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Suicídio na contemporaneidade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM PSICOLOGIA CLÍNICA:

PRÁTICAS CLÍNICAS NAS INSTITUIÇÕES

MICHELE SLONIEC BOLZAN

SUICÍDIO NA CONTEMPORANEIDADE

Ijuí (RS)

2018

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Suicídio na contemporaneidade

1

Autora: Michele Sloniec Bolzan2

Orientador: Prof. Daniel Ruwer3

Resumo: O presente artigo aborda o entendimento do suicídio como resultado de um

comportamento com determinantes multifatoriais, na tentativa de compreender principalmente os fatores de risco, levando em consideração a alta prevalência da depressão e como essa está relacionada ao suicídio. Investiga como na prática clinica analítica pode ser tratada essa questão com o recurso da psicanálise, bem como, aborda medidas de prevenção e adoção de estratégias para o enfoque do comportamento suicida como forma de desmistificar o tema. O artigo também traz o trauma que o suicídio acarreta ao meio social e a falta de informação e esclarecimento sobre os riscos dos comportamentos autodestrutivos. A importância de se detectar e tratar adequadamente a depressão na possibilidade de se alcançar taxas menores de suicídio. De modo que, aquilo que chamamos de depressão é um quadro mais próximo da clínica das neuroses do que das psicoses e, pode ser, senão curada, ao menos tratada com os recursos da psicanálise. Dessa forma, as depressões participam das estruturas, mas é necessário compreender sua singularidade e falta de suporte social, dificultando o tratamento adequado.

Palavras-chave: Depressão. Suicídio. Prevenção. Psicanálise. Tratamento.

Abstract: The present article approaches the understanding of suicide as a result of behavior

with multifactorial determinants; in the attempt to understand mainly the risk factors, taking into account the high prevalence of depression and how this is related to suicide. It investigates how in analytic clinical practice, this issue can be dealt with the resource of psychoanalysis; as well the approaches to prevention and adoption of strategies to focus on suicidal behavior as a way to demystify the issue. The article also brings the trauma that suicide entails to the social environment and the lack of information and clarification about the risks of self-destructive behaviors. The importance of detecting and adequately treating depression in the possibility of achieving lower rates of suicide. So what we call depression is a picture closer to the clinic of the neuroses than of the psychoses and can be, if not cured, at least treated with the resources of psychoanalysis. In this way, the depressions participate in structures, but it is necessary to understand their uniqueness and lack of social support makes difficult the appropriate treatment.

Key Words: Depression. Suicide. Prevention. Psychoanalysis. Treatment.

1 Artigo apresentado à Pós-graduação em Psicologia Clínica: Práticas Clínicas nas Instituições, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí).

2 Psicóloga na Clínica Espaço Psi – Serviços em Psicologia, no município de Horizontina. Graduada em Psicologia na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e pós-graduanda em Psicologia Clínica: Práticas Clínicas nas Instituições, também na Unijuí. E-mail: michele_sloniec@hotmail.com

3 Graduado em Psicologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), especialista em Psicooncologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí. Professor do Departamento de Humanidades e Educação da Unijuí, orientador do presente trabalho. E-mail: daniel.ruwer@unijui.edu.br

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Introdução

O suicídio é um fenômeno presente ao longo de toda a história da humanidade, em todas as culturas, sendo um comportamento com determinantes multifatoriais e resultado de uma complexa interação de fatores. Devendo ser considerado como a consequência final de um processo e o desfecho de uma série de acontecimentos que se acumulam na história do sujeito, não podendo ser considerado de forma causal e simplista apenas a determinados episódios pontuais da vida.

Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), os dois principais fatores de risco são a tentativa prévia de suicídio e a doença mental, de modo que, os transtornos psiquiátricos mais comuns compreendem depressão, transtorno bipolar, alcoolismo e abuso/dependência de outras drogas, transtornos de personalidade e esquizofrenia.

Levando em consideração que a depressão é uma doença muito prevalente, a ABP estima que entre 6% a 8% da população fará pelo menos um episódio em um ano. É uma doença que tende a ser crônica e recorrente, particularmente quando não tratada, podendo ser importante fonte de incapacidade e suicídio.

