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Helena Morley: personagem plural

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Academic year: 2021

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Daiane Reis

HELENA MORLEY: PERSONAGEM PLURAL

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de mestre em Literatura.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosana Cássia Kamita.

Florianópolis 2013

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Reis, Daiane

Helena Morley: personagem plural / Daiane Reis; orientadora, Rosana Cássia Kamita - Florianópolis, SC, 2013. 108 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa de Pós-

Graduação em Literatura. Inclui referências

1. Literatura. 2. Obra literária Minha Vida de Menina. 3. Adaptação fílmica Vida de Menina. 4. Literatura x Cinema.

I. Kamita, Rosana Cássia. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura.

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Este trabalho é dedicado a minha família e ao meu noivo que me incentivaram durante todo o período de produção.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que me incentivaram durante a execução desta dissertação: a professora Rosana Cássia Kamita que esteve sempre pronta a sanar minhas dúvidas, a me indicar excelentes leituras, a me enviar e-mail nos fins de semana falando sobre algum lançamento de livro de algum teórico que seria compatível com meu tema. Agradeço a meus pais, Telma Pereira e Julio Reis que suportaram minha ausência durante vários meses para que eu pudesse estudar. À minha irmã, Keity Reis, que sempre pegava livros para me emprestar na universidade que estudava, além de me mandar mensagens diárias de incentivo. A meu noivo, Guilherme S. Luz, que aguentava minhas crises de mau-humor durante o processo de escrita da dissertação e que sempre me incentivava a estudar.

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Minha vida de menina ocupa uma posição especial entre os livros escritos no Brasil. Diário de uma adolescente, composto sem intenção de arte, em fenômeno por todos os títulos curioso, amanheceu clássico, vindo a conquistar imediatamente, sem alarde, um lugar de destaque em nossas estantes.

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RESUMO

O presente trabalho propõe uma leitura da personagem Helena Morley, da obra literária Minha Vida de Menina, e de suas características tão marcantes a uma personagem feminina do século XIX. O diário da garota, escrito durante os anos de 1893 a 1895, abre discussões sobre a escrita feminina numa época em que a mulher não tinha acesso à educação, porém muitas escreviam e apresentavam bastante senso crítico. Por se tratar de uma menina à frente de seu tempo, que ao contrário da maioria das mulheres, fala o que pensa, critica o que não considera correto, a obra despertou o interesse da cineasta Helena Solberg, que em 2004, produziu a adaptação Vida de Menina. Ao falar em adaptação, muitas são as discussões levantadas. Virginia Woolf critica a adaptação, pois a considera inferior à obra literária, já Robert Stam afirma que mesmo estando abaixo da Literatura, por se tratar de uma questão cronológica, a adaptação sempre trará benefícios ao livro, entre eles, irá complementá-lo, fazendo com que fique mais conhecido entre os espectadores/leitores. O motivo de a obra ser escrita por uma mulher e do filme produzido por cineastas (também mulheres), a questão do feminismo é abordada, na qual haverá o questionamento se houve intenção feminista em ambas as obras, ou se a questão da autoria foi motivo para tal classificação. No entanto, no decorrer da obra, percebe-se a fraqueza do homem diante de algumas mulheres; a mulher que tem opiniões e vontades; a ausência de um vilão e de um protagonista que luta para que tudo termine bem, diferenciando Vida de Menina do cinema tradicional.

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ABSTRACT

The present research proposes a reading of the character Helena Morley, the literary work of Minha Vida de Menina, and its salient features a female character of the nineteenth century. The girl's diary, written during the years 1893 to 1895, open discussions on women's writing in a time when women did not have access to education, but many wrote and introduced very critical sense. Because it is a girl ahead of its time, that unlike most women, speaks her mind, criticizes what she does not consider correct, the work attracted the interest of filmmaker Helena Solberg, who in 2004 produced the adaptation Vida de Menina. Speaking at adapting many discussions are raised. Virginia Woolf criticizes the adaptation because it considers inferior to literary work, as Robert Stam argues that even if below the literature, because it is a chronological issue, adapting always bring benefits to the book, among them, will complement it by making to make it better known to viewers / readers. The reason for the work to be written by a woman and the movie produced by filmmakers (also women), the issue of feminism is discussed, in which there was no intention to question whether feminist in both works, or if the question of authorship was reason for such classification. However, throughout the work, realizes the weakness of man before some women, the woman who has opinions and wants, the absence of a villain and a protagonist who struggles to finish everything well, differentiating Vida de Menina of the traditional cinema.

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO I: OBRA MINHA VIDA DE MENINA 1.1 A AUTORA ... 16

1.2 DIÁRIO E SUA FEMINIZAÇÃO ... 21

1.3 TEMAS ABORDADOS EM MINHA VIDA DE MENINA ... 31

CAPÍTULO II: FILME: VIDA DE MENINA 2.1 CINEASTA E ROTEIRISTAS: HELENA SOLBERG E ELENA SOÁREZ...45

2.2FILMES DE LONGA-METRAGEM...47

2.3 BAZIN E SUAS CONTRIBUIÇÕES SOBRE ADAPTAÇÃO... 52

2.4 ISMAIL XAVIER E A ADAPTAÇÃO...56

2.5 ROBERT STAM: ADAPTAÇÃO COMO PRÁTICA INTERTEXTUAL...57

2.6 VIDA DE MENINA EM FOCO...60

CAPÍTULO III: O CINEMA NA DÉCADA DE 90 E AS RELAÇÕES DE GÊNERO 3.1 FEMINISMO...73

3.2 TEORIA FEMINISTA DO CINEMA NO BRASIL E SUAS INFLUÊNCIA...77

3.3 A DESCONSTRUÇÃO DO SUJEITO MASCULINO...79

3.4 AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM UMA SOCIEDADE ANDROCÊNTRICA...80

3.5 CINEMA DA RETOMADA E SUA RECEPÇÃO...82

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CAPÍTULO IV: CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA E DO CINEMA

4.1 O GÊNERO CONFESSIONAL NA LITERATURA E NO CINEMA ... 89

4.2 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E CINEMA ... 93

4.3 A NARRADORA ... 99

CONCLUSÃO...101

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Introdução

Alice Dayrell Caldeira Brant, cujo pseudônimo é Helena Morley, nasceu em Diamantina, Minas Gerais, e durante três anos de sua vida, no período dos 13 aos 15 anos, escreveu um diário, onde contava fatos corriqueiros, acontecimentos que ocorriam consigo, com sua família e com qualquer pessoa da cidade que fosse conhecida. Este diário só foi publicado em 1942, quando a autora já estava casada, com filhos e netos e que a estimularam a publicar tais relatos. Prova disto é o prefácio escrito pela autora, na qual ela afirma:

Esses escritos, que enchem muitos cadernos e folhas avulsas, andaram anos guardados, esquecidos. Ultimamente pus-me a revê-los e ordená-los para os meus, principalmente para minhas netas. Nasceu daí a ideia, com que me conformei, de um livro que mostrasse às meninas de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples que levávamos naquela época. (MORLEY, 1998, p. 13)

A obra foi nomeada de Minha Vida de Menina e foi traduzida para outros idiomas, tais como, inglês, francês, italiano. Alguns escritores, entre eles, Guimarães Rosa, Alexandre Eulálio e a própria tradutora americana Elizabeth Bishop, levantaram suspeitas quanto à autoria da obra, desconfiando de alterações feitas por autores amigos e até mesmo pelo marido de Alice (Helena Morley), Augusto Mário Caldeira Brant. Porém como não se teve acesso aos manuscritos, esses mesmos autores afirmam que sendo ou não Helena a responsável pela autoria de tais relatos, o livro continua sendo de uma qualidade indiscutível.

Roberto Schwarz em Duas Meninas (1997) compara Helena Morley à personagem de Dom Casmurro, Capitu, estabelecendo elos entre ambas, como quando se refere aos finais das narrativas: ―O percurso de Capitu, que termina mal, não é mais verossímil que o de Helena, que termina bem. Até pelo contrário, pois a virada completamente infeliz da vida daquela custa a crer‖ (SCHWARZ, 1997, p. 101). O teórico também classifica a menina Morley de realista, afirmando não condizer com o tempo em que viveu, sendo considerada uma obra com características realistas e com semelhanças às obras de Machado de Assis.

