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Da Batalha à Guerra do Rio: uma abordagem espaço-temporal da representação das favelas na imprensa carioca

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Academic year: 2021

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Da Batalha à Guerra do Rio: uma abordagem espaço-temporal da

representação das favelas na imprensa carioca

Daniella Guedes Rocha

Palavras-chave: segregação; favelas; imprensa; enquadramento.

Resumo

O presente artigo partiu do questionamento acerca das representações construídas pela imprensa carioca sobre as favelas nestes mais de cem anos de existência na cidade do Rio de Janeiro. O conteúdo de duas coberturas sobre as favelas cariocas, num intervalo de quase 60 anos, constituiu a base de investigação empírica da presente pesquisa. Primeiramente foi discutida a campanha A Batalha do Rio, de 1948, iniciada pelo Correio da Manhã a partir de artigos escritos pelo colunista - e futuro governador do Estado da Guanabara – Carlos Lacerda. A segunda cobertura analisada foi a realizada pelo jornal O Globo durante ao episódio de ocupação do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, pela Polícia Militar, entre maio e julho de 2007. Estas edições fazem parte da série Guerra do Rio, termo usado pelo jornal para se referir a episódios violentos na cidade.

A análise de conteúdo se apoiou no conceito de enquadramento, partindo-se do princípio de que, ao enfocarem alguns aspectos de uma notícia em detrimento de outros, os jornalistas acabam por construir subjetividades em relação ao foco do noticiário, seja ele um território ou um grupo de indivíduos. Assim sendo, procedeu-se a uma análise das representações da favela desde o início do século XX a fim de estabelecer as principais categorias de enquadramentos usados pela mídia impressa em relação a este espaço. Tais categorias foram aplicadas às notícias das coberturas analisadas, com o objetivo de verificar como os jornais citados representaram as favelas cariocas e seus moradores. As continuidades e descontinuidades reveladas por esta análise refletiram o contexto de produção das notícias, bem como a relação entre o poder público e o espaço-favela.

Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010.

Mestra em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE).

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Da Batalha à Guerra do Rio: uma abordagem espaço-temporal da

representação das favelas na imprensa carioca

Daniella Guedes Rocha

1. Introdução

A segregação sócio-espacial visível na cidade do Rio de Janeiro e os discursos produzidos acerca dos espaços marginalizados suscitaram os questionamentos que guiam este artigo. Para Freitas e Nacif (2005:7), teóricos e profissionais da área de comunicação têm sentido, nos últimos anos, “a necessidade de melhor compreender as questões urbanas, visto que é nas metrópoles que se constitui boa parte da simbologia midiática contemporânea”. O objeto de investigação deste artigo, construído a partir de um olhar jornalístico, partiu de questionamentos sobre as representações forjadas pela imprensa em relação aos espaços segregados, e se estas podem reforçar a distinção sócio-espacial ao fortalecerem a idéia de cidade partida: o asfalto, civilizado, de um lado, e a favela, a desordem, de outro. Mas em que momento nasce esta idéia, ou ainda, em que momento surgiram as diversas representações sobre as favelas, e em que se diferenciam no decorrer deste século de existência no espaço urbano carioca? A favela surge no fim do século XX, devido à desterritorialização dos negros alforriados por terem combatido na Guerra do Paraguai (1865-1870), que não tinham para onde ir nem para onde voltar e passaram a residir nos morros; à autorização dada aos praças que combateram no conflito de Canudos em 1897 para que ocupassem

provisoriamente os morros da Providência e de Santo Antônio1; ou à destruição do cortiço

Cabeça de Porco, em 1894, quando o prefeito Barata Ribeiro permitiu que os aproximadamente 4 mil moradores retirassem as madeiras do cortiço para que fossem aproveitadas em outras construções, segundo as três versões apresentadas por Campos (2007).

Estas três versões trabalham com fatos pontuais que teriam levado ao surgimento das favelas. No entanto, entende-se que o surgimento desta forma de habitação se deu a partir de um processo de segregação sócio-espacial que já vinha se desenvolvendo no espaço urbano do Rio de Janeiro, como um modo de suprir o problema de déficit habitacional, abrigando uma massa de pobres que precisavam habitar próximo aos locais onde era oferecido trabalho (CAMPOS, 2007). A crise habitacional havia se agravado devido à intensa imigração, o que levou ao crescimento populacional da cidade. A favela foi a solução possível para os que “sempre viveram com direitos limitados para habitar a cidade”, e se tornou um território onde “os pobres afirmaram sua presença na metrópole carioca” (SILVA & BARBOSA, 2005: 91). A partir de então, a favela se disseminou no espaço geográfico do Rio de Janeiro, acompanhando as vertentes de expansão da cidade, tanto no deslocamento das indústrias rumo ao subúrbio quando no desenvolvimento da Zona Sul, processos que descentralizaram as fontes de emprego (ABREU, 1987). Este processo não foi acompanhado de uma política

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habitacional voltada para o imenso contingente de mão-de-obra que era atraído para estes lugares. Os pobres passaram a ocupar os morros, charcos e terrenos desocupados, levando ao surgimento de diversas favelas e ao adensamento de outras. Estes espaços foram alvo de diversas políticas públicas nestes 110 anos, passando de um longo período de remoções para as obras de urbanização iniciadas na década de 1980.

Na imprensa, a favela foi representada de diversas formas. Imagens criadas que refletiram ou influenciaram as políticas públicas e o tratamento dado a estes espaços por autoridades e cidadãos cariocas. O objeto de investigação deste artigo são estas diversas representações, com foco em duas coberturas separadas entre si por 59 anos: a Batalha do

Rio, campanha iniciada pelo Correio da Manhã em 1948, e a Guerra do Rio, termo usado

pelo jornal O Globo durante a ocupação militar do Complexo do Alemão em 2007, a fim de conhecer o enquadramento predominante utilizado em relação à favela nestas duas coberturas. O conceito de enquadramento é usado por Porto para definir “os princípios de seleção, ênfase e apresentação” utilizados por jornalistas para organizar o noticiário (PORTO, 2001:12). Ao enfocarem alguns aspectos de uma notícia em detrimento de outros, os jornalistas podem construir subjetividades em relação ao foco do noticiário, seja ele um espaço, um grupo ou um personagem. As subjetividades criadas em relação à favela em seus 110 anos de existência permitiram estabelecer os principais enquadramentos usados pela mídia impressa em relação a este espaço, que nortearam a pesquisa apresentada neste artigo.

A comparação entre as representações sobre as favelas e seus moradores construídas pelos jornais citados indicará se houve mudanças na abordagem deste espaço entre os dois períodos analisados ou se houve uma continuidade no modo como a favela é representada pela mídia impressa. De 1948 a 2007 as favelas se expandiram, as soluções propostas para estes espaços sofreram mudanças, o momento político se alterou, e a própria imprensa passou por modificações, com a sua modernização e a concentração de mercado. Deste modo, ao mesmo tempo em que as análises se focam nos dois maiores jornais cariocas de suas épocas, ressalta-se que há uma mudança no modo de exercer o jornalismo – o modelo francês é substituído pelo norte-americano – e nas pessoas que o exercem nas duas coberturas analisadas – se em 1948 há uma figura política clara, Carlos Lacerda, em 2007 não há uma “liderança” na cobertura, realizada pelos diferentes repórteres do jornal, nem mesmo nos artigos, assinados por diferentes pessoas, ou nos editoriais, anônimos.