O aumento assombroso dos diagnósticos de depressão pode indicar que o homem contemporâneo está particularmente sujeito a deprimir-se. Levando em consideração esse cenário, observamos que, quanto mais a sociedade apregoa sua emancipação, ressalvando a equidade de todos diante a lei, mais ela aguça as diferenças.

A sociedade democrática moderna quer eliminar a infelicidade, ao mesmo tempo em que procura juntar num sistema único as diferenças. Em função da globalização e do crescimento econômico, ela tem tentado acabar com a ideia de conflito social, e passou da era do confronto para a era da evitação. Elaborando uma concepção de que todo indivíduo tem o direito e o dever de não manifestar seu sofrimento. Assim, a depressão não é uma neurose nem uma psicose nem uma melancolia, mas uma entidade nova, que remete a um estado pensado em termos de fadiga, déficit ou enfraquecimento da personalidade.

Assim, a falta de capacidade de compreender que encontramos em nossa cultura em relação aos depressivos, pode ter efeitos desastrosos, não sendo incomum encontrarmos sujeitos que se precipitam em tentativas de suicídio, por vezes fatais, por não darem conta da perda de autoconfiança, dos sentimentos de incompreensão e de isolamento provocados pela depressão, que afasta amigos e os torna alvo de gozações e preconceitos.

Portanto, se faz necessário escrever sobre esse tema devido a frequência que o fenômeno em questão vem ocorrendo. Por meio de pesquisas bibliográficas se busca pelo entendimento

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do fenômeno contemporâneo do suicídio, bem como os fatores de risco e modelos de prevenção que vem para sanar as dúvidas relacionadas ao tema, enquanto profissional clínica na escuta e intervenção. De modo que o reconhecimento dos fatores de risco e dos fatores protetores é de fundamental importância e pode ajudar a determinar clinicamente o risco e, a partir dessa determinação, estabelecer estratégias para reduzi-lo.

1 Suicídio na contemporaneidade

De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria:

O suicídio pode ser definido como um ato deliberado executado pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a morte, de forma consciente e intencional, mesmo que ambivalente, usando um meio que ele acredita ser letal. (ABP, 2014, p. 9).

Dessa forma, o suicídio seria resultado de um comportamento com determinantes multifatoriais e decorrência da interação de fatores psicológicos e biológicos, genéticos e culturais. Devendo ser considerado como o desfecho de uma cadeia de fatores que se acumulam na história do indivíduo, não podendo ser considerado de forma causal a somente a alguns acontecimentos pontuais da vida do sujeito, mas sim precisa ser visto como a decorrência final de um processo.

Ainda de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria, o suicídio é uma questão de saúde pública e sendo possível ser prevenido, desde que, os profissionais de saúde estejam hábeis a distinguirem os fatores de risco presentes, a fim de determinarem medidas para diminuir tal risco e evitar o suicídio. Assim, “[...] uma tentativa de suicídio é o principal fator de risco para outra tentativa e para o próprio suicídio. Abordar adequadamente esse indivíduo pode garantir que sua vida esteja salva no futuro.” (ABP, 2014, p. 11).

Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, os dois principais fatores de risco são a tentativa prévia de suicídio, ou seja, pacientes que tentaram suicídio previamente têm de cinco a seis vezes mais chances de tentar suicídio novamente; e doença mental, de modo que, os transtornos psiquiátricos mais comuns compreendem depressão, transtorno bipolar, alcoolismo e abuso/dependência de outras drogas, transtornos de personalidade e esquizofrenia.

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2 Sobre a depressão

A depressão é uma doença muito prevalente. Estima-se que entre 6% a 8% da população fará pelo menos um episódio em um ano. Ao longo da vida, até 25% das mulheres e até 10% a 12% dos homens também farão pelo menos um episódio depressivo. É uma doença que tende a ser crônica e recorrente, particularmente quando não tratada podendo ser importante fonte de incapacidade. Segundo a OMS, é a segunda mais importante causa de incapacidade no mundo. (ABP, 2014, p. 32).

