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A lei de terras em Santa Catarina e a consolidação do estado imperial brasileiro

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Academic year: 2021

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Flávia Paula Darossi

A LEI DE TERRAS EM SANTA CATARINA E A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO IMPERIAL BRASILEIRO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em História Cultural.

Orientador: Paulo Pinheiro Machado

Florianópolis, SC 2017

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AGRADECIMENTOS

Minha gratidão ao orientador Paulo Pinheiro Machado, a Professora Beatriz G. Mamigonian e aos Professores João Klug e Tiago Kramer de Oliveira, do PPGH-UFSC, pelo incentivo e orientações à pesquisa e o empréstimo de livros. Também agradeço o inestimável apoio de minha mãe Darcy, de meus irmãos Aline, Fabiana e Gilberto, de meu pai Elói, das queridas amigas Isabela, Taise, Daniela, Tairine, e da Deutschelehrerin Cássia. Ainda, aos colegas do Laboratório de História Social do Trabalho e da Cultura, especialmente Cristina Dallanora, e ao grupo do Simpósio Temático de História Rural da ANPUH dos anos 2015 e 2017. Ao CNPq, por ter me contemplado com uma bolsa de estudo, e ao PPGH-UFSC, por ter custeado algumas de minhas viagens a eventos científicos e de pesquisa. Na Secretaria do PPGH, a Nailor Boianovsky pela amabilidade e solicitude. Em minha busca por determinadas fontes históricas, recebi grande auxílio dos funcionários do Museu do Judiciário Catarinense, do Arquivo Público do Estado, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, da Diretoria de Assuntos Fundiários da Secretaria de Estado de Agricultura e da Pesca, e do Museu Thiago de Castro. Sou especialmente grata ao senhor Rui Laurentino, responsável pelo acervo permanente do Fórum da comarca de Lages. Finalmente, pela inestimável participação e sugestões, agradeço as professoras que compuseram minha banca de Defesa da Dissertação: Marina Monteiro Machado e Beatriz G. Mamigonian.

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RESUMO

Neste trabalho procuro analisar a forma como o Estado Imperial brasileiro adequou o projeto centralizador da década de 1840 em correspondência com as elites regionais e locais, e tornou a Lei de Terras e seu Decreto de execução instrumentos funcionais de agregação e consolidação política no Segundo Reinado. Para aprofundar minha hipótese, tomo por objetos de estudo a província de Santa Catarina e a região do Planalto, correspondente à municipalidade de Lages no século XIX.

Palavras-chave: Império do Brasil; Lei de Terras; Segundo Reinado; Santa Catarina; Planalto.

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ABSTRACT

In this work I analyze how the brazilian Imperial State adapted the centralizing project of the 1840s in correspondence with regional and local elites and made the “Land Law” and the execution Decree functionals instruments of aggregation and political consolidation in the Second Reign. To deepen my hypothesis, I take as object of study the province of Santa Catarina and the Plateau region, corresponding to the municipality of Lages in the 19th century.

Keywords: Land Law; Empire of Brazil; Second Reign; Santa Catarina; Plateau.

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SUMÁRIO

Notas introdutórias acerca da Lei, do Governo e da província...13

1. A política das terras no Império ... 48

Descentralizando a centralização ... 72

2. A implementação da Lei de Terras em Santa Catarina... 86

Ao povo lageano que em seca alma se abriga a gratidão: os juízes comissários de terras ... .101

A força do poder local ... ....119

Transformações na estrutura administrativa e dificuldades na execução da Lei... ... 127

Considerações finais ... 132

Fontes... ... ... 137

Referências bibliográficas ...147

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NOTAS INTRODUTÓRIAS Acerca da Lei, do Governo e da província

Se não esperais, dizem-nos alguns, que a execução da Lei das Terras nos traga colonos; se não acreditais que a ação dessa lei seja vencer as preocupações hostis que arredam da nossa pátria as torrentes de emigração europeia, que benefícios esperais dessa lei, que tantas vezes tendes apresentado como uma das mais úteis que os estadistas do nosso partido meditaram e apresentaram ao parlamento?1

Em duas edições de julho de 1854, o jornal O Conservador da província de Santa Catarina reproduziu o texto intitulado “Benefícios reais da Lei das Terras”, do carioca O Velho Brasil. Publicado originalmente dois meses após o decreto regulamentou a Lei no Império (Lei nº 601, de 18 de set. 1850 e Dec. nº 1.318, de 30 de jan. 1854), o texto apresenta o posicionamento oficial do partido Conservador de Santa Catarina acerca das expectativas em torno da Lei. Seu cerne crítico reside em três pontos: a defesa do regime de pequenas propriedades agrícolas, a crítica à supressão do imposto territorial e à promessa da importação de trabalhadores pobres europeus para a substituição da mão-de-obra africana nas grandes lavouras.2

1

Jornal O Conservador (SC). Desterro. Ano III, nº. 235, pp. 03-04, jul. 1854, 1ª parte. Acervo da Biblioteca Nacional Digital. Hemeroteca digital, seção periódicos, s. endereço eletrônico.

2 Com a ampliação da pressão do Governo da Inglaterra sobre a execução

dos tratados e leis em que o Brasil se comprometera a abolir o tráfico de africanos, os debates parlamentares passaram a tratar, cada vez, da virtual demanda de mão-de-obra livre no país. Para aprofundamento, cf., BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Ed. da USP, 1976; e MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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A opinião do jornal era de que a Lei de Terras, “qual passou, depois das modificações do Senado, não nos parece ter de ser tão útil” como parecia a princípio em razão da “exclusão do imposto sobre as terras que os proprietários conservarem em abandono”. Porquanto “pode muito bem ser que o resultado da lei falhe em grande parte, pois esse resultado era obrigar o proprietário a fazer produzir a sua propriedade, ou, quando o não pudesse, a vendê-la”. De acordo com o jornal, o objetivo inicial era de que fosse evitado “esse grande mal que todos reconhecem, de haverem indivíduos entre nós, senhores de léguas e léguas de terrenos, do qual se tornam, como eunucos do serralho, guardas zelosos”, que “não aproveitam para si nem consentem que outros o aproveitem”.

O projeto original da Lei sobre Colonização Estrangeira e Sesmarias foi criado a pedido do Ministério dos Negócios do Império em sessão do Conselho de Estado de 1842, e escrito pelos Conselheiros Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro. Modificado e ampliado, foi debatido na Câmara dos Deputados em 1843 e encaminhado em outubro do mesmo ano para sê-lo discutido e votado no Senado, até que finalmente foi sancionado pela Câmara no mês de setembro de 1850.3

Pelas primeiras versões do projeto, a bancada do Partido Conservador procurou normatizar as atribuições do Governo sobre as terras devolutas e tratar conjuntamente os temas da regularização das posses e sesmarias e da colonização estrangeira. O projeto foi inicialmente inspirado em estudos de Edward G. Wakefield sobre a colonização espontânea na Austrália e a proposta de executá-la por meio do encarecimento artificial do preço das terras, de modo a dificultar o acesso imediato dos imigrantes à propriedade particular. O produto das

3 Sobre o processo legislativo da Lei de Terras, cf., MOTTA, Márcia M. M.

“Sesmeiros e posseiros nas malhas da Lei (um estudo sobre os debates parlamentares acerca do projeto de Lei de Terras – 1843-1850)”. In: Raízes. Ano XVII, nº 18, set. 1998, pp. 102-110; e SILVA, Claudia Christina Machado. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a Lei de Terras (1842-1854). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006.