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Minha Vida de Menina apresentaum narrador em primeira pessoa, até mesmo por ser tratar de um diário, e este narrador

[...] em primeira pessoa é sempre um personagem. Na medida em que se nomeia, passa a existir como personagem e não mais somente como narrador. O narrador em terceira pessoa é uma voz, um discurso. O narrador em primeira pessoa é uma voz dupla: a voz do narrador e a voz do personagem. (FERNANDES, 1996, p. 127) E essa voz da personagem/narradora é impossível de ser desvinculada, sendo que o leitor a vê como única, pois é com essa narradora-personagem que acontecem todas as histórias narradas, é ela que enfrenta problemas, sofre, diverte-se, com fatos que acontecem consigo e com os habitantes de Diamantina. A maioria deles não tem seu nome citado, pois a menina os substituiu por pseudônimos, e talvez tenha optado pela troca para não se comprometer com ninguém após a publicação ou até mesmo porque o livro foi publicado numa época em que mulheres não escreviam, e a utilização de pseudônimos fez-se necessário para que a própria autora não fosse discriminada pela sociedade patriarcal da época.

Durante as páginas do diário, o leitor encontrará histórias de ladrões astutos que viravam cupins, conhecerá a vizinha Siá Rita, sempre acusada de roubar galinhas por Helena, saberá sobre superstições, as quais, muitas eram desacreditadas pela menina, como por exemplo, no caso de sentarem-se treze pessoas à mesa, uma morreria; outras ela até acreditava, afirmando terem uma justificativa lógica, como por exemplo, jogar sal no fogo para espantar a visita, sendo que a mesma ouviria o barulho do sal estalando e iria embora por perceber ser indesejada.

Helena conta sobre os castelos que criava, demonstrando por meio deles, seus sonhos, desejos, vontades de mudar de vida, de ajudar o pai com as despesas domésticas, de poder tirá-lo das lavras de diamantes, que já estavam esgotadas. Mostrava também sua fé em Nossa Senhora, a qual sempre atendia seus pedidos, dando-lhe até mesmo ideia de vender o broche da mãe, que futuramente seria seu, para confeccionar um uniforme escolar novo. Helena criticava as mulheres por serem tão submissas, por viverem trancadas em casa à espera do marido, cuidando dos filhos, sem se divertirem e ainda acreditarem que a vida era feita de sofrimentos. Criticava também a política, que

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segundo ela, não atendia as necessidades básicas da população, como iluminação, água encanada.

A obra literária foi adaptada em 2004 ao cinema por Helena Solberg e Elena Soárez, conquistando seis Kikitos no 32º festival de Gramado, sendo um dos prêmios por melhor roteiro. A obra cinematográfica focou na personagem Helena Morley, abordando seus conflitos interiores, retratando seus sentimentos, seus anseios, dúvidas, alegrias, mostrando ao espectador uma personagem crítica que vivia numa sociedade patriarcal e capitalista, porém que era repreendida constantemente por seu comportamento ―rebelde‖, considerado anormal às garotas da época.

Helena Solberg, em entrevista, afirmou que o nome da adaptação seria ―O brilho das coisas‖, porém não agradou muito à equipe fílmica, então optou por deixar o mesmo nome do livro, retirando somente o pronome possessivo ―minha‖, ficando assim: Vida de Menina. A cineasta escolheu iniciar o filme com uma identificação da personagem-narradora Helena Morley, na qual situou o espectador do período em que se passava a história (final do século XIX), do local (cidade de Diamantina), da economia fracassada das lavras de diamantes.

Na adaptação Vida de Menina houve corte de personagens, inserções de cenas que não havia no livro, tais como, o beijo entre a personagem protagonista e seu primo Leontino, substituições, como a experiência de tomar sorvete pela primeira vez, que no livro mostra ser oferecido por Seu Guerra e no filme por Leontino. Porém, como já foi citado, Vida de Menina é uma adaptação, e segundo Linda Hutcheon ―os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois criadores‖ (HUTCHEON, 2011, p. 43), deixando claro que Helena Solberg fez seu trabalho de adaptadora, lendo a obra original, interpretando-a e criando algo novo sobre, enfatizando aquilo que para ela era considerado relevante.

O que Helena Solberg fez foi uma transcriação, segundo Haroldo de Campos, que consiste na criação sobre uma tradução e não numa mera transposição do original. Haroldo trabalha com a ideia da tradução de obras estrangeiras, na qual ele defende que toda obra de qualidade que se encontra numa língua diferente da língua nativa do tradutor, deve ser traduzida. Porém ele afirma que tradução não se resume a traduzir as palavras de uma língua à outra, considerando que a tradução é arte. E utilizando-se das palavras de Paulo Rónai, Haroldo cita em seu livro Metalinguagens e outras metas:

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O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível. (CAMPOS, 2010, p. 34)

E o trabalho executado por Solberg resume-se justamente em ―traduzir o intraduzível‖, de adaptar um diário escrito de uma menina provinciana, cheia de sonhos e vontades, e fazer com que esta se transformasse numa obra cinematográfica bastante premiada em festivais de cinemas brasileiros.

Nesta adaptação não houve infidelidade, como acusaria Virginia Woolf, mas sim uma influência de outros textos, chamada de intertexto por Robert Stam, que se baseou nas teorias de intertextualidade de Kristeva, Bakhtin e Genette. Stam afirma que, infelizmente, as obras adaptadas são consideradas por alguns como infiéis, inferiores, e que não conseguem superar a literatura.

Assim como Stam, André Bazin e Ismail Xavier defendem a adaptação, sendo que para Bazin a adaptação surgiu como um fator positivo a todas as artes, pois ao adaptar um romance, este será colocado em evidência, atraindo a atenção dos leitores. Já para Ismail, o preconceito quanto à adaptação será vencido por meio dos artifícios utilizados pelos cineastas, que utilizando técnicas diferenciadas, conseguirão conquistar o público leitor e espectador.

Para Hutcheon, uma adaptação só é concebida como tal se o leitor tiver conhecimento da obra adaptada, caso contrário, será mais um filme. Ela comenta que ―de um lado, isso é uma perda; de outro, significa simplesmente experienciar a obra em si mesma, e todos concordamos que até mesmo as adaptações devem manter-se independentes‖ (HUTCHEON, 2011, p. 174). Isso se aplica à Vida de Menina, que pode ser entendida sem uma leitura prévia da obra literária, porém é uma perda não conhecer o livro.

Ao adaptar Minha Vida de Menina, a cineasta optou por deixar a personagem exatamente com as características originais, sendo estas, respondona, desobediente, preguiçosa, enfim, características não aceitáveis a uma mulher do século XIX, pertencente a uma sociedade patriarcal, na qual o homem é o que tem voz e é a autoridade. E fazendo essa escolha, Helena Solberg rompeu com a teoria do cinema clássico, onde o homem é o herói, que desperta paixões em uma mocinha, e que sempre a mulher pecadora e má será punida. Ou seja, quebrou com a

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teoria do voyeurismo, na qual a mulher é um objeto no cinema feito para ser olhado, que desperta o desejo masculino. Vida de Menina é baseada na teoria feminista do cinema que

tem como um dos principais objetivos estabelecer um percurso histórico da presença da mulher no cinema e desconstruir os fundamentos que encaminham diferentes possibilidades de interpretação dos filmes. Estabelecer uma nova visão sobre a linguagem cinematográfica é uma forma de subverter as bases nas quais se sustenta historicamente o cinema. (KAMITA, 2009, p. 174)

E isso ocorre a partir do momento que uma personagem forte enfrenta os preconceitos de seu tempo, questiona certas crenças, desobedece ao pai, escolhe primeiramente, formar-se professora para poder sustentar a si e sua família. Na obra em questão, o pai de Helena é visto como um sujeito fracassado, que insiste na lavra já esgotada de diamantes e, consequentemente, não consegue sustentar a família.