Assim sendo, em função de sua alta prevalência, a depressão é a doença mental que mais está associada ao suicídio. Representa o diagnóstico mais frequentemente encontrado entre suicidas. A ABP aponta como sintomas comuns de depressão: tristeza; perda do interesse em atividades rotineiras; perda do apetite com perda de peso, ou aumento do apetite, com ganho de peso; insônia, ou, necessidade aumentada de dormir; cansaço e fraqueza; sentimento de culpa e inutilidade; irritação; dificuldade de concentração; e pensamentos frequentes de morte e suicídio. Dessa forma:

Os tratamentos para depressão estão facilmente disponíveis e incluem tratamentos que podem ser usados e atenção primária, como psicoterapia de tipo interpessoal ou cognitiva, bem como medicamentos antidepressivos. Os medicamentos são mais eficazes do que as psicoterapias, particularmente nas depressões de intensidade moderada e grave, mas sempre que possível uma associação com a psicoterapia é desejável. Outros tratamentos têm seu uso mais adequado na atenção secundária/terciária, como a estimulação magnética superficial e profunda, entre outras. Uma menção especial deve ser feita para a eletroconvulsoterapia (que, a despeito de muita controvérsia em relação ao seu uso, é ainda hoje o mais eficaz tratamento para a depressão), sendo reservada primordialmente para casos selecionados como: depressões graves, depressões refratárias, depressões com sintomas psicóticos e depressões com risco alto de suicídio já que a ação antidepressiva do ECT é mais rápida do que dos próprios antidepressivos. Todas as terapêuticas devem estar disponíveis para salvar vidas. Cabe ao médico escolher a mais adequada para cada situação. (ABP, 2014, p. 34).

3 A Depressão e a Psicanálise

Levando em consideração que a depressão é a doença mais associada ao suicídio, segundo a ABP, se faz de extrema importância analisar essa patologia associada ao sujeito com suas vivências. Roudinesco aborda essa questão dizendo que:

O sofrimento psíquico manifesta-se atualmente sob a forma da depressão. Atingido no corpo e na alma por essa estranha síndrome em que se misturam

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a tristeza e a apatia, a busca da identidade e o culto de si mesmo, o homem deprimido não acredita mais na validade de nenhuma terapia. No entanto, antes de rejeitar todos os tratamentos, ele busca desesperadamente vencer o vazio de seu desejo. Por isso, passa da psicanálise para a psicofarmacologia e da psicoterapia para a homeopatia, sem se dar tempo de refletir sobre a origem de sua infelicidade. Aliás, ele já não tem tempo para nada, à medida que se alongam o tempo de vida e o do lazer, o tempo do desemprego e o tempo do tédio. (ROUDINESCO, 2014, p. 03).

Assim, Roudinesco nos traz a ideia de que o sujeito depressivo padece mais com as liberdades conquistadas por não ter conhecimento de como aproveitá-las. Ou seja, quanto mais a sociedade proclama sua emancipação, ressaltando a equidade de todos diante a lei, mais ela acentua as diferenças. Dessa forma, a era da individualidade substituiu a da subjetividade, dando a si a ilusão de uma liberdade incondicional, de uma independência sem desejo, muito longe de buscar um sujeito livre, desvinculado de suas raízes e de sua coletividade e sem conseguir firmar sua verdadeira diferença, se liga a redes, grupos, coletivos e a comunidades.

A mesma autora nos coloca a ideia de que a sociedade democrática moderna quer eliminar o fato da infelicidade, da morte e da violência, ao mesmo tempo que procura juntar num sistema único as diferenças e as resistências. Bem como, em função da globalização e do sucesso econômico, ela tem tentado abolir a ideia de conflito social, ou seja, passou da era do confronto para a era da evitação. Daí uma concepção de que todo indivíduo tem o direito e o dever de não manifestar seu sofrimento, de não se entusiasmar com o menor ideal que não seja o do pacifismo. Dessa forma, depressão não é uma neurose nem uma psicose nem uma melancolia, mas uma entidade nova, que remete a um estado pensado em termos de fadiga, déficit ou enfraquecimento da personalidade. Porém, “a violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia das tempestades.” (ROUDINESCO, 2014, p. 4).