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vendas de terras a prazo aos colonos seria empregado no financiamento da própria colonização de novas levas de imigrantes.4

O Governo brasileiro planejava subsidiar os serviços de importação e assentamento de colonos por meio da venda de terras devolutas e da cobrança de impostos. Este fundo tributário inicialmente projetado na Lei proveria de duas fontes: 1) do imposto territorial, pelo qual a todos os possuidores de terras cobrar-se-ia o valor de 500 réis por meio de quarto de légua em quadra; e 2) do direito de chancelaria sobre a titulação fundiária, correspondente a ¼ de real por braça quadrada nas terras destinadas à cultura, e a 1/256 nos campos destinados à pastagem.5

Contudo, representantes de várias províncias na Câmara dos Deputados e no Senado se opuseram e consideraram exagerado o valor pretendido. Uns justificaram a inviabilidade do pagamento do imposto em razão das crises agrícola e econômica nas quais suas províncias se encontravam; outros pela afastada localização das propriedades dos centros comerciais e dos portos marítimos – que por si só já onerava qualquer tipo de produção; ou pela diferença na qualidade e no valor das terras dentre as distintas províncias do Império. Tanto que finalmente foi deliberada a separação da proposta do imposto do texto da Lei de Terras. Isto indica que as forças políticas regionais foram bem sucedidas frente ao Governo, que precisou acomodar diversas reivindicações das elites provinciais dominantes e abrir mão desta possibilidade de acumulação.6

4 Esta tornou-se a explicação clássica sobre a história da Lei de Terras,

segundo a qual a Lei consagrou a propriedade privada no país. Cf. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 2ª Ed. SP: Hucitec, 1986.

5 Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Deputados. Segundo ano da

quinta legislatura. Segunda sessão de 1843. Tomo I. Rio de Janeiro, 1882, p. 592. Em 1842, o Conselheiro Vasconcelos havia sugerido uma ementa que aplicava o imposto anual de 1$500 reis sobre cada meio quarto de légua em quadra, o qual aumentaria à proporção que o prédio fosse maior. A referida ementa previa também que fossem devolvidas ao Governo as terras cujo imposto não fosse pago por mais de três anos contínuos ou interrompidos.

6 Lígia Osório Silva reconheceu este “espírito conciliatório” na construção

da Lei de Terras. Convergindo à crítica do jornal catarinense, a autora afirmou que “essa desistência [do Governo] diante dos proprietários de

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A crítica d‟O Conservador sugere um acordo classista entre o Estado e os grandes senhores e possuidores de terras, “que não deixariam de queixar-se”, fossem eles auto representados por ou por parlamentares de suas respectivas províncias:

Suprimido, porém, o imposto, o que levará o grande proprietário a largar de mão as terras que conserva inúteis, a entregá-las a foreiros ou a arrendatários, ou a solicitar com todo o empenho braços e instrumentos que lha aproveitem? Nada. A ação da lei sem imposto não terá influência sobre o regime da nossa prosperidade territorial, continuará ela, como até aqui concentrada, inútil na mão de alguns proprietários (...). A supressão, pois, dessa medida, que o Senado não quis adotar para evitar sem dúvida os clamores dos nossos proprietários indolentes e rotineiros, que não deixariam de queixar-se contra a vexação tirânica de uma imposição sobre o que nada rende, sacrificou o princípio da lei e a sua maior vantagem.

A supressão deste imposto revitalizaria antigos problemas agrários, uma vez que não estimularia o trabalho nas avultadas terras do Império, mantendo-as concentradas e improdutivas. A obrigação legal do imposto territorial tinha por objetivo criar aos proprietários a necessidade de tornar suas terras rentáveis, e não o contrário, custosas, quando nada fosse produzido e tivessem de dispender um valor para o pagamento do referido imposto. Deste modo, a Lei tornar-se-ia inútil ao

terras foi um dos aspectos da Lei que mais crítica mereceu por parte dos comentaristas da época. De fato, parece totalmente injustificado que uma lei que tinha como um dos seus objetivos principais financiar a imigração, não instituísse o imposto territorial. Além de reforçar os minguados recursos do Estado Imperial, um imposto sobre as terras desestimularia a manutenção de grandes latifúndios improdutivos.” SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e Latifúndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: Ed. Unicamp, 1996, p. 144.

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“regime da prosperidade territorial”, e catalisaria inclusive a especulação e o encarecimento das terras.

Por meio do texto final da Lei de Terras atribuiu-se ao Estado o ônus de custear a imigração e o estabelecimento de colonos livres para serem empregados “em estabelecimentos agrícolas ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem”.7

Contudo, a Lei desconsiderou qualquer reserva de terras devolutas para o assentamento dos africanos que fossem alforriados pela aplicação da Lei Eusébio de Queirós sancionada em 1850, que extinguiu o tráfico de escravos.

Para tornar exequível o projeto imigrantista, a Lei de Terras previu a utilização do produto da venda de terras e do direito de chancelaria sobre a expedição dos títulos de propriedade.8 Por esta razão, a compra foi normatizada como a única forma legal de acesso às terras do Estado. A posse em terras devolutas foi proibida, exceto em regiões de fronteira do Império, as quais seriam concedidas gratuitamente em uma zona de dez léguas. Além disso, a Lei reiterou a suspensão de concessões de datas de Sesmarias. Passou a ser obrigatório que posseiros e sesmeiros em situação irregular requisitassem a legalização e a titulação de suas propriedades, e as registrassem em uma instituição paroquial para que o Governo tomasse conhecimento da demanda de medições nos municípios, a fim de discriminar quais eram as terras devolutas aptas à venda. Os trabalhos de conservação, medição/demarcação e venda de terras devolutas seriam administrados

7

BRASIL, Lei nº. 601, de 18 de Setembro de 1850, Dispõe sobre as terras devolutas do Império, art. nº 18. São deste período também o Decreto nº 885, de 4 de outubro de 1856, que autorizou o Governo a despender até seis mil contos de reis em três anos com a importação de colonos e seu estabelecimento; e o Decreto nº 1.915, de 28 de março de 1857, que aprovou o contrato entre a Associação Central de Colonização de 1853 e o Governo Imperial, por intermédio da Repartição Geral das Terras Públicas.

8 “(...) Pagando-se 5$ de direitos de chancelaria pelo terreno que não

exceder de um quadrado de 500 braças por lado, e outro tanto por cada igual quadrado que de mais contiver a posse; e, além disso, 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou selo”. BRASIL, Lei nº. 601, de 18 de Setembro de 1850, Op. cit., art. nº 11.

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por um novo órgão público denominado Repartição Geral das Terras Públicas.

A Lei estruturou uma hierarquia de supervisão do funcionalismo público administrativo e policial responsável pela fiscalização e conservação das terras devolutas. Pressupunha-se que a restrição das formas de acesso à terra impelisse os interessados a comprarem apenas lotes em extensões nas quais efetivamente tivessem condições de trabalhar e produzir. Por este motivo o jornal catarinense julgou a venda de terras devolutas como o principal benefício da Lei: o aumento da produção nacional dar-se-ia mediante pequenas extensões de terras devolutas compradas e produzidas em regime de trabalho familiar por nacionais e virtualmente também por colonos estrangeiros.

