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NEGRAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E EPISTÊMICAS: A CENTRALIDADE DA AUTO-EXPRESSÃO NEGRA NAS ARTES CÊNICAS

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Revista de Humanidades e Letras ISSN: 2359-2354 Vol. 3 | Nº. 1 | Ano 2017 Fausto Antonio UNILAB

PEDAGÓGICAS E EPISTÊMICAS:

A CENTRALIDADE DA

AUTO-EXPRESSÃO NEGRA NAS ARTES

CÊNICAS

_____________________________________

RESUMO

Negras práticas pedagógicas e epistêmicas têm em vista, em conformidade com a Lei 10.639/2003, a necessidade de renovação das disciplinas históricas, do projeto pedagógico e sobretudo do currículo de Artes Cênicas. De modo mais preciso e localizado, o artigo propõe mudanças no currículo e no projeto pedagógico do curso de Artes Cênicas da UFBA. A partir das experiências do Teatro negro-brasileiro e do método retrospectivo e prospectivo que o Teatro Experimental do Negro, a Série Cadernos Negros e a Filosofia da Ancestralidade nos permitiram arrolar, realizamos uma reflexão sobre a natureza do sistema cultural negro-brasileiro e o seu uso na produção de significados, na produção da existência, na produção política e na produção artística. Neste contexto, partimos do pressuposto de que não há unicidade nos objetos da literatura, filosofia e teatro. Igualmente consideramos a pertinência da pesquisa, da produção e da construção metodológica no que concerne à construção de processos formativos de atores, atrizes e encenadores profundamente encruzilhados com o milenar, complexo e dinâmico sistema cultural negro-africano.

Palavras-chave: pedagogia negra; epositemologia negra; artes

performáticas; teatro.

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ABSTRACT

Black pedagogical and epistemic practices aim, in accordance with Law 10.639 / 2003, to renew the historical disciplines, the pedagogical project and above all the curriculum of the Performing Arts. In a more precise and localized way, the article proposes changes in the curriculum and in the pedagogical project of the UFBA Scenic Arts course. From the experiences of the Black-Brazilian Theater and the retrospective and prospective method that the Black Experimental Theater, the Black Notebooks series ande the Ancestral Philosophy allowed us to list, we reflect on the nature of the Black-Brazilian cultural system and its use in the production of meanings, in the production of existence, in political production, and in artistic production. In this context, we start from the assumption that there is no unicity in the objects of literature, philosophy and theater. We also consider the pertinence of research, production and methodological construction in what concerns the construction of formative processes of actors, actresses and directors deeply crossroads with the millennial, complex and dynamic black African cultural system.

Keywords: Black pedagogy; black epistemology; performing arts;

theather.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br

capoeira.revista@gmail.com

Editores:

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NEGRAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E

EPISTÊMICAS: A CENTRALIDADE DA

AUTO-EXPRESSÃO NEGRA NAS ARTES CÊNICAS

Fausto Antonio

Teatro negro-brasileiro e o método retrospectivo e prospectivo

A relação teatro negro-brasileiro e sociedade tem como foco revelar a força do racismo no projeto de sociedade e, sobretudo, os seus efeitos nas artes cênicas. Diante dessa relação polar cabe a pergunta: como negros e negras respondem ao racismo em cena? A propósito, registrei na minha intervenção presencial no l Fórum Negro de Artes Cênicas da UFBA, orientado pelas produções do Teatro Experimental do Negro, de autores (as), de grupos teatrais, de estudiosos (as), a força e o alcance dos processos artísticos e educativos construídos, em diferentes momentos históricos, pelos movimentos sociais negros e pelo sistema cultural negro-brasileiro.

É assim que busco o diálogo com esses textos-movimentos. Afinal, dos embates e dos artefatos mobilizados pela história, pelas encenações, pelas produções literárias e filosóficas, os negros (as) fundam um método que institui os conceitos de literatura negro-brasileira, de teatro negro-brasileiro e de filosofia africana. Tais sistematizações não nasceram nas universidades; elas são materializações dos lugares, ressonadas, estabilizadas e expandidas pelos processos educativos não formais hegemonizados pelos movimentos sociais negros, pelo sistema cultural negro-brasileiro, pelos intelectuais negros e antirracismo.

Uma proposta que imbrique uma epistemologia e pedagogias negras, temática orientadora do l Fórum Negro de Artes Cênicas da UFBA, pede o estudo, ao mesmo tempo, retrospectivo e prospectivo da produção teatral, literária e filosófica. Vale aqui negritar que a compreensão não se limita à história; são imprescindíveis estudos concernentes à literatura, às epistemes universalizantes e à consequente desnaturalização da branquitude como valor universal.

Pedagogias negras e epistemologias assentadas nas noções teatrais da negrura sugerem considerações relativas e imbricadas de sistemas de ideias, teorias, conceitos e ações dramatúrgicas, cênicas, literárias e filosóficas. O debate inicial passa pela compreensão da literatura como um corpo; um campo de conhecimento, cujo objeto não tem unicidade. Não há uma unicidade no objeto da literatura; o seu objeto é o campo por excelência da pluriversalidade. Na mesma lógica e visando à sistematização de uma episteme da negrura, Eduardo David

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“África e Diáspora as vias de (re) aproximação”, Antonio (2015, p. 325) diz, com palavras equivalentes, que a filosofia da ancestralidade, como filosofia africana, deve ser buscada no seu domínio próprio: o sistema cultural africano. Em outros termos, o sistema cultural negro-africano é o objeto da filosofia da ancestralidade como filosofia africana; isto é, o sistema cultural negro-africano é uma categoria filosófica.

A produção de significados, a produção da existência e a produção política

A produção de significados é outro dado indispensável; especialmente aqueles que revelam um modo de produção de bens materiais, imateriais e políticos. Os sistemas culturais negro-africanos são meios para produzir a transformação; isto ocorre não tão-somente do ponto de vista do trabalho como meio de produção, o são também no delineamento do modo de produção da política, do arranjo social.

