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O sonho e o teatro na mundividência de Calderón de la Barca († 1681)

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de Calderon de la Barca (+1681)

Q u é es la vida? U n a ilusión, una sombra, una ficción, y el m a y o r bien es pequeno; que toda la vida es s u e n o1.

Tinha u m n o m e comprido, c o m vestígios maternos de antepas-sados flamengos, de Mons de Hainaut, e sangue azul pela parte do pai, do n o b r e solar de La Barca. E assim lhe chamaram Pedro Henao de la Barreda y R i a n o Calderon de la Barca. Mas ele só assinava, habitualmente, D o n Pedro Calderon de la Barca, c o m uns gatafunhos n o fim, a lembrar u m a corda atirada alto, e m espiral, ao deus-dará, c o m o se dissesse: T a n t o faz!

Nasceu e m Madrid e lá m o r r e u e m 1681, faz agora três séculos. Estudou letras c o m os jesuítas, colaborou nas suas festas e entrou a estudar direito canónico e m Salamanca, de 1617 a 1619. Mas da exactidão do t e m p o n ã o há certeza segura. Foi u m d r a m a t u r g o

atento aos problemas essenciais de a q u é m e de a l é m - m u n d o . Filó- x sofo? T a m b é m isso, nalgumas das suas peças. D e propósito e p o r

tendência pessoal. Filósofo existencialista, e m certo m o d o , pela sua reflexão concreta sobre o h o m e m e a condição h u m a n a .

Era a m i g o de Lope de Vega e doutros escritores do t e m p o e foi buscar assuntos não só à vida envolvente mas t a m b é m à história e à literatura, inclusive aos livros de cavalaria, c o m o o D. Quixote

1 La Vida es Sueno, II, 19. É u m auto sacramental. A propósito de autos

sacra-mentais, não t e m base a afirmação c o m u m de eles terem nascido, n o seu conjunto, contra o Protestantismo, fazendo parte d o que vulgarmente chamamos a C o n t r a - R e f o r m a . C f . MABCEL BATAIIXON, Varia Lección de Clásicos Espanoles (Madrid, 1964) pp. 185-205:

Ensayo de explicaàón dei «auto sacramental».

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e a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Se Sta. Teresa de Jesus, a Grande, começou a c o m p o r u m romance de cavalaria, nos seus t e m p o s de rapariga e ainda e m casa do pai, à força de ler esta literatura fantasiosa e algo romântica, Calderon de la Barca, cem anos depois e apesar de Cervantes, não lhe ficou atrás, neste gosto de leituras cavaleirescas. E m 1676, p o r sinal, imprimia ele u m a comédia intitulada Aventuras de Oliveros de Castilla y lealtad de Artus de Algarbe. Mas a Inquisição interveio desta vez, o r d e n o u que destruíssem a parte j á impressa e entregassem todos os manuscritos. E lá se foi u m a obra de Calderon pela água abaixo. E u m a obra do tipo cavaleiresco. Foi pena. E m literatura de homens assim, u m a árvore faz sempre falta na floresta, porque em tais florestas nunca as árvores são iguais.

D i z e m que, aos 25 anos, andou na tropa da Flandres e da Lombardia, voltando p o u c o depois a Madrid. E m 1637, era tal a sua f a m a de h o m e m do palco que os madrilenos e a corte insistiam mais e mais para Calderon de la Barca escrever comédias e autos sacramentais, levados p o r ele à perfeição.

Lope de Vega, Tirso de Molina, R u i z de Alarcon, Mira de Amescua e Calderon de la Barca deixam-nos quase a impressão de terem nascido à força, para satisfazer a ânsia daquelas gerações famintas de teatro. N ã o fizeram nascer, mas ajudaram a crescer. E assim vieram ao m u n d o centenas e centenas de peças de teatro, algumas delas para a eternidade. São os m o m e n t o s miraculosos d u m povo. E n o entanto, a Inquisição existia em Espanha. Mas o génio abre sempre caminho e nada pode travar u m a cheia do Amazonas ou do rio Volga.

Sério mas violento, Calderon ia certa vez matando o actor Pedro Villegas, que à falsa fé lhe atacara o irmão. Foi u m caso falado e v e m na biografia breve que Mariano Alfonso de Riaza começou a escrever n o próprio dia da m o r t e de Calderon de la Barca, n u m d o m i n g o de Maio.

Conta-nos ele, c o m efeito, que Pedro Villegas fugira, c o m Calderon de la Barca de espada nua atrás dele. Mas sumira-se, ao parecer n o convento das Trinas de Madrid. E foi o f i m do m u n d o para as pobres freiras, u m apocalipse b e m espanhol, de capa e espada. Calderon de la Barca, à frente dos amigos, n ã o hesitou. E n t r a r a m de espada na mão, violaram a clausura conventual, a r r o m -b a r a m portas, -buscaram pelas celas o comediante fugitivo e até levantaram o véu das freiras, a descobrir-lhes o rosto, não andasse

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Pedro Villegas por ali, metido n o hábito religioso das freiras trinitárias.

Berraram os padres e capelães, acudiu o alcaide da ronda e certo pregador famoso repreendeu Calderon do púlpito abaixo. Mas ele respondeu que tais ataques não passavam de «sermones de Berbería». C o n d e n a r a m - n o a ficar preso alguns dias, e m casa. Foi isto em 1629 ou pouco depois. E valha a verdade, grande era o seu prestígio, para levar castigo tão p e q u e n o p o r desaforo tão desmedido.

Mais tarde, na guerra da Catalunha, m o r r e u - l h e o irmão José Maria Calderon de la Barca. C o m o afirma Baltasar Gracián, e m El Críticon, José Maria foi invejado pelos grandes senhores e «honrado de los mismos enemigos» 2. E n f i m , u m a família de fibra rija.