A análise parte da hipótese de que não há uma continuidade no enquadramento principal; enquanto na primeira cobertura espera-se uma representação da favela como o espaço do não - da miséria, da precariedade e da imundície -, em que os favelados eram vistos como pessoas necessitadas que deveriam ser retiradas daquela situação, na segunda cobertura espera-se um enquadramento da favela como o espaço da criminalidade, sendo seus moradores potenciais criminosos e culpados, em parte, pelo medo e insegurança que acometem os habitantes do “asfalto”. Esta hipótese, no entanto, não se confirmou. No decorrer da análise de conteúdo do jornal O Globo, foi identificado um enquadramento do favelado como vítima dos confrontos que ocorriam diariamente no Complexo do Alemão. Os textos publicados, em vez de responsabilizar os moradores da comunidade pela violência que se irradiava para outros pontos da cidade, mostram seu sofrimento e sua apreensão diante da operação policial. Os favelados eram vítimas da violência tanto quanto os moradores do “asfalto”, e algo precisava ser feito para tirá-los daquela situação, assim como em 1948.

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2. A favela em palavras

O estudo dos enquadramentos desenvolvidos pela mídia pode revelar como os meios de comunicação rotulam determinados espaços ou grupos, sendo o conceito extremamente útil quando se analisa o comportamento da mídia na cobertura de determinados eventos. O enquadramento corresponderia, segundo Porto (2002:76), a um segundo nível de efeitos da mídia. Enquanto a teoria do agenda setting, forjada em 1972 por Maxwell McCombs e Donald L. Shaw, corresponderia a um primeiro nível, ao determinar sobre o que as pessoas devem pensar; o segundo nível corresponderia ao conceito de enquadramento: a mídia não só afeta sobre o que o público pensa, mas também como o público pensa sobre determinados temas. Segundo Entman (1994:294 apud PORTO, 2002:82), enquadrar significa selecionar certos aspectos de uma “realidade percebida e fazê-los mais salientes em um texto comunicativo, de forma a promover uma definição particular do problema, uma interpretação causal, uma avaliação moral e/ou uma recomendação de tratamento para o item descrito”. Os meios através dos quais os estudiosos identificam os enquadramentos contidos nos textos noticiosos podem ser variados, e o julgamento de que um enquadramento pode ou não estar presente geralmente é subjetivo (HALLIN, 1994:81). As categorias de enquadramento podem ser estabelecidas no decorrer da análise de conteúdo ou anteriormente, para que posteriormente sejam aplicadas nos textos. Neste artigo, as categorias foram estabelecidas antes da análise, no decorrer do desenvolvimento de uma pesquisa de como a favela tem sido retratada desde o seu surgimento.

A favela, em seus mais de cem anos de existência, tem sido relacionada a diversas representações, algumas delas positivas, [muitas] outras negativas. Para Valladares (2005:28), a gênese do processo de construção das “representações sociais da favela remonta às descrições e imagens” criadas por escritores, jornalistas e reformadores sociais no início do século XX. Zaluar e Alvito (2006:10) sustentam que já no início do século os morros da cidade eram vistos pela polícia e por alguns grupos sociais como locais perigosos, refúgios de criminosos. Esta pode ser uma herança das representações dos cortiços e casas de cômodo, vinculadas a habitações das “classes perigosas”. O cortiço carioca, “definido como um verdadeiro „inferno social‟, era visto como antro de vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias”, um espaço “propagador da doença e do vício” (VALLADARES, 2005:24). Segundo a mesma autora, parece, então, “natural a representação da favela retomar a idéia de doença, mal contagioso, patologia social a ser combatida” (idem, p.40). Deste modo, o enquadramento da favela como local da criminalidade divide espaço com o enquadramento higienista, em que estas áreas são vistas como um problema sanitário.

No entanto, se alguns consideravam a favela um “lugar não-civilizado, imundo e perigoso”, outros a viam como um “lugar „desgraçado‟ cheio de gente desafortunada e merecedora de piedade” (PERLMAN, 1977:289). Esta visão se traduzia, na mídia carioca, em um enquadramento paternalista, como encontrado na matéria do Correio da Manhã de 02 de junho de 1907, que afirma serem os morros da cidade os únicos espaços que restavam aos pobres. “A montanha abre o seu manto verde e acolhe os pobrezinhos como os santos no tempo suave dos eremitas”, diz o texto. Em 1905, durante a Reforma Passos, o engenheiro civil Everardo Backheuser elaborou um parecer sobre o problema das habitações populares, em que recorre a este mesmo enquadramento ao descrever o então Morro da Favella: “Para alli vão os mais pobres, os mais necessitados, aquelles que, pagando duramente alguns palmos de terreno, adquirem o direito de escavar as encostas dos morros e fincar com quatro moirões os quatro pilares de seu palacete” (BACKHEUSER, 1906:111 apud VALLADARES, 2005:38).

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A favela, miserável e imunda, começa a ser contraposta à cidade em si, inaugurando uma visão dicotômica que perduraria até os dias de hoje. Para Zaluar e Alvito (2006), a maioria dos cronistas que escreveram entre 1908 e 1923 sobre as favelas cariocas inseriu em seus discursos o conceito de dualidade, fortemente presente nas crônicas de Olavo Bilac. Valladares (2005:36) ressalta que a favela era vista como um outro mundo, longe da cidade, alcançado apenas através da “ponte construída pelo repórter ou cronista, levando o leitor até o alto do morro que ele, membro da classe média ou da elite, não ousava subir”. Na matéria publicada na revista A Semana em 27 de fevereiro de 1927 acerca da exibição do documentário “Como vivem os habitantes da Favella”, de Augusto Mattos Pimenta, percebe-se este enquadramento dicotômico. Em oposição à linda capital, as favelas são chagas, focos

de immundicie, de promiscuidade e de horror (apud SILVA & BARBOSA, 2005:30). As

favelas, quando enquadradas de um modo dicotômico, eram vistas como um espaço externo à cidade, que seria o território de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da cidadania acaba sendo relativizado de acordo com o local de moradia do indivíduo, o que faz com que, desde o começo do século XX, a cobertura dada aos moradores do asfalto e da favela seja diferenciada.

Em contraposição, é ainda na década de 1920 que surge um movimento de valorização da favela, elegendo-a como um dos símbolos da cultura nacional, o berço do samba, e dona de uma beleza rústica. Na pobreza da favela, são valorizados a beleza e o lirismo dos versos dos sambas – é a exotização deste espaço e de seus moradores. Apesar das tentativas de valorização da favela, promovendo representações positivas acerca deste espaço, documentos oficiais continuavam a formular enquadramentos negativos. O Código de Obras de 1937, por exemplo, considerava as favelas uma “aberração” que não podia sequer constar no mapa oficial da cidade. O primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, de 1948, apesar de ter sido uma tentativa de melhor conhecer este universo, sustenta a visão preconceituosa contra os moradores que ali habitavam. Segundo o texto que precede as estatísticas, os “pretos e pardos” prevaleciam nas favelas por serem “hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas” (citado em ZALUAR & ALVITO, 2006:13). O Recenseamento Geral de 1950 e o texto de Alberto Passos Guimarães, então diretor da Divisão Técnica do Serviço Nacional de Recenseamento do IBGE, representam um marco na história das representações deste espaço urbano, já que

definem uma categoria geral de favela2. O autor rompe com diversas representações usuais da

época em relação à favela, ressaltando a heterogeneidade existente entre elas e afastando-se de um olhar preconceituoso sobre seus moradores.