Antonio (2015, p.328) afirma que “o sacrifício, princípio dinâmico da restituição e continuidade da vida-energia, explica simbólica e concretamente o devir filosófico e político”.

Sodré, numa argumentação prenhe de significados ressonantes, sustenta que:

Na cultura nagô, o sacrifício é uma operação imprescindível: a oferenda (ebó), transpor-tado por Exu, dinamiza a relação entre vivos e ancestrais ou princípios cósmicos (os ori-xás), reequilibrando ou reparando o círculo coletivo das trocas e, assim, permitindo a expansão do grupo. O sacrifício implica no extermínio simbólico da acumulação e num movimento de redistribuição (princípio, portanto, visceralmente antitético ao do capital). No período clássico da acumulação do capital no ocidente, homem íntegro era o que se integrava na ética de produção e de acumulação. Para melhor caracterizar a oposição nagô, se poderia dizer que nagô íntegro é o que restitui, o que devolve. O que simboli-camente não deixa resto (SODRÉ, 1988, p.128).

Sendo assim, os sistemas culturais negro-africanos são conjuntos organizados para produzir as condições filosóficas e materiais; notadamente eles orientam o modo de produção, isto é, a política. A propósito, Milton Santos (1988, p.10) nos ensina que “cada coisa é um modo de produção e os modos de produção se realizam por intermédio das técnicas, cujo número é grande: técnicas produtivas, técnicas sócias, técnicas políticas, etc. “

Ao fixar-se no objeto da filosofia da ancestralidade, cujo contorno deve orientar, o método de formação modelado pela ressonância precisa, simultaneamente, extrair a carga simbólica e, sobretudo, um modo de produção da existência que ali se oculta. Desse modo, a cultura se faz conhecimento e ultrapassa a dimensão projetiva de que também se pode usufruir; conquanto não se limite ou impeça a carga de ressonância que revela o sistema cultural negro-africano como meio de produção da existência e modo de produção política. Os projetos estético,

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social, filosófico e político não se desprendem do corpo cultural, que se projeta para uma forma particular de relação com os bens materiais e imateriais.

Não há unicidade nos objetos da literatura, filosofia e teatro

As unicidades da filosofia, da literatura e do teatro não são apreendidas a partir da unicidade dos seus objetos. A afirmação feita aqui está em concordância com Todorov (1968, p. 18) que diz que

A unicidade da Ciência não se constitui a partir da unicidade de seu objeto; não existe "ciência do corpo", conquanto o corpo seja um objeto único, mas uma Física, uma Quí-mica, uma Geometria. E ninguém exige que se dêem direitos iguais, numa "ciência do corpo", a uma "análise química", a uma "analise física", e a uma "análise geométrica". Será necessário lembrar que, desde Kant, não se ignora mais que é o método que cria o objeto, que o objeto de uma ciência não está dado na Natureza, mas representa o resul-tado de uma elaboração?

Não existe, é um dado a ser considerado, como deixa transparecer muitos teóricos, unicidade no objeto da filosofia. Quando a filosofia da ancestralidade como filosofia africana é apresentada a partir de teorizações e métodos analíticos sistematizados por filósofos alheios ao objeto específico da filosofia africana, temos tal perspectiva, a apresentação falaciosa de um único objeto, que serviria também para a filosofia europeia e igualmente para outras referenciadas em outros objetos. Ao nosso ver, uma posição que, no limite, serve apenas para a valorização de um condenável sincretismo filosófico. Seria o mesmo raciocínio dizer que há unicidade no objeto da literatura. A literatura funciona como um corpo, um todo. Mas os textos, na sua variedade, constituem o objeto da literatura; isto é, as crônicas, os contos, os romances, os poemas, os textos orais e os escritos das mais diversas procedências literárias. Decorre desse lugar a existência da literatura negro-brasileira. São os textos e a existência de uma recepção, ou seja, a relação dialógica da autoria e da co-autoria, a recepção, que garantem a especificidade desse objeto e a emergência da literatura negro-brasileira. O objeto demanda; ou melhor, pressupõe a mobilização de um método; sem tal disposição há apenas o anúncio da literatura negro-brasileira; mas ela não é enunciada. Ao ser enunciada a partir do de-dentro, emergem os seus textos, autoras (es), leitoras (res) e o seu objeto, um texto da negrura.

A unicidade da filosofia não se constitui a partir da unicidade do seu objeto; não há uma única filosofia. Há filosofias, mas a questão envereda para muitas possibilidades filosóficas. A depender do número de filósofos, são muitas as organizações e/ou filiações filosóficas. Considerando o quadro aqui exposto de invisibilidade dos objetos da literatura negro-brasileira e da filosofia da ancestralidade como filosofia africana, avulta a necessidade de um método. É o método que cria o objeto; não é, portanto, algo dado pela natureza. Em outros termos, o objeto, que não é algo natural ou dado pelo corpus filosófico em si, exige uma elaboração; elaborar

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significa de modo preciso considerar a natureza de um determinado objeto. O objeto da filosofia europeia tem uma natureza; o da ancestralidade, a seu modo, outra.

Fica aqui a proposição, depois de assimilada a noção de que a unidade da Ciência não se constitui a partir da unicidade de seu objeto, que não há unicidade do objeto da literatura. Sendo assim, anunciar a literatura negra ou o teatro negro pressupõe passos inaugurais necessários que, no entanto, só serão elevados ao patamar de epistemologias enunciativas da literatura e do teatro negro-brasileiro na medida em que revelem um método, uma elaboração.