O objetivo desta dissertação é analisar a obra literária Minha Vida de Menina e a obra fílmica Vida de menina com ênfase na personagem Helena Morley, observando a escrita feminina no século XIX, bem como o papel da mulher na sociedade da época.

Este trabalho tem como objetivo geral o estudo sobre o livro Minha Vida de Menina e filme Vida de Menina, enfatizando a personagem Helena Morley, e as cineastas HelenaSolberg e Elena Soárez. Ao trabalhar a obra literária, o diário e o gênero confessional serão o foco. Ao trabalhar a obra fílmica, a adaptação será abordada, assim como o ponto de vista de seus defensores e opositores. O cinema será relacionado à teoria feminista do cinema, na qual o objetivo é desconstruir a imagem do sujeito masculino na sociedade, demonstrando as relações de gênero, principalmente na década de 90.

No primeiro capítulo o objetivo é apresentar a autora Helena Morley, suas características, os temas abordados pela narradora-personagem em Minha Vida de Menina, enfatizando a escrita feminina em diários e defendendo a ideia de que realmente o diário foi escrito por Helena Morley.

No segundo capítulo a obra cinematográfica é o foco, na qual o trabalho das cineastas HelenaSolberg e Elena Soárez será abordado, assim como o filme Vida de Menina. O principal objetivo deste capítulo

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é mostrar a adaptação como uma forma de arte, considerando uma intertextualidade, desfazendo o conceito de ―infiel‖ à obra literária.

No terceiro capítulo o objetivo é demonstrar a mulher como sujeito ativo, que tem desejos, que mesmo vivendo em uma sociedade androcêntrica, busca seus direitos. Neste capítulo há o reconhecimento de uma narradora-personagem e de uma cineasta nada tradicional.

No quarto capítulo há uma relação entre Literatura e Cinema, na qual a proposta é avaliar a narradora dentro do livro e no filme, como ela aparece em ambas, quais as diferenças e semelhanças existentes, bem como relacionar o gênero confessional na Literatura e no Cinema.

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I

Obra Minha Vida de Menina 1.1 A autora

Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, nasceu em 28 de agosto de 1880, na cidade de Diamantina, Minas Gerais, e faleceu em 22 de junho de 1970, no Rio de Janeiro. Sua mãe, Alexandrina Brandão Dayrell, pertencia a uma família mineira tradicional e seu pai, Felisberto MoyrellDayrell, era minerador, descendente de ingleses e foi o responsável por incentivar Helena a escrever, o que a fez tomar gosto pelas anotações quase diárias, sendo uma tarefa que foi executada durante os anos de 1893 a 1895, enquanto cursava a Escola Normal. Esses escritos retratavam o dia a dia da autora, abordando crenças da comunidade onde vivia e seus costumes arraigados, papel social da mulher, religiosidade, festas populares, convivência com os parentes mais abastados, contradições.

A menina tinha mais três irmãos, Felisberto Dayrell Junior, Tereza Dayrell e João Brandão Dayrell. Esses, na obra escrita por Alice ganharam pseudônimos, Renato, Luizinha e Nhonhô, respectivamente. Os irmãos aparecem com frequência em seus relatos, nos quais ela demonstra em alguns momentos a inveja que sentia dos irmãos, por serem homens, e a irmã era constantemente comentada como forma de comparação com a autora, que se mostra impaciente, respondona, agitada, diferente de Luizinha.

No ano de 1900, Alice rendeu-se às convenções da época e casou-se1 com Augusto Mário Caldeira Brant, que aparecera na obra como Leontino, mudaram-se para o Rio de Janeiro e tiveram seis filhos. Augusto, primo e marido de Alice, trabalhou no governo de Getúlio Vargas, foi jornalista e escritor, advogado, economista e presidente do Banco do Brasil na década de 50.

A caçula do casal, Sarita Brant, atualmente com 98 anos, escritora e residente em Copacabana, Rio de Janeiro, afirma que a mãe sempre contara histórias aos filhos, contara sobre os vários pretendentes que tivera, entre eles, um francês que prometera após o casamento morarem num palácio, contara também como foi a chegada ao Rio de Janeiro, após o casamento e o nascimento dos dois primeiros filhos do

1

Gostaria de enfatizar que nem toda mulher transgressora opta em não se casar. Helena escolheu constituir família, optando por casar-se com o primo.

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casal. Sarita relembra que após a publicação de Minha vida de menina, em 1942, a autora recebeu inúmeras visitas de meninas que adquiriram a obra e que sonhavam conhecer a autora. Conta também que após a publicação, aos 62 anos, a mãe dedicara-se somente a preparar palestras que apresentara à família e aos demais visitantes, na qual contava suas histórias, sempre de maneira que prendia a atenção de todos. Ela ainda afirma: "Mamãe era uma pessoa muito inteligente e extrovertida. Sempre que entrava numa sala, tomava conta da situação. E se conservou assim até o fim da vida." 2

Um dos filhos de Sarita Brant, neto de Alice, Eduardo Brant Almeida dos Reis 3 vive em Minas Gerais, cronista do jornal Hoje em dia por quinze anos e colunista do Estado de Minas há cinco anos. Escritor e membro da Academia Mineira de Letras, Eduardo lançou em 2010 sua obra O Breviário de um canalha, na qual ele garante não ser uma autobiografia, mas sim a história sobre um falecido amigo.

Em entrevista ao CCC, cantos, crônicas e críticas, Eduardo comenta sobre sua família, citando o nome do pai de Alice, porém ele afirma ser Custódio o seu descendente e não Felisberto, sendo talvez uma confusão feita por ele, pois ao responder uma das perguntas feitas sobre sua família mineira, mostra não conhecer totalmente sua história:

CCC: Carioca de nascimento, membro da Academia Mineira de Letras. Como Minas entrou na sua história?

Eduardo: Em 1713, um tatatataravô chamado Ambrósio Caldeira Brant foi eleito vereador em São João Del Rey, e a casa dele funcionava como câmara. De lá os quatro filhos dele, Custódio, Felisberto, num sei que, num sei que, saíram e sempre trabalhavam juntos, embora o Felisberto fosse o cabeça. Os quatro foram para Paracatu, ficaram ricos e depois foram ser comendadores em Diamantina. Descendemos do Custódio. Minha família por parte de mãe (Sara Caldeira

2

Entrevista feita com a filha de Helena Morley, Sarita no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3009200508.html.

3

Por meio de e-mail, correspondi-me com Eduardo. Ele foi muito atencioso, porém não sabia muito sobre sua avó e pediu para que eu entrasse em contato com sua filha Ana e combinasse para visitar sua mãe Sarita, em Copacabana. Não obtive resposta de Ana.

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Brant) toda descende dele. Até recentemente, a única pessoa que havia nascido no Rio era minha mãe. Meu avô era jornalista no Rio. E lá ela casou-se e eu nasci.4

A família de Alice é composta por escritores, tendo a filha (Sarita), neto (Eduardo) e bisneta (Ana Reis, filha de Eduardo) da mesma área, sendo que seu marido também escrevia. E segundo Carlos Drummond de Andrade, Augusto Mário Caldeira Brant escrevia tão bem que por não aparecerem os manuscritos do diário da menina, ele fora considerado um dos suspeitos de ter mais que editado a obra junto com Augusto Meyer e Cyro dosAnjos 5.

A participação do Sr. Augusto Mário Caldeira Brant foi muito mais significativa do que se pode pensar de início, foi ele que por ―[ter] muito orgulho da esposa; [...] se dispôs a juntar os velhos papéis e cadernos e prepará-los para publicação‖ (BISHOP, 1996, p. 108). Foi também o Sr. Brant quem participou da escolha do pseudônimo de Alice: o Morley originou-se do sobrenome de uma avó inglesa de Alice; já Helena foi uma escolha do Sr. Mário Brant. Mas, a participação do marido de Alice no livro vai além, em entrevista a O Globo, Alice Brant dizia: ―O livro só tem bobagens, bobagens de menina. [...] Não sei como é que tanta tolice obtém essa repercussão. Eu nunca pensara em publicar o que quer que fosse, mas meu marido e Sarita [uma das filhas] teimaram que não houve jeito. O Mário procedeu uma censura severa, suprimindo muita coisa que parecesse indiscreto, por atingir, através de críticas, pessoas ainda vivas. (MACHADO, 2000)

Percebe-se pelo depoimento da autora que seu marido interferiu na obra, retirando trechos classificados como ―indiscretos‖, haja vista que na

4

Entrevista com Eduardo, filho de Sarita, pelo CCC, presente na página: http://bregaccc.blogspot.com.br/2010/11/entrevista-eduardo-almeida-reis.html.