Roudinesco também nos diz que ao invés de combater esse fechamento, que leva à eliminação da subjetividade, a sociedade liberal depressiva deleita-se em desenvolver a sua lógica, ou seja, hoje, os consumidores de tabaco, álcool e psicotrópicos são assemelhados a toxicômanos, considerados perigosos para eles mesmos e para a coletividade. E em meio a esses novos doentes, os tabagistas e os alcoólatras são tratados como deprimidos a quem se receitam psicotrópicos. De modo que, a questão que se levanta é a de que medicamentos do espírito será preciso inventar, no futuro, para tratar da dependência dos que se houverem curado de seu alcoolismo, seu tabagismo ou algum outro vício, substituindo um abuso por outro. Assim sendo:

Nessa situação, não nos surpreende que a psicanálise seja permanentemente violentada por um discurso tecnicista que não pára de invocar sua pretensa “ineficácia experimental”. Mas, que “ineficácia” é essa? Devemos nós confiar

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em Jacques Chirac quando este declara: “Observei os efeitos da psicanálise e não fiquei convencido a priori a ponto de me perguntar se tudo isso, na realidade, não depende muito mais da química que da psicologia”? Ou caberá confiarmos em Georges Perec quando descreve sua experiência positiva da análise, ou em Françoise Giroud? Esta afirma: “A análise é árdua e faz sofrer. Mas, quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos, eu o experimentei e guardo por Jacques Lacan uma gratidão infinita (...). Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (...). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro. (ROUDINESCO, 2014, p. 11).

Roudinesco acrescenta ainda que a sociedade depressiva não quer mais ouvir falar em culpa, sentido íntimo, desejo e inconsciente. Ou seja, quanto mais se termina na lógica narcísica, mais evita a subjetividade. Só se interessando pelo indivíduo para contabilizar seus sucessos, e só se interessando pelo sujeito sofredor para encará-lo como uma vítima. Bem como, se procura codificar o déficit, medir a deficiência ou quantificar o trauma, isso para não mais ter que se interrogar sobre a origem dos mesmos. Então, não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser um ato decorrente de sua consciência ou de seu inconsciente. Dessa maneira:

No fim da vida, Freud tinha consciência de que, um dia, os avanços da farmacologia imporiam limites à técnica do tratamento pela fala: “O futuro”, escreveu ele, “talvez nos ensine a agir diretamente, com a ajuda de algumas substâncias químicas, sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho psíquico. Haveremos nós de descobrir, talvez, outras possibilidades terapêuticas insuspeitadas? (ROUDINESCO, 2014, p. 15).

A autora também fala que Freud, assim como Sócrates, modernizou a ideia de que é no diálogo que o sujeito desvenda o que está recalcado: a cena primária, tal como situada na origem de sua vida e da diferença sexual. Não importando que essa cena seja inventada ou não, uma vez que ela emite a verdade de uma estrutura original que coloca o homem frente a seu destino e à tragédia de seu desejo. Ou seja, essa cena extrai sua força significante do fato de ser construída.

A noção de pulsão de morte permitiu, no plano clínico, explicar como um sujeito se coloca, inconscientemente e de maneira repetitiva, em situações dolorosas, extremas ou traumatizantes, que reatualizam para ele experiências vividas anteriormente. Mas, do ponto de vista antropológico, serviu também para definir a essência do mal-estar da civilização, que se confronta permanentemente com os princípios de sua própria destruição. O crime, a barbárie e o genocídio são aros que fazem parte da própria humanidade, daquilo que é característico do homem. Por estarem inscritos no cerne do gênero humano, não podem ser eliminados do funcionamento singular de cada

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sujeito nem da coletividade social, nem mesmo em nome de uma pretensa animalidade externa ao homem. A famosa “besta imunda” de Bertolt Brecht não provém da animalidade, mas do próprio homem que é habitado unicamente pela força da pulsão de morte, a mais cega, a mais compulsiva, a mais intrusiva. (ROUDINESCO, 2014, p. 42).