Se na primeira parte da publicação d‟O Conservador foram elencadas implicações desfavoráveis da supressão do imposto territorial, na segunda construiu-se uma virada crítica mais compreensiva e otimista sobre os benefícios da Lei (“o que dela fica é suficiente para que lhe aplaudamos, e sem querermos esperar resultados quiméricos, procuremos verificar os reais”).9 A julgar pelo fato de que até 1850 a maioria das propriedades do Império se traduzia em ficções jurídicas – com a maleabilidade e a indefinição de divisas e as recorrentes contestações de estremadura entre vizinhos –,10 de acordo com o jornal, a medição e a demarcação tanto das terras devolutas, quanto das posses e sesmarias, contribuiriam para que fossem fixados os limites das terras e freassem as ocupações indiscriminadas sobre as devolutas.

Além disso, a Lei seria “salutaríssima” para a autonomia dos trabalhadores na condição de agregados. De acordo com a publicação, agregado seria aquele “a quem a comiseração de um grande proprietário

9 Jornal O Conservador (SC). Desterro. Ano III, nº. 236, jul. 1854, 2ª parte,

Op. cit., p. 03.

10 Haja vista o seguinte excerto: “Até aqui, a propriedade rural quase que só

nominalmente existia: nunca fixa, sem limites certos, sempre contestada, dando ocasião a demandas intermináveis, aumentando-se por usurpações sobre o domínio público, nunca aproveitada nem na décima parte de sua extensão, e constituindo para seus proprietários uma espécie de baronias feudais, não era ela verdadeira riqueza para os que a possuíam, nem uma utilidade para o país”.

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“deixa estabelecer-se nas suas terras, sem conferir-lhe direito, nem garantia alguma que, pois, de um momento para outro, pode ser excluído desse favor”, “que assim está na eterna dependência desse proprietário, escravizado a sua vontade a ponto de muitas vezes tornar-se cego instrumento dos tornar-seus crimes”. Esta categoria social abarcava uma diversidade muito grande de indivíduos como libertos ou livres pobres, brancos, pardos, caboclos:

O brasileiro, porém, que tem boa vontade de trabalhar e que tem braços para o trabalho, em que condição fica? O Estado não lhe pode vender nem dar lotes de terra em que ele se estabeleça e que aproveite; o proprietário atual não lhe cede, por foro ou por arrendamento, terreno algum e, pois, cumpre-lhe que inutilize os seus braços, que renuncie a sua vontade de trabalhar ou que se sujeite como agregado.

O Conservador de Santa Catarina previa que a venda de lotes devolutos e a legitimação de suas posses os transformariam em pequenos proprietários e por consequência lhes desestruturariam as relações de dependência junto a grandes senhores rurais, além de desobrigá-los de servirem em “revoltas” e “crimes” a mando dos senhores.11 Ou seja, por meio da Lei de Terras o Governo dificultaria a autoridade particular de grandes proprietários e tornaria não “mais de todo precária a condição do lavrador de pequenos haveres”:

A esse estado de coisas a lei das terras virá remediar: o grande proprietário poderá conservar inutilizadas as suas imensas terras, mas ao menos nos limites dessas terras

11 Acerca das revoltas da primeira metade do século XIX, cf. DANTAS,

Monica Duarte (org.). Revoltas, Motins, Revoluções: Homens livres e libertos no Brasil do século XIX. SP: Alameda, 2011; MOTTA, Márcia M. M.; ZARTH, Paulo. (orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história, vol. 01: Concepções de justiça e resistência nos Brasis. SP: Editora Unesp; Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, NEAD, 2008.

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se-á, nas terras que o Governo houver demarcado, dividido em lotes e vendido, a pequena propriedade, fecundada com o suor do proprietário e de sua família, e portanto multiplicando os seus produtos. Não será mais de todo precária a condição do lavrador de pequenos haveres, (...) poderá ser proprietário, e ver-se garantido pelo Governo contra a opressão.

Em um sentido estrito O Conservador de Santa Catarina destoou da mentalidade de sua época. Os trabalhadores nacionais geralmente eram tipificados como os mantenedores do atraso, enquanto os colonos europeus eram identificados como a força laboral do progresso.12 Ao destacar a importância dos agregados para a progressão

da agricultura (“dar-nos-á um aumento extraordinário na produção nacional”), a publicação nos permite refletir a efetiva participação e influência “brasileira” nos processos de ocupação territorial e da formação social da província. É interessante também porque aponta para a interpretação contemporânea à promulgação da Lei em Santa Catarina, de que o acesso à propriedade da terra não se aplicava apenas aos imigrantes; especialmente se pensarmos o Planalto, região que não constituiu foco inicial de colonos europeus.13

Até porque, o jornal questionou a real funcionalidade da Lei para executar tantas promessas, principalmente acerca da dupla expectativa em torno da importação de

12 Cf. ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário

do século XIX. Ijuí: Uniijuí, 2002.

13 Cf. Anexo A. Destaquei Lages no mapa dos assentamentos alemães da

província com o objetivo de evidenciar a ausência de colônias estrangeiras na região do Planalto na década posterior à promulgação da Lei de Terras. Sobre a imigração e a colonização europeia no sul do Império, cf., entre outros, PIAZZA, Walter F. A colonização de Santa Catarina. 3ª Edição. Florianópolis: Lunardelli, 1994; MACHADO, Paulo Pinheiro. A Política de Colonização no Império. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1999; KLUG, João. Imigração no Sul do Brasil. In: GRIMBERG; SALES (orgs.). O Brasil Imperial, v. III, 1870-1889, Op. cit.; SEYFERTH, Giralda. “Colonização, imigração e a questão racial no Brasil”. In: Revista USP. São Paulo, nº 53, mar./mai. 2002, pp. 117-149.

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colonos livres que substituiriam os escravos africanos nas grandes lavouras e da sua integração ao restante da população (“não lhe peçamos mais do que ela pode dar, sob pena de prepararmos contra ela iníquas acusações?”).14

Em Santa Catarina, a execução da Lei de Terras não se restringiu a imigrantes estrangeiros e ao beneficiamento da produção agrícola. No termo de Lages, por exemplo, a Lei foi agenciada majoritariamente por uma população de origem luso-brasileira sobre terras cuja produção era direcionada à pecuária extensiva. Para regiões agropecuaristas como o Planalto catarinense, era legalmente previsto que nas posses legitimadas em terras de cultura ou em campos de criação, seria compreendido além do terreno aproveitado para pastagem dos animais, “outro tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em nenhum caso exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação”.15

Além disso, os posseiros teriam preferência na compra de terras devolutas que lhes fossem contíguas, “contanto que mostrem pelo estado de sua lavoura ou criação que tem meios necessários para aproveitá-las”.16 Mas o Regulamento não discriminou o que seria necessário para provar tal condição de aproveitamento das terras a partir do estabelecimento de criações animais. Indiretamente, esta disposição foi estratégica para a legitimação de invasões de terras públicas. Ou seja, a Lei implementou novas normas para a prática de velhos costumes de expansão dominial.

Portanto, diferentemente do que O Conservador conjecturou de maneira tão otimista em 1854, a aplicação da Lei de Terras produziu uma série de novos problemas agrários e renovou muitos dos que se esperava que fossem remediados por meio de sua execução. É consensual na literatura sobre o tema o entendimento de que a Lei ocasionou a expansão dos conflitos fundiários, a manutenção do

14 Questiona a publicação: “não será igual a loucura do que a uma lei, cujo

resultado deve ser unicamente a criação da pequena propriedade, pedirem que traga ela colonos livres que se substituam aos escravos no trabalho das grandes propriedade?”.