Construiu-se nas décadas de 1940 e 1950 uma representação da favela como o espaço de ausências e carências que persistiria até hoje no imaginário dos residentes do asfalto e das autoridades públicas (SILVA & BARBOSA, 2005:57). A precariedade de infraestrutura existente nas favelas levou ao surgimento das imagens que fizeram destes espaços o “lugar da carência, da falta”, o lugar por excelência da desordem (ZALUAR & ALVITO, 2006:8). É, nas palavras de Oliveira e Marcier (2006:73), o “espaço do Não”, quando a favela se afirma a partir de suas características físicas, dos aspectos visíveis, “emergindo como o espaço da

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“Desse modo, foram incluídos na conceituação de favelas os aglomerados humanos que possuíssem, total ou parcialmente, as seguintes características: 1. Proporções mínimas – Agrupamentos prediais ou residenciais formados com unidades de número geralmente superior a 50; 2. Tipo de habitação – Predominância no agrupamento, de casebres ou barracões de aspecto rústico típico, construídos especialmente de folha de Flandres, chapas zincadas, tábuas ou materiais semelhantes; 3. Condição jurídica da ocupação – Construções sem licenciamento e sem fiscalização, em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida; 4.Melhoramentos públicos – Ausência no todo ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone e água encanada; 5.Urbanização – Área não urbanizada, com falta de arruamento, numeração ou emplacamento” (GUIMARÃES, 1953:259).

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habitação precária e improvisada, do predomínio do rústico sobre o durável, da ausência de arruamento, da escassez de serviços públicos”. Em relação aos moradores, a favela era representada como aglomerações patológicas – a população favelada seria formada por vagabundos, desempregados, ladrões, bêbados e prostitutas, que vivem em condições subumanas e constituem um dreno dos recursos públicos, não contribuindo para o bem geral. Estas definições estão tão arraigadas que muitos favelados estão convencidos de sua própria incapacidade (PERLMAN, 1977). Com a chegada dos nordestinos, a favela também passou a ser representada como reduto de imigrantes de origem rural que não conseguiam se adaptar à vida urbana. Na favela, se deparavam com todos os sintomas de desorganização social, desde a desintegração da família até a violência, imagem identificada em relatórios oficiais da Fundação Leão XVIII.

Os debates sobre a favela nos anos 1960 sofreram a influência do relatório elaborado pela SAGMACS (Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais) sobre as favelas cariocas, coordenado pelo sociólogo José Arthur Rios e orientado pelo Padre Louis-Joseph Lebret. Combinando observação direta, entrevistas e análises estatísticas, o estudo – realizado entre 1957 e 1959 – definiu uma verdadeira agenda de pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro. Segundo Valladares (2005:103), a favela apresentada nessa pesquisa “não constitui um mundo à parte, seus habitantes são pobres como outros pobres, eles mesmos vítimas do clientelismo político”. “Ser pobre” é, para Oliveira e Marcier (2006:81), o principal sinônimo de “ser favelado”. Esta sinonímia teria encontrado “respaldo na literatura sociológica que, invertendo os termos da relação, tenderia, sobretudo ao longo dos anos 50 e 60, a eleger a favela como forma espacial típica da inserção dos pobres no tecido urbano brasileiro” (ibidem).

Na década de 1970, a representação que se faz da favela se torna positiva, quando o discurso sociológico a define como um complexo coesivo, extremamente forte no que diz respeito aos níveis de associação. Janice Perlman (1977) comprova em seus estudos nas comunidades cariocas este forte grau de associação entre os moradores e o espírito cooperativo existente. A integração com a cidade também era presente. Leeds (1967), Mangin (1967) e Turner (1969) já haviam constatado que os bairros populares, “vistos como enclaves, estavam fortemente integrados à vida urbana através de sua inserção em diversos mercados: o mercado de trabalho, o mercado político e o mercado da cultura (em particular do Carnaval)” (VALLADARES, 2005:129).

Nos anos 1980, com a chegada do tráfico de cocaína, o discurso sociológico sobre a favela volta a mudar, e esta passa a ser representada como “covil de bandidos, zona franca do crime, hábitat natural das „classes perigosas‟” (ZALUAR & ALVITO, 2006:15). Relatos e reportagens que mostravam a violência, o tráfico e a criminalidade nas favelas e em torno delas passaram a ocupar as páginas dos jornais. A violência ligada ao tráfico de drogas aparece, então, como um “novo divisor de águas, reatualizando a velha oposição entre a parte civilizada da cidade e a barbárie” (SANTOS, 2001:3). No começo da década de 1990, os arrastões nas praias da Zona Sul e as chacinas de Candelária e Vigário Geral são decisivos para a “acomodação da imagem da cidade partida como definidora da experiência urbana no Rio de Janeiro, cristalizada” com a publicação do livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura, em 1994 (idem, p. 93).

Ao focar seu discurso na exacerbação da violência urbana, a mídia forma uma “sociedade que fica sabendo a quem temer, contra quem se precaver, os lugares a evitar, com quem não conviver” (MANSO, 2002, apud CORRÊA, 2005b). E ao longo de toda a década de 1990, é a favela quem proporciona “material para um produto midiático valioso sob a forma de medo ou estranheza” (ZALUAR & ALVITO, 2006:22). Ao enquadrar a favela como o espaço da violência, a mídia transmite ao leitor de classe média que ele é um cidadão

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diferenciado, que não se identifica com a barbárie em que os favelados estão inseridos. E os pobres, que são as maiores vítimas da violência, são também apontados como seus maiores agentes, sendo a pobreza ora determinante da vitimização, ora da ação violenta.

É também na década de 1990 que o debate em torno das favelas passa a ter como eixo principal o desafio de integrá-las à cidade. E a representação da favela como o local da ausência, do “não”, facilita o aumento das reivindicações por obras e infraestrutura e influencia na resposta das autoridades ao problema, enfrentado com intervenções que facilitem o acesso a serviços básicos como água, luz, esgoto, iluminação e coleta de lixo. Com a melhoria da infraestrutura das casas e da favela como um todo, as representações se deslocam, pouco a pouco, da noção de ausência. Libertada, em parte, do enquadramento como o espaço do Não, a favela vê sua representação como o espaço da criminalidade maximizada. Os confrontos ocorridos naqueles espaços passam a ser chamados de “guerra” pela mídia. Neste caso, “cria-se a noção de território inimigo, de que o espaço onde o outro está não faz parte do seu território, e deve ser atacado ou ocupado. O outro passa a ser visto como inimigo, alguém que deve ser eliminado” (João Paulo Charleuaux apud RAMOS & PAIVA, 2007:57).

2.1 A favela enquadrada

As diversas representações da favela apresentadas neste retrospecto possibilitaram a definição de algumas categorias de enquadramento que guiarão a análise realizada neste artigo. Listar o que caracteriza cada enquadramento auxilia na identificação do mesmo no texto e um melhor entendimento da pesquisa desenvolvida.

Tabela 1

Categorias de enquadramento estabelecidas - Enquadramento dicotômico: aquele que

contrapõe a favela à cidade;

- Enquadramento higienista: a favela vista como o local da imundície;

- Enquadramento estético: retrata a favela como algo que enfeia a “cidade maravilhosa”;

- Enquadramento paternalista: retrata a favela como a única opção de moradia do pobre, que deve ser ajudado a sair daquela situação;

- Enquadramento da favela como o espaço do “não”: o espaço da carência, da ausência de serviços públicos;

- Enquadramento da favela como o espaço da cultura popular;

- Enquadramento da favela como espaço do trabalhador: retrata os moradores destes espaços como trabalhadores;

- Enquadramento da favela como ameaça ao meio ambiente;

- Enquadramento da favela como espaço da pobreza: vista como espaço do pobre por excelência;

- Enquadramento da favela como o espaço da criminalidade: o lugar onde o crime faz parte do cotidiano. Neste caso, os moradores da favela podem ser vistos como criminosos em potencial/cúmplices de bandidos ou como vítimas desta criminalidade.

Fonte: do autor.

Estas categorias foram aplicadas às notícias, trecho a trecho, com o objetivo de identificar os vários enquadramentos presentes no texto, e não apenas o dominante. A pesquisa foi realizada na Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, com edições microfilmadas, no caso do Correio da Manhã, e edições microfilmadas e

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originais de O Globo. Note-se que a pesquisa desenvolvida neste artigo se refere a um tipo de mídia, a mídia impressa, mais especificamente o jornal. Especificando-se ainda mais, a pesquisa se refere ao jornal Correio da Manhã e ao jornal O Globo, no momento de produção das duas coberturas. Os resultados alcançados são válidos para os textos divulgados no período e analisados neste artigo.

