de sua geração para com o ensino da disciplina, aprisionada em uma narrativa superficial e esvaziada de sentido.

A formação humanista proporcionada pela FNFi o ajudaria a compor uma visão holística e clássica. A esta ele viria a somar a perspectiva da luta de classes como motor da história, proporcionada pelo paradigma marxista. Ambas as abordagens são abrangentes e totalizantes, ainda que apresentem uma relação invertida com o tempo. Pois, se a visão humanista se volta para o passado das civilizações clássicas tomadas como modelos de virtude, o para-digma marxista aponta para a construção do futuro. Ou seja, o estudo das contradições estruturais do passado e do presente é abordado tendo em vista uma sociedade ideal, a ser construída em futuro próximo.

Desse modo, o sentimento de pertencimento – a uma causa, a um grupo, a um projeto de país – construía a sensação de plenitude que vinculava as ex-pectativas individuais e o campo de possibilidades explorado nas redes de so-ciabilidade pelas quais ele circulou. Por seu trabalho intenso e realizado em tempo integral (desde o primeiro jornal da manhã até a noite), Aquino esta-beleceu parcerias produtivas com os professores mais jovens, muitos dos quais

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convidou para serem coautores de seus livros didáticos. Também manteve atuais as relações que estabeleceu com ex-professores e colegas dos tempos de sua formação universitária, na FNFi.

Por fim, cabe estabelecer uma última relação que Aquino teceu entre a profissão de historiador e a consciência política adquirida em sua formação profissional. Trata-se da percepção de que esses dois atributos identitários forjados em sua trajetória se fundiram no exercício da docência.

É desse modo que Aquino promove a articulação entre formação teórica e experiência prática, proporcionando, tal como propôs José Luiz Werneck da Silva (1985), “os embates da história, na história”. Trata-se de identificar-se como historiador que não está alheio à sua própria história, bem como à his-tória dos outros, do país e dos grupos expropriados de suas memórias e, logo, sem história. O conhecimento e a apropriação da História são percebidos, portanto, como antídoto para a alienação.

Nesse caso, a trajetória de Aquino coloca em questão as atuais demandas de grupos conservadores como o Escola sem Partido. Defendendo uma edu-cação neutra e uma lei contra o que seus adeptos consideram ser “o abuso da liberdade de ensinar”, o movimento estimula os alunos a denunciarem os pro-fessores que emitirem opiniões de cunho político ou ideológico em suas aulas.9 Recusando a liberdade de pensamento e o debate de ideias, o referido movi-mento é a antítese de tudo o que Aquino defendeu.

Até as suas últimas declarações, Aquino buscou integrar características que o definiam como um professor modelar, uma pessoa despojada e sociável, um militante político disposto a doar todas as suas energias pela causa que abraçara. A nosso ver, essa busca de coerência foi o resultado do voluntarismo que entremeou as suas ações e visões políticas com as suas atividades profis-sionais e a sua vida pessoal.

Esse voluntarismo não era característica apenas de Aquino, foi compar-tilhado por outros professores de esquerda que pouco valorizavam as conven-ções e os símbolos de consumo, levando uma vida simples, vestindo-se e vivendo de modo despojado, recusando as insígnias de consumo que o capi-talismo impunha.10 Em contrapartida, a construção de uma autoimagem mo-delar para as gerações mais jovens, sobretudo (embora não apenas para elas), era essencial para dar suporte a certas ações e convicções políticas. Ser profes-sor já impõe uma postura modelar; ser profesprofes-sor de esquerda, crítico dos

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padrões dominantes e empenhado em fazer seguidores, exigia que seu trabalho fosse valorizado, na mesma medida, como possibilidade tanto de realização pessoal quanto de formação política.

Em depoimento a Selva G. Fonseca (2006, p. 163), Aquino expressa essa concepção quando dirige à entrevistadora esta questão: “Você não vai me per-guntar por que eu não fiz o mestrado? Não fiz porque achei que era mais im-portante dar aula no Segundo Grau; dando aula para ganhar a vida, mas também de graça”.