15 BRASIL, Lei nº. 601, de 18 de Setembro de 1850, Op. cit., art. nº 5 §1º. 16 Ibidem, art. nº 15.

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latifúndio improdutivo e a grilagem. Seu impacto sobre a substituição do trabalho escravo no Império foi praticamente nenhum.17 Ao contrário, em muitos casos ocasionou a transformação compulsória de pequenos posseiros em agregados, em consequência da venda ou legitimação de lotes ocupados de maneira informal por populações pobres sem terras a terceiros.

Em minha Monografia de Graduação sobre a aplicação da Lei na região do Planalto de Santa Catarina, pude constatar que, apesar de proibida em 1850, a posse por ocupação primária continuou sendo praticada durante toda a segunda metade do século XIX. Baseei meu estudo em 24 requerimentos de compra de terras devolutas lavrados no município de Lages entre 1859 e 1885. Destes, cerca de 40% solicitaram a compra de parcelas de terras devolutas já ocupadas com lavouras de milho, feijão, fumo, criações animais de suínos e de gado vacum e cavalar, além de moradia habitual. Aproximadamente 25% dos aludidos requerimentos havia sido alvo de reclamações de outrem sob acusações de invasão de propriedade e protestos de medições.18

Mas, embora a Lei de Terras tenha malogrado no que se refere aos objetivos de regular a ocupação fundiária do território nacional, de estremar o domínio público do particular e de financiar a imigração de trabalhadores europeus pela venda de terras devolutas, é consensual o fato de que a estrutura burocrática criada para sua execução constituiu-se em um poderoso mecanismo que atendeu ao objetivo de restringir o acesso a terras devolutas principalmente por populações pobres em regiões valorizadas pela agroexportação ou dominadas por grupos de elites e parentelas.19 À vista disso, neste trabalho proponho aprofundar o debate e explorar a que outros objetivos a Lei de Terras operou.

17 Não obstante, a afirmação carece de pesquisa específica. 18

Cf. DAROSSI, Flávia P. Regularização fundiária no Planalto Catarinense durante o período Monárquico (1850-1889). Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2015.

19

Existem estudos importantíssimos que tratam da questão agrária e das implicações da Lei de Terras no país. Cf., entre outros, LIMA, Ruy Cirne. Pequena História territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1954; GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro

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Para além do consenso historiográfico acerca da importância da Lei de Terras na conjuntura pós-colonial, dos debates sobre a transformação da escravidão africana em decorrência do fim do tráfico e da escassez de mão-de-obra e os projetos de imigração e colonização estrangeira, nas páginas subsequentes eu apresento a relação entre a política de acesso à terra no Brasil do século XIX e os processos de construção e consolidação do Estado Imperial iniciados nas primeiras décadas do século, relacionando especificamente a natureza dos cargos e as atividades dos empregados responsáveis pela execução da Lei de Terras no país com a discussão sobre a formação e o funcionamento da administração pública, judiciária e policial e da representação política no Segundo Reinado. O poder que os cargos públicos criados ou requisitados pela Lei adquiriram nas esferas provincial e local tomou uma importante dimensão ao longo da segunda metade do século XIX em função do controle dos dispositivos das legislações agrária e criminal vigentes no território nacional, apesar de não haver se ramificado de forma padronizada em todas as províncias do Império.

Grande parte dos estudos sobre a formação do Estado Nacional brasileiro aborda o recorte temporal da primeira metade do século, tendo em vista os processos de Independência política e a estruturação do primeiro e segundo Reinados na Corte do Rio de Janeiro. É praticamente unânime a ideia de que por volta de 1850 a centralização política estava consolidada no país.20 Todavia, em 1851,

séculos de latifúndio. 4ª Ed. RJ: Paz e Terra, 1977; CARVALHO, José Murilo de. “Modernização frustrada: a política de terras no Império”. Revista Brasileira de História, SP, v. 1, n. 1, 1981; Idem. “A política de terras: o veto dos barões”. In: A construção da ordem: a elite imperial; Teatro das sombras: a política imperial. 2ª Ed. RJ: Editora da UFRJ, Relume-Dumará, 1996, pp. 303-325; MOTTA, Márcia M. M. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. 2ª Ed. Niterói: Editora da UFF, 2008; SILVA, Lígia Osório, 1996, Op. cit.; CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. 2ª Ed. RJ: Ed. FGV, Faperj, 2009.

20

Sobre a historiografia da construção do Estado Imperial, cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do estado imperial. 5º Ed. SP: Hucitec, 2004; CARVALHO, José Murilo de, 1996, Op. cit.; GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. RJ:

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apenas dois anos após a derrota da Revolução Praieira, quando em seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado foi referendado o início da elaboração do Regulamento da Lei de Terras, era inconcebível aos contemporâneos a certeza sobre o fim das revoltas regionais. Mesmo José Murilo de Carvalho reconheceu que “o processo de enraizamento social da monarquia, de legitimação da Coroa perante as forças dominantes do país, foi difícil e complexo. Embora se possa dizer que estava definido em torno de 1850, ele permaneceu tenso até o final do Império”.21

Segundo Carvalho, a reação às medidas centralizadoras ocorridas em São Paulo e Minas Gerais em 1842 evidencia que ao se tentar instaurar um sistema de poder, não havia consenso entre as camadas proprietárias sobre “o arranjo institucional que melhor servisse a seus interesses”.22

Portanto, a necessidade de apoio das elites políticas provinciais foi um elemento a ser calculado pelo Imperador e o Governo Central às décadas posteriores a 1850, durante o Segundo Reinado.

Neste jogo de forças entre o Governo e os diferentes grupos de poder regionais, as pautas parlamentares de abolição do tráfico de escravos, da Lei de Terras e as reformas de descentralização política e da Guarda Nacional estiveram associadas: o que estava em questão era o arranjo dos espaços de atuação e de decisão sobre as propriedades escrava e fundiária e a autoridade sobre a repressão e o policiamento no Império. Isto fica evidente, por exemplo, quando analisamos as diferentes formas pelas quais a Lei Eusébio de Queirós e a Lei de Terras

Ed. UFRJ, 1997; URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro no século XIX. SP: Difel, 1978; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822- 1889. RJ: Civilização Brasileira, 2008; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. SP: Globo, 2005; FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871. 2ª Ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1986; FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. I e II. 2ª Ed. SP: Edusp; Porto Alegre: Globo, 1975.

21 CARVALHO, José Murilo de, 1996, Op. cit. pp. 229-230. 22 Ibidem, p. 234.

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foram regulamentadas, respectivamente em novembro de 1850 e janeiro de 1854.23

Neste período de 1850 a 1854, entre a sanção da Lei de Terras e a publicação de seu Regulamento, importantes transformações políticas definiram os rumos do poder legislativo. Em maio de 1852 Eusébio de Queirós saiu da chefia do Ministério da Justiça após mudança do Gabinete Conservador que havia aprovado a Lei de Terras; e Francisco Gonçalves Martins foi convocado pelo Imperador para a pasta do Império em substituição ao Visconde de Monte Alegre. Em fins de 1853 houve nova sucessão ministerial para um Gabinete de Conciliação, embora também de hegemonia Conservadora, chefiado pelo Marquês do Paraná.