O processo de elaboração metodológica e de aproximação do teatro negro-brasileiro passa pelo enunciado e se ancora na enunciação. O enunciado é insuficiente; pois não revela os componentes não-verbais do processo. A enunciação inclui o emissor da mensagem /obra falada ou escrita; o (a) receptor (a), cuja percepção se empatiza mais ou menos com a obra e, num trânsito dialógico, constrói, reconstrói e transfigura o contexto. A enunciação é o (a) emissor (a) e o (a) receptor (a) na sua saga de atualização histórica, ontológica e numa tessitura contextual. Pode-se dizer que é o (a) receptor (a), coautor (a), que atualiza o contexto; o mundo secular.

A sistematização da abordagem conjunta da literatura brasileira, do teatro negro-brasileiro e da filosofia da ancestralidade como filosofia africana não é uma digressão. Existe uma relação analógica pertinente ao método capaz de revelar os respectivos objetos e, no caso da filosofia africana, uma base fundamental para a construção do método de formação de atores/atrizes e na mesma razão pilar para apresentar as poéticas cênicas negras.

Pesquisa, produção e construção metodológica

A literatura negro-brasileira envolve pesquisa, produção e construção metodológica iniciadas há muitos anos. O mesmo ocorre com o teatro negro-brasileiro. A questão nuclear, sintetizada pelos conceitos de literatura negro-brasileira e de teatro negro-brasileiro, é que a produção, a pesquisa e o método dão um saque contra o futuro e, principalmente, contra a simples anunciação da literatura negra e do teatro negro; há a emergência de enunciações negras. As enunciações negras são tributárias e resultam, além da produção e da pesquisa feita por escritoras, escritores, poetas, dramaturgos (as), diretoras e diretores negros (as) e antirracismo, da assunção de um método, que revele os autores (as), as autorias, o ponto de vista, a linguagem, os temas e sobretudo as recepções empatizadas por histórias, narrativas e personagens negras.

O saque contra o futuro é uma perspectiva metodológica que permite o uso, sem desconsiderar outras experiências, retrospectivo e prospectivo das produções teóricas e textuais feitas pelo Teatro Experimental do Negro e pela Série Cadernos Negros. Mas é fundamental

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negritar que nada impede o mesmo exercício se, no núcleo do processo retrospectivo e prospectivo, estiver, por exemplo, o Bando de Teatro Olodum e/ou outras experiências e pesquisas feitas por grupos teatrais negros.

Negras práticas pedagógicas e a Lei 10.639/2003

Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas, a centralidade da auto expressão negra nas Artes Cênicas, é um modo apropriado de dizer que a Lei 10.639/2003 tem provocado mudanças profundas no nosso modo de vida e na forma como percepcionamos a sociedade brasileira e especialmente, como sua extensão, os currículos escolares. A Lei tem vindo, como história e/ou atualização da luta antirracismo, a colaborar com a modificação das relações étnico-raciais e a contribuir para uma mudança de paradigma nos processos educativos formais e não formais.

Assim, conceitos como trabalho interdisciplinar, renovação das disciplinas histórias, relevando a existência e a superação do racismo, são somados aos de Filosofia da Ancestralidade como Filosofia Africana, Literatura Negro-Brasileira, Teatro Negro-Brasileiro, Poéticas Negras nas Artes Cênicas, Fundamentos Filosóficos e Práticos do Samba e da Capoeira, Pretagogias e têm sido cada vez mais referenciados e vivenciados nos diversos espaços educativos formais e não formais, prova inequívoca da sua vitalidade, ressonância, pertinência, consistência sistêmica e epistemológica.

Desse modo, cabe à Universidade e aos estabelecimentos de ensino apreciar e incorporar as sistematizações geradas pelos processos educativos iconizados pela Lei 10.639/2003. Não ter em conta as novas contribuições curriculares engendradas pelos processos da Lei e da realidade concreta do país, dada por milhões de negros (as), é isolar a universidade da sociedade em que está inserida é, sobretudo, privá-la, de um lado, dos instrumentos de promoção do saber pluriversal, ressonado, estabilizado e expandido pelos movimentos sociais negros, pelo sistema cultural negro-brasileiro, pelos intelectuais negros (as) e antirracismo e, por outro, do indispensável e permanente exercício de renovação das teorias e disciplinas históricas, que são, como teorizações e não dogmas imutáveis, refeitas permanentemente pelos contextos históricos e pelas dinâmicas sociais.

Neste contexto, é fundamental saudar a organização do 1 Fórum de Artes Cênicas Negras da UFBA, que refletiu a propósito das Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas.

Numa comunhão com o exposto acima a propósito da necessidade permanente de renovação das teorias e das disciplinas históricas, o l Fórum Negro das Artes Cênicas teve como

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proposta pensar formas de inserção efetivas de referências da cultura negra no ensino, pesquisa e formação da Graduação, Pós-Graduação e Extensão da Escola de Teatro da UFBA.

Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas foi o tema proposto pela organização do evento para uma das mesas, cujo objetivo subjacente era o debate do projeto pedagógico visando à inserção da cultura negra no ensino, pesquisa e extensão. Tal delimitação sugeriu e sugere, em termos mais precisos, a inclusão de poéticas negras no currículo das Artes Cênicas. Por isso, o projeto pedagógico; artefato conjuntural, em consonância com as Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas, pressupõe, como estratégia e base estrutural, um projeto curricular alicerçado, em profundidade, no escopo e conteúdo da Lei 10.639/2003. Em resumo, a aplicação da Lei 10.639/2003 é a afirmação da centralidade da auto expressão negra nas Artes Cênicas, medida que responde à afonia estruturada historicamente pela dramaturgia brasileira que insere, de acordo com Miriam Garcia Mendes (1988, p.174), sempre de modo problemático, personagens negras a partir de 1850, data que delimita o fim do tráfico de escravizados.