Cita o Projeto Mangueira, no qual dava aulas numa escola ao pé do morro, de graça, para o pessoal que trabalhava o dia todo e, mesmo assim, comparecia prontamente nas manhãs de sábado, a partir das 8 horas da manhã! Sua fala nos remete, também, ao Programa semanal que ele compartilhou com o pro-fessor Frederico Falcão e o radialista Paulo Passarinho, difundindo para os ouvintes conhecimentos sobre as histórias dos movimentos populares ocorri-dos no Brasil. A satisfação de contribuir para empoderar o povo simples, os trabalhadores, não tinha preço. Ademais, serviram de argumento para Aquino reafirmar as suas qualidades morais e seu valor profissional. Sua observação expressa, ainda, certa contrariedade em relação aos deslocamentos operados na estrutura de sentimento partilhada pelas novas gerações, como detalhare-mos adiante.

6. Novas estruturas de sentimento

Ao final de sua carreira, já é visível o avanço do processo de profissiona-lização do campo da História. Porém, esse avanço também foi acompanhado por certos deslocamentos, substituindo a legitimidade antes atribuída à adesão a um projeto revolucionário por uma nova ética, desta vez, ancorada na com-petência profissional.

O contexto internacional também contribuiu para desestabilizar as iden-tidades construídas em comunhão com uma ética revolucionária e uma apro-ximação política e afetiva com o povo. O avanço do neoliberalismo na Europa e nos Estados Unidos e a crise do socialismo nos países do Leste europeu se somaram à derrota dos candidatos de oposição e orientação mais à esquerda, com Lula e Brizola à frente nas eleições presidenciais de 1989.11 Desse modo, ainda que Aquino tenha reafirmado a sua fidelidade a um

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projeto de país de corte socialista e popular e que muitos de seus pares te-nham mantido essa posição, os deslocamentos seriam inevitáveis frente a essas mudanças, trazendo novas estruturas de sentimento que vão se tornan-do hegemônicas.

No lugar da ética revolucionária, passa a imperar uma nova sensibilidade, mais preocupada com o desenvolvimento da própria carreira profissional, fo-cada nas avaliações externas ou entre pares, turbinada pela busca incessante de produtividade e pela competitividade. A hipótese de Ridenti (2006, p. 256) é a de que as referências que vão compor a estrutura de sentimento dominante a partir das décadas de 1980 e 1990 podem ser agrupadas em torno à ideia de individualidade pós-moderna. Esta vem sendo caracterizada pela valorização exacerbada do “eu”, pelo declínio das visões totalizantes de mundo, pela valo-rização dos meios de comunicação de massa e do mercado e, finalmente, pela recusa a qualquer utopia.

No que tange à profissão docente, destaca-se o avanço do processo de proletarização a que estão submetidos os professores das redes públicas, de edu-cação básica, assim como do ensino superior. Esse processo tem se agravado com a precarização das condições materiais e a introdução de contratos que flexibilizam até mesmo as garantias trabalhistas nos sistemas públicos de ensino.12

Outro aspecto que agrava as condições de exercício da profissão rela-ciona-se com a fragmentação do tempo que permeia a organização do tra-balho docente, assim como as situações de violência a que estão sujeitos muitos professores que atuam nas chamadas áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro. Aspectos de ordem pedagógica também contribuem para esse processo, tais como a adoção de materiais didáticos padronizados e, na maioria dos casos, de baixa qualidade, impostos aos professores. Todos esses fatores têm dificultado, ainda mais, a adesão a um projeto profissional e de sociedade capaz de criar esperança e entusiasmo para com o exercício do magistério.

Porém, a despeito dos atuais desafios da profissão docente, as expressões particulares do acervo pessoal de Aquino exibem aspectos comuns aos profes-sores que exercem a profissão com a convicção de que o ato de ensinar é um precioso instrumento de formação política, ética e moral.

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Considerações finais

A trajetória profissional de Aquino, tal como se encontra inscrita em seu acervo, não deixa de afirmar a dimensão afetiva e pessoal do trabalho docente, que lida com seres humanos e, prioritariamente, com crianças e jovens, mas que não se limita a eles, podendo se ampliar para o público não escolar.

Sobre o trabalho de mediação dos conhecimentos históricos, suas publi-cações e seu próprio modo de lidar com o conhecimento da História do Brasil revelam que o engajamento político orientou as temáticas de pesquisa que Aquino escolheu desenvolver ao longo de sua trajetória. Entre elas, o estudo das rebeliões populares foi o foco sobre o qual articulou a sua contribuição, demonstrando a insuficiência da produção historiográfica da época, bem como a relevância do estudo dessa temática.