Inserida neste contexto, a execução da Lei permaneceu suspensa por cerca de três anos. Em decorrência desta demora, foi alvo de uma série de críticas na Câmara dos Deputados. A seção dos Negócios do Império incumbida pelo Regulamento da Lei foi composta em 1851 por José Antonio da Silva Maia, Cândido José de Araújo Viana e o Visconde de Olinda. Em julho deste mesmo ano, um dos representantes de Minas Gerais, o deputado Joaquim Antão Fernandes Leão, solicitou urgência para discussão de um projeto relativo à reforma da Lei. Ele justificou seu requerimento questionando os demais parlamentares “se ainda ninguém tem feito reclamações” sobre o fato de até aquele momento não ter sido iniciada a execução da Lei. Segundo lhe constava, alguns administradores de províncias haviam declarado a inexequibilidade da mesma “segundo seu espírito e letra”, porque “defrauda muito gravemente a propriedade particular” e poria “em contestação as propriedades territoriais”. Notadamente na disposição que limitou a propriedade sobre terras adquiridas por posse, afirmou ele que “são tão grandes e tão gerais os clamores que se têm levantado”, que “constituindo-me órgão de tais clamores, não represente nesta ocasião os

23 No caso da propriedade escrava, a Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850,

e o decreto de execução nº 731, normatizaram a repressão do tráfico de africanos por meio da Auditoria da Marinha composta por juízes de Direito em primeira instância, com a possibilidade de recurso ao Conselho de Estado em segunda instância.

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interesses políticos de um partido”, mas “a universalidade da importante classe dos proprietários brasileiros”.24

Outro parlamentar, um dos representantes de São Paulo, declarou que ouvira “não de um partido, mas de toda a população ativa do Brasil, a confissão de seus sustos, de seus legítimos receios contra uma legislação eminentemente anárquica”.25

Em contrapartida, o deputado alagoano Francisco Inácio de Carvalho Moreira questionou a necessidade da discussão, uma vez que “a execução [da Lei] não veio demonstrar os defeitos que a sua doutrina oferece na prática”. Destacou que “o corpo legislativo não recebeu sequer uma só representação” contra a Lei e advertiu que, ao alterá-la, “seria de sobejo para desacreditá-la perante o país”.26

O entendimento de que a Lei de Terras era indispensável para a discriminação do domínio público das terras devolutas e a atração de trabalhadores estrangeiros foi o principal argumento utilizado no Legislativo para a sua sanção em 1850, na conjuntura da aprovação da lei de abolição do tráfico de escravos, enquanto Eusébio de Queirós estava à frente do Ministério. Entretanto, o discurso existente de que a Lei de Terras prejudicaria a classe dos proprietários rurais se dilatava à medida que sua execução parecia sofrer reveses com as alterações ministeriais do período.

Em sessão da Câmara em maio de 1852, o representante do Rio de Janeiro Antônio Pereira Barreto Pedroso afirmou que o Governo encontrara dificuldades na confecção do Regulamento da Lei, não sabendo “a que outra causa se possa razoavelmente atribuir a demora de sua publicação”, tendo em vista que quando fora votada, “era minha opinião que continha disposições de muita dificultosa execução”. Dirigindo sua fala ao novo ministro do Império presente na sessão, o deputado manifestou que “desejava saber, ser informado, se tenciona o

24 Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Deputados. Terceiro ano da

oitava legisl. Sessão de 1851. Tomo II. Rio de Janeiro: Tipografia de H. J. Pinto, 1878, p. 81.

25 Ibidem, p. 82. 26 Ibidem, p. 83.

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Ministério dar execução a essa lei”.27 Em resposta, Gonçalves Martins declarou não ter sido possível formar “algum pensamento acerca deste objeto”, pelo motivo de ter assumido há pouco tempo a chefia do Gabinete; mas esclareceu que havia trabalhos feitos pela anterior administração: “eu hei de os ver, hei de me apoiar com os conselhos daqueles que me quiserem ajudar, procurarei com a maior brevidade dar uma solução a esta questão”.28

No ano seguinte, 1853, o ministro foi novamente questionado sobre “que fim levou a Lei das Terras?”.29 Mesmo após ter alegado que em agosto o Regulamento estava concluído,30 a Lei continuou recebendo críticas por haver sido aprovada há cerca de três anos “e dormir nas pastas dos senhores ministros”. Segundo opositores da Lei na Câmara, a demora comprovaria que o Ministério previra “embaraços muito sérios” e “males gravíssimos” se a Lei fosse executada sem uma reforma ou emendas sobre a limitação das posses e o comisso.31

A natureza “dificultosa” de algumas de suas disposições se constituiu em um elemento de inflexão na forma de o Ministério organizar o Regulamento. A fala de um dos representantes de São Paulo na Câmara em 1853 dá-nos um indício acerca desta questão: “por que não vem o Governo oferecer as emendas que julga necessárias a essa lei? Ser[ia] isso melhor do que por meio de regulamentos talvez alterá-la, talvez dar lugar a grandes dúvidas no foro”.32

A alusão à aplicação da Lei na justiça nos remete a um elemento pouquíssimo discutido nos debates parlamentares sobre a Lei: a burocracia imperial.

Em sessão do Conselho de Estado de 1852, quando proferiu seu parecer sobre o projeto do Regulamento da Lei de Terras, o

27 Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Deputados. Quarto ano da

oitava legislatura. Sessão de 1852. Tomo I. Rio de Janeiro: Tipografia de H. J. Pinto, 1877, p. 37.

28 Ibidem, p. 41.

29 Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Deputados. Primeiro ano da

nona legislatura. Sessão de 1853. Tomo IV. Rio de Janeiro: Tipografia Parlamentar, 1876, p. 91.

30 Ibidem, p. 96. 31 Ibidem, p. 475.

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Conselheiro Visconde de Olinda mostrou-se preocupado quanto à possibilidade de orientação política da Lei pela magistratura e demais funcionários que a fossem executar nas diferentes regiões do Império. Ao tratar do julgamento de processos de terras e a atividade das comissões responsáveis pela análise de títulos e documentos comprobatórios, ele destacou que “a propriedade torna-se incerta, pois que ninguém tem certeza do modo de pensar dos juízes, apesar dos bons fundamentos que os assistem”:33

É preciso não omitir a apreensão geral, que se há de apoderar dos espíritos pela simples consideração dos rancores dos partidos, os quais não poupam meios para suplantar seus inimigos, e que saberão aproveitar-se da ocasião, que se lhes oferece estando todos dependentes do juízo que se há de proferir sobre sua sorte. Que arma poderosa não será essa nas mãos dos partidos em épocas de eleições.34

Por este motivo, não parecia conveniente que se “confie a decisão dessas causas às comissões, como se propõe no projeto, e nem a autoridade nenhuma provincial, devendo este julgamento ficar reservado ao Governo”. No entendimento de Olinda, era necessário retirar o poder destas comissões “das influências dos partidos e das localidades”, para “tranquilizar os ânimos acerca das intrigas locais”.35

Ao sugerir que fosse ampliado o papel dos presidentes de província como mediadores da Repartição Geral das Terras Públicas, tendo em vista que eles “não recebem ordens senão do [Ministério do] Império”,36

o Conselheiro projetou a padronização da execução da Lei de Terras com a reforma política empreendida na década de 1840 pelo partido Conservador.

33 Atas do Conselho de Estado Pleno. Ata de 25 de agosto de 1852. Brasília:

Centro Gráfico do Senado Federal. Vol. 4, 1978, p. 31.