5

Famoso por seus romances de educação sentimental, de abordagem mais psicológica, introspectivo, como O Amanuense Belmiro e Abdias

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nota à 1ª edição, Alice afirma que nenhuma alteração foi feita, somente nomes modificados e algumas correções básicas.

Janet Malcolm em Mulher Calada (2012) fala sobre Ted Hughes que interferia nas obras de sua esposa Sylvia Plath, sendo que ela escrevia e ele ditava o que seria publicado. Por meio das palavras de Hughes, pode-se perceber que ele confessa a interferência na obra de Plath.

[...] O último deles continha entradas escritas ao longo de vários meses e eu o destruí porque não queria que os filhos dela fossem obrigados a lê-lo (naquele momento, eu considerava o esquecimento parte essencial da sobrevivência). O outro desapareceu. (HUGHES in MALCOLM, 2012, p.11)

Malcolm caracteriza Hughes de infiel, tanto na vida amorosa do casal, na qual houve separação devido à traição de Hughes, quanto na vida profissional, onde o marido editava, mexia nos escritos da esposa. Para Malcolm ―Sylvia Plath será sempre jovem e implacável com a infidelidade de Hughes‖ (MALCOLM, 2012, p.14).

Hughes também agia como biógrafo, quando numa das edições falava de si mesmo em terceira pessoa, contando sobre Plath. Em cinco biografias sobre a escritora, a mais criticada foi a Bitterfame (Fama Amarga) de Anne Stevenson, na qual a biógrafa afirma que ―toda biografia de Sylvia Plath escrita enquanto seus familiares e amigos ainda estão vivos precisa levar em consideração a vulnerabilidade dessas pessoas, mesmo que sua abrangência possa sofrer com isso‖ (MALCOLM, 2012, p. 17). Ao afirmar isso, foi vítima de críticas e revoltou os leitores, pois para eles, numa biografia não deve haver vulnerabilidade, deve-se contar tudo, abrir o jogo, sem se importar com os sentimentos alheios. Ao publicar tal biografia, Anne afirma que teve grande ajuda, quase que coautoria da irmã mais velha de Hughes, Olwyn Hughes, havendo ainda mais crítica, pois para os leitores, Anne estava sendo usada pelos irmãos Hughes que queriam manifestar sua opinião, mostrar seu lado, defender sua posição, sendo que Hughes era constantemente acusado de alterar escritos, esconder, destruir.

Malcolm concorda que Anne fora usada pelos irmãos, porém para ela, isso é um fator extremamente positivo e rico aos leitores, pois

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Ted Hughes sempre se mostrou muito reticente sobre sua vida com Sylvia Plath; não escreveu memórias, não dá entrevistas, seus escritos sobre a obra de Sylvia Plath (em várias introduções a volumes reunindo seus poemas e textos em prosa) falam sempre da obra e só tocam na biografia quando ela tem alguma relação com a obra. E não ocorreu a ninguém, é claro, que se Hughes decidira de fato falar sobre seu casamento com Sylvia Plath por intermédio de Anne Stevenson, isso só fazia aumentar, e não diminuir, o valor da biografia. (MALCOLM, 2012, p. 19)

Entretanto, há esta declaração de editor por parte de Hughes, ele confessa que destruiu obras, deixa a entender que escondeu outra, mas em Minha Vida de Menina não há esta confissão por parte do marido Augusto e nem por qualquer outra pessoa interessada, deixando os leitores em dúvida quanto à autoria da obra.

Quanto a essa desconfiança devido à autoria, Roberto Schwarz afirma que

Alexandre Eulálio a certa altura observa que nada impede o leitor de imaginar que a escrita tão espontânea da guria seja obra da autora já adulta, e que se trate então de uma impostura literária. Mas conta ainda que Guimarães Rosa em conversa dizia que neste caso o diário seria até mais extraordinário, ―pois, que soubesse, não existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal reconstrução da infância”. Noutro ensaio posterior, em que retoma e amplia o seu prefácio, Alexandre acredita que a hipótese do ―pasticho de gênio‖ deva ser afastada, e conclui, agora como que sabendo mais, e criando novo mistério, que ―não resta senão louvor a leveza da mão experiente que preparou para o prelo os velhos cadernos da mocinha [publicado pela primeira vez em 1942], sem deturpar em um nada o caráter genuíno deles. Aqui a autora seria mesmo a menina, mas teria havido o toque final de um literato hábil e discreto, empenhado em preservar a peculiaridade dos escritos‖. (SCHWARZ, 1997, pp. 45-46)

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Schwarz cita ―literato hábil e discreto, empenhado em preservar a peculiaridade dos escritos‖, deixando claro ao leitor que este seria o marido Augusto, ou qualquer outro literato,frisando ser este uma figura masculina. E por que desconsiderar o mérito da obra à Alice? Não poderia ter sido escrito por ela quando ainda adolescente? Será que uma mulher não teria a capacidade de escrever um diário como Minha Vida de Menina? Tal obra foi e é digna de elogios e de estudos mais aprofundados, por ser realmente muito bem escrita, por conter fatos que interessam à história do Brasil e por ter como narradora uma adolescente (mulher), numa época em que muitas eram privadas da escrita e da leitura.

Minha vida de menina já recebeu mais de dezoito edições e foi traduzido para outras línguas, para o inglês por Elizabeth Bishop, para o italiano por Giuseppe e Giovani Visentin e para o francês por Marlyse Meyer, teve também uma edição portuguesa de Guimarães Editores, de Lisboa, com apresentação de Alexandre Eulálio.

Marlyse Meyer afirma que nunca teve acesso aos originais, sendo que ouvia as mais diferentes versões, ora que os originais haviam sido queimados, ora que estavam guardados pela família que não os mostraria com vergonha da caligrafia e ortografia precária da menina. Elizabeth Bishop também contribui para a desconfiança de autoria, pois alega que o marido Mário Brant acompanhou todo o trabalho de tradução feito por ela, e devido a isso, afirma ter sido ele o autor da nota à 1ª edição, na qual há a vontade expressa da autora de deixar suas memórias às netas.

O mais importante é que quando se discute sobre a autoria da obra, esta permanece na mídia, nos comentários e discussões sobre quem a escreveu, se sofreu alterações, portanto nunca se saberá se a obra foi mesmo escrita por Alice (Helena) quando menina, e essa desconfiança faz com que a obra se torne cada vez mais interessante, pois se a autora o escreveu em sua infância mostra o quão à frente de seu tempo ela estava, mas se fora escrito enquanto adulta por ela ou por qualquer outro escritor, mostra o grau de excelência deste, porque conseguiu pensar como uma menina descendente de ingleses, pobre, moradora de uma pequena cidade, que enfrentava diversos problemas por pensar tão diferente das demais mulheres da família e da sociedade.

O que esta dissertação se propõe a defender é a ideia de que Minha Vida de Menina foi escrita por Alice enquanto adolescente e que toda essa dúvida que gera ao seu redor só a favorece, pois com a obra em evidência o número de leitores só aumenta e como é de excelente

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qualidade literária, os elogios vão surgindo e mais leitores o diário conquista.

1.2Diário e sua feminização

É superficial entender o diário íntimo apenas como receptáculo dos pensamentos privados, secretos, algo assim como um confidente surdo, mudo e analfabeto. Escrevendo o diário não somente me expresso mais abertamente que com qualquer pessoa, senão até que comigo mesma.