Calderon de la Barca, sem as aventuras espaventosas de Lope de Vega, sempre embrulhado e m histórias de saias, ordenou-se de padre e m 1651, j á na idade madura. Valha a verdade que Lope de Vega, depois de enviuvar duas vezes, t a m b é m entrou para pres-bítero. C o m u m a diferença: D e Calderon de la Barca, pelo menos na sua vida de padre, nada consta de mulheres. Lope de Vega conti-n u o u a queimar-se conti-na labareda dos seus desvarios c o m mulheres solteiras e casadas, actrizes e gente de todas as classes. Era u m extrovertido desordenado e genial, a m i g o de falar de si e de coriyivcr. De Calderon de la Barca temos a «biografia dei silencio», na expressão de Valbuena Prat.

M a r c a d o pela estrutura lógica e pela intensificação dramática, o teatro calderoniano centra-se n o protagonista e este domina as personagens e a acção, que se interiorizam cada vez mais n o conflito da personagem-eixo da representação. O protagonista, p o r sua vez, espraia-se e m m o n ó l o g o s de lucidez e n o r m e e leva a lógica às últimas consequências, m e s m o até à injustiça para «salvar» a honra, c o m o se Calderon dissesse, n u m a ironia trágica: Neste m u n d o de aparências, a h o n r a - p o r - f o r a desonra o h o m e m - p o r - d e n t r o , e a justiça é injusta, pois o m a r i d o mata a m u l h e r , sabendo que ela está inocente.

Nascido após Lope de Vega e Tirso de Molina, o teatro calderoniano implica não só o p r o l o n g a m e n t o e a aprofundização de temas e técnicas, mas t a m b é m a depuração das estruturas dramá-ticas básicas. E então que o teatro nacional espanhol t o m a consciência

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plena de si m e s m o . C o m o n o t a R u i z R a m ó n , o que «podríamos d e n o m i n a r instinto e inspiración en la dramaturgia de Lope, es lógica y conciencia en la dramaturgia de Calderon»3. Habilidade

teatral? N ã o b e m isso. Maneira de ser pessoal, e m Calderon e Lope de Vega. Duas vidas, dois temperamentos e duas dramaturgias, u m a n o p ó l o oposto da o u t r a .

N ã o queremos guiar o leitor pelos meandros desta floresta tentacular do teatro de C a l d e r o n de la Barca. Só notamos que o t e r m o frequente de comédia n ã o tinha então o sentido actual. Muitas dessas comédias f o r a m classificadas m o d e r n a m e n t e c o m o dramas, p o r L. Astrana M a r i n . P o r o u t r o lado, n ã o esqueçamos ter sido Calderon de la Barca q u e m levou os autos sacramentais à sua perfeição, ligados à eucaristia e n ã o somente para serem repre-sentados na procissão do Corpus Christi. Pelo contrário, o Auto de S. Martinho, de Gil Vicente, n ã o tinha e m si qualquer referência eucarística. N o entanto, González Pedroso colocou-o logo n o c o m e ç o da vasta colectânea intitulada Autos Sacramentales desde su ortgen hasta Jines dei Siglo XVII. E p o r q u ê ? P o r ter sido repre-sentado «na prossiçam d o Corpus Christi», nas Caldas da Rainha. El Gran Teatro dei Mundo, de que falaremos aqui per longum et latum, é u m auto sacramental n o sentido rigoroso da palavra.

R e f e r i m o - n o s j á a Lope de Vega e l e m b r a m o - n o s agora de Tirso de Molina, posto e m paralelo c o m Calderon de la Barca. Observador perspicaz e estilista elegante, Tirso de Molina t e m u m a graça às vezes cheia de profundeza e chega a superar a complexidade h u m a n a de Lope de Vega — o que é dizer muito. N o c o m e ç o de El Burlador de Sevilla, p o r e x e m p l o , a leviana duquesa grita p o r socorro e o rei de Nápoles pergunta: Que é isto? E dirigindo-se a D . J o ã o T e n ó r i o : Quem és tu?

E o sedutor define-se n o cinismo da resposta, e m palavras breves mas significadoras da situação quase p e r m a n e n t e da condição h u m a n a e terra-a-terra: Quem somos? Ora, um homem e uma mulher! N ã o há aqui u m a atitude m o r a l , mas a verificação d u m facto.

E m Calderon de la Barca, n ã o é o ser que mais importa, mas, sim, o dever ser. E cada peça da maior parte do seu teatro ergue-se à altura d u m p r o b l e m a , p o r vezes mais problema do que estudo psicológico, u m p r o b l e m a a exigir u m a filosofia da vida.

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Para Menéndez Pelayo, os caracteres calderonianos chegam a ser invariáveis. N a s suas comédias de capa e espada, diz ele, as mulheres t ê m sempre algo de viril, até de mais: «tienen siempre algo de hombrunas». E continua: «No h a y j a m á s en Calderon esa sutilísima comprensión de la naturaleza femenil que constituye el grande hechizo de las obras de Lope. T a m p o c o brilla nunca en las mujeres de Calderon la picaresca ingeniosidad y la malicia n o siempre perversa de las damas de Tirso; ni la nobleza y distinción aristocrática que alguna vez se admira en las de Alarcon»4.

Isto é verdade, mas n ã o totalmente verdade. A espanhola D . Leonor, de A Secreto Agravio Secreta Venganza, nada t e m de «hombruna» e a criada t a m b é m não.

A vida c o m o sonho e teatro, eis o que mais nos impressiona e m Calderon de la Barca. Casanova queixava-se de m o r r e r «antes d o fim do espectáculo». A Rabelais, atribuíram u m a frase, na hora de ele dar a vida p o r acabada: «Tirez le rideau, la farce est jouée». N ã o a disse, mas talvez a pensasse, o u coisa equivalente, pois todos nós representamos u m papel n o palco d o m u n d o e saímos logo: «la farce est jouée».