34 Ibidem, p. 32. 35 Ibidem, p. 38. 36 Ibidem, p. 29.

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Acredito que em 1853, com a instalação do Gabinete de Conciliação, o Governo tenha procurado adequar (ou “conciliar”) a execução da Lei de Terras às aspirações tanto Conservadoras quanto Liberais por meio da burocracia, no intuito de contemplar as críticas gerais e retirar da letra da Lei o peso de rejeição que carregara. A fala do deputado mineiro Francisco de Paula Candido sobre a execução da Lei à classe dos grandes proprietários rurais favorece minha hipótese: “se a magistratura cumprir os seus deveres, não tenho medo dela”.37 Em outras palavras, é provável que essa dificuldade prevista para a aplicação da Lei e inclusive a questão da falta de apoio regional ao Governo Central tenham sido transferidas ao próprio funcionalismo público responsável pela administração da Lei na Corte e nas províncias.

Tendo estas considerações em vista, minha intenção é evidenciar a necessidade de integração e fortalecimento das bases sociais e políticas de apoio ao Governo também na segunda metade do Oitocentos, principalmente no período denominado por Carvalho como o “apogeu” do Império, entre 1853 e 1871; e ressaltar a imprescindível participação política regional agenciada notadamente por intermédio da aplicação da Lei de Terras.

Para desenvolver este intento, tomo por objeto de análise Santa Catarina, uma província de exíguo orçamento, pobre e periférica no que se refere ao eixo mercantil agroexportador; e enfoco o Planalto, região que correspondia grande parte ao município de Lages no século XIX, distanciado a oeste do litoral provincial pela Serra Geral.38

Santa Catarina dispunha de pouca influência política no cenário nacional em razão do baixo número de políticos que a representavam na Corte do Império. O único catarinense no Senado

37 Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1851, Op. cit., p. 82. 38

João Fragoso afirma que as províncias de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul eram classificadas como “periferia da periferia”, em razão da economia ser direcionada ao mercado interno, especialmente ao abastecimento de áreas agroexportadoras escravistas do Sudeste, que por sua vez giravam em torno do mercado internacional capitalista. FRAGOSO, João. “Economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista-exportadora”. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9ª Ed. RJ: Elsevier, 1990, p. 173.

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entre 1845 e 1871 (da 5ª a 14ª legislatura) foi o tenente coronel José da Silva Mafra, natural de Desterro. Quando foi indicado para formar a lista tríplice de candidatos ao Senado, em 1844, Mafra desempenhava em Santa Catarina o cargo de secretário da presidência e era deputado provincial (desde a 1ª legisl. de 1835). Havia sido também vice-presidente da província por longo período até assumir a senatoria vitalícia. Era Cavaleiro das Ordens Imperiais do Cruzeiro e da Rosa desde 1823 e na Corte tornou-se 1º secretário da Mesa do Senado.39

Quando presidiu a sessão do Senado em 27 de agosto de 1846, Mafra apoiou uma solicitação da Assembleia Legislativa de Santa Catarina acerca da concessão de três léguas quadradas para o patrimônio das vilas de São José, São Miguel e Porto Belo, e de quatro léguas quadradas para a vila de Lages. O presidente provincial fora ouvido e concordara na necessidade da concessão “por não terem as respectivas câmaras rendas com que recorrer às necessidades mais indispensáveis”.40

Após discussão em duas outras seções, em que fora diminuída a extensão dos terrenos a serem doados para ½ légua quadrada, o projeto foi deferido no Senado e encaminhado à Câmara dos Deputados.

De acordo com o historiador Walter F. Piazza, a maioria dos membros Conservadores e Liberais catarinenses inicialmente pertenceu à classe média e à elite urbana de Desterro, reunindo-se por meio de coalizões familiares em torno de determinados candidatos em períodos eleitorais, que “se constituíam nas próprias bandeiras políticas e disputavam o poder para a manutenção de seus interesses”.41

39 Junto com o Pe. Lourenço Rodrigues de Andrade, Mafra representou a

província nas Cortes de Lisboa em 1821. Ele faleceu em 1871 e foi substituído no Senado pelo Conservador Jesuíno Lamego da Costa. Além de Mafra, foram representantes de Santa Catarina no Senado entre 1826 e 1889 o Pe. Rodrigues de Andrade (1ª-5ª legisl.), Lamego da C. (15ª-20ª legisl.) e Alfredo d‟Escragnolle Taunay (20ª legisl.).

40 Anais do Senado do Império do Brasil. Ano de 1846. Livro I. Transcrição

disponível no sítio do Senado Federal, seção “Publicação e Documentação”.

41 PIAZZA, Walter F., Dicionário político catarinense. 2ª Ed. Florianópolis:

Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1994, p. 526 e 553. Para aprofundamento, Cf. PIAZZA, Walter F. O Poder Legislativo

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Durante a primeira década de execução da Lei de Terras, Santa Catarina foi administrada por um mesmo presidente. João José Coutinho era natural do Rio de Janeiro, bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo e filiado ao Partido Conservador. Sua nomeação ocorreu em 1849, a partir da chefia do Gabinete Conservador pelo Marquês de Monte Alegre. Antes de ser nomeado por Carta Imperial à Santa Catarina, Coutinho havia sido juiz municipal em Angra dos Reis e em Cabo Frio, e deputado da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro.42 Ele foi mantido na presidência de Santa Catarina durante toda a política de Conciliação e mesmo durante as alterações ministeriais entre o período de 1850 a 1859, quando chegou ao fim o Gabinete de Marquês de Olinda. Coutinho foi substituído na presidência pelo Liberal alagoano Esperidião Elói de Barros Pimentel (interino por cerca de um mês), seguido pelo Liberal rio-grandense Francisco C. de Araújo Brusque.

A Assembleia Legislativa Provincial de Santa Catarina tanto na 8ª legislatura (1850-52), quanto na 9ª (1852-53) e na 10ª (1854-55), foi constituída majoritariamente por homens ligados ao partido Conservador, embora tenha contado com a participação de Liberais renomados como os tenentes coronéis Joaquim Xavier Neves e José Bonifácio Caldeira de Andrada.43 Apesar da consonância partidária do presidente com a maioria da Assembleia Provincial, a relação entre ambos foi marcada por muitas críticas e rivalidades, ligadas a resoluções de Coutinho sobre orçamento provincial, pagamentos votados pela Assembleia e alterações no quadro de funcionários. Na capital, parte considerável destes debates políticos acontecia através da imprensa periódica. O jornal O Argos, por exemplo, foi fundado em 1856 pelo também Conservador José Joaquim Lopes, e travou duras críticas à administração presidencial de Coutinho. O fato de a Assembleia

catarinense: das suas raízes aos nossos dias, 1834-1994. 2ª Ed. Florianópolis: Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1994-b; e CABRAL, Oswaldo R. História da política em Santa Catarina durante o Império. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.

42

PIAZZA, Walter F., 1994, Op. cit., p. 229. Cf. também: PIAZZA, Walter F. O presidente João José Coutinho: estudo biográfico. Florianópolis: Comissão Nacional de História, 1956.

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Legislativa Provincial e a imprensa Conservadoras haverem se contraposto ao presidente partidário exemplifica a natureza “barganhada” da política centralizada em relação às províncias. Esta consideração é válida inclusive para a representação dos interesses catarinenses na Corte do Império.

Aproximadamente seis anos depois do projeto de concessão de terras devolutas ao patrimônio das vilas de Santa Catarina ter sido deferido no Senado, em maio de 1852 ele foi retomado na Câmara dos Deputados para votação final, em meio às discussões sobre o impasse da Lei de Terras.