É da centralidade da auto expressão negra nas Artes Cênicas que falam as páginas desse texto; no entanto, é preciso antes registrar os limites que a literatura, os textos teatrais canônicos e as montagens tradicionais impõem e, na contramão, as saídas e respostas que dramaturgos (as), atrizes, atores, diretoras e diretores negros (as) dão, ressoam e registram como forma de estar no mundo, na literatura, no teatro e nas artes em geral. Aqui, no corpo do presente texto, as limitações impostas e as respostas dadas historicamente pelos negros serão apenas a enunciação de um método retrospectivo e prospectivo, que será ou deverá ser trabalhado exaustivamente no processo de formação da escola de Artes Cênicas da UFBA.

As experiências do Teatro Experimental do Negro (1944), o advento da série Cadernos Negros (1978) e do Bando de Teatro Olodum (1988) são referências metodológicas importantes, na medida em que permitem retrospectivamente e prospectivamente a abordagem do lugar dado ao negro (a) no palco e no contexto da sociedade brasileira. Permitem, na mesma dinâmica, o ingresso no universo de questionamento da universalidade orientadora da branquitude e, mais do que tudo, possibilitam um mergulho nas formas literárias e teatrais assentadas nos valores negro-africanos e numa recepção empatizada com negros e negras. Explicitado o método retrospectivo e prospectivo, é indispensável apresentar, mesmo que de modo genérico, as barreiras presentes no universo social e da encenação propriamente dita.

Comecemos então por expor alguns limites, recalques largamente utilizados e naturalizados no contexto teatral brasileiro. No que se refere aos limites, aos estereótipos e à opressão, Ki-Zerbo (2009, p.32) diz: “Não creio que haja grupos humanos que tenham sidos mais

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inferiorizados do que os negros”. Leda Maria Martins (1995, p. 40) se expressa assim a respeito do esmagamento físico e simbólico das personagens negras:

Essa demarcação atinge uma de suas fronteiras mais rígidas no teatro brasileiro, em que, até as primeiras décadas do século XX, a presença da personagem negra revela uma si-tuação limite, a da invisibilidade. Esta traduz-se não apenas pela ausência cênica da per-sonagem, mas também pela construção dramática e fixação de um retrato deformado do negro. Os modelos de representação cênica que criam e veiculam essa imagem apoiam-se numa visão de mundo eurocêntrica, em que o outro – no caso o negro – só é reconhe-cido e identificável por meio de analogia com o branco, este, sim, encenado como sujei-to universal, uno e absolusujei-to. Nesse teatro, o percurso da personagem negra define sua invisibilidade e indizibilidade.

As respostas à inferiorização e ao percurso que definem a invisibilidade e indizibilidade, nas vozes e corporeidades do Teatro Experimental do Negro, na coletânea Cadernos Negros e no Bando de Teatro Olodum, são artefatos coletivos, processos educativos e artísticos que, tal como é comum suceder nos espaços de ressignificação estética, subvertem a história do Brasil no tocante aos campos específicos da luta antirracismo, do teatro e da literatura e, em diferentes conjunturas, assentam os valores da cosmogonia negro-brasileira, por exemplo, nas formulações e produções do Teatro Experimental do Negro, 1944, da série Cadernos Negros (1978), de pesquisadores (as) e de grupos teatrais diversos no transcorrer das últimas três décadas do século XX e nas décadas iniciais do século XXI.

Alterar o currículo e o projeto pedagógico do curso de Artes Cênicas da UFBA

Não é possível inserir mudanças no curso de Artes Cênicas da UFBA sem a discussão curricular e, no momento seguinte, promover profundas mudanças no Projeto Pedagógico do Curso. O currículo, salientando que o objetivo é contribuir para a elaboração do projeto pedagógico do curso de Artes Cênicas, é ponto de partida e de chegada.

É pertinente explicitarmos aqui a noção de currículo que norteará as nossas reflexões. Currículo é dimensão material; não é abstração. A rigor, o currículo é a cotidianização do conhecimento; é desse modo que se dá a sistematização do saber. Eles são extensões transitivas das realidades sociais, filosóficas, artísticas e políticas hegemônicas, hegemonizadas e/ou em disputa, em permanente mutação. Concebido dentro desses limites, o projeto político e pedagógico deve revelar, na sua estrutura profunda, uma concepção curricular fundamentada nos valores filosóficos e estéticos da cultura negra.

As negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas, a centralidade da auto expressão negra nas Artes Cênicas, têm como pressuposto curricular um método de formação de atores, atrizes e de encenação profundamente referenciado no sistema cultural negro-brasileiro. Há a exigência de superação da cultura negra como projeção folclórica, exótica e desvinculada de uma cosmogonia.

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ressonância e, no mesmo movimento, é fundamental entender a chamada cultura negra como um sistema cultural. Adentremos, então, por etapas, no entendimento conceitual da cultura negra de projeção, na compreensão da cultura negra de ressonância, no significado da relação África e Diáspora e, por fim, na compreensão da concepção do que é o sistema cultural negro-brasileiro.

Como ressaltamos inicialmente, a cultura negra de projeção é a simples revelação da estrutura de superfície de uma determinada manifestação cultural, que é apresentada a partir da sua veste primária; sem revelar os princípios estruturantes que a organiza e a sua relação com a cosmogonia negro-africana. Eduardo David de Oliveira (2009, p.1), no artigo “Epistemologia da Ancestralidade”, teoriza que “a epistemologia, fonte da produção de significados, é fundamental para a afirmação ou negação de um povo e sua tradição, de uma cultura e sua dignidade”. O autor enfatiza que a cultura apresentada de modo folclórico impede a construção de sistemas de interpretação; ela não deixa margem para os seus manifestantes reconstruírem o mundo social e filosófico. No mesmo artigo, o autor se expressa assim a respeito da folclorização:

As culturas africanas e afro-brasileiras foram relegadas ao campo do folclore com o propósito de confiná-las ao gueto fossilizado da memória. Folclorizar, nesse caso, é re-duzir uma cultura a um conjunto de representações estereotipadas, via de regra, alheias ao contexto que produziu essa cultura. Uma estratégia de dominação efetiva é aliená-la do sujeito cultural sua possibilidade de produzir os significados sobre seus próprios sig-nos idiossincráticos.