Em relação à Batalha do Rio de Janeiro, foram analisados 47 textos divulgados no jornal Correio da Manhã, sendo 17 deles artigos de Carlos Lacerda publicados na coluna Tribuna da Imprensa, quatro artigos de opinião e 26 reportagens. Em apenas nove textos - três artigos de Lacerda e seis reportagens - não foram encontrados enquadramentos referentes à favela. Das reportagens, quatro delas foram publicadas na capa e 19 na última página do jornal, um espaço nobre na publicação. O volume de reportagens analisadas durante a operação policial no Complexo do Alemão em 2007 foi maior, mas isto não significou uma discussão mais aprofundada da questão das favelas. As matérias eram mais objetivas, focadas no fato, e não no processo que levaram as favelas a se transformarem em territórios dominados pelo tráfico. Em um período de dois meses – de 03/05/2007 a 03/07/2007 – a cobertura da Guerra do Rio pelo jornal O Globo contou com 132 textos, sendo 122 reportagens, cinco artigos de opinião e cinco editoriais. Não foram encontrados enquadramentos referentes à favela em 25 textos – dois editoriais e 23 reportagens. Em 60 edições, a operação policial no Alemão foi capa em 23 delas. Apenas cinco edições neste universo não continham reportagens relacionadas com esta cobertura.

3. A Batalha do Rio

Na gestão do general Angelo Mendes de Morais3, marcada por projetos e intervenções

urbanas voltados para a consolidação e a abertura de novos espaços para o capital imobiliário, a Câmara se mostrava combativa e, “ao lado das discussões de dimensão nacional, desenvolveu intenso debate sobre as questões locais e urbanas, entre elas as favelas”, tornando-se “um pólo de ressonância das contradições da cidade” (SANTOS, 2001:73). Foi em torno destas questões que as forças políticas do período travaram a Batalha do Rio de Janeiro, “inicialmente um conjunto de artigos na imprensa, depois propostas e intenções que extrapolaram e conferiram novos significados à questão das favelas, apesar de ter desencadeado pouca ação (alguns referem-se à „batalha que não houve‟)” (SILVA, 2005:64). A campanha foi iniciada com uma série de artigos de Carlos Lacerda, que “habilmente” captou as contradições existentes em relação à habitação popular e buscou “criar um espaço alternativo ao poder local e ao „contrapoder local‟, que seria a força do Partido Comunista nas favelas cariocas” (idem, p.128). A trajetória política de Lacerda havia incluído até então “uma breve conexão com o Partido Comunista, depois o apoio ao Estado Novo, para então se tornar um dos líderes da oposição a Vargas ao fundar a UDN, com a qual rompeu quando o partido decidira apoiar o governo Dutra” (SANTOS, 2001:76).

Em 1946, Lacerda havia lançado no Correio da Manhã a coluna Na Tribuna da

Imprensa, com o intuito de cobrir os trabalhos da Assembléia Constituinte. Segundo Motta

(1999:356), os jornais ocupavam um papel relevante “na conformação da política do Distrito Federal desde a Primeira República, sustentando importantes lideranças, capitaneando correntes de opinião, ocupando, enfim, espaços que pareciam mais afeitos a partidos

3 “O general Mendes de Morais foi o prefeito com maior tempo de gestão no período imediatamente anterior à transferência da capital, de 13 de junho de 1947 a 24 de abril de 1951” (SILVA, 2005:63).

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políticos”. Este debate político através da imprensa se fortaleceu no Rio de Janeiro graças ao alto grau de alfabetização e de urbanização da população carioca. É neste contexto que o

Correio da Manhã inicia a campanha Batalha do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1948.

Cinco dias antes da divulgação do “Convite” para a campanha, Lacerda publica o artigo “Notas do diário de um repórter”, em que enumera diversas questões que, em sua opinião, deveriam ser debatidas. Em uma das notas, o colunista afirma que havia 119 favelas no Distrito Federal – “Desde o Presidente da República até o mais faltoso dos contribuintes,

todos reclamam as misérias do Brasil, e ninguém cuida, ao menos, de começar a curá-las”4.

Na edição do dia seguinte, Lacerda ressalta que um “tema para as suas deliberações” da Convenção do Rotary Club que estava sendo realizada na cidade seria o “dos meios para travar a batalha do Rio de Janeiro, que não é propriamente a guerra às favelas e sim a guerra ao egoísmo e à inércia, pai e mãe das favelas”. No dia 16 de maio, o Correio da Manhã estampa na capa uma fotografia aérea da Praia do Pinto, com um texto em que também clama pelo início de uma “batalha cujas proporções não serão medidas pelo número de mortos, e

sim pelo número de vivos que ela tenha feito”5

.

Lacerda volta a falar sobre a questão favela no dia 18 de junho, quando conta a

história de Ifigênia6, uma lavadeira viúva, com três filhos, cujo vizinho escreveu uma carta

lida pelo colunista na rádio. Após uma série de doações, Lacerda afirma que era preciso “saber se se tratava de um fenômeno isolado, único, ou de sentimento generalizado que

apenas precisa desencadear-se”7. No dia seguinte, o jornal lançou um convite para que fosse

criada uma nova rede de solidariedade, desta vez voltada não apenas para uma favelada, mas para todos os habitantes das favelas do Rio de Janeiro.

O Correio da Manhã, pois, propõe uma grande experiência. Faz um apelo geral. Dirige-se a todos – particulares, colegas de imprensa, emissoras de rádio, instituições, autoridades municipais e federais – e convida-os a cooperar na solução do mais dramático, do mais complexo e delicado de nossos problemas locais8. Este problema tinha se multiplicado “monstruosamente”, “enquistando-se” na cidade. Os “cerca de quatrocentos mil brasileiros em 119 favelas” viviam uma vida à parte, “à margem da comunidade”. A “batalha das favelas” exigia o esforço de todos – “político, religião, classe social; nada disso importa”. A explicação sobre a campanha coube a Lacerda, na coluna Na Tribuna da Imprensa. Em um grande artigo, o político “oferece” ao prefeito Mendes de Morais e ao Presidente da República a seguinte proposta: “O Governo apoiará, pelos meios de que dispõe, uma campanha popular destinada a encarar, com vontade de

resolvê-lo, o problema das favelas”9. Segundo o colunista, melhorar uma favela significava

“dar aos seus habitantes melhores oportunidades e possibilidades de comer melhor, de educar-se, de ter mais saúde, etc, dando-lhes assim forças para sair da favela”. A campanha não tinha como objetivo “acabar com as favelas no sentido de acuar os favelados”, e sim “incorporar aos benefícios e deveres da civilização uma considerável parte da população, aglomerada em „barracos‟ indignos da espécie humana”.

Percebe-se então, já neste primeiro texto de Lacerda sobre a campanha, o enquadramento paternalista que será adotado constantemente em seus artigos durante a campanha. Dos treze textos publicados por ele referentes à Batalha do Rio de Janeiro de 20

4 “Notas do diário de um repórter” – Correio da Manhã, 14/05/1948, p.2. 5

“A favela era uma parte humilde...” – Correio da Manhã, 16/05/1948, Capa.

6 Segundo Lacerda, a mulher não sabia se seu nome era escrito com I ou E, pois nunca o vira escrito. 7 “Ifigênia” – Correio da Manhã, 18/05/1948, p.2.