Como a doação de terras públicas havia sido vetada em 1850, os deputados divergiram opiniões acerca das concessões às câmaras municipais. O baiano Benevenuto Magalhães Taques opôs-se ao projeto e justificou sua decisão com base nos artigos nº 01 e 12 da Lei de Terras.44 Seu argumento era que, “se no projeto se tratasse de doar a essas câmaras as terras em que as vilas respectivas estão situadas, eu não duvidaria em dar-lhe meu voto, porque não contrastaria” a Lei de Terras; mas tratava-se “de doar a arbítrio uma porção de terras nacionais em Santa Catarina a essas câmaras municipais, o que é uma alteração grave desta lei, cujo sistema me parece que não deve ser interrompido”.45

Se a medida tivesse algum fundamento, dever-se-ia alterar a própria Lei de Terras e ampliar esta possibilidade de doação aos demais municípios do Império, porque “não são somente as quatro câmaras de Santa Catarina cujos patrimônios são exíguos, outras muitas se acham neste caso”.46

E concluiu sua fala predizendo que “será uma doação somente feita em benefício de algumas pessoas que tenham alguma sagacidade e estejam mais a jeito de se aproveitarem dela”.47

Contrapondo a opinião do deputado baiano, o catarinense Joaquim Augusto do Livramento esclareceu que as referidas doações

44 Respectivamente, o primeiro artigo da Lei normatizou a aquisição de

terras devolutas exclusivamente por meio de compra e o 12º previu a reserva de terras devolutas para determinadas situações de interesse público, como a fundação de povoações, aldeamentos indígenas, etc.

45 Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1852, Op. cit., p. 52. 46 Ibidem, p. 53.

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não contradiriam os objetivos da Lei de Terras, a saber, de demarcar e valorar as terras devolutas para a promoção da colonização e de “evitar as invasões continuadas que os particulares faziam”.48 Ele garantiu que em nada sofreria o domínio público, especialmente em Santa Catarina, onde, segundo ele, “os terrenos devolutos são em tão grande quantidade que meia légua de terra é para eles como uma gota de água para o oceano”. Declarou mais que seria impossível realizar a doação de terrenos situados nas referidas vilas, em razão desses estarem há muito tempo sob domínio particular. Ao finalizar sua defesa do projeto, Livramento associou a capacitação das rendas públicas à ampliação do patrimônio fundiário municipal pelos sistemas de aforamento ou arrendamento, e exemplificou sua afirmação com base em Desterro: “assim é que a câmara municipal da capital de minha província recebe 2 ½ por cento das alheações dos terrenos encravados em seu patrimônio, o que lhe dá não pequena renda”.49

Já Bernardo de Souza Franco, representante da província do Pará, condicionou a possibilidade das doações à execução da Lei de Terras (“tenho ouvido dizer que esta lei está abandonada...”). O deputado mostrou-se aborrecido com a falta de informações da Comissão do Conselho de Estado sobre o andamento da elaboração do Regulamento da Lei (“suponho que a discussão está deslocada e que é pura perda enquanto os Srs. Ministros não aparecerem para tomarem parte”, “não podemos continuar neste embaraço”),50

e destacou que o estado provisório em que a instituição fundiária se encontrava no país “só pode agradar a quem não se importe com a administração pública”. Para ele, a Lei promulgada em 1850 precisava imediatamente ser executada ou então que “se sigam outros princípios para distribuição das terras”.51

Ele concluiu que o projeto de doação deveria ser rejeitado “se algum dos ministros me disser que a Lei de Terras será executada”, porque haveria outros meios de fornecer patrimônio às vilas catarinenses “que o pedem e o merecem”. Diz que províncias “pequeninas” como

48 Ibidem. 49 Ibidem, p. 54. 50 Ibidem. 51 Ibidem.

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Santa Catarina, “são muito esquecidas aqui na Câmara; e eu não quero ser do número daqueles que contribuem para o esquecimento em que jazem”.52

A última fala da sessão parece ter sido determinante à sanção da lei proposta pela Assembleia Legislativa Catarinense. Isto porque o deputado pernambucano Carneiro da Cunha afirmou que duvidava “muito que tenha execução a lei promulgada em 1850”. Segundo ele, os ministros haveriam de ter previsto a “inexequibilidade” da mesma, questionando-se se “tinham força bastante para fazê-la executar”.53

Na metade do século XIX a realidade fundiária de Santa Catarina ainda era pouco explorada pelo Estado, de modo que a multiplicidade de formas de apropriação e domínio útil das terras, como a posse por ocupação simples, não formalizada, era uma dinâmica comum da sociedade daquele período. Por este motivo, devemos desconfiar dos discursos oficiais que tratam da província como um “oceano” desabitado de terras devolutas, pois eles promovem um silenciamento operativo sobre incontável número de indígenas, posseiros nacionais pobres, conflitos fundiários e disputas por recursos. A concessão destas terras devolutas às Câmaras para ampliação dos arrendamentos municipais reflete o interesse do governo da província em alterar o formato da posse e fruição das terras da região, e indica o rumo da política fundiária visada desde 1846 à província pela Assembleia Legislativa e o presidente daquele período. Era exatamente neste contexto que a concepção da propriedade privada estava a ser gestada e legislada no Império. Portanto, o caso de Santa Catarina é sintomático para refletir o que o Governo projetava à província através da Lei de Terras, para além da questão estritamente política.

Ao normatizar o acesso exclusivo às terras devolutas pela compra, a Lei validou uma concepção específica de propriedade da terra – aquela particular, individual –, ao mesmo tempo em que restringiu seu acesso pela oneração e a burocracia.54 A partir de 1854, a complexidade

52

Ibidem, p. 55.

53 Ibidem.

54 São deste período as discussões sobre a utilização dos imóveis como

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e a pluralidade de relações fundiárias experienciadas no país tornaram-se um desafio a tornaram-ser ajuizado com batornaram-se na Lei de Terras, com o agravante de que os novos direitos e a burocracia regulamentados pelo Legislativo à composição da Lei estavam em pleno processo de construção e início de experimentação. É imperioso que desnaturalizemos a Lei e sua execução nas 24 províncias do Império, pois, como vimos, ambas são resultado de disputas entre determinados grupos sociais, em períodos específicos.

Rosa Congost sugere que a propriedade em si é apenas uma abstração jurídica: o que existem, na realidade, são direitos de propriedade e formas de ser proprietário. A autora parte do princípio de que “as condições de realização da propriedade, que podem ser muito diversas entre si, são o resultado de múltiplas facetas da atividade humana” e não se restringem às decisões dos legisladores,55 de maneira que “as relações de propriedade, ao serem relações sociais, devem ser observadas desde uma pluralidade de ângulos”.56 Por esta lógica, quando menciono os direitos de propriedade previstos na Lei de Terras, refiro-me a práticas sociais concernentes à propriedade da terra escolhidas e sancionadas pelo Legislativo Imperial brasileiro, compreendendo este último enquanto uma instituição dotada de pretensões individuais e de interesses político-econômicos regionais sobre o modo de organizar o regime e a estrutura fundiária nacional àquele contexto da metade do Oitocentos.

De que maneira a população catarinense (de distintas categorias ocupacionais e faixas de riqueza) reagiu à Lei; e sob quais aspectos esta nova política fundiária transformou – ou não – as relações de propriedade, são questionamentos importantes para que compreendamos os desdobramentos da política imperial. No mapa a seguir consta a província e seus principais municípios, freguesias e rios. A vila de Lages foi representada contígua à Serra Geral:

propriedades seguissem um modelo padrão de titulação, principalmente com extensão e limites precisos.