Susan Sontag

Minha vida de menina é escrito em forma de diário, onde a autora relata suas aventuras cotidianas, seus sentimentos, os casos que aconteciam na cidade de Diamantina, Minas Gerais, conversa consigo mesma, pois o diário é

praticado na intimidade, onde é possível estar emocionalmente nu e formalmente decomposto, o diário procede de um reconhecimento de si pela escrita que, efetuada em solidão, faz crer que quando alguém fala/escreve sobre si mesmo tende a ser mais sincero do que quando se dirige a outrem. (CUNHA in MIGNOT et al, 2000, p. 159) Jurema Chagas (2007) comenta em sua dissertação Blogs pessoais: A representação do eu na vida cibernética que nem tudo por ser dito no diário, pois este poderá ser publicado, deixando de ser uma escrita para si e passando a ser uma escrita para outros, sendo que nem tudo deve ser contado aos ―outros‖. E conta sobre a origem do diário íntimo que surgiu na Antiguidade como forma de memorização dos fatos, como lembretes pessoais e coletivos. Só no Renascimento Europeu é que o diário aparece como um meio autobiográfico, como forma de pensar o ―eu‖.

No entanto, é difícil precisar quando de fato se deu tal virada no modelo autobiográfico dos diários, pois mesmo os críticos chegam a ser contraditórios na definição de períodos ou estabelecimento de marcos. Há produções

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diarísticas tanto na cultura ocidental quanto na oriental, o que de fato dificulta a asserção de datas e o levantar de bandeiras teóricas. Um dos mais famosos diários de que se tem registro é o Makura No Söshi (The Pillow Book), de Sei Shönagon (966/67 – 1013), escrito no século I no Japão. Classificado segundo um estilo de escrita rápida, a zuihitsu, o livro de Shönagon é composto por uma coleção de cadernos que contém fofocas, reminiscências, observações pessoais, descrições do dia a dia, poesia e qualquer outro assunto que pensasse ser interessante a respeito da vida na corte Heian. Não é difícil observar que esses cadernos são muito semelhantes aos que eram escritos durante o período Imperial Romano, quando vigorava o epiméleiaheautoû, e através deles posso ilustrar o problema das demarcações temporais, haja vista que escrever sobre si mesmo é uma atividade essencialmente humana tão antiga quanto a própria escrita. (CHAGAS, 2007, p. 26) Jurema Chagas mostra curiosidade em relação ao surgimento do diário tal como existe hoje: secreto, escrito para si, pessoal, afirmando ser uma característica da burguesia do século XVIII. Porém, ela busca na história e encontra o diário do britânico Samuel Pepys (1633 – 1703) que escreveu sessenta e quatro volumes contando sobre o que se passava consigo, seus segredos, vontades, casos de infidelidade, intimidade conjugal, gostos, viagens. Após sua morte, os cadernos foram descobertos e levados a Cambridge, onde ele estudou. Em decorrência do sucesso do diário comercial de John Evelyn (1641-1706), os cadernos de Pepys passaram por um trabalho de tradução e em 1825 foram publicados numa versão mais resumida. De 1875 a 1879 houve mais uma versão do diário, com base na decifração deixada pelo próprio Pepys e em 1970 a 1983 houve a publicação da versão definitiva feita por LathamandMatthews.

Os Diários de Samuel Pepys representam um documento histórico inestimável. Para os historiadores, eles oferecem uma visão sem igual da vida, das tendências e dos pensamentos existentes na Londres do século XVII, cuja narrativa testemunhal detalhada e fascinante do Grande Incêndio de Londres e da Peste Bubônica

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estão entrelaçados aos registros de caráter pessoal e confissões, contando em detalhes a vida londrina da época, incluindo as intrigas da Corte. Pepys era confidente do Rei Carlos II. Deve ter sido um taquígrafo fluente, pois, como ele mesmo conta em seus diários, taquigrafou a narrativa feita pelo próprio Rei Carlos II da sua fuga de Worcester. O interessante é que quando tentaram transcrever os Diários em 1819, não se deram conta de que estavam escritos em taquigrafia, e pensavam tratar-se de algum código secreto. E mais interessante ainda é que o próprio Samuel Pepys havia deixado entre seus papéis a chave para a decifração da sua taquigrafia. Na realidade, tratava-se do sistema de taquigrafia muito conhecido na época, o sistema de Thomas Shelton (sistema usado por Isaac Newton em suas anotações), ao qual Pepys introduziu variações pessoais. (CHAGAS, 2007, p. 27)

A escrita de diários teve tanta repercussão que interferiu na forma de viver das famílias, pois se acreditava que para escrever suas intimidades, o autor precisaria de um espaço que preservasse sua individualidade e no ensaio Um teto todo seu de Virgínia Woolf, em 1929, há especificado essa necessidade de um quarto para essa mulher burguesa, para que em sua solidão, pudesse passar às folhas de seu diário tudo que se ocorria consigo.

Nesse sentido as formas de literatura se confundem com o espaço privado da casa, na leitura ou na produção textual, identificando, com isso, o sentido de refúgio e isolamento necessários para o/a escritor/a se debruçar sobre a ficção literária ou sobre a escrita autobiográfica. Os diários de Woolf podem ser considerados um ótimo exemplo para ilustrar a escrita de si enquanto o refúgio de um eu que, para ser íntimo e sincero, quando da revelação dos afetos, exige a privacidade, mesmo para textos que repousem apenas sob os olhos de quem os redige. (CHAGAS, 2007, P. 28)

Mesmo não se tendo um estudo histórico concreto que comprove como surgiu a escrita autobiográfica, há especulações em diversos

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países e por vários estudiosos, entre eles, por Lygia Fagundes Telles, no Brasil, que atribui o surgimento do diário ao nascimento da escrita feminina, pois

Antes, a mulher era explicada pelo homem, disse a jovem personagem do meu romance As Meninas. Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica. Não esquecer que as nossas primeiras poetisas encontraram naqueles diários e álbuns suas inspirações, era naquelas páginas secretas que iam se desembrulhando em prosa e verso. Vejo assim nessas tímidas arremetidas o nascedouro da literatura feminina, na maioria, assustados testemunhos de estados d‘alma, confissões e descobertas de moças num estilo intimista – o chamado estilo subjetivo com suas dúvidas e esperanças espartilhadas como elas mesmas, tentando assumir seus devaneios. (TELLES, 2007, p. 671)

O diário no século XX tornou-se popular no país, caiu no gosto dos leitores e virou produto procurado frequentemente no mercado literário. As características desse gênero apontam para a fragmentação da narrativa por meio de anotações cronológicas e a presença de um testemunho, aquele que (con)viveu (com) os fatos e os relata. Entretanto, o leitor pode levantar questionamentos sobre a veracidade dos fatos, que dificilmente se terá uma resposta concreta, sendo que a intenção do autor é a de fazer um registro dos acontecimentos que vivenciou, sendo estes reais ou não, sempre passará ao leitor a ideia de real, cabendo a ele aceitar ou duvidar.