8 “Convite” – Correio da Manhã, 19/05/1948, Capa. 9

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9

de maio de 1948 a 06 de junho do mesmo ano, em dez deles este enquadramento é encontrado. Lacerda mostra os favelados como pessoas que não escolheram viver em moradias precárias e que estavam naquela situação não por sua culpa, mas por questões sociais externas a estes indivíduos – “Na sua imensa maioria (...) os favelados não moram assim porque querem e sim porque não têm casas. Não comem mais porque não gostem de

comer, e sim porque lhes falta comida”10

. As reportagens do jornal também adotam este tipo de enquadramento: “os moradores das favelas são indigentes. A grande maioria lá vive por

não ter onde morar”11

.

O Correio da Manhã passa a mostrar esta pobreza extrema, descrevendo as precárias condições de vida nos morros da cidade. A opção de ressaltar a miséria, a ausência de serviços públicos e a falta de higiene nas favelas fundamenta o enquadramento paternalista, já que no decorrer da adoção do enquadramento da favela como o espaço do “Não” há a construção da visão de que os favelados não sairiam daquela situação apenas pelos seus próprios esforços, necessitando da ajuda do próximo. A favela é retratada como o espaço do

“Não” em nove das 26 reportagens analisadas durante a campanha e em três artigos de

Lacerda – em um deles, o colunista afirma que os favelados viviam “entre as valas, exalação

pútrida dos dejectos e detritos”12. Segundo o Correio da Manhã, em 1948 a falta de água

representava o “maior martírio” para os favelados13

.

Além de melhorar as condições de vida dos favelados, o Correio da Manhã cita outra “vantagem” em higienizar as favelas e provê-las de redes de água e esgoto. A favela era vista

como um “centro imenso da miséria, bojo de epidemias”14

. Em caso de epidemia, a favela seria um “foco de irradiação terrível” - de lá sairiam germes incontroláveis “que fariam uma

devastação aqui em baixo”15

. Assim, a higienização da favela seria “útil” para os moradores de toda a cidade, também “ameaçados” pelas doenças e pela miséria que imperavam naqueles lugares.

Miseráveis, trabalhadores e pessoas que viviam em péssimas condições de higiene, os favelados eram “vítimas indefesas (...) em face da indiferença que tem reinado até então dos que só olham as paisagens dos morros, que não vêem os que morrem lá em cima antes dos

quarenta”16

. Estes indivíduos precisavam ser ajudados. Segundo Lacerda, era preciso desenvolver métodos que fossem a favor, e não contra os favelados, cuja participação seria indispensável ao êxito da campanha. O colunista afirma que, até aquele momento, a favela só havia conhecido duas soluções – da alta burocracia, que resultava na remoção e no tratamento do favelado como inimigo; e dos comunistas, que defendia a ocupação de prédios. Os democratas ainda não haviam formulado “uma orientação para a solução imediata” de um problema “que tão profundamente afeta a uma tão espessa camada da população”.

Para Lacerda, esta solução não deveria ter um caráter coercitivo, ou punitivo; as remoções deveriam ser descartadas, e as favelas precisavam ser melhoradas, passando por um processo de urbanização – “é precisamente contra a idéia de expulsão e a favor da recuperação, do aproveitamento adequado, da melhoria de condições de habitação dos

favelados que nos batemos”17

. A remoção em massa desses moradores era, para Lacerda, “não apenas uma violência – era uma utopia”. A maioria dos favelados deveria “ser

10 “O que pretendemos do Governo” - Correio da Manhã, 20/05/1948, p.2. 11 “Vai começar a Batalha” - Correio da Manhã, 21/05/1948, Última Página. 12 “Pernambuco” - Correio da Manhã, 23/05/1948, p.2.

13

“Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página. 14 “A sexta cidade” – Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página.

15 “Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página. 16 “Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página. 17

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10

localizada nas próprias zonas em que se encontram as favelas. Ali mesmo, ou nas proximidades, porque o deslocamento privaria a população de uma série de serviços

públicos”18

. A proposta consistia em “mostrar aos favelados como pode ajudar-se a si mesmo para sair da favela por seus próprios pés – e mãos”, organizando cooperativas para a melhoria das moradias já existentes e a instalação de redes de água e esgoto nas favelas. A solução, portanto, estava no desenvolvimento da capacidade de iniciativa desses moradores e da compreensão de seus próprios problemas. Com a participação dos favelados, seria possível demolir barracos condenados, restaurar outros, instalar esgoto, água, luz e tanques comunitários.

A remoção de “cerca de 20 barracos” do Morro dos Macacos pela tropa de choque da Polícia Municipal motiva um novo artigo de Lacerda sobre a campanha, a esta altura já

relegada ao segundo plano pelo caso da Escola Naval19. Para o político, os burocratas

deveriam entender que não estavam lidando “apenas com zinco e madeira, com barro e sarrafos, mas com vidas humanas”. Naquele momento, no entanto, a campanha já começava a perder espaço no Correio da Manhã. A edição do dia 06 de junho traz o último artigo de Lacerda da série publicada como parte da Batalha do Rio. Lacerda afirma que a campanha encontra obstáculos no alto escalão do governo. Os órgãos da Prefeitura, paralelamente, mantinham uma postura contrária à propagada pela campanha – agiam “como se vissem nos favelados em conjunto aquilo que é minoria, o criminoso anti-social”. Para Lacerda, nada podia ser feito pelas favelas que não fosse “para os favelados, com o apoio e a ajuda deles, e não contra eles”.

A postura adotada pelo governo, porém, conseguiria unicamente deixar “sob a ruína dos casebres uma centelha” de onde se alimentaria “a chama da propaganda comunista no

Rio de Janeiro”20

. Mesmo afirmando, ao apresentar a campanha, que esta não era uma “cruzada contra o comunismo”, pesquisadores apontam que o objetivo de Lacerda ao promover a Batalha do Rio era criar uma proposta alternativa às vigentes, elaboradas tanto pelo Governo quanto pelo Partido Comunista, que ampliava sua presença nas favelas. Lacerda então se apropria de um enquadramento paternalista em relação à favela e se torna o principal promotor de uma campanha que afirmava não ser “contra o faveleiro e sim a seu favor”, com o objetivo de que o favelado deixasse “de o ser”, isto é, vivesse e morasse “em

condições mais dignas”21

. Após 06 de junho, porém, a campanha desaparece do Correio da

Manhã.

Em menos de um mês, segundo o Correio da Manhã, as favelas tornaram-se a “prioridade número um” do Distrito Federal, para retornarem às suas obscuras existências. Em meados de junho, já não há mais notícias, adesões ou qualquer referência à “Batalha do Rio de Janeiro” (SANTOS, 2001:87).

O projeto, considerado “grandioso” pela imprensa da época, ficou apenas nas páginas dos jornais. O programa proposto durante a campanha, apesar da imensa lista de adesões publicadas pelo Correio da Manhã diariamente, não foi concretizado.

18

“Prioridade número um” – Correio da Manhã, 22/05/1948, p.2.

19 Um motim realizado pelos alunos da Escola Naval em 1948 levou ao fechamento temporário do estabelecimento de ensino. A resposta das autoridades militares foi duramente criticada por Lacerda.

20 Ibidem 21

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11

4. A Batalha se torna a Guerra do Rio

Em 2007, o cotidiano do Complexo do Alemão ficou mais de dois meses nas páginas dos principais jornais cariocas devido a operações policiais constantes realizadas na região, em um episódio que O Globo chamou de Guerra do Rio. A explicação para esta “guerra” remonta a fevereiro, quando o menino João Hélio Fernandes Vieites, de 6 anos, morreu após ser arrastado por mais de sete quilômetros preso ao cinto de segurança do carro onde

estava.22. Após o crime, a esquina em que a mãe de João Hélio foi rendida pelos assaltantes

passou a receber policiamento ostensivo. Em 1º de maio, a viatura que permanecia estacionada no local foi metralhada. Bandidos armados com fuzis fizeram vários disparos contra o carro da PM e roubaram um dos fuzis e munição dos policiais. Os dois soldados que

ocupavam a viatura foram socorridos, mas não resistiram aos ferimentos23.