55 CONGOST, Rosa. Tierras, Leyes, Historia: estudios sobre la gran obra

de la propiedad. Barcelona: Crítica, 2007, pp. 14-15.

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A província de Santa Catarina em 1857

Detalhe da província de Santa Catarina. Nova carta corográfica do Império do Brasil. C.el engenheiro Conrado Jacob de Niemeyer, Cap. do Estado Maior José Joaquim d Lima e Silva, 1º Ten. de eng. Antonio Augusto Monteiro de Barros. Ano: 1857. Girado 90° para direita. Acervo digital da Biblioteca Nacional da França, Gallica.

(37)

A condição das terras da província de Santa Catarina durante a primeira década de execução da Lei de Terras foi relatada pela presidência em 1861:

Nesta província existe grande quantidade de terras devolutas, sem compreender mesmo aquelas sobre que há pretenções contestáveis a título de posse ou concessão, e que oportunamente poderão reverter ao Estado. Abstraída uma estreita orla do litoral, aonde está disseminada a população e cultura, pode-se dizer que ainda é um sertão com imensas riquezas inaproveitadas, toda a superfície até a Serra do Mar, que corre internada: no fundo da província, entre esta cordilheira e os longínguos confins, estendem-se elevadas campinas, raramente povoadas e com poucas interrupções de matas e montanhas, nas quais se exerce a indústria pastoril. É tão vasta a região inculta e desabitada, que o gentiu ainda encontra as condições indispensáveis para a vida nômade e esquiva a qualquer contato com a civilização. A quase totalidade do espaço inculto e despovoado pertence ao domínio do Estado. À vista dessa circunstância, e consideradas a uberridade das terras, variedade de sua produção, amenidade de clima, abundância de águas, navegabilidade de rios e outros tesouros exploráveis da natureza, compreende-se que esta província oferece grande perspectiva á causa da população e do trabalho.57

Em 1874, a Comissão do Registro Geral e Estatística das Terras Possuídas descreveu a situação fundiária da província de maneira muito semelhante ao relatório presidencial anterior, haja vista que, segundo a Comissão, a superfície territorial poderia se dividir em 700 léguas quadradas de terras devolutas, 300 ocupadas por “uma limitada

57 Periódico O Correio Oficial de Santa Catarina. Desterro. Ano I, nº 47, p.

02, mai. 1861. Acervo da Biblioteca Nacional Digital. Hemeroteca digital, seção periódicos, s. endereço eletrônico.

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população concentrada pela maior parte no município da capital, em outros povoados e pontos do litoral e margens de rios, e 100 consideradas duvidosas ou dependentes de verificação”. Neste quesito, a Comissão destacou que a província apresentaria maior território devoluto se já estivessem definitivamente fixados os limites com a província do Paraná, “alargando-se sua área para o lado do Rio Negro e Campos de Palmas, como parece ser de toda a justiça”. Acerca do assentamento de imigrantes europeus, declarou ser Santa Catarina uma das províncias do Império que melhores proporções oferecia ao desenvolvimento de uma colonização em vasta escala; “não só porque avultam as terras do Estado, com pequenas exceções de superior qualidade, fertilíssimas (...) como porque possui ricas matas de madeiras de lei, possantes minas de carvão”, bem como se “recomenda pela salubridade de seu clima”.58

De acordo com a Comissão e convergindo tanto à fala do deputado Livramento na Câmara em 1852 quanto ao mapa de 1857 (no qual foi representada a existência de “terrenos cobertos de matos virgens” em Lages), parte considerável de Santa Catarina era devoluta, mesmo em 1874, vinte anos depois do início da execução da Lei de Terras.59 Pela Lei, eram terras devolutas as que não se achassem

58 Descrição topográfica do mapa da Província de Santa Catarina

organizada na Comissão do Registro Geral e Estatística das Terras Públicas e Possuídas sob a presidência do Conselheiro Bernardo Augusto Nascentes de Azambuja. Rio de Janeiro, Imprimerie Impériale, 1874.

59 De acordo com o dicionário de 1874, “DEVOLUTO, A, p. p. irreg. de

devolver (Lat. Devolutus, p. p. de devolvo, devolver), adj. adquirido por direito de devolução (benefício); que passa ao primeiro possuidor d‟onde procedeu; v. g. o feudo ficou – ao império: –, vazio, desocupado, sem dono (...). Terra –, não cultivada: –, tornado ao antigo estado”. Dicionário Enciclopédico ou Novo Dicionário da Língua Portuguesa para uso dos portugueses e brasileiros. 4ª Edição, vol.1. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1874, p. 930. O termo “terra devoluta” se referia à terra devolvida ao Estado. Até 1822 o território brasileiro fazia parte do patrimônio real português e a Coroa tinha o poder de transferir lotes a particulares por meio de concessões. Pela Lei das Sesmarias, quando as exigências de cultivo, medição e demarcação não fossem cumpridas, as terras cairiam em comisso e deveriam ser devolvidas ao domínio patrimonial da Coroa.

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aplicadas em uso público-estatal ou no domínio particular por título legítimo, nem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo, incursas ou não em comisso ou apossadas, que pudessem ser revalidadas.60

O Recenseamento Geral de 1872 indica que Santa Catarina possuía quase 160 mil habitantes, enquanto o Rio de Janeiro e o município neutro da Corte somavam pouco mais de um milhão até aquele ano.61 A relação discursiva entre baixa densidade demográfica, disponibilidade de terras e fertilidade do solo é sintomática de uma política fundiária direcionada à colonização europeia na província com vistas ao povoamento em pequenas propriedades e ao desenvolvimento da agricultura, do comércio e das rendas provinciais.62

60 BRASIL, art. 3º. Lei nº. 601, de 18 de Setembro de 1850. Dispõe sobre as

terras devolutas do Império.

61 Recenseamento Geral do Brasil de 1872. Biblioteca Nacional do IBGE. 62

O presidente provincial João José Coutinho relatou em 1854 que: “Uma província como esta, cuja indústria se limita à lavoura, que quase não tem relações comerciais com as províncias do interior, não pode ter grande comércio, e nem este deixar de acompanhar o desenvolvimento da lavoura, ainda mui limitada por falta de braços e de máquinas que os supram. A colonização e a instrução que se for espalhando pela classe agrícola trará, necessariamente, com o aumento da indústria agrícola, fabril e de mineração, o desenvolvimento do comércio; socorrido este e aquelas pelos melhoramentos das vias de comunicação, e pela abertura de novas”. SANTA CATARINA, Relatório do presidente da província de Santa Catarina Exm. Sr. Dr. João José Coutinho em 19 de abril de 1854. Desterro: Tipografia Catarinense, 1854, p. 27. Ainda em 1850, Coutinho queixou-se do aparente “atraso” em que a província se encontrava: “A agricultura, que a pouco mais se estende da plantação da mandioca, milho, cana, feijão e arroz, pouco aumento tem tido, já pela falta de braços, e já porque nossos lavradores, aferrados ao que viram praticar seus antepassados, não procuram, apartando-se da antiga rotina, bem amanhar o terreno (...). O café, que faz a riqueza da província do Rio de Janeiro e de alguns municípios de outras, é aqui em pequena escala cultivado, não obstante ter a província terrenos mui apropriados à sua vegetação e frutificação. A erva-mate ainda está por assim dizer escondida nos sertões de São Francisco e nas matas de Lages, e se sai alguma dos campos desse município, espavorida dos perigos de nossa estrada, vai-se asilar em Porto Alegre”. SANTA CATARINA, Fala que o presidente da província de

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