Roudinesco, analisando a história, nos fala que em 1934, Melanie Klein centrou toda a clínica freudiana nos próprios objetos. Com isso, fez a psicanálise das crianças sair do campo da educação e retirou a do adulto do campo da neurose. Ao invés de analisar as crianças por intercessão de um dos pais, como fazia Freud, e em vez de se recusar a aceitá-los em tratamento antes dos quatro anos de idade, como preconizava Anna Freud, Melanie Klein eliminou os impedimentos que evitavam o acesso direto ao inconsciente infantil. Por isso, concebeu o enquadre necessário à expressão verbal e não verbal da atividade psíquica das crianças com brinquedos, lápis, massa de modelar e móveis de pequenos tamanhos. Dessa forma, se Freud foi o primeiro a descobrir no adulto a criança recalcada, Melanie Klein foi a primeira a revelar na criança o bebê recalcado. Sendo o estudo da relação arcaica com a mãe que consentiu abranger melhor a procedência das psicoses, que transcorrem de uma fusão destrutiva com o corpo materno, vivido como um objeto persecutório. Nesse mesmo caminho:

Kohut constatou que a deficiência arcaica do sujeito era imputável a uma falta de afeição materna que o incapacitava para manter uma relação com o outro. Sentindo-se vazio, ele mascarava sua mutilação sob a fachada de um eu de fancaria6 (um si mesmo ou self). Segundo Kohut, o sujeito reconstrói um “eu grandioso”, estruturado por uma imago7 parental idealizada. Nessa perspectiva, Hamlet transforma-se num herói narcísico cujo self enfraquecido não resiste às tragédias de uma sociedade que perdeu todos os seus referenciais. Essa passagem de Édipo a Narciso deixa claro como a psicanálise dos anos sessenta tentou resolver os problemas de uma subjetividade entregue ao individualismo e às substâncias químicas. Reduzido a se mirar na infelicidade infinita de sua imagem, o homem trágico dessa psicanálise do self foi a expressão máxima de uma preocupação consigo mesmo que não demoraria a soçobrar no nada de uma sociedade convertida ao paradigma da depressão. (ROUDINESCO, 2014, p. 48).

Podemos então entender, segundo a autora, que a família é uma entidade indestrutível como realização concreta das estruturas de parentesco, isto é, da aliança e da filiação. Sendo ela a fonte de normalidade e também a origem de todas as formas de patologias psíquicas: psicoses, perversões, neuroses, etc. No entanto:

Se a serotonina viesse a ser considerada a causa única do suicídio, se o ato sexual passasse a ser assimilado a um estupro, se o migrante dos arrabaldes passasse a não ser encarado senão como a soma de seus “amuletos”, e se, por

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fim, a imagem do homem trágico fosse reduzida ao exercício mecânico das funções vitais, ao mesmo tempo que A Mulher, tornada onipotente, se identificasse mais com sua diferença do que com um sujeito completo, nossas sociedades estariam às vésperas de mergulhar numa nova barbárie, tão temível quanto a que Freud denunciou em 1927 ao se conscientizar de que a civilização ocidental não estava em condições de impor à humanidade a limitação de suas pulsões destrutivas: “A princípio, podíamos pensar”, escreveu ele, “que o essencial era a conquista da natureza no intuito de adquirir recursos vitais, e que os perigos que ameaçavam a civilização seriam eliminados por uma distribuição apropriada dos bens assim conquistados entre os homens. (ROUDINESCO, 2014, p. 52).