Sem contar que há certa marginalização do gênero, uma vez que as narrativas autobiográficas são consideradas ―coisas de mulher‖, por tratar de fatos tidos como corriqueiros, banais, que mostram o cotidiano da família. Para Chagas essa marginalização é decorrente de um fator histórico, pois entre os séculos XIX e XX,

quando as construções culturais de gênero passaram a definir e determinar os campos do masculino e do feminino, restringindo para este segundo os espaços domésticos – num sentido depreciativo para o privativo – enquanto para o primeiro eram destinados os espaços públicos – num sentido valorativo do termo. Em outras

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palavras, pode-se dizer que para os homens era destinado o campo da razão e do trabalho intelectual, enquanto para a mulher era atribuído o campo da emoção e das atividades afetivas. (CHAGAS, 2007, p. 30)

Para ―Beatrice Didier, o diário íntimo se caracteriza pelo fracionamento, pelo descontínuo e pela ausência de elaboração‖ (MUZART, Zahidé apud Didier, 1991, p. 17). Ou seja, não precisa ser autor consagrado para escrever um diário, pois este, por não necessitar de elaboração, pode ser até escrito por uma mulher, ficando evidente o preconceito de gênero. Para Lejeune (1993, p.11) ―esses cadernos são obras de moças como os seus bordados, os seus cadernos de estudos. Elas compõem neles a sua imagem moral como a imagem da sua silhueta na psique‖. A mulher continua sendo associada à figura da moça do lar, que borda, cuida da casa e escreve nos seus momentos de ócio. Prochasson associou o diário a uma prática educativa que

deve contribuir para a educação moral (é o exame de consciência cotidiano) e ensinar a escrever (é o exercício de redação). As pessoas têm um caderno para fazer isso, ao lado de outros cadernos... fazem progressos no tocante ao estilo e à virtude (ou ao menos à ortografia). (PROCHASSON, 1998, p. 16)

Com certeza, durante a prática da escrita de um diário, a ortografia irá se aperfeiçoar, assim como durante as anotações haverá um exame de consciência, porém não são somente estas as utilidades de um diário, tanto é que muitos são publicados pelo grau de excelência que possuem, assim como o diário de Helena Morley, que após a publicação foi elogiado por literatos como Guimarães, Oswald, e até mesmo pelo crítico Schwarz que afirma que a obra é tão boa quanto às da segunda fase machadiana, Dom Casmurro, por exemplo, e acrescenta ―que os romances da primeira fase machadiana não se comparam ao livro de Helena Morley em qualidade literária‖ (SCHWARZ, 1997, p. 92).

Na obra Minha vida de menina, com toda simplicidade, Helena narra suas impressões sobre festas religiosas, casos de dor de dente, superstições correntes, causos que lhe contavam velhos parentes, festas populares, medo de ladrões astutos (que viravam cupins), comidas, bebidas, hábitos sociais, decepções, padres mexeriqueiros, carnavais,

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fala de escravidão, de morte, de religião, e também de galinhas, de esperança no futuro, e de vestidos já gastos, tudo isso organizado por meio de datas, na qual se apresentavam em ordem sucessiva, estabelecendo uma linearidade e continuidade a eventos muitas vezes díspares, sendo que cada dia contado acontece algo de diferente, por exemplo: No dia 15 de fevereiro, Helena narra sobre uma surra que levou de sua avó, a primeira. Já na sua próxima anotação feita no dia 18 de fevereiro, ela conta que entrou para a Escola Normal e tece comentários sobre. Por conseguinte, na nota do livro, a autora afirma que ―nesses escritos nenhuma alteração foi feita, além de pequenas correções e substituições de alguns nomes, poucos, por motivos fáceis de compreender‖ (MORLEY, 1998, p. 14). Sendo assim, supõe-se que a menina não escrevia todos os dias e ela deixa a entender isso quando cita: ―eu estava com a pena na mão pensando o que havia de escrever, pois há dias não acontece nada‖ (MORLEY, 1998, p. 73), talvez essa seja uma explicação à descontinuidade nas datas. Na verdade, o diário não obedece à ditadura do calendário, sendo usado somente para registrar fatos significativos.

Voltando à afirmação feita na nota pela autora quando ela afirma que houve substituições de nomes, pode-se perceber que foram substituídos por pseudônimos e esse ato pode ser justificado uma vez que a autora foi uma das primeiras escritoras femininas e para evitar tamanha exposição trocou seu nome e de diversos membros da família, por exemplo, o pai chamado Felisberto, ganhou o pseudônimo de Alexandre, a mãe Alexandrina, passou a chamar-se Carolina. Talvez tenha optado por utilizar pseudônimos porque muitas das pessoas citadas ou parentes deveriam estar vivos e qualquer comentário poderia ser fruto de desagrado e desentendimentos.

Nessas páginas do seu diário, Helena não somente registra o que acontece, mas dá o seu parecer, faz comentários, faz críticas sobre acontecimentos decorrentes. O diário é um gênero intimista que aborda o autoconhecimento, onde há o ―segredo da gaveta e a liberdade de se estar sozinho frente à folha branca‖ (MUZART in MIGNOT et al, 2000, p. 187).

A certa altura, a menina conta que escreve o diário a conselho do pai, para guardar as suas lembranças para o futuro. A tônica dos cadernos, entretanto não é esta, pois se trata sempre de identificar algo que vá além, esclareça alguma coisa ou ensine a evitar uma armadilha, que é

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quando a seus próprios olhos Helena dá provas de valor. O registro pelo registro, ou o passado pelo passado, não são com ela. Digamos que o cotidiano da família e da cidade passa pela vistoria de um espírito juvenilmente desejoso de notar e entender, que imprime aos episódios a tensão da racionalidade, bem acima da crônica provinciana. (SCHWARZ, 1997, pp. 76-77)

Ao relatar qualquer fato corriqueiro, a menina apresenta seu parecer, mostra indignação, critica, deixando claro ao leitor que tem opinião, que assim como afirmou Schwarz, gosta de entender o que acontece com ela e com as pessoas ao seu redor. Um exemplo é quando ela conta que seus pais se casaram por amor, após a morte de seu avô paterno, que costumava escolher os maridos das filhas, e ao relatar tal fato, expõe sua ideia, mostrando-se egoísta, em parte.

Eu gosto de mamãe querer tanto assim a meu pai, mas acho que a vida das minhas primas que têm mães menos agarradas aos maridos é melhor que a nossa. Nunca vi uma prima ter de largar a casa dela e vir ficar na Chácara, como nós sempre ficamos para mamãe ir atrás de meu pai. (MORLEY, 1998, p. 82)

Por meio do fragmento acima, percebe-se que Helena provocou um colóquio consigo mesma, e esta conversa está presente durante todo o diário, pois ela narra acontecimentos e tece comentários, questionando a si mesma. E por meio de seus escritos seus segredos são revelados, faz-se um mergulho no seu eu, descobrindo o que ela pensa, o porquê de determinados comportamentos, sendo que

A superfície textual privada dos diários permite ao sujeito revelar os seus ―segredos‖, indicando as diversas faces que constituem seu eu, mesmo que com certas restrições impostas pela linguagem ou mesmo pelo risco de uma leitura por outro, ilustrado outrora pelo mito literário do diário roubado. (CHAGAS, 2007, p. 35)

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Quando se escreve um diário tem-se o intuito de reviver um fato, ou seja, vive-se tal acontecimento propriamente dito e quando começa a se transcrever as páginas de um diário, vive-se novamente. Porém esta escrita não está totalmente segura, sendo que a qualquer momento poderá ser lida por outrem. Em Minha Vida de Menina, a avó Teodora era analfabeta e adorava ouvir as histórias que a neta escrevia em seu diário e a avó exigia que houvesse a leitura de um acontecimento e que este não fosse somente relatado ―por boca‖. Segundo Helena, a avó valorizava muito mais os fatos que estavam escritos em seus cadernos, pelo simples motivo de serem escritos, de terem dado maior trabalho.

A autora, ao contar o que acontece em sua vida, não apresenta a menor vontade em publicar seus escritos, encarando-o somente como um simples confessor, um diário que sabe de todas as suas histórias mais íntimas e que ela confia. ―Vou escrever aqui o que eu fiz com ela e não tenho vergonha, porque é só o papel que vai saber‖ (MORLEY, 1998, p. 78),ao afirmar isso, mostra que trapaceou sua irmã com os presentes que havia prometido após a festa de aniversário, mas que não sente remorso, pois nunca ninguém saberá, somente as folhas do diário. E sobre essa tarefa de escrever sua rotina, acrescenta:

Cada dia acho mais razão no conselho de meu pai de escrever no meu caderno o que penso ou vejo acontecer. Ele me disse: ―Escreva o que se passar com você, sem precisar contar às suas amigas e guarde neste caderno para o futuro as suas recordações.‖ (MORLEY, 1998, p. 68)

Mostrando assim o incentivo do pai à prática de escrever e o desejo de guardar recordações, que ela possa ler futuramente e lembrar-se da sua adolescência em Diamantina.