A cultura negra de projeção impede, ao se limitar aos aspectos superficiais e estereotipados, a construção de conceitos, de sistemas de ideias, de teorias e de chaves interpretativas da antropogênese e da cosmogênese referenciadas no dinâmico, complexo e milenar sistema cultural dos povos negro-africanos.

A cultura negra de ressonância equivale à afirmação de que o trabalho cênico, estruturado a partir do sistema cultural negro-africano, é pilar central. A propósito, o objetivo é trabalhar com a cultura negro-africana no exercício cênico inicial, na concepção estética final e no amadurecimento de um método de formação de atores e de atrizes ancorado neste sistema que, na ressonância, é categoria filosófica.

Vale reafirmar que a cultura negra de ressonância é pilar, primeiro, para formação; segundo, para a encenação e, antes e/ou na gênese, o é igualmente para a construção ou criação do texto, perspectiva que redimensiona o roteiro textual. Neste tocante a diferença entre dramaturgia e texto dramático deve ser objeto de reflexão e de um enquadramento distintivo.

Marinis, apud Martins, (1995, p.52) mobiliza recursos teóricos para distinguir os termos dramaturgia e texto dramático.

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Neste percurso, parece-me adequado apropriar-me de uma importante distinção termino-lógica, operada por Marco de Marinis, entre os termos dramaturgia e texto teatral (Thea-trical text). Segundo esse autor, a dramaturgia pode ser definida como “o conjunto de técnicas e teorias que moldem o conjunto de signos expressivos e ações que são urdidos para criar a tessitura da performance”, do texto a ser representado ou em representação. O termo aponta, pois, o texto escrito, o texto literário composto segundo normas, técni-cas e concepções que regem o movimento cênico, ainda como um script. No verso dessa concepção, está o texto/perfomativo, o texto/tecido da performance teatral, que já nos indica simplesmente o texto literário, mas a representação em si, o texto por ela criado e dela abstraído, que é, então, concebido como “uma rede complexa de diferentes tipos de signos, meios de expressão ou ações”, o que nos remete “à etimologia da palavra “texto” que implica a ideia de tessitura, de algo que é entrançado.

A distinção é muito pertinente para a perspectiva que valoriza o texto como tecido, rede de encontro encruzilhado na qual emerge o encontro dialógico de técnicas que extrapolam os limites do texto strito sensu; há um transbordo processado por um hipertexto dado pela junção do texto e nele contido identidade, identificações e representações mais amplas, que revelam enunciações complexas e relações com outras áreas artísticas.

O texto dramático, conforme o concebe Marinis, possibilita o entendimento do uso projetivo ou ressonante da cultura negra no texto, no desenho das personagens, na história, no enredo, na linguagem, nos temas, no ponto de vista e na construção de uma recepção concebida pela cosmogonia negro-africana. A cultura negra, como valor ressonante, presente na estrutura profunda do texto escrito, terá lugar na concepção cênica. Ponto que merece destaque; pois recupera o texto como corpo que entrelaça ou encruzilha linguagens ou concepções textuais e cênicas da negrura.

Do ponto de vista teórico e principalmente metodológico, é importante frisar que a cultura negro-africana será vivenciada, experimentada e ressignificada; ela não entrará em cena ou na construção do espetáculo como simples projeção dos cortejos, dos sambas, dos batuques, das capoeiras. Em outras palavras, a cultural negro-africana, dando um salto além dos estereótipos, será utilizada na formação dos atores/atrizes e na concepção cênica como ressonância; posicionamento que exige um mergulho na estrutura profunda desse sistema cultural e na consequente superação de estereótipos, que limitam os atores, as atrizes e a própria concepção teatral aos modelos amplamente digeridos pelas mídias e imaginários hegemonizados pelo racismo e colonialismo.

O que move o projeto Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas: a centralidade da auto expressão negra nas Artes Cênicas, é a necessidade de descontruir as visões estereotipadas e as limitações impostas, pelo sistema racista à brasileira e pelo colonialismo, aos negros (as) e africanos (as) no contexto global e de modo muito perverso no universo teatral. No caso do Brasil, os limites determinam o apagamento ou a invisibilidade corpórea de personagens negros

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e, no mesmo movimento, de histórias que incluam profissionais, isto é, atrizes e atores negros nas encenações teatrais e televisivas.

Relevando o racismo no Brasil e o processo e projeto colonial no continente africano, sabemos que as desigualdades estruturais são alimentadas e naturalizadas por sistemas de ideias, teorias, discursos e ações de violência física e epistemológica.

Cresce desse modo a necessidade de inclusão de atores e atrizes em cena e, na mesma razão, é preciso pensar métodos e poéticas cênicas que recuperem os significados culturais, dramáticos e artísticos estabilizados pelas Diásporas africanas e pelos lugares africanos.

Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas têm a finalidade de responder à afonia no que concerne ao negro (a) e africano (a) no palco, na realidade Ocidental, brasileira e, especialmente, apresentar conceitos elaborados ao longo dos últimos anos relativos ao uso da cultura negro-africana como recurso e método para formação de atores, atrizes, diretores, diretoras, encenações e produção de texto dramático e literário.

A sistematização tem como suporte e motor a revisão das posições teóricas, artísticas e estéticas historicamente oferecidas aos negros (as) e africanos (as) nos palcos, nos textos, no contexto brasileiro e dos negros em diáspora. Aliás, outro ponto nodal passa pela relação África-Diáspora. Neste ponto, o sistema cultural comum, mas marcado pela unidade na diversidade, é fundamental. Abdias do Nascimento, um dos ícones e precursor do Teatro Experimental do Negro, consagrou, no livro Dramas para negros e prólogos para brancos, uma chave metodológica e de pesquisa indispensável para o entendimento do Teatro Negro-Brasileiro. Nascimento (1961, p. 10) brada que “as raízes do teatro negro-brasileiro atravessam o Atlântico e mergulham nas profundidades da cultura africana”.