4 A depressão na análise

Maria Rita Kehl (2017) tem averiguado em sua prática analítica que aquilo que chamamos de depressão é um quadro mais próximo da clínica das neuroses do que das psicoses, e pode ser, senão curada, ao menos tratada com os recursos da psicanálise. Dessa forma, as depressões participam das estruturas, mas é necessário compreender sua singularidade. Não se confundem com estados de ânimo, tais como tristeza, abatimento, desânimo, inapetência para a vida, embora todos esses participem também do sofrimento do depressivo. Por outro lado, também não se confundem com as ocorrências depressivas esporádicas a que todo neurótico está sujeito em causa de perdas, fracassos ou lutos mal-elaborados. Assim:

Na clínica psicanalítica recebemos com frequência pessoas que se queixam de não ter jamais experimentado, tanto quanto sejam capazes de se lembrar, outro modo de estar no mundo que não seja a depressão, com raros intervalos de alívio passageiro. O tipo de endereçamento transferencial de suas interrogações ante o analista nos leva a concluir que essas pessoas são neuróticas; mas o sentimento de vazio que as abate, a lentidão mental e corporal, o abatimento profundo em que se encontram, exigem um pouco mais de cautela em sua avaliação. A questão que se coloca é: o que acontece, na origem de certas entradas na neurose, que abate o sujeito de uma forma tão avassaladora desde muito cedo? (KEHL, 2017, p. 13).

Segundo a autora, ao contrário do que ocorre no percurso normal do neurótico, o depressivo se defende mal da castração. Castração essa, que nesse ponto da constituição do sujeito já terá acontecido, a partir do momento em que o discurso da mãe indica à criança o lugar que o pai ocupa diante do desejo dela. Acontece que o futuro depressivo se detém a meio caminho do percurso em que os histéricos e obsessivos definem sua posição fantasmática, ou seja, ao invés de enfrentar a rivalidade fálica, na tentativa de reverter os efeitos da perda que já ocorreu, os depressivos optam por permanecer na condição de castrados. Isso não significa que tenham simbolizado a castração e também não se trata das versões imaginárias da castração

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percebida como privação ou frustração, e sim, de abster-se da reivindicação fálica, se colocando sob o abrigo da castração infantil.

Isso não significa que não existam paixões de rivalidade nos depressivos. Se eles recuam, é porque não admitem o risco da derrota nem a possibilidade de um segundo lugar. De modo que, ao se colocarem ante a exigência de tudo ou nada, acabam por instalar-se do lado do nada. Então:

O depressivo não enfrenta o pai. Sua estratégia é oferecer-se como objeto inofensivo, ou indefeso, à proteção da mãe. O gozo dessa posição protegida custa ao sujeito o preço da impotência, do abatimento e da inapetência para os desafios que a vida virá lhe apresentar. Além disso, existe um engodo nesse ato de oferecer-se como indefeso e dependente da proteção do Outro: ao apresentar-se como alheio aos enfrentamentos com o falo, o depressivo não desenvolve recursos para se proteger da ameaça de ser tomado como objeto passivo da satisfação de uma mãe que se compraz com o exercício de sua potência diante da criança fragilizada. Esse lugar, de objeto passivo dos cuidados maternos, não equivale ao lugar do pai como aquele que faz a lei para o desejo da mãe no plano erótico; o depressivo, insisto, é um sujeito castrado. (KEHL, 2017, p. 14-15).

Kehl enfatiza também que o analista precisa compreender que uma parte do encaminhamento do fim de análise de um depressivo se dá “per via de porre” e não “per via de levare”, ou seja, quem deve pôr significantes ali é o analisante, e não a proposta do analista, sendo necessário convidar o depressivo a ter audácia de apostar em alguma construção de sentido para contrapor ao vazio de sentido que o arrasa. Isso significa arquitetar uma via que o represente como sujeito desejante. De forma que, só ele pode ser o agente de novas combinações de significante capazes de dar um sentido positivo à castração, como movedor do desejo.

O que abate o depressivo não é propriamente o vazio, é o desconhecimento do que causa seu desejo. O saber sobre o vazio, que por um lado serve de argumento a seu desejo de prostração, por outro abre uma grande perspectiva de mobilidade no campo simbólico; o depressivo, em sua via de cura, é capaz de inventar objetos que respondam à falta daquele que causou seu desejo, já que: “não há causa senão depois da emergência do desejo”. (KEHL, 2017, p. 19).