Philippe Lejeune, em O Pacto Autobiográfico, 1975, afirma que o diário íntimo é um escrito autobiográfico e que autobiografia é uma narrativa, onde a individualidade de alguém está sendo exposta por ela mesma, numa perspectiva retrospectiva e que isso implica necessariamente a identidade de autor, personagem e narrador. Já Luiz Costa Lima mostra que a autobiografia não pode ser conceituada, apresentando-se sempre instável, pois há uma diferença entre autobiografia vista pelo historiador e pelo ficcionista.

Luiz Costa Lima, numa outra vertente, circunscreve a discussão sobre a autobiografia na

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sua relação com o discurso histórico e com a narrativa ficcional; a distinção entre a ficção e a autobiografia deriva, afirma, do papel que cada um concede ao eu: em relação ao historiador, o máximo que o autobiógrafo pode oferecer é um testemunho de boa-fé e, em relação ao ficcionista, tem direitos mais limitados, na medida em não pode ―inventar‖, mas apenas relatar o vivido. Assim, para Costa Lima, a autobiografia se caracteriza pelo seu caráter sempre instável – condenada a um eterno claudicar entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional. (DUQUE-ESTRADA, 2009, p. 48)

Quanto a Minha Vida de Menina, comonão há registros dos manuscritos, não se sabe se houve invenção de acontecimentos ou se foram reais, porém cabe aceitar que os fatos estão narrados e ao lê-los como autobiografia, o leitor acreditará que realmente ocorreram.

Na autobiografia, é impossível desvincular a figura da narradora e da personagem, sendo que quando a autora Alice critica a sua mãe que não a obriga a estudar, e devido a isso, ela é má aluna (p. 64), o leitor enxerga a narradora e ao mesmo tempo personagem Helena Morley sofrendo com a falta de cobrança da mãe. Outro aspecto da obra autobiográfica é que ela

prevê e admite falhas, erros, esquecimentos, omissões e deformações na história do personagem; possibilidades, aliás, que muitas vezes o autor mesmo - num movimento de sinceridade próprio à autobiografia - levanta: escreverá sobre sua vida aquilo que lhe é permitido, seja em função de sua memória, de sua posição social, ou mesmo de sua possibilidade de conhecimento. (ALBERTI, 1991)

Esta sinceridade exacerbada aparece constantemente nos relatos da menina, um exemplo é quando ela afirma que ―Renato hoje amanheceu com febre de caxumba. Ficou com uma cara de bolacha de todo tamanho. Eu gostei da doença porque os parentes vieram ao mesmo tempo visitar e a casa ficou cheia e alegre‖ (MORLEY, 1998, p. 93). Obviamente que a garota não diria à sua família, e principalmente ao irmão, que ficou feliz com sua doença, mas ao diário ela revelou tal alegria. Portanto, por meio desse relato e de outros, talvez mais cruéis,

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conhece-se mais a personagem, deixando o leitor mais íntimo de Helena, pois ao ler a obra, aquele percebe o quanto a menina vai se revelando, conhece suas vontades, pois segundo Costa Lima (1988, p.294) a autobiografia é apenas o testemunho do modo como alguém se via a si mesmo, de como formulava a crença de que era o outro que atendia pelo nome de eu.

Para Elizabeth dos Santos Braga

A memória autobiográfica insere-se na memória histórica. O ato de lembrar não é autônomo, mas enraizado no movimento interpessoal das instituições sociais – a família, a classe social, a escola, a profissão, a religião, o partido político etc. – a que o indivíduo pertence. (BRAGA, 2000) E isso reflete com frequência nos relatos de Helena, quando ela conta sobre o casamento arranjado de sua tia Iaiá, deixa transparecer os costumes da época, a tristeza da tia em casar-se com alguém que não conhecia, e todos os demais sentimentos de raiva, medo que a mulher sentia ao saber que se casaria com alguém escolhido pelo pai.

1.3 Temas abordados em Minha Vida de Menina

―Eu regulo por mim; tenho inveja das pessoas boas e santas, mas não posso deixar de ser o que sou.‖ (MORLEY, 1998, p. 40)

Durante toda a obra, Helena se intitula uma menina desobediente, preguiçosa, respondona, que não é vaidosa, esfomeada, tendo também suas qualidades, entre elas ser econômica, habilidosa no trabalho, esperta. É adorada por professores e principalmente por sua avó materna, e por consequência odiada por algumas colegas de sala de aula e pela maioria dos parentes ciumentos. Schwarz a classifica como: ―prima pobre, neta preferida e adorada, filha irrequieta, irmã líder, estudante vadia‖ (SCHWARZ, 1997, p. 76).

Helena é uma adolescente que se diferencia de todas as outras mulheres de sua família, das colegas da escola, pois ela pensa e age destoando com as outras mulheres da família e da sociedade de Diamantina, tendo consciência disso: ―Vou fazer quatorze anos e já raciocino mais de que todos da família‖ (MORLEY, 1998, p. 174).

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Schwarz aborda Helena como uma personagem e a classifica de mulher realista, ao compará-la a personagem Capitu, de Machado de Assis.

Isso posto, Helena está longe de ser uma heroína romântica, em oposição radical a seu mundo, e ninguém mais família, impregnada de religião, entendida em diferenças sociais ou consciente das vantagens da casa disciplinada do que ela. [...] Sem favor, estamos diante da multilateralidade abundante e diferenciada que distingue o grande romance realista. (SCHWARZ, 1997, p. 87) E Helena ganhou essa ―classificação‖ por ser crítica, mostrando nas páginas de seu diário o que considerava errado, criticando atitudes e pessoas que para ela estavam em desacordo, questionando o porquê de viver, quando afirma: ―Vocês não pensam para que a gente vive? Não era melhor Deus não ter criado o mundo? A vida é só de trabalho. A gente trabalha, come, trabalha de novo, dorme e no fim não sabe se ainda vai parar no inferno. Eu não sei mesmo para que se vive‖. (MORLEY, 1998, p. 121)

Toda essa esperteza está presente também nos negócios, pois todos que a mãe inicia não funcionam, acabam abrindo falência, e segundo a menina, isso ocorre porque a mãe não segue seus conselhos.

Além disso, por agir diferente de todas as outras mulheres da família, ela sempre era alvo de críticas, sendo que todas eram ensinadas a permanecerem mais em casa enquanto solteiras, mas Helena adorava sair, brincar na rua, sempre que chegava à sua casa era o mesmo discurso da mãe:

A mulher e a galinha Nunca devem passear; A galinha bicho come, A mulher dá que falar.

E depois diz: ―era por minha mãe nos repetir sempre este conselho, que fomos umas moças tão recatadas. Vinham rapazes de longe nos pedir em casamento pela nossa fama de moças caseiras. (MORLEY, 1998, p. 121)

Porém sempre que ouvia isso da mãe, rebatia, dizendo que as moças que permanecem tanto tempo em casa não são vistas por ninguém e se não

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aparecem nas ruas, impossível de serem conhecidas; neste caso, os homens que vinham pedi-las em casamento eram os que sabiam da fama de ricas que tinham, por o pai achar um caldeirão de diamantes. A menina consegue perceber o casamento por interesse, e destrói a teoria da mãe que casaram porque eram moças de família.

Quanto às outras mulheres da família, estas exerciam seus papéis com capricho, mostrando-se sempre boas mães, boas esposas, zelando pelas suas reputações e de seus filhos.

Ninguém na família se preocupa consigo. Todas as minhas tias só se ocupam dos maridos e dos filhos. A pessoa delas não vale nada. Nunca vi mamãe ou qualquer de minhas tias comer uma coisa antes dos maridos e dos filhos. Se alguma coisa na mesa é pouca, elas nem sabem o gosto. Mamãe eu ainda acho que é mais abnegada que as outras, porque além dos cuidados com os filhos, é a que tem mais agarramento com o marido. É até falado na família. Quando eu reclamo o pouco caso que ela faz em si e a preocupação conosco e com meu pai, ela responde: ―Você verá quando for mãe. Você não sabe o ditado: ‗Desde que filhos tive nunca mais barriga enchi‘? É a pura verdade. Minha vida são vocês e seu pai. Se vocês comem, eu fico mais satisfeita do que se fosse eu. (MORLEY, 1998, p. 225)

Já a maioria dos homens, como costume da época, eram considerados superiores às mulheres, e Helena percebe essa valorização exacerbada do homem, inferiorizando a figura feminina e critica.