A elaboração teórica e metodológica deve, de acordo com os ensinamentos de Abdias Nascimento, se ocupar também e decisivamente das vias de (re) aproximação da África e da Diáspora e/ou da relação África e Diáspora. Falamos neste ponto das formas milenares de teatralização presentes no continente africano e na diáspora. Leda Maria Martins (1995, p. 57) no livro A cena em sombras, a exemplo de Abdias do Nascimento, chama a nossa atenção para as formas milenares de teatralização presentes no continente africano e transplantadas e reelaboradas no contexto brasileiro, notadamente no cotidiano. A autora põe em destaque as danças, os ritos, os cultos aos antepassados e o papel comunitário das encenações apresentadas pelas danças, batuques, quizombas, congadas, afoxés, maracatus, bois e cortejos carnavalescos em cujo desenho cênico são renovadas as intervenções estéticas, ritualísticas e religiosas.

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O processo de elaboração metodológico e de aproximação do teatro negro-brasileiro, da literatura negro-brasileira e africana situa-se, respeitando o exposto de matriz e matiz ressonante, além do enunciado e se ancora na enunciação negro-africana.

Podemos ingressar agora no significado, na extensão e na natureza do sistema cultural negro-brasileiro ou negro-africano. O sistema cultural não é somente cultura, é um todo, que contém sistemas técnicos, científicos e políticos. A sua extensão diz respeito à produção e os seus princípios estruturantes orientam o modo de produção da existência. O conceito de sistema cultural parte da constatação de que há necessariamente sistemas culturais e que os mesmos não se limitam às manifestações culturais. A noção de sistema cultural negro-africano recupera o referido sistema como meio de produção da existência e, na mesma organização, ele define o modo de produção da existência. Há sempre a atuação desses dois polos; um atuando como meio de produção e, o outro, como política, modo de produção.

O sistema cultural negro-africano é, então, categoria filosófica ou objeto da filosofia da ancestralidade como filosofia africana. É por esta razão que confiamos num processo de formação de atrizes e atores referenciados nos valores milenarmente estabilizados pela África e Diáspora.

Currículos da negrura no cotidiano da Universidade

Tempo e espaço, nos currículos, são inseparáveis. A noção que temos de currículo, tudo aquilo que é produzido e organizado pela comunidade escolar e sociedade mais ampla, é tributária da inseparabilidade de tempo e espaço. O ponto nuclear para a compreensão dessa inseparabilidade é o cotidiano. Nas elaborações de Milton Santos (1996, p. 38) “o cotidiano é uma espécie de quinta dimensão do espaço”. O cotidiano é o lugar privilegiado para a materialização, ou melhor, para a transformação do tempo e do espaço em base empírica. Podemos dizer que o cotidiano humaniza, num só golpe e movimento, o tempo e o espaço. Humanizá-los significa, em termos mais precisos, transformá-los em categorias culturais.

Ernst Cassirer, apud Milton Santos (1988, p.09) afirma que não

há uma só criação do espírito humano que não esteja, de alguma forma, relacionada com o mundo do espaço e que não busque de algum forma, sentir-se à vontade dentro dele. Tentar conhecer este mundo é dar o primeiro passo no sentido da objetivação, através da apreensão e da determinação do ser.

A tradição negro-brasileira lida, litúrgica e socialmente, com o cotidiano como dimensão espacial. O axé é elemento de condução, de expansão, de restituição e de espacialização. Sodré (2002, p.97) nos ensina que o “Axé é algo que literalmente se “planta”

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(graças a suas representações materiais) num lugar, para ser acumulado, desenvolvido e transmitido”. Com palavras correspondentes, a energia cria a matéria; a matéria cria a energia.

As estruturas sociais são o que são pela condensação de valores materiais e valores políticos. A política é a energia e a base estrutural é a matéria, que será organizada segundo um determinado arranjo hegemonizado por uma classe/raça e gênero. Podemos enfatizar que a política cria a estrutura; a estrutura cria (ou reafirmar) a política.

O arranjo, a política que orienta o uso dos sistemas técnicos e culturais, define o modo de produção da existência. A mesma proposição se aplica ao funcionamento dos estabelecimentos de ensino. Não é por outra razão que as discussões curriculares apresentadas pelas obras de Santomé (1998), Silva (2005), Freire (1982) e de outros especialistas neste campo de conhecimento apresentam os currículos ocultados, silenciados, bancários, populares, periféricos e outros. O exercício põe em evidência uma determinada organização política subjacente. Há necessariamente arranjos, elaborações que se empiricizam.

Currículos da negrura encruzilhados

Com a mesma finalidade no que concerne às elaborações e para os objetivos da inserção nas artes cênicas das poéticas negras, chamamos a atenção para os currículos sistematizados pelos processos educativos do sistema cultural negro-brasileiro, pelos movimentos sociais negros, por intelectuais negros e antirracismo.

Os currículos estabilizados pelos movimentos sociais negros, pelo sistema cultural negro-brasileiro e por intelectuais negros e antirracismo são frutos, a exemplo dos gêneros de discursos, de um processo longo de gestação, de apresentação, de uso, de amadurecimento e de uma consequente estabilidade, que se dá pela cotidianização ou extensão comunicativa dessas sistematizações de conhecimento com e entre os lugares. O 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, o 13 de Maio, Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, a Lei 10.639/2003, a Filosofia da Ancestralidade como Filosofia Africana, a Literatura Negro-Brasileira, a Pretagogia, os fundamentos filosóficos e práticos do samba e da capoeira são exemplos elucidativos de currículos; artefatos sociais estabilizados pelos processos educativos não formais, pelos intelectuais negros (as) e antirracismo e depois incorporados ou não pelos governos, Estado, sistemas de ensino e currículos oficiais.