No dia seguinte, a Polícia Militar fez uma operação na Vila Cruzeiro. O objetivo era

“caçar oito traficantes que teriam executado” os dois policiais em Bento Ribeiro24

. Horas depois do assassinato dos dois PMs, o governador Sérgio Cabral disse que a Polícia partiria para o confronto com os criminosos. Cabral afirmou ao jornal que o Rio vivia uma guerra. “E

nós vamos ganhar esta guerra”25

, ressaltou. As ações policiais que se seguiram no Complexo do Alemão foram tratadas como tal. A Guerra do Rio não era uma campanha como a Batalha

do Rio, de solidariedade para com a - ou de apenas discussão da - questão favela. Foi um

período no qual as comunidades que compõem o Complexo do Alemão foram alvo de operações quase diárias da Polícia Militar cujo objetivo era combater a quadrilha de traficantes que dominava aquele território. As reportagens publicadas pelo O Globo se focavam nas ações policiais, e não na conjuntura do problema favela.

E as ações policiais estavam inseridas no contexto de guerra. A resistência encontrada pelos policiais militares devia-se a que os traficantes usavam “táticas militares de guerra” para impedir as operações. Os policiais eram monitorados através de radiotransmissores pelos traficantes, que dividiram o Complexo em setores numerados para facilitar a operação. Segundo O Globo, havia 150 traficantes nas comunidades armados com fuzis e metralhadoras

antiaéreas26. Os veículos usados pela PM eram impedidos de entrar no Complexo pelas

barreiras de trilhos de trem e o derramamento de óleo na pista. As casamatas, as barricadas e o treinamento recebidos se voltavam para a proteção do território dominado, no qual as 33 bocas-de-fumo negociavam semanalmente 30 quilos de cocaína pura. Na mesma edição, o Complexo do Alemão é apresentado como “a fortaleza do tráfico”, o “principal entreposto de

distribuição de drogas, armas e munição das zonas Norte e Leopoldina”27. Ao mesmo tempo,

era o principal “foco de disseminação de violência no Rio”28. “A caçada mostrou que o

tráfico havia transformado as favelas daquela região em uma fortaleza inexpugnável”, afirma o jornal29.

22

Informações de O Globo Online. “Memória: João Hélio morreu após ser arrastado preso ao cinto de segurança

na Zona Norte”, publicado em 08/06/2007. Disponível em:

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/06/08/296073544.asp. Acesso em 29/12/2009.

23 Informações do site G1. “Dois PMs são metralhados na região onde morreu o menino João Hélio”, publicado em 01/05/2007. Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL29891-5606,00.html. Acessado em 29/12/2009.

24 “Mais vítimas inocentes” – O Globo, 03/05/2007, p.13. 25

“Cabral: „Nós vamos ganhar esta guerra‟” – O Globo, 03/05/2007, p.13. 26 “Bandidos com táticas militares” – O Globo, 09/05/2007, p.18.

27 “Complexo do Alemão, a fortaleza do tráfico” – O Globo, 20/05/2007, p.26. 28 “Secretário: objetivo é asfixiar tesouraria da facção” – O Globo, 23/05/2007. 29

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12

A Polícia Militar só consegue chegar ao topo do Complexo do Alemão após 57 dias de ocupação, em 27 de junho. A operação, cujo planejamento durou meses e envolveu o setor de inteligência, mobilizou 1350 homens. Dezenove pessoas morreram, e a guerra chegara a seu ápice. No dia 29, o editorial de O Globo afirma que aquela operação deveria “inaugurar” um “estilo de atuação policial” que não se resumisse a “intervenções esporádicas”. Era preciso “manter o terreno ocupado”. A favela não só era o espaço por excelência da criminalidade – enquadramento presente em 93 de 132 matérias publicadas – mas também o ponto que irradiava ações violentas por toda a cidade. Era o espaço a ser invadido pelas forças policiais e ocupado pelo Estado, cuja “omissão total” havia levado a uma situação que

parecia “medieval: enclaves, fortalezas”30

.

Toda guerra tem um algoz e sua vítima. Na Guerra do Rio, a hipótese lançada neste artigo era de que as classes média e alta constituíam as principais vítimas destes confrontos e os favelados eram colocados ao lado dos algozes. O tráfico só existia na comunidade porque o favelado permitia – e o apoiava, como nas manifestações contra a Polícia. Estas hipóteses não se confirmaram. Naquela Guerra do Rio, O Globo considerou o favelado a maior vítima dos confrontos. O jornal dá voz aos moradores da favela e seus representantes, abrindo espaço para a reflexão sobre o cotidiano dos favelados em um período de conflito entre traficantes e policiais.

Na reportagem “Balas perdidas ferem mãe e filho de 3 anos dentro do quarto”31

, O

Globo ressalta que a casa já havia sido atingida cinco vezes e que a família passou a dormir

no chão em noites de tiroteio. Os moradores da parte alta da comunidade estavam sem luz e telefone; o serviço de coleta de lixo estava prejudicado, assim como o de entrega de correspondências; três mil crianças estavam sem aulas; e a queda de luz havia queimado a

bomba de água, obrigando os favelados a carregarem latas d‟água até suas casas32

. As

reportagens sobre a suspensão de serviços públicos33 se sucedem, com destaque para o

fechamento de escolas e creches. Mais que a ausência de serviços públicos, O Globo ressalta

o medo e a apreensão dos moradores. Como afirma Julita Lemgruber34 em artigo publicado

em 07 de junho, eles precisariam de psicólogos e psiquiatras, pois estavam “amedrontados,

apavorados, angustiados” – necessitariam de “um auxílio para cicatrizar as feridas da alma”35

. “É horrível viver assim, nessa tensão, sem nem poder ir para casa em paz”, afirmou uma mãe

ao jornal. Um pai relata que, “por muito pouco”, um tiro não atingiu sua filha de dois anos36

. Dentre os feridos, os moradores eram as principais vítimas dos confrontos – em 19 de maio, quando o número de atingidos por balas perdidas era de 53, cinqüenta eram habitantes do Complexo do Alemão. Os relatos da rotina de medo vivida pelos moradores do Complexo do Alemão e a ênfase no alto número de feridos, na opressão mantida pelo tráfico e nas dificuldades provocadas pela suspensão dos serviços básicos na favela constroem um

enquadramento do favelado como principal vítima da criminalidade37. O Globo não sustenta

o que o repórter Rodrigo Fonseca, em depoimento pessoal, criticou como sendo “uma visão

30 “Cerco Inglório” – Opinião, O Globo, 01/06/2007, p.6. 31

“Balas perdidas ferem mãe e filho de 3 anos dentro de quarto” – O Globo, 07/05/2007, p.10. 32 “PM já retirou 105 toneladas de entulho das barricadas” – O Globo, 10/05/2007, p.12.

33 Questiona Julita Lemgruber: “Os serviços básicos estão suspensos, deixando os bairros sem escola e a população sem luz e sem coleta de lixo. É possível imaginar isso acontecendo num bairro ou condomínio de classe média da cidade?”. “Penha e Alemão: 35 dias de conflito” – O Globo, 07/06/2007, p.7.

34 Socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. 35 “Penha e Alemão: 35 dias de conflito” – O Globo, 07/06/2007, p.7.

36 “PM libera acesso obstruído por traficantes” – O Globo, 16/05/2007, p.15. 37

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13

cartesiana que muitas vezes ignora a população espremida entre o morro e o asfalto”38

. A população do Complexo do Alemão não foi ignorada: sua apreensão e seus anseios tomaram as páginas do jornal. E o enquadramento utilizado enfatiza que, assim como os “peladeiros” de Rodrigo Fonseca, os moradores da região estavam em meio a um conflito do qual “jamais pediram para participar”.