Meu pai é muito querido na família. Todos gostam dele e dizem que ele é muito bom marido e um homem muito bom. Eu gosto muito disso, mas fico admirada de todo o mundo só falar que meu pai é bom marido e nunca ninguém dizer que mamãe é boa mulher. No entanto, no fundo do meu coração, eu acho que só Nossa Senhora pode ser melhor que mamãe. (MORLEY, 1998, pp. 265-266)

Também mostra por meio de seus relatos, homens submissos que são sustentados pela mulher e que sofrem violência física da mesma, como é

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o caso de Magna que bate constantemente no esposo Mainarte, mostrando que em algumas famílias as mulheres se impunham, mesmo que se utilizando da violência.

As mulheres criticam Helena por ser muito feliz, ressaltando que quem é muito feliz, sofre posteriormente. E a menina não as ouve, alegando que não fará de sua vida um mar de sofrimentos como todos afirmam que deva ser. E ela acrescenta:

O dia pior para mim é o dia seguinte a qualquer festa. Mamãe é que tem pena de mim porque diz que eu não vou ser feliz com este gênio de querer aproveitar tudo; que a vida é de sofrimentos. Mas eu é que não serei tola de fazer de uma vida tão boa uma vida de sofrimentos. (MORLEY, 1998, p. 52)

Na verdade, o sofrimento é símbolo de salvação, pois o artista deve ser como um santo, que descobre na alma o grau mais profundo de sofrimento enquanto homem e este homem/artista transforma tudo em arte, assim como afirma Susan Sontag em O artista como sofredor exemplar (1987). Porém o artista é este sofredor exemplar ―não tanto para a disposição sensível para as dores em si, mas pela capacidade de empregar o sofrimento na economia da arte (SONTAG, 1987, p. 56). E é isso que se espera de Helena, que ela aprenda a sofrer, pois a família considera sua felicidade em demasia prejudicial a sua vida e acredita que na vida se deva aprender o que é o sofrimento. Portanto para estragar essa felicidade da garota, os parentes e vizinhos sempre inventam histórias que a proíbem de comer alimentos que a deixam feliz, de frequentar festas, como o baile de máscaras, por exemplo. ―Está formada a liga adulta dos estraga-prazeres bem pensantes, em luta contra a fantasia e satisfação do próximo‖ (SCHWARZ, 1997, p. 84), um exemplo é a vizinha siá Rita que inventa que pepinos fazem mal à saúde, e diz a Carolina, que não deixa Helena comê-los, porém a menina se mostra revoltada, alegando que sempre comeu e nunca lhe causou mal nenhum. Na verdade, ―Helena descobre o lado obtuso e incurioso dos responsáveis pela ordem, que gostam de proibir, mesmo quando a proibição parece não ter sentido.‖ (SCHWARZ, 1997, p. 85)

O pano de fundo de todas essas histórias narradas por essa narradora/personagem criativa, impaciente, crítica, é a cidade de Diamantina, no final do século XIX, que passava por modificações históricas, sociais e econômicas, de tal modo que seu diário constrói um

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verdadeiro cenário da vida privada provinciana brasileira, na qual a Lei Áurea acabara de ser assinada e os escravos estavam vivendo em regime de trabalho semiforçado, pois foram libertos e continuavam morando com seus donos, trabalhando em troca de moradia e comida, pois não tinham para onde ir. A narradora deixa claro, várias vezes, em seus relatos que ―na Chácara moram ainda muitos negros e negras do tempo do cativeiro, que foram escravos e não quiseram sair com a Lei de 13 de Maio. Vovó sustenta todos‖ (MORLEY, 1998, p. 52). Ao afirmar isso, Helena afirma que a prejudicada foi a avó, que saiu na desvantagem, pois tem de sustentar vários negros sem nada em troca, e conta que sempre que algum deles se casa, a avó Teodora faz uma grande festa, comemorando o casamento e indiretamente ―uma boca‖ a menos que sustentará.

Portanto esses negros ainda ajudam nas tarefas domésticas, saem para caçar com os meninos, cozinham na casa da avó, e sempre que a família se reúne e um dos tios tenta colocar um dos irmãos de Helena para trabalhar, a mãe Carolina se opõe, afirmando que trabalho é coisa de escravo. Porém o pai de Helena, de origem inglesa, não concorda.

Meu pai não deixa meus irmãos ficarem sem trabalhar, dizendo que o trabalho só é desonra aqui, porque só os escravos é que trabalhavam e que onde não havia escravos o trabalho é honroso. Na nossa família nunca ninguém deixou um filho carregar um embrulho na rua. Só pensavam em fazê-los doutores. E agora como vai ser? (MORLEY, 1998, p. 322)

Em alguns casos há a negociação entre os escravos e seus ex-patrões, como no caso das irmãs Cunha, elas ―têm em casa dois negros que ainda foram do cativeiro e que elas costumam alugar para fora e dividir com eles o dinheiro, porque não estando alugados elas é que os sustentam‖ (MORLEY, 1998, p. 48).

Após a abolição, alguns negros trabalharam por conta própria e ascenderam socialmente, como é o caso de Salomão, que tinha oito negrinhos e contratou Renato, o irmão de Helena, para dar lições aos filhos, pagando dez-mil-réis mensal. E segundo o relato do irmão, os negrinhos eram muito bem educados, pois a mãe os castigava com vara de marmelo; a casa onde viviam era muito limpa e organizada, e a mãe era extremamente forte, pois depois do parto, já encontrava-se de pé, cuidando dos filhos. ―Não é tudo tão diferente com essa gente? Se fosse

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mulher branca, tinha de ficar deitada na cama oito dias tomando caldo de galinha. Margarida trabalha desde o dia que tem o menino e diz que até é melhor porque se sente mais leve.‖ (MORLEY, 1998, p. 331)

Ao lecionar para os negrinhos, o irmão da narradora se submete a classe ―inferior‖, segundo as críticas de sua mãe, mostrando que após a abolição alguns papéis sociais inverteram-se, pois a burguesia estava trabalhando para o ex-escravo. Se bem que toda a família era burguesa, menos a de Helena, que é considerada pobre, pois o pai teve o azar de não investir numa jazida de diamantes com o cunhado e fora o único que não enriquecera, tudo culpa de Santo Antônio, como afirmara Dona Carolina. Sobre essa classe (pobres), Schwarz tenta localizá-los na Literatura,e definir seu papel:

Sobre os escravos: a situação dos pobres define-se completamente em o que é folga histórica para os ricos – os dois pesos e as duas medidas – para eles é falta de garantia. Não tendo propriedade, e estando o principal da produção econômica a cargo dos escravos, vivem em terreno escorregadio: se não trabalham são uns desclassificados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou reconhecidos. (SCHWARZ, 1983, p. 47)

Em relação a esses negros há bastante preconceito, sendo que em diversos relatos da menina, percebe-se a falta de compaixão com que são tratados, a inferioridade a que são submetidos. Inclusive de sua mãe Carolina, que briga com a menina sempre que ela se aproxima de um negrinho, e Helena se questiona: ―que culpa têm os pobrezinhos de serem pretos? Eu não diferenço, gosto de todos‖ (MORLEY, 1998, p. 126). Porém mesmo não se mostrando preconceituosa, em alguns momentos ela implica com um negro chamado Emídio, mas não pelo fato da cor de sua pele, mas por achar o moleque intrometido.

Nunca gostei tanto na minha vida de uma coisa como a que aconteceu hoje a Emídio. Tio Joãozinho mandou-o levar uma carta ao Dr. Pedro Mata e ele voltou de cabeça quebrada. Foi mostrando a cabeça a tio Joãozinho e dizendo: "Olha o que o senhor me fez!". Tio Joãozinho perguntou: "Como foi isso?". Ele respondeu: "Foi o doido do Pedro Mata que me deu um pescoção e

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