Os currículos estabilizados têm, como contraparte ou motor, os currículos expandidos pelos movimentos sociais negros, pelo sistema cultural negro-africano e pelos intelectuais negros (as) e antirracismo.

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Os currículos estabilizados e expandidos pelos processos educativos dos movimentos sociais e culturais antirracismo expõem, na contramão, os currículos esquizofrênicos; aqueles que são a negação dos lugares, da corporeidade negro-indígena, das suas cosmogonias e retratam apenas os valores hegemonizados pela branquitude. Em outras palavras, de acordo com Joel Zito Araújo (2014), “eles são a negação do Brasil".

Os currículos dos lugares, aqueles que contrariam as imposições globais, possibilitam o efetivo aproveitamento horizontal, de vida a vida e de comunicação com o próximo, das manifestações culturais numa relação dialógica com o eixo de unidade na diversidade. Milton Santos (1996, p. 37) adverte “ que é pelo lugar que revemos o mundo”e ajustamos nossa interpretação, pois, nele, o recôndito, o permanente, o real triunfam, afinal, sobre o movimento, o passageiro, o imposto de fora”.

É, portanto, necessário refletir e afirmar aqui que o sistema cultural negro-africano tem na África e nas Diásporas, compreendidas a partir dos lugares, uma base comum que pode ser apreendida por princípios estruturantes, que revelam as ressonâncias desse sistema. Decorrem desse lugar epistemológico os nexos assentados pela oralidade, pela memória, pela palavra imantada (o Axé, o Moyoo), pela encruzilhada, pela expansão, pela restituição e pela encruzilhada, por Exu e pela ancestralidade.

Os currículos ressonantes, em oposição aos exotismos e superficialidades da cultura negra de projeção, têm amarras em profundidade com a cultura negra de ressonância, que revela a estrutura profunda desse sistema e os seus princípios estruturantes, epistemológicos e filosóficos. Os currículos ressonantes demarcam, como polo indispensável para a sua inclusão no sistema interno das academias, o sistema cultural negro-africano como objeto da filosofia da ancestralidade e/ou categoria filosófica. As poéticas cênicas negras só terão eficácia recuperando e incorporando estes e outros significados dados, ou melhor, elaborados, ressonados, estabilizados e expandidos pelos currículos e pela consequente renovação das disciplinas históricas.

Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas e o projeto curricular: uma retomada sintética

Alguns pontos são chaves para a implementação de um currículo assentado nas Negras Práticas Pedagógicas e Epistêmicas. O primeiro ponto ou exigência é a dimensão interdisciplinar que passa pela discussão do projeto de sociedade existente no Brasil, do racismo e principalmente dos seus efeitos nas artes cênicas.

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transformadas ou elevadas à potência de metadisciplinas. A noção de metadisciplina, de acordo com Milton Santos (2000, p.50), é fundamental para a compreensão daquilo que todas disciplinas têm em comum, desse ponto de vista:

A ideia da metadisciplina é a seguinte: existem várias disciplinas, a geo-grafia, a sociologia, a antropologia, a economia”. Cada disciplina possui um modulo que a identifica e a distingue das demais. O que faz com que uma disciplina se relacione com as demais é o mundo, o mesmo mundo que, no seu movimento, faz com que a minha disciplina se transforme... Todas as disciplinas têm sua relação com o mundo. Quando no processo de informá-la, colocamos o mundo dentro de uma disciplina, e dele fa-zemos a inspiração mãe, temos a metadisciplina. Por isso, o mundo é que permite que se estabeleça um discurso inteligível, um canal de comunica-ção entre as disciplinas. A interdisciplinaridade não é algo que diga res-peito às disciplinas, mas a metadisciplina. Uma geografia, uma sociolo-gia, uma economia, uma antropologia que não tenham o mundo como inspiração na produção própria de conceitos, não se prestam a nenhum trabalho interdisciplinar. Este não é o resultado de trabalhar juntos, mas da possibilidade de um discurso intercambiável, com a fertilização mútua de conceitos que, apesar dos jargões respectivos, não serão impenetrá-veis... A metadisciplina é a filosofia particular a cada disciplina que lhe permite conversar com as outras.

Outro passo ou exigência é a renovação dessas disciplinas considerando o que todas elas têm em comum, isto é, as disciplinas históricas têm em comum, a exemplo das teorizações, o mundo aqui sintetizado pela sociedade brasileira e pelo racismo. Sendo assim, o trabalho interdisciplinar não se limita ao exercício de tratar conjuntamente de um mesmo tema, mas ao exercício epistemológico e filosófico de renovar as disciplinas relevando a existência estrutural do racismo e os seus efeitos nas artes cênicas.

A relação dinâmica da África e das suas Diásporas, segundo ponto, é outra questão nuclear. África e Diáspora são um contínuo em trânsito e em mutação; a elaboração teórica e metodológica deve se ocupar decisivamente das vias de (re) aproximação da África e da Diáspora e/ou da relação África e Diáspora. No que toca ainda aos polos de aproximação, o território é um conjunto de transposições corpóreas, técnicas e imateriais. O palco o é também.

A elaboração, tessitura urdida pelo sistema cultural negro-africano e pelos seus princípios estruturantes pluriversais, é também ponto nodal. Não é demais retomar a análise de Abdias do Nascimento que, nas décadas de 50 e 60 do século XX, pontuava que a base do teatro negro-brasileiro deitava raiz nos lugares africanos. Leda Maria Martins (1995, p.57) navega nos mesmos mares ou travessias e nos ensina que as teatralizações, presentes nas danças e em inúmeras manifestações herdadas do continente africano, são chaves para o entendimento do teatro negro e o são também referências e bases indispensáveis para o ingresso no teatro stricto sensu e nas poéticas negras.