Como solução para esta guerra, o discurso adotado pelas autoridades do Estado – e reproduzido pelo jornal O Globo – se sustenta na idéia de que era preciso “devolver as favelas para seus verdadeiros donos: a população inocente que só quer tranqüilidade”, nas palavras de José Mariano Beltrame. O editorial de O Globo no início dos confrontos segue este discurso: “A Vila Cruzeiro precisa ser recuperada pelo poder público para seus

moradores, reféns de traficantes. Não é hora de recuar”39

. Mas a ação não poderia ser apenas repressiva. O objetivo de “salvar” as vítimas daquela guerra não seria alcançado sem programas sociais, sem o desenvolvimento de uma política que fosse muito além da área da segurança pública. “É preciso urbanizar o complexo, dar escola, saúde e perspectiva de futuro

aos jovens”40

. Para isso, o Complexo do Alemão foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com investimentos de aproximadamente R$ 600 milhões.

Após a ofensiva do dia 28 de junho, o tenente-coronel da PM e ex-comandante do BOPE Mário Sérgio Duarte afirmou: “O Complexo do Alemão está liberto. Ele pertence ao

Rio. Ele pertence ao Brasil”41

. A ocupação policial, no entanto, não foi mantida. A Guerra do Rio não mudou a realidade do Complexo do Alemão, cujas 17 comunidades se mantêm sob o domínio do tráfico. A cobertura da Guerra do Rio, porém, mostrou certas mudanças em relação ao enquadramento – e aos estigmas – do favelado. O Globo apresentou o problema da segurança como um só para todos os cariocas, não importando o seu local de moradia. Esta postura é defendida por Julita Lemgruber em seu artigo:

o medo, a dor e os danos causados em comunidades como as da Vila Cruzeiro e da Penha são tão importantes quanto os que atingem os moradores de áreas “nobres”. Não se pode aceitar com indiferença uma quantidade absurda de mortes e de balas perdidas só porque ocorrem em uma área pobre da cidade42.

Ao ressaltar que a vida e o direito de cada cidadão carioca deveriam ser respeitados, O

Globo adota um enquadramento do favelado como vítima da violência e da criminalidade,

abrindo espaço para seus anseios, dando-lhe voz. Permite que os cidadãos do “asfalto” conheçam a realidade dos que habitavam os morros e, mesmo não discutindo em profundidade a questão favela – e a [ausência de] política habitacional -, promove uma solução para o Complexo do Alemão além da Polícia: eram necessários programas sociais, bem estruturados e a longo prazo, para verdadeiramente modificar a realidade dos moradores das favelas do Rio de Janeiro.

38 “Quando Vila Cruzeiro acordou Saigon. Lembranças de um repórter que cresceu na Penha e há 13 anos testemunhou a violência no Alemão” – O Globo, 24/06/2007, p.29.

39 “Missão” – O Globo, 10/05/2007, p.6.

40 “Alemão:faltam policiais para vencer o tráfico” – O Globo, 27/05/2007, p.30. 41 “Liberdade para o Alemão” – O Globo, 29/06/2007, p.7.

42

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5. Considerações finais

A relação da favela e de seus moradores com os habitantes do “asfalto” é mediada por diversos atores, entre eles os meios de comunicação. No começo do século, eram as palavras dos cronistas que serviam de guias para que os cidadãos pudessem montar em seu imaginário peças de um quebra-cabeça que, ao fim, seria a imagem da favela que carregariam consigo. A favela sempre esteve ao alcance, mas não era explorada pelos cariocas a ponto de estes conseguirem tirar suas próprias conclusões acerca daquele espaço. Por um longo tempo, cronistas e jornalistas foram os principais agentes na construção das representações acerca da favela, ganhando a companhia de pesquisadores na década de 1970 (VALLADARES, 2005). Coube a estes desmistificar algumas das representações do senso comum e contribuir com novas imagens, construídas através de estudos que se utilizavam da observação participante e de entrevistas, entre outros métodos.

Da Batalha do Rio, em 1948, à Guerra do Rio, em 2007, passaram-se 59 anos de História, de intervenções públicas, de mudanças na imprensa e nas representações do espaço-favela. Na imprensa, passou-se do jornalismo francês, mais crítico e de opinião, ao jornalismo norte-americano, que privilegia a informação, de um modo impessoal. Do Correio

da Manhã, jornal de oposição crítico, esta análise passou para o jornal O Globo, que se

considera independente. A pesquisa revelou que o enquadramento predominante utilizado pelo Correio da Manhã foi o paternalista, calcado no espaço do Não, enquanto o jornal O

Globo sustenta um enquadramento da favela como o espaço da criminalidade. No primeiro, a

favela é vista como o local de moradia dos que não tiveram outra opção a não ser subir os morros da cidade, devido ao crescente déficit habitacional e à ausência de políticas públicas voltadas para a solução deste problema. O Correio da Manhã propõe uma campanha a favor dos favelados, dizendo-se com o objetivo de melhorar suas condições de vida. No segundo momento, a favela é enquadrada como o local do crime, em que este se faz presente no cotidiano da vida dos seus moradores – e que se irradia para outras partes da cidade. A análise das duas coberturas mostra, portanto, uma descontinuidade nos enquadramentos predominantemente utilizados.

Carlos Lacerda, quando lança a campanha Batalha do Rio através do Correio da

Manhã, tentava criar um contraponto à presença crescente dos comunistas nas favelas

cariocas. O jornalista comenta em uma de suas crônicas que a favela só conhecia as soluções propostas pelos “burocratas” e pelos “comunistas”. Os “democratas” ainda não possuíam uma solução em comum para a questão. Lacerda, no decorrer da campanha, tenta alinhavar esta proposta, que constituía basicamente na urbanização das favelas, e na substituição dos barracos por moradias higiênicas a serem construídas nos próprios terrenos onde as favelas estavam localizadas. Ou seja, o político Lacerda se mostrava em 1948 contra a política de remoção que ele mesmo colocaria em prática anos mais tarde, em 1960, quando assume como o primeiro governador do Estado da Guanabara. O discurso adotado por Lacerda em sua coluna durante a Batalha, fortemente baseado em um enquadramento paternalista, poderia significar uma via para que ele atingisse o eleitor de classe média e os pobres. Ao promover propostas de ajuda aos favelados, vítimas da “inépcia” de autoridades e cidadãos, Lacerda falava à elite leitora do Correio da Manhã com o intuito de que suas idéias atingissem as massas e freassem a expansão comunista nos morros do Rio de Janeiro.

Para isso, o enquadramento paternalista ancorou-se no enquadramento da favela como o espaço do Não. As reportagens do Correio da Manhã descreviam as péssimas condições de vida dos moradores dos morros da cidade, em que a infraestrutura era bastante precária, praticamente inexistente. O jornal recorreu a este enquadramento com o objetivo de estimular

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adesões à campanha, cuja proposta era a de melhorar as condições das favelas cariocas. A ausência de serviços básicos – água, luz, esgoto – naqueles espaços justificava as propostas de urbanização realizadas pela Batalha. A campanha, no entanto, não se traduziu em resultados reais para os favelados. A urbanização de favelas tornou-se política pública somente a partir da década de 1980, substituindo programas de remoção dos favelados para conjuntos habitacionais construídos no subúrbio carioca. As favelas cariocas ganharam infraestrutura, e os barracos de madeira foram substituídos por casas de alvenaria. Assim, a favela deixou de ser caracterizada primordialmente como o espaço do Não.