Interessante constatar que a produção historiográfica atual aprofunda o interesse em torno dessa questão. Para citar apenas dois exemplos, é notório o avanço alcançado no âmbito dos estudos sobre a escravidão e o período pós--abolição, assim como daqueles que destacam o protagonismo das populações afrodescendentes na História do Brasil. Por seu turno, a emergência das polí-ticas de direito à memória e à reparação da violação dos direitos humanos, perpetradas pelo Estado Brasileiro durante o regime militar, tem apresentado avanços, contando com a participação de representantes do poder público e de historiadores e agentes da sociedade civil.

Não quero, com isso, dizer que Aquino foi responsável por todos esses avanços, mas desejo, sim, lembrar que o seu investimento em produzir uma história pautada no reconhecimento do direito à memória e à história frutifi-cou, nos limites possíveis e a despeito de todas as contradições e retrocessos. Esses avanços são resultado de toda uma mobilização coletiva – com muitos movimentos sociais e políticos – que os antecederam e reforçaram a afirmação de práticas e instituições democráticas. Do mesmo modo, tais avanços nesse processo de construção democrática em nosso país podem explicar, ao menos em parte, a mobilização reacionária que se avoluma nos dias atuais.

A esse respeito, é interessante assinalar com Avritzer (1995) a pertinência de se ampliarem os marcos nos quais a democracia é pensada para além dos processos de continuidade e ruptura, de modo a perceber as oscilações que marcam a história social, política e cultural brasileira como resultado de lutas

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que interferem no equilíbrio, sempre instável, entre indivíduos e grupos que comungam ideias, instituições e práticas democráticas e aqueles que defendem ideias e medidas conservadoras e de caráter autoritário.

A paixão por levar o conhecimento que ele construiu e selecionou para o público popular – seja no Projeto Mangueira, no Programa de Rádio ou nos Cursos de Formação Política – demonstra como Aquino foi capaz de ampliar os espaços de mediação intelectual e política no seu magistério do pensamento crítico e na perspectiva de uma revolução socialista.

Foi com essas crenças e utopias que Aquino atravessou os tempos mais difíceis do regime militar. A ele, como a outros professores de sua geração,13 a crítica à desumanização capitalista deu sentido à vida pessoal, à conduta pro-fissional e ao engajamento político.

Sua trajetória não evoca uma, mas muitas histórias: da Educação, do en-sino de história, das escolas privadas do Rio de Janeiro; das resistências e lutas contra a Ditadura; dos professores de esquerda no Brasil; da profissão docente e da produção de livros didáticos de história, entre muitas outras.

Vista em seu potencial formativo, a trajetória de Aquino constitui, enfim, um convite à reflexão em torno de questões como autonomia intelectual, li-berdade de ensino e expressão, bem como da relevância ética e política da docência. É um convite, também, para se pensar criticamente sobre a realidade do nosso país, sobre as condições de trabalho dos professores, enfim, sobre as possibilidades – prementes – de construção de uma sociedade mais justa e solidária, com base em nosso envolvimento profissional.

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NOTAS

1 A pesquisa que embasa o presente texto contou com apoio do CNPq, mediante Bolsa de Produtividade em Pesquisa (2014-2018) e do Edital Universal (2014-2018), além da parti-cipação de duas bolsistas de Iniciação Científica com bolsa Pibic-CNPq.

2 O apostilamento do ensino consiste na prática de terceirização pedagógica, por meio da aquisição de kits de ensino oferecidos por grupos privados. Em geral, a escola (ou sistema de ensino) adquire apostilas para os alunos, treinamento para os professores e até provas e atividades previamente elaboradas, ampliando o seu controle sobre o processo de ensino e aprendizagem. Porém, na maioria dos casos essa opção retira a autonomia criativa dos professores e reduz as possibilidades de desenvolvimento do pensamento crítico entre os alunos em virtude da baixa qualidade desse material, em geral elaborado fora do contexto de interatividade social da escola e das salas de aula, despersonalizando o ensino e empo-brecendo a aprendizagem (ver IÓRIO; LÉLIS, 2015).

3 A manifestação mais significativa do fenômeno de mercantilização do ensino ocorre com as aquisições realizadas pela abertura de capital das empresas educacionais na bolsa de va-lores (IPOs), intensificadas a partir de 2007, destacando-se, no âmbito do ensino superior, a fusão dos grupos Kroton e Anhanguera. A tendência verificada a partir de 2017 é a de investir no mercado da educação básica, como se verificou com a compra, pelo grupo Kroton, do controle acionário da Somos, antiga Abril Educação. Com tal incorporação, a Kroton passou a controlar o Colégio Anglo Americano, a escola de idiomas Red Balloon e as Editoras Ática, Scipione e Saraiva, tornando-se um dos maiores conglomerados de edu-cação do país. Sobre os processos de mercantilização e oligopolização em curso no ensino superior, ver: GASPAR; FERNANDES, 2014.