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Há ainda, no dizer de Martins (1995, p. 57), as atualizações das relações políticas e educativas dessas encenações, neste caso:

O processo de dupla fala encontra uma imagem que o sintetiza, Exu, orixá que preser-vou seu nome próprio, no exercício de renomeação dos deuses africanos efetuado pelo sistema político-religioso das Américas. Exu simboliza um princípio estrutural signifi-cante da cultura negra, um operador semântico da alteridade africana na sua interseção nos Novos Mundos.

A interseção redimensiona o trânsito negro-africano pelas Américas e pelo mundo. Valores filosóficos e civilizatórios são transportados, transplantados e, na contramão do trabalho escravizado e da desumanização, são, respeitando os princípios estruturantes, transfigurados, ressignificados, humanizados.

Pode-se inferir que a compreensão do espaço dramático negro-brasileiro se dá, em face dessa relação, em paralelo à tomada de consciência da África e Diáspora; a base e motor desse encontro é o território como quadro de vida e o é também o sistema cultural negro-africano. A rigor, África e Diáspora formam um contínuo, cujo núcleo de aproximação, desde os primórdios de dispersão de africanos pelo mundo, é o território e o sistema cultural comum, especialmente os princípios estruturantes desse sistema: Exu, ancestralidade, palavra imantada, Axé, oralidade, memória, encruzilhada, restituição, expansão, entre outros.

O sistema cultural negro-brasileiro como categoria filosófica exige, primeiramente, a compreensão da cultura negra como um todo, em cuja constituição estão confiados valores das manifestações culturais, artísticas, educativas, científicas, filosóficas e civilizatórios. O sistema cultural é um hipertexto; isto é, tecido e tessitura que se faz encruzilhado com os princípios estruturantes da cosmogonia negro-africana. Luz (2011, p.95) se expressa assim a respeito de certos princípios estruturantes da cultura negra e das suas funcionalidades para adentrar e recuperar; de um lado, a totalidade e, de outro, a singularidade de um processo educativo estabilizado pela oralidade e iniciação.

Os textos e os contos “são transmitidos e aprendidos lentamente através da convivência e da iniciação ritualística “como forma pedagógica especificamente negra, os textos das comunidades têm uma finalidade e uma função. Citando Houis, Juan E. dos Santos afirma: “antes de serem formas de arte [os textos] são formas que levam a carga de sig-nificar as múltiplas relações do homem com seu meio técnico e ético [...] Eles (os tex-tos) ilustram uma maneira pela qual os nagôs procuram promover a adaptação ou a soci-alização de seus integrantes, através do aspecto pedagógico, assegurando assim uma forma própria de obter a coesão social.

Os textos são mais que formas, são artefatos que têm valor e significado e, especialmente, eles incorporam as complexas relações humanas; não são apenas técnicas textuais, são meios para adentrar ou explicitar as relações com as técnicas e com o sistema cultural, o que redunda numa relação com o contexto e com a produção de políticas, de

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Feitas as retomadas analíticas dos parágrafos anteriores, informamos que as teorizações seguintes serão apenas citadas muito resumidamente, pois as compreensões devem ser buscadas no entendimento conjunto do artigo.

Retomando a enumeração sintética, o terceiro ponto diz respeito aos processos educativos ressonados, estabilizados e expandidos pelos movimentos sociais negros e pelo sistema cultural africano. O quarto ponto é o entendimento do sistema cultural negro-africano como categoria filosófica e/ou como objeto da filosofia da ancestralidade como filosofia africana. O quinto ponto exige a compreensão da natureza do sistema cultural negro-africano, que é um todo; não é apenas cultura. O sexto ponto, a cultura negra de ressonância, demanda esforços teóricos, metodológicos, epistemológicos e filosóficos para dar um salto e ir além da cultura negra de projeção. O sétimo ponto trata da inclusão de disciplinas estabilizadas e expandidas pelos movimentos sociais negros e pelo sistema cultura negro-africano; a saber e entre outras, fundamentos filosóficos e práticos do samba e da capoeira e filosofia da ancestralidade. O oitavo ponto, considerando o racismo e igualmente o contingente de negros (as) existentes no Brasil, enfatiza a necessidade de renovação das disciplinas históricas. O nono ponto, uma culminância, apresentará, a partir do dinâmico, complexo e milenar sistema cultural negro-africano, as bases para um método de formação de atrizes/atores, diretoras/diretores. O décimo ponto, outra culminância, cuidará da construção do projeto pedagógico do curso de Artes Cênicas a partir da dimensão material do currículo, isto é, relevando as mudanças no sistema interno do Curso de Artes Cênicas e na superação dos currículos esquizofrênicos, que darão lugar aos currículos dos lugares, ressonados, estabilizados e expandidos pelos movimentos sociais negros, intelectuais negros (as) e antirracismo e pelo sistema cultural negro-africano.

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Fausto Antonio

Carlindo Fausto Antonio é atualmente professor

efetivo da UNILAB, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - São Francisco do Conde - Bahia. Foi professor efetivo, adjunto, da UFAM, Universidade Federal do Amazonas de 2009 a 2013. Atuou no Departamento de Artes Visuais (lotação no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia de Parintins).Possui graduação em Português e Literatura de Expressão em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1993) e em Pedagogia pela UNINOVE(2010), mestrado em

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Estadual de Campinas (1997) e doutorado em Teoria Literária e História da Literatura pela Universidade Estadual de Campinas (2005). É escritor e autor, entre outros, dos livros (prosa) Exumos, Vaníssima Senhora, Descalvado e Vinte Anos de Prosa; (poesia) Fala de Pedra e Pedra, Linhagem de Pedra , Outra Pessoa, Elegia de Descalvado e Vinte Anos de Poesia; (teatro) De que valem os portões, Arthur Bispo do Rosário, o Rei, Rutília e Estamira e Patuá de Palavras; (Infantil) No Reino da Carapinha, publica anualmente na coetânea Cadernos Negros. Sobre a obra do autor consulte :http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm e site: www.quilombhoje.com.br

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