Entramos n o palco ao nascer, saímos dele ao m o r r e r e, entre o berço e o caixão ou esquife, b e m ou mal, v a m o s p o n d o e m acção e palavra o papel destinado p o r Deus — o u escolhido manhosamente por nós. T a n t o pior, neste caso, pois teremos de responder n ã o só pela maneira de representar mas t a m b é m pela usurpação d o papel destinado a outrem. E m qualquer caso, vida e teatro confundem-se. U m rei de teatro e u m rei a sério, ambos representam e ambos terão de largar os grandes mantos, a coroa e o cetro, e deixar o palco. Pegar e largar, largar e partir.

Espera-nos o nivelamento da Dança Macabra e cada u m será j u l g a d o p o r Deus, n u m desnudamento pior que o d o mendigo. Só as obras nos a c o m p a n h a m para o outro lado, elas darão a nossa medida n o Juízo de Deus. Só elas e n ã o o papel que representámos. T e m importância, sim, o m o d o c o m o nos desempenhámos d o papel, seja ele de rei ou de m e n d i g o . Chega, pois, a identificar-se o j u í z o moral e o juízo estético. Se o cavador cumpriu m e l h o r o seu

dever do que o rico, m o r a l m e n t e é ele superior ao rico e a beleza da sua representação n o palco da vida foi maior. Fazer de conde,

4 MANÉNDEZ PELAYO, Estúdios y Discursos de Crítica Histórica y Literaria, t. 3 (Santander,

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m e n d i g o o u d u q u e não t e m importância definitiva. Conta, sim, a representação. E está claro que Deus, director da Companhia do Grande T e a t r o d o M u n d o , saberá distinguir entre papéis fáceis e difíceis, para dar o devido desconto. Mas viver é sempre u m papel difícil. E m o r r e r , t a m b é m . E t u d o é representar, sair c o m elegância d u m salão o u sair c o m o deve ser deste palco da vida.

Claro que, n o palco estético e m o r a l , a coincidência falha em certos casos. N o palco, u m actor pode fazer perfeitamente de Jack o Estripador o u de D r . Landru, c o m m é r i t o para este m u n d o

e até para o outro. N a história, tanto Jack o Estripador c o m o o D r . Landru t a m b é m f o r a m , e m certo m o d o , criminosos perfeitos. Mas aqui, os papéis f o r a m usurpados e não pertenciam à peça ideada para a C o m p a n h i a d o Grande T e a t r o do M u n d o . Deus, o director, deixou-os seguir e, n o f i m , pagaram p o r tudo. E nestes papéis usurpados, até o representar m e l h o r é pior.

T u d o passa, m e s m o a grandeza, a p o n t o de hesitarmos, sem saber se sonhamos ou se estamos acordados. Daqui o drama calderoniano, La Vida es Sueiio. T a m b é m a d o r m i r representamos u m a curta peça n u m teatro imaginário. Falamos, agimos, sofremos e, ao acordar, c o m o Segismundo sentado n o t r o n o depois de estar n u m a enxovia, receamos que t u d o seja ilusão: «y estoy temiendo en mis ansias / que he de despertar y hallarme / otra vez en mi cerrada prisión»5.

N a vida autêntica, dá-se o m e s m o . T u d o m u d a a cada instante, t u d o passa, a gente é e deixa de ser, à maneira d u m rei de palco, ou d u m m e n d i g o o u banqueiro de teatro. N a reali-dade, são todos mais ou menos iguais p o r dentro. Só os papéis separam uns dos outros na representação. N o f i m dela, depõem as insígnias, m u d a m de farpeia e vestem-se c o m o o h o m e m - d a - r u a , para irem ao café beber e m chávenas iguais. O rei, o m e n d i g o e o banqueiro deixaram de o ser, n o teatro e n a vida.

Nasce daqui u m a sensibilidade de ser e n ã o ser, de ter e não ter, de sim e de não, u m pessimismo-para-este-mundo que leva Segismundo a dizer: «pues el delito m a y o r / dei h o m b r e es haber nacido». E l e m b r a m o - n o s d o final d u m soneto de Antero de Q u e n t a l : «Que sempre o m a l pior é ter nascido!».

5 CALDERON DE LA BARCA, La Vida es Sueiio, n o final. N e s t e sentido, cf. PABLO CEPEDA CALZADA, La Vida como Sueiio (Madrid, 1964); MÁRIO MARTINS, Introdução Histórica

à Vidência do Tempo e da Morte (Braga, 1969) passim; EUGÉNIO FRUTOS, La Filosofia de Calderón en sus Autos Sacramentales (Saragoça, 1952).

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Q u e m sabe? Talvez nós, c o m o Segismundo, possamos t a m b é m perguntar se estamos meio a sonhar, j u l g a n d o que somos isto o u aquilo, c o m o u m sonâmbulo a desempenhar u m papel, mas sem enxergar b e m se está a dormir ou acordado: E a responsabilidade h u m a n a? M a r c a d o p o r u m destino que está nas circunstâncias e

dentro da nossa maneira de ser, temos, ainda assim, força para sairmos do círculo do sonho que em parte se vai c u m p r i n d o e que parece determinar a nossa existência. Assim fez Segismundo que, «situado en el más p u r o de los presentes, domina el pasado y se adentra en el f u t u r o »6.

C o n t u d o , verificara a inconsistência das coisas deste m u n d o . E u m R e i n o de Sombras, c o m o a caverna de Platão. Este m u n d o não existe, n o sentido em que dizemos que Deus existe. Subexiste. E u m a realidade-sombra.

T u d o m u d a , t u d o passa, o u está passando. As vezes, os homens trocam os papéis e a gente não sabe a que ater-se: En esta Vida todo es Verdad y todo Mentira. Ora bem, é nesta peça calderoniana que Heráclio fala de «la farsa de mi vida», a desenrolar-se ao contrário (III, 14). E diz a Focas, antes de o matar, que não se espante: «solo m u d ó un ensayo, / que se trocara un papel» (III, 16). Até ali, fizera ele de misericordioso e agora era o contrário. Mais adiante, a dúvida chega quase a d o m i n a r t u d o : «Porque aun todavia dudé / si es mentira ó si es verdad / t o d o cuanto llego a ver» (III, 18).