O fortalecimento do tráfico de drogas nos anos 1980, com o posterior armamento das quadrilhas, transformou as favelas em territórios dominados por grupos ilegais. A associação entre pobreza e criminalidade violenta e os constantes confrontos entre policiais e criminosos fizeram da favela um espaço fora da lei (VALLADARES, 2005). A representação dominante da favela passa a ser, então, a do espaço da criminalidade, enquadramento utilizado pelo jornal O Globo na Guerra do Rio em 2007. O cotidiano das favelas cariocas é retratado pela imprensa predominantemente sob a ótica da violência, quando ocorrem crimes bárbaros e/ou conflitos entre traficantes de grupos rivais ou com a polícia. A ocupação do Complexo do Alemão pela polícia em maio de 2007, após a morte de dois policiais, poderia ser uma oportunidades para a discussão da questão favela no Rio de Janeiro. A região onde está localizado o Complexo do Alemão sofreu um esvaziamento econômico nas últimas décadas que tornou o local esquecido não só pela iniciativa privada, mas também pelo poder público – o que inclui a segurança pública. O complexo é um dos redutos mais bem armados da maior facção criminosa do Rio de Janeiro. Este fortalecimento não se deu da noite para o dia – é resultado de anos de descaso do poder público para com aquela região e sua população. Na cobertura realizada pelo O Globo, no entanto, há pouca contextualização; as raízes sociais dos problemas não são discutidas em profundidade e aborda-se predominantemente o factual.

A descontinuidade identificada no enquadramento utilizado também se reflete na resposta a ser dada ao problema favela. Se em 1948 a proposta da Batalha era urbanizar as favelas para levar melhores condições de vida a seus moradores, em 2007 a Guerra seria vencida com o uso da força. Se antes a questão era habitacional, no segundo momento se torna um problema de segurança pública. As representações construídas em relação às favelas desde o seu surgimento influenciaram e/ou foram influenciadas pelas políticas públicas voltadas para estes espaços. Ao espaço do não, a resposta foi a urbanização; ao espaço da criminalidade, tem sido a polícia. A questão a ser colocada é se as favelas cariocas realmente dizem respeito apenas à segurança pública. Enquadramentos plurais e mais abrangentes podem indicar as diversas necessidades das favelas, carentes de programas sociais nas áreas de saúde, qualificação profissional e empregos, dentre outros.

Ao enquadrar a favela com uma conotação violenta, como se o crime fosse inerente àquele espaço, a imprensa indica aos moradores do asfalto o que temer – não apenas o espaço, mas também seus habitantes. A mídia conseguiria dar aos indivíduos da classe média um afastamento do “povo” que vive nos morros, uma superioridade que dividiria a cidade entre “nós” e os “outros”. No entanto, contrariando a hipótese lançada no início deste artigo, a cobertura realizada pelo jornal O Globo da ocupação do Complexo do Alemão em 2007 não realiza esta separação. A hipótese de que os favelados seriam retratados como cúmplices do tráfico e/ou como criminosos em potencial não se confirmou no decorrer da análise dos textos publicados pelo jornal O Globo em 2007. Os moradores do Complexo do Alemão foram considerados as principais vítimas dos confrontos ocorridos na comunidade. Este enquadramento foi construído pelo jornal ao enfatizar os relatos do cotidiano de medo nas comunidades, o alto número de feridos entre os moradores, a opressão mantida pelo tráfico e as dificuldades provocadas pela suspensão dos serviços básicos. Ao mostrar sua apreensão

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em meio aos confrontos, O Globo não ignorou a população do Complexo do Alemão, dando voz aos moradores.

Neste caso, há uma continuidade em relação à Batalha do Rio, em 1948. Em ambas as coberturas, o favelado é mostrado como vítima; na primeira, da inépcia de autoridades e cidadãos; na segunda, do tráfico. Nas duas ocasiões, ele necessita de ajuda; na primeira, para sair daquela situação de miséria (e imundície) em que vivia; na segunda, para ser libertado da submissão imposta pelos traficantes. A explicação para a adoção do enquadramento do favelado como vítima da criminalidade pelo jornal O Globo pode estar ancorada na idéia de que a violência no Rio de Janeiro atingia a todos, sem distinção. Todos os cariocas – das classes alta, média e baixa – eram vítimas da criminalidade. Em editorial de 2004, O Globo afirma que “as duas bandas do Rio tendem a ser unificadas pela violência. Quando se esperava a inclusão do Rio sem lei e violento pelo Rio de legalidade e do bem, a população

testemunha, assustada, o inverso”43

. Assim, a cidade deixava de ser partida. A criminalidade tornou-se um problema de todos.

A integração social pela paz era o objetivo da criação do Viva Rio, em 1993, quando Betinho afirma que o “Rio tem que ser um só” (VENTURA, 1994:72). Ressalta-se que a ocupação do Complexo do Alemão se deu após a morte de um menino de classe média, em uma esquina do subúrbio do Rio de Janeiro, em que dois policiais foram assassinados posteriormente. Antes de “subir” o morro, a violência se fez presente no “asfalto”, desencadeando uma comoção nacional pela morte de João Hélio, um crime bárbaro que chocou toda a sociedade. A população carioca se mobilizou pela paz após o crime, realizando passeatas e protestos. Neste contexto, quando a polícia ocupa o Complexo do Alemão, com confrontos quase diários com os traficantes, O Globo opta por considerar a população favelada tão vítima da violência quanto a do asfalto. A classe média e os favelados se encontrariam como vítimas da violência. Para a criminalidade, não existia “eles” ou “nós”.

As descontinuidades e continuidades presentes nas duas coberturas sobre favelas analisadas neste artigo propõem repensar o lugar da favela no imaginário social carioca. A integração à cidade parece não depender apenas de intervenções do poder público; também estaria vinculada a mudanças no imaginário dos cidadãos, muitas vezes preconceituoso em relação às favelas e seus moradores. A valorização da favela, em toda a sua diversidade, depende de diversos atores, entre eles os próprios favelados, o poder público, a sociedade civil organizada, a produção acadêmica e a mídia. A presença do Estado em algumas favelas do Rio de Janeiro devido a programas de urbanização e pacificação levou a um aumento do número de reportagens nestes lugares, apontando as suas principais necessidades, mas também aspectos positivos do cotidiano dos moradores. A escola de música do Santa Marta, a bela vista que se tem do alto do Morro da Fazendinha, no Complexo do Alemão, o Ano Novo no Babilônia e Chapéu Mangueira. Compreende-se, neste caso, a pluralidade existente na favela e as diferentes práticas sociais que ali se concretizam. De uma cidade à parte, a favela passa a ser parte da cidade.

Discutir a favela da Batalha e da Guerra do Rio através da análise de conteúdo de coberturas passadas permite a compreensão, ainda que parcialmente, de como os jornalistas são capazes de produzir discursos sobre certo território ou grupo de indivíduos na sociedade. Estes discursos podem ou não refletir fielmente a realidade, e a discussão deste processo ganha importância quando os mesmos criam subjetividades em relação a espaços e grupos que influenciam o tratamento concedido a estes pelos que não se reconhecem pertencentes aos mesmos. Neste sentido, Patrocínio (2006:82) ressalta que a produção de discursos sobre o marginalizado é cunhada a partir do referencial do intelectual e/ou jornalista, e é preciso que

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este reconheça que “sua produção irá formar um imaginário sobre o espaço marginalizado, e que o texto servirá como forma de mediação – algumas vezes, a única possível – entre o público leitor e a massa de favelados representada no romance” (idem, p.112) – ou na notícia. Bauman (2008) afirma que a conectividade e a interdependência no mundo globalizado levam a que nada que os outros façam ou possam fazer nos deixa seguros de que não afetará nossas esperanças, chances e sonhos, e nada que nós façamos ou deixemos de fazer nos permite afirmar que não afetará os outros. Ao selecionar fatos, palavras e recortes na construção dos discursos sobre a favela, os produtores de informação poderiam refletir sobre as esperanças, chances e sonhos dos favelados. Com o propósito de se certificarem de que não estão reduzindo os mesmos.

6. Referências bibliográficas

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