Segundo a autora, esse encontro não se dá de imediato. É importante destacar que a relação dos depressivos com o tempo faz com que nas primeiras semanas de tratamento a expectativa de atravessar o percurso de uma análise possa parecer atemorizante. Mas a partir do momento em que se realiza a passagem fundamental, de um tempo que não passa ou não

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acontece a um tempo que não computa, ou seja, a vagarosidade que é necessária a um percurso psicanalítico se põe a favor do depressivo e lhe permite tolerar o enfrentamento com a falta de sentido, que é própria dos fundamentos do psiquismo.

Dessa forma, Kehl explica que daquilo que é insuportável desse vazio, contra o qual ele se refugia na depressão, o sujeito depressivo institui uma relação com a verdade de sua condição. Esse tempo que não passa, nas depressões, é a temporalidade pendente, que não se aporta em nenhuma representação que lhe possa dar esperança.

Outra questão importante que a mesma autora nos traz é de analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo, que significa crer que os depressivos formem, em seu silêncio e recolhimento, um grupo incômodo. A depressão é a expressão de mal-estar que ameaça os bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia, da saúde, do exibicionismo e do consumo generalizado. A depressão é tida como sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social. Por isso, os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, veem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber. Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, não consegue amar seus deprimidos.

No entanto, a falta de capacidade de compreender que encontramos em nossa cultura em relação aos depressivos, pode ter efeitos desastrosos, não sendo incomum encontrarmos sujeitos que se precipitarem em tentativas de suicídio, por vezes fatais, por não darem conta da perda de autoconfiança, dos sentimentos de incompreensão e de isolamento provocados pela depressão, que afasta amigos e os torna alvo de gozações e preconceitos. Portanto:

Os três ensaios que compõem este livro partem, portanto, da suposição de que a depressão seja um dos sintomas sociais contemporâneos. Isso não equivale nem nos autoriza a tratar o depressivo, na clínica, como “caso social”. A via do entendimento psicanalítico parte sempre da investigação clínica, na qual as formações do inconsciente se expressam na singularidade de cada sujeito; mas a experiência clínica pode também, seguindo o exemplo de Freud, contribuir para esclarecer o sofrimento que se expressa através dos sintomas da vida social. Em psicanálise, a direção da construção da teoria vai do particular para o social, nunca o contrário. Nos consultórios, tratemos nossos depressivos um a um. A partir daí, talvez possamos escutar também o que eles têm a nos ensinar a respeito das formas contemporâneas do mal-estar, das quais eles não estão – como nenhum ser falante, aliás – excluídos. Com isso, não fazemos mais do que seguir a tradição freudiana (retomada por Lacan) de fazer da psicanálise um instrumento, na interface com outras disciplinas, capaz de

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simbolizar alguns desses fragmentos do Real para impedir que eles retornem sob a forma do gozo da pulsão de morte. (KEHL, 2017, p. 31).

Sendo assim, se faz de extrema importância abordar a questão do suicídio. No intuito de informar e também aprender sobre esse tema tão complexo e polêmico que ceifa vidas muito jovens por vezes. Ou seja, é relevante trabalhar a ciência como forma de conhecimento a sociedade em geral para que possam lidar com seus depressivos de modo preventivo e também como profissional clínico e demais agentes da área da saúde, para aguçar a escuta e intervir com maior êxito.

Referências

1. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Suicídio: informando para prevenir. Conselho Federal de Medicina. Brasília, 2014. Disponível em: <https://www.cvv.org.br/wp content/uploads/2017/05/suicidio_informado_para_prevenir_abp_2014.pdf>. Acesso em: 06 mar. 2018.

2. KEHL, M. O tempo e o cão. Disponível em: <http://meridianum.ufsc.br/files/2017/09/KEHL-Maria-Rita.-O-tempo-e-o-c%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2018.

3. ROUDINESCO, E. Depressão no Suicídio. Disponível em: <https://psiligapsicanalise.files.wordpress.com/2014/09/elizabeth-roudinesco-por-que a-psicanc3a1lise.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2018.

Referências

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