Q u e m não ouviu falar da lenda fáustica que está na base de El Mágico Prodigioso? Apaixonado p o r u m a rapariga cristã, Cipriano, estudante de Antioquia, vende a alma ao Diabo, para ter o a m o r daquela mulher. P o r é m , ela resiste a todos os encantamentos e o D e m ó n i o , e m última instância, inventa para Cipriano u m a «figura fantástica» de mulher. Por isso, encobre o rosto, ao tentar o pobre estudante, e Cipriano mete-se pela mata adentro, abraçado à sua ilusão. Mas ao descobri-la, contempla u m cadáver m u d o , o u melhor, u m esqueleto. E este diz-lhe a frase perfeita e suprema: «Asi, Cipriano, son / todas las glorias dei mundo» (III, 13). São assim todas as glórias do m u n d o e é inútil vender a alma por tão pouco, concluímos nós. Abraçamos sempre u m esqueleto. E ao ouvirmos queixar-se o pobre estudante de aquilo não passar duma sombra, perguntamos: E não será t u d o u m a s o m b r a7

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N o entanto, existimos de verdade, n u m m u n d o verdadeiro e nele representamos u m a peça de teatro, longa c o m o a vida. Longa, para depois nos parecer breve.

D i z e m os italianos que, nesta barraca do m u n d o , somos os palhaços d u m a farsa de Arlequim. Exagero a p ô r e m relevo u m a verdade, nada mais. Tal maneira caricatural de encarar a vida h u m a n a descobrimo-la t a m b é m nos Apólogos Dialogais, de D . Fran-cisco M a n u e l de Melo: Deus p e r m i t e que, aos olhos dos homens, passe p o r ministro q u e m o não é, e que os lisonjeiros passem por outra coisa aos olhos dos ministros, «para que, desfeita n o vestuário d o t e m p o esta farsa e m que todos andam, se não achem enganados uns n e m outros». Os grandes são mais pequenos do que fingiam. O s pequenos são diferentes d o que aparentavam: «e assim estes e aquelles (como comediantes), cada qual e m seus trajes naturais, se recolham à sua casa própria, que v e m a ser a sepultura». Nela entram, despindo «os faustos e as tramóias, c o m que, para represen-t a r e m suas figuras, os a d o r n o u a ambição ou a soberba»7.

A o contrário de Calderon de la Barca, D . Francisco Manuel de M e l o não se refere claramente a n e n h u m teatro m o n t a d o p o r Deus, c o m papéis distribuídos p o r ele. O s h o m e n s é que escolhem a seu bel-prazer os seus papéis de grandeza — ser ministro, p o r e x e m p l o . E lá c a m i n h a m eles, de peito inchado imponente, passo firme e austero. U m a velha dama quer fazer de rapariga nova, p i n -tando os lábios, p o n d o carmim, dando j u v e n t u d e aos cabelos brancos, cingindo vestidos de cores alegres e tentando u m andar leve e grácil. U m h o m e m p o b r e quer fazer de rico e gasta e m aparências o que lhe falta na realidade. U m rico deseja, p o r vezes, fazer de pobre, para que não lhe peçam dinheiro — e lamenta-se que anda t u d o pela rua da amargura.

Assim v e m o s desenrolar-se u m a comédia da vida, n o Grande T e a t r o d o M u n d o . Só que tal comédia não vinha n o p r o g r a m a de Deus. E t e m o s a farsa da vida, u m a comédia burlesca e m que n i n g u é m está para representar papéis incómodos — e só o fazem para enganar este m u n d o e o outro, se f o r possível.

Estamos a caminho d u m a espécie de teatro-loucura, cuja reali-zação plena descobrimos nos manicômios: Napoleão, c o m a m ã o metida n o peito, olha d o m i n a d o r a m e n t e e m t o r n o de si; u m p o b r e clérigo faz de Papa e abençoa beatificamente à direita e à esquerda,

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erguendo rigidamente dois dedos da m ã o direita. E assim por diante. E o s o n h o indomável de grandeza h u m a n a — e t a m b é m isto serviria para levar ao palco: A farsa tremendamente séria da loucura. Séria p o r q u e os loucos n ã o t ê m o sentido d o h u m o r . Pois b e m , a vida h u m a n a , c o m papéis usurpados, é para Deus a farsa da loucura, ridiculamente séria. E trágica, porque somos respon-sáveis.

E m El Gran Teatro dei Mundo, temos a vida n o r m a l , ou melhor, habitual. E temos nela u m a espécie de filosofia da História, a que não falta o Juízo Final, c o m os h o m e n s postos a n u e socialmente desclassificados. A sabedoria c o m que, neste m u n d o , representaram o papel que Deus lhes confiou, será ela a n o r m a de avaliação para o outro m u n d o . E nalguns casos, haverá uma grande inversão na tabela da grandeza humana. Talvez o cavador fique acima do rei. El Gran Teatro dei Mundo abre c o m u m a loa introdutória, e m que falam várias personagens, quase todas alegóricas: a Apostasia, os dois Testamentos (o Velho e o N o v o ) , Isaac (figura do sacrifício da missa), Sansão, a Lei Natural, a Lei Escrita e a Lei da Graça. E n ã o falta a música, a cantar u m a quadra à maneira de refrém, u m versículo do salmo 110. O m u n d o actual alheou-se de tais alegorias e do seu conteúdo, mas as multidões do séc. X V I I apinha-vam-se em torno das representações de Calderon de la Barca.

Q u e magnífico o r g u l h o nesta afirmação: Teatro insigne de Europa j yo soy Espanai N ã o se tratava duma espanholada, naquele t e m p o . E vai explicando: N i n g u é m n o m u n d o celebra tão esplen-dorosamente a Sagrada Eucaristia. Danças, hinos, alegrias, autos teatrais e música! A Apostasia, nação d o N o r t e , escandaliza-se p o r tantos festejos. A Ceia d o Senhor n ã o foi nos dias da Paixão?—Sim!, replica Espanha. Mas a Eucaristia é u m mistério de amor. E o a m o r revela-se n o rosto c o m alegria.

O Testamento Velho t e m barbas à maneira judaica. E o N o v o usa vestidos à romana. Assistimos à criação e à história da «máquina terrestre». Dela e d o h o m e m . Mas nesta peça teatral, resume-se t u d o n u m a «tarde breve». As luminárias simbolizam o Sol, a Lua e os astros. E o T e m p o é o grande engenheiro.

O Grande Teatro do M u n d o , apesar dos seus vistosos cenários, poderá ele p ô r u m h o m e m , p o r exemplo, a representar de Deus? Mas que «criatura hay más noble / que el hombre»? Sim, «ei hombre, sea el que fuere?». Q u e criatura há mais n o b r e d o que o h o m e m , seja ele q u e m f o r ?

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Naqueles tempos e m u i t o antes e depois, o director da c o m -panhia teatral, fosse ele Shakespeare, Lope de Vega, Molière ou Calderon de la Barca, escrevia geralmente as peças, distribuía os papéis, ensaiava os actores (ao menos, esclarecendo o papel de cada um) e, depois de cair o pano, despidos os actores da respectiva farpeia e p o n d o a caracterização de lado, avaliava os méritos ou desméritos de cada u m , n u m a espécie de p e q u e n o Juízo Final. Vamos assistir precisamente a t u d o isto e m El Gran Teatro dei Mundo. Só que a peça consiste na vida h u m a n a e cada h o m e m , sem n e n h u m ensaio mas c o m algumas n o r m a s e conselhos, faz de actor, n o palco breve entre o b e r ç o e o t ú m u l o :

Vinde, mortais, do R e i n o dos Possíveis, caracterize-se cada u m e vista-se c o n f o r m e a figura que o Divino D r a m a t u r g o lhe destinou, para representar o seu papel n o Grande T e a t r o d o M u n d o !

Preparam-se os h o m e n s para entrar na existência e Deus vai repartir os papéis a desempenhar. L o g o d u m a vez, entram sete personagens: o rico, o pobre, o rei, D o n a Formosura, o lavrador (ou melhor, o camponês), D o n a Discrição (que é u m a religiosa) e o menino n a d o - m o r t o .

P o r trás deles, c o m o por trás d u m m o l d e o u arquétipo platónico, sentimos milhões de meninos, milhões de camponeses, longas dinastias de reis, massas de pessoas formosas o u discretas.

E n t r a m n o palco, mas fazemos de conta que ainda n ã o existem de todo. Pertencem ao R e i n o dos Possíveis, e m b o r a Deus os vá passar do não-ser ao ser real. Estão predestinados para a existência. C o m efeito, o rei declara que todos estão ainda informes e pede a Deus que os chame à vida:

Todos informes nos vemos, polvo somos de tus piés; sopla aqueste polvo, pues, para que representemos.

D o n a Formosura repete a mesma ideia de viverem ainda só n o pensamento de Deus. T a m b é m ela sabe que vai passar à existência e suplica os papéis para os respectivos actores:

Sólo en tu concepto estamos, ni animamos, ni vivimos, ni tocamos, ni sentimos, ni dei bien, ni el mal gozamos; pero si hacia el M u n d o vamos

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todos á representar, los papeies puedes dar, pues en aquesta ocasión n o tenemos elección para haberlos de tomar.

Encontramo-nos e m plena ontologia. Foram escolhidos para existir mas, por enquanto, não passam da Ideia de Deus, e m b o r a j á falem e ajam por motivos de o r d e m teatral. Solo en tu concepto estamos... T a m b é m o camponês pede que lhe dêem o seu papel e Deus, p o r seu lado, exige que cada qual aceite o que lhe derem. Isto ou aquilo, será t u d o representar, apesar de eles j u l g a r e m que é viver. O papel não t e m importância. Mas a maneira c o m o dele se desempenhem, isso, sim, terá importância e nela se apoiará a nova tabela de valores, a tabela autêntica. Claro que Deus t e m as suas razões para não consultar o actor acerca d o papel a representar:

AUTOR Ya sé que, si para ser el h o m b r e elección tuviera, ninguno el papel quisiera dei sentir y padecer; todos quisieran hacer el de mandar y regir, sin mirar, sin advertir, que en acto tan singular aquello es representar, aunque piense que es vivir.

Deus, o director da Companhia d o Grande Teatro do M u n d o , sabe muito b e m que, se fôssemos nós a escolher, quereríamos todos os grandes papéis — os de mandar. Coitados de nós! N ã o advertimos que viver é representar. Isto ou aquilo, tanto faz. Representar b e m . Papel breve, n u m palco breve, entre o berço e a sepultura, d o nascer ao morrer. C o m o dizia Campbell: «Man!, the pilgrim of a day / Spouse of the w o r m , and brother of the clay». U m dia de viagem é a vida para ele, esposo dos vermes e irmão d o lodo.

Quase sem transição, distribui Deus os papéis: Faze t u de rei. E tu, que és mulher, de formosura. E tu, de rico. E tu, de camponês. E tu, de pessoa discreta. E tu, de mendigo. E tu,, de menino nado-morto.

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Alguns deles alegram-se, até a criancinha, gostosa da fácil pequenez da representação. É u m papel que não custa a decorar, diz ela. O camponês e o m e n d i g o , esses resmungam. O primeiro pergunta ironicamente, acerca d o seu mester de cavador: — É ofício ou benefício? E Deus r e s p o n d e : — Um trabalhoso ofício.

Ah!, c o m o ele recusaria a obrigação de cavar a terra, se lhe valesse alguma coisa dizer «não quero»! B e m , representaria o papel de cavador. Devagar, p o r causa da canseira.

O m e n d i g o g e m e a sua desventura, mas curva-se diante de Deus. N o entanto, resmunga: — P o r q u e havia de ser eu o p o b r e da comédia? Para m i m , é u m a tragédia. O rei não passa d u m h o m e m igual a m i m . E n o entanto, que papel diferente o dele!

Deus torna sempre à mesma ideia: — N a representação, tanto faz ser rei c o m o p o b r e de pedir. Desempenha-te b e m n o papel e serás c o m o ele. O u talvez maior, se m e l h o r te saíres da representação, que é a vida h u m a n a :

Q u e toda la vida humana representaciones es. Y la comedia acabada ha de cenàr á m i lado el que haya representado, sin haber errado en nada: su parte más acertada, allí igualaré á los dos.

Estamos perante o nivelamento igualitário da Dança Macabra, onde ecoa o espírito d o Juízo Final, pois e m Deus n ã o há accepção de pessoas, n e m ele olha a classes sociais ou a privilégios.

C o m o j á dissemos, comédia, n o t e m p o de Calderon de la Barca, não implica a significação actual de coisa para rir. Algumas dessas comédias publicam-se agora à parte, c o n f o r m e a classificação moderna. Entre os dramas de Calderon, coleccionados p o r Astrana Marin, lá v e m El Príncipe Constante, cuja figura central é o Infante Santo. E n o entanto, Calderon de la Barca chama-lhe comédia.

. T o r n a n d o à filosofia ética de El Gran Teatro dei Mundo, qual é a n o r m a suprema da recompensa e d o castigo? Resume-se n o título que, e m rigor, t e m a peça a representar. C o m efeito, quando D o n a Formosura pergunta a Deus c o m o se chama a comédia, ele responde: Obrar bien, que Dios es Dios. Procedamos b e m e n ã o nos iludamos, p o r q u e ele é q u e m é!

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Assustam-se alguns dos actores e p e d e m para ensaiar p r i m e i r o . E aqui está a estranheza da situação. E n t r e o nascer e o m o r r e r , a vida é só u m a . N ã o há ensaio e t e m o s de acertar à primeira vez. G u i a m - n o s , p o r é m , os m a n d a m e n t o s da Lei de Deus, além disso somos livres para escolher entre o b e m e o m a l e D e u s ajuda-nos c o m a sua graça. P o r u m lado e sub specie aeternitatis, é u m teatro verdadeiro. P o r o u t r o lado, estamos diante d u m teatro-de-fazer-de-- c o n t a , q u a n d o nos atemos só a este m u n d o , s e m o l h a r m o s para a l é m d o t e m p o .

A o e n t r a r e m na vida, vem-lhes o M u n d o a o e n c o n t r o e dá a cada u m o q u e é preciso: A o rei, p ú r p u r a e u m a coroa. A D o n a F o r m o s u r a , u m r a m a l h e t e de flores. A o rico, jóias e riquezas. E à D o n a Discrição, u m cilício e umas disciplinas. O m e n i n o n a d o - m o r t o n ã o precisa de coisa n e n h u m a . O cavador recebe u m a enxada. O p o b r e terá u m â carga de sofrimentos, r e m e n d o s e f o m e . Q u e triste papel o seu! E o M u n d o responde: — Pois laTga esses andrajos. M e u s senhores, vai c o m e ç a r o espectáculo!

D e u s senta-se n u m t r o n o . E n o palco, à entrada, v e m o s u m berço; e à saída, u m caixão. Pintados, para servirem de s í m b o l o d o nascimento e da m o r t e .

C o m D o n a Formosura a o lado e t o c a n d o u m i n s t r u m e n t o , entra D o n a Discrição pela p o r t a d o berço, e n t o a n d o u m canto bíblico: Q u e o Sol e as estrelas l o u v e m ao Senhor!

Mas D o n a F o r m o s u r a prefere andar pelos c a m p o s floridos, e n q u a n t o D o n a Discrição, vestida de freira, antes q u e r viver na tranquilidade da clausura. D e u s criara a beleza d o m u n d o , é certo, mas ela, freira, n ã o sairia d o seu r e c o l h i m e n t o . D o n a F o r m o s u r a caminha agora sozinha e quer enfeites, para se apresentar mais bonita. E q u a n d o a Lei da Graça lhe diz, c a n t a n d o , Obrar bien, que

Dios es Dios, D o n a F o r m o s u r a , se o u v i u , n ã o prestou g r a n d e atenção.

Isto n ã o quer dizer q u e se p o r t e m a l . Vaidosa.

O rico n ã o dá esmolas, gasta dinheiro e m mulheres e n o c o m e r . E cultiva à g r a n d e os sete pecados mortais. O c a m p o n ê s ora segura a foice ora a enxada, o l h a n d o para o t e m p o , a v e r se c h o v e o u não. E tenciona v e n d e r b e m os f r u t o s da terra. H á nele certo f u n d o de justiça, a o m a n d a r trabalhar os vagabundos. Mas deixa-se levar pelo g a n h o sórdido. Ser ele só a vender, p o r três vezes mais!

E n t r a o p o b r e , d o r m e n o chão e p e d e paciência a Deus. N a d a t e m . Sabe, n o entanto, q u e basta proceder b e m para g a n h a r o C é u .

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— O Sol nunca se põe n o m e u vasto império!, exclma o rei. Então, que m e falta?

— O rei n e m sabe que há mendigos!, nota o pobre. O camponês t e m que baste para matar a f o m e . O rico t e m até de mais e m a n d a - m e bater a outra porta. D o n a Formosura cisma na sua beleza. Só D o n a Discrição (a freira) m e dá u m naco de pão. Q u e papel este, o de mendigo!

L Vai cair a freira, símbolo da vida religiosa. O rei segura-a.

(Evidentemente, o rei de Espanha, d u m m o d o especial!). Deus não intervém a favor d o pobre, n e m mete u m pouco de o r d e m n o palco. Isso pertence aos actores e eles responderão por tudo. N a aparência, t u d o segue c o m o se ele não existisse. E n o entanto, Deus é, na História, a personagem n . ° 1.

Perde-se o rei nos seus pensamentos: — T e n h o a meus pés a beleza e os ricos. Mas os povos tornam-se u m a hidra de muitas cabeças e custa a governar t u d o isto.

Curta lhe parece a vida, para t a n t o que fazer, e ouve-se a voz triste, a cantar dos lados do esquife:

R e y de ese caduco império, cese, cese tu ambición, que en el Teatro dei M u n d o yá tu papel se acabo.

A o rico, ao pobre, à freira, à D o n a Formosura e ao cavador, leva-os por igual a corrente irreversível d o t e m p o . Acabaram o papel, não p o d e m voltar ao berço e representar de novo. Todos os passos iam para o sepulcro, sem a grandeza ao menos d o cair teatral d o pano. Mas eles arrependem-se ao aproximar-se o dobre de finados, q u a n d o v ê e m que t ê m de entrar pela porta do ataúde. O rei morreu, os outros perturbam-se u m m o m e n t o , mas a vida segue e o rei esquece. D o n a Formosura até se consola c o m a m o r t e d o rei: — O m e u império é superior ao dele, pois o m e u reino são os corações dos homens!

Assim falou e eis que ressoa a voz desenganadora, a pôr e m t u d o u m p o n t o final: — A formosura h u m a n a , seja ela qual for, não passa d u m a flor que p o u c o dura e l o g o morre!

A maneira d o rei, D o n a Formosura sente-se descoroçoada: — Ah!, voltar à frescura de antigamente! P o r é m , brancas o u verme-lhas, desfolham-se as rosas e n e n h u m a volta a ser b o t ã o . Ser e

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não ser, nascer e morrer, quase se tocam ambos os extremos, tão pouco dura u m a flor. Ainda assim, eu, m o r r e r ? Impossível.

Mas admoesta-a implacavelmente a voz fatal: — Só a tua alma é eterna. O c o r p o m o r r e c o m o a flor.

D o n a Formosura não se apercebera a t e m p o desta verdade e desaparece pela porta da morte: — T e n h o pena de não ter repre-sentado m e l h o r o m e u papel, diz ela arrependida.

O rico aborrece-se da m o r t e da m u l h e r bonita. O cavador, porém, não liga nada à morte de D o n a Formosura, contanto que lhe sobre pão, vinho, carne e u m leitão pela festa da Páscoa. E graças a Deus!

E a voz da M o r t e canta: — Cavador, terminaram os trabalhos. — Ora esta! E não posso apelar para n e n h u m tribunal ? D e i x e m - m e ao menos tratar da vinha. Lá vai engolir-me o sepulcro!

Terá ele pena de não desempenhar m e l h o r o papel de cavador? Ao menos dói-se «de n o tener gran dolor». E n f i m , m o r r e u b e m , o cavador. Fez o m í n i m o d u m acto de contrição. O p o b r e e a freira sentem saudades d o camponês. Coitado! Desta vez, o rico está acordado, talvez por verificar a aproximação do fim. Q u e é a vida, senão u m a flor que nasce ao r o m p e r d'alva e fenece ao sol-pôr?

Chegam-nos aos ouvidos os dois versos famosos de Malherbe: «Rose, elle a vécu ce que vivent les roses, / L'espace d ' u n matin».

Aliás, a b u n d a m na Bíblia pensamentos assim. O rico, p o r é m , tira deles u m a conclusão pagã, de sabor horaciano: — Se a vida é tão breve, gozemola b e m . E comer e beber, que amanhã m o r r e -remos.

Chega a vez do p o b r e e ecoam, nas suas falas, os lamentos de Job: — Senhor, pereça o dia e m que nasci e a noite fria e m que m e conceberam para tanto sofrer. N ã o a alumie a luz d o Sol. Dia sem aurora, noite sem luar e sem estrelas. Queixei-me, Senhor, não poi desespero, mas sim por ter nascido e m pecado.

O r a , é precisamente o p o b r e q u e m eleva mais alto a sua sabedoria. E a M o r t e chama pelo rico. Só o p o b r e não se aflige de deixar o T e a t r o d o M u n d o . Q u e t e m ele a perder?

Sozinha, fica D o n a Discrição. O u a freira. T e m e r a voz da sepultura? Mas ela sepultara-se e m vida! E anuncia o fim da comédia d o Grande Teatro d o M u n d o . Vamos assistir agora ao Juízo Final dos actores da Grande C o m p a n h i a H u m a n a . Fecha-se,

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pois, o g l o b o da Terra, onde se desenrolava a acção, e Deus vai dar o p r é m i o o u castigo, c o n f o r m e cada u m representou.

E m rigor, não poderíamos assistir a este acto final. Por conve-niências teatrais, passa-se t u d o à vista do público (e não p o r trás do palco), ordenando logo o M u n d o que todos p o n h a m de lado os vestidos e as insígnias do respectivo papel. Curta foi a c o m é -dia da vida, n o t a o M u n d o . U m a entrada, u m a saída — e breve t e m p o entre u m a e outra. Dispam-se todos e sejam o que são de verdade! O rei que largue o cetro, a coroa, a púrpura e a glória. Largar e esquecer, esquecer e sair n u da farsa da vida. T u d o fora de empréstimo — e ali estava o p o b r e rei, igual a toda a gente. E c o m o e m Fernando Pessoa, custa a alguns largar a máscara da representação, digamos assim:

Q u a n d o quis tirar a máscara, Estava pegada à cara.

Q u a n d o a tirei e m e vi ao espelho, Já estava envelhecido.

Talvez o rei se sentisse envelhecido. Ainda pior, morrera e, agora, ao pé do cavador e do pobre, não passava d u m h o m e m qualquer, sem a solene farpeia real. Ia dar contas n o tribunal de Deus, autor da comédia da vida. N a d a importava a antiga situação social. Fazer de imperador, fazer de rei, fazer de p o b r e neste m u n d o , t u d o isto pertence a u m a realidade feita de aparências.

T a m b é m neste caso, a vida é sonho. O rei julgava que era rei. P o r é m , só representava de rei. A m o r t e despojou-o de t u d o o que pertencia a este m u n d o . Empréstimo e não propriedade. Breve é a comédia, nota Calderon de la Barca, c o m o breve é a vida-represen-tação. N o ç ã o do t e m p o a deslizar para além-tempo. A desfazer-se e m nada, afora o b e m e o mal, de que devemos dar contas e m tribunal severo. E tal desfazer-se e m sombra exige, psicologicamente, u m substrato de ser, a fim de não acabar tudo, quando se esvaírem as aparências ilusórias.

E m certo m o d o , platonismo. Sombras todos somos. C o m o sombras passamos. E e m sombras inconsistentes se desfará este universo que tão real se nos afigura. O rei? O papel não t e m importância. Para Deus, bitola de toda a verdade verdadeira, se nos p e r m i t e m a expressão, rei, mendigo, senhora, camponês, t u d o é u m . Desde que representem c o m o devem. E aqui, representar é ser-no-- t e m p o . Está nisto a essência comedial da nossa existência terrestre..

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Repetimos que o b e m representar é tudo. O papel não t e m importância, pois, e m acabando a representação, todos entram desnudos n o o u t r o m u n d o . E se o m e n d i g o representar m e l h o r do que o rei, m e l h o r recompensa terá. E se igualmente, igual será o prémio.

E m resumo, a essência da vida mundanal equivale à essência do t e m p o , aparência que é e não é, u m passar e u m ser provisório. N ã o devemos procurar a autenticidade da coisa representada, p o r q u e não existe n o sentido p r o f u n d o da palavra e limita-se a u m a provisória representação. Fazer de rei o u de mendigo, tanto faz, porque e m breve não seremos u m a coisa n e m outra.

Diferença entre o teatro e a vida? Mais quantitativa do que qualitativa. N o teatro, a representação dura somente algumas horas. N a vida, a peça vai do berço ao túmulo, identifica-se c o m o estar n o m u n d o . E, nalguns papéis, torna-se bastante duro. T a n t o mais duro quanto o representar d o p o b r e equivale a sê-lo até à morte. Misteriosa comédia, a vida. Sem ensaios e a exigir atenção, até (e sobretudo) na saída pela porta da morte.

Dona Formosura declara que a sua beleza d u r o u b e m pouco e o M u n d o ordena-lhe: — Olha para o espelho! E ela: — J á vi. A sepultura comeu tudo. Das boas cores, dos jasmins, das afeições e dos grandes desejos, n e m sombra!

— E tu, cavador, para que te agarras a essa enxada que te dei?, pergunta o M u n d o . — O quê? N e m m e deixas u m a enxada? — Larga. E tu, rico, larga as jóias (e tira-lhas à força).

O pobre, esse exclama alegremente: — M u n d o , não m e custa nada partir daqui! — E tu, menino-por-nascer, pergunta o M u n d o , c o m o é que não apareceste na comédia? — E que logo m o r r i n u m sepulcro, o ventre da minha mãe. O c o r p o lá ficou.

— E tu, D o n a Discrição, deixa aqui a obediência, as disciplinas e a abstinência. Leva contigo as boas obras.

Estamos e m pleno Apocalipse: «E ouvi u m a voz do Céu que dizia. Escreve: Bem-aventurados os mortos que m o r r e m n o Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem agora dos seus trabalhos, porque as suas obras os seguem» (14,13).

Nasce a nova hierarquia espiritual, e m que o rico gozador fica abaixo do camponês. E quando o rei e os outros t e i m a m e m seguir à frente do p o b r e e d o cavador, responde o p o b r e que a representação j á acabara. E a freira comenta: — Afinal, envolve-nos a todos u m a mortalha igual.

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O r a b e m , é o pobre, à frente d o certejo, q u e m fala primeiro a Deus, autor da curta comédia da vida. Ali estavam eles, para t o m a r parte n o banquete celestial .

Toca a música, corre-se a cortina e, n o Globo Celeste, ergue-se u m a mesa c o m u m cálice e u m a hóstia. N o seu trono, Deus. Vai dar-se o p r é m i o a cada u m . O p o b r e e a freira entram facil-mente. Bem-aventurados os que sofrem. Bem-aventurados os que c h o r a m de dor pelos seus pecados e pelos pecados do m u n d o . D o n a Formosura, o cavador e o rei pediram perdão a t e m p o e m o r r e r a m contritos. Ainda assim, f o r a m parar ao Purgatório. N ã o recusara o cavador esmola a u m m e n d i g o ? C o m boa intenção? Sim, u m pouco. Via vagabundos e m toda a parte. Pois que esperasse.

A freira (ou D o n a Discrição) lembra-se de o rei a ter amparado. E Deus, o director da Grande C o m p a n h i a d o M u n d o , responde:

— B e m , corra depressa o tempo!

Entretanto, o cavador, utilitário e positivo, pede bulas e mais bulas e m favor dos defuntos, para sair depressa «desta cárcel tene-brosa».

O m e n i n o n a d o - m o r t o espanta-se mais d o que ninguém: — Eu n ã o errei a representar. P o r q u e fico eu sem p r é m i o ? — N e m prémio, n e m castigo.

R e v o l t a m o - n o s a favor da criança de triste destino: «Ahora noche medrosa, / c o m o en