4 Na obra de R. Williams, particularmente em Marxismo e Literatura (WILLIAMS, 2000), a noção de estrutura de sentimento tornou-se central para a análise das relações entre as restrições estruturais das ordens institucionais e as estruturas emergentes das formações interpessoais, sociais e culturais. De acordo com Filmer (2009) o conceito chama atenção para a complexidade dos processos de comunicação reflexiva da experiência, denotando

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tanto o seu aspecto de enraizamento na ordem quanto as expressões de mudança social que tais experiências evocam. No caso em estudo, o conceito permitiu articular os modos de lidar com o conhecimento científico e com as manifestações artísticas e culturais em prol de um trabalho de disseminação de conhecimentos e de visões de mundo, da sociedade, das memórias individuais e da própria história, de modo contextualizado e interessante, prenhe de sentidos e simbolismos. Sobre a aplicação do conceito à realidade brasileira, ver inspiradoras interpretações em Ridenti (2006 e 2000).

5 Conforme informou em depoimento, Aquino foi um dos últimos militantes de sua orga-nização a ser preso, tendo permanecido um mês na prisão, e seu processo só foi julgado 4 anos depois, em 1977 (cf. FONSECA, 2006, p. 162).

6 Os conjuntos documentais foram distribuídos pela família de modo a contribuir para posterior disponibilização à consulta pública em instituições de guarda pertinentes, tais como o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), que recebeu a documentação relativa às pesquisas sobre a Ditadura Militar no Brasil e à sua atuação no Comitê Pró--Anistia e no Grupo Tortura Nunca Mais; o Museu de Arte Moderna (MAM), que recebeu livros e DVDs de seu acervo; o Museu da República, que recebeu todo o material relativo à República; o Departamento de América Latina da PUC-Rio, que abrigou os documentos relativos a esta região, e o Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que recebeu cerca de 700 itens entre livros e vídeos.

7 Nesse caso, cabe ressaltar a diferença entre a replicação de um material de aula – de auto-ria do próprio professor que o utiliza e reutiliza adaptando-o aos contextos de sala de aula, como fazia Aquino –, e o material apostilado que, nos dias atuais, tem sido utilizado como material padrão, a ser aplicado pelos professores, em séries e disciplinas predefinidas, sob vigilância da Direção das escolas, restringindo fortemente a liberdade criativa e a autono-mia intelectual desses professores.

8 A capa do livro é composta por fotografias das esculturas de um artista baiano e, do que pudemos depreender da leitura da Apresentação do livro, elas representariam para Aquino um aspecto atemporal das representações de personagens da vida social.

9 Cf. https://www.programaescolasempartido.org/movimento; acesso em: 29 maio 2018, 10h15.

10 Em depoimento concedido à equipe de pesquisa, o professor Frederico Falcão, parceiro de Aquino no Programa denominado “Nas Ondas do Rádio”, menciona a simplicidade com que ele decorou sua casa quando foi morar com sua primeira esposa, deixando transpare-cer o quanto valorizava o lado afetivo da união, não se importando com questões de ordem material. Sinaliza, desse modo, um comportamento e um gosto que eram comuns aos pro-fessores (e outros profissionais) de esquerda de sua geração e que expressa, mais do que um gosto, uma concepção política e uma opção de vida.

11 A esse respeito, Marcelo Ridenti (2006, p. 254) qualifica o cenário internacional como des-favorável aos militantes de esquerda, citando como exemplos o avanço do neoliberalismo

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conservador representado pela dupla Reagan-Thatcher e pelo pontificado de João Paulo II, assim como pela glasnost e a perestroika na União Soviética.

12 O processo de flexibilização do trabalho docente tem como esteios a contratação provi-sória, o trabalho intermitente e a dobra do tempo de trabalho em uma mesma escola, sem garantias trabalhistas para a segunda matrícula, entre outros procedimentos que confluem para a crescente precarização das condições desse trabalho (ver OLIVEIRA, 2004). 13 O conceito de geração é aqui entendido tal como nos propõe J. F. Sirinelli (1996a), ou seja, como grupo que partilha referências e vive acontecimentos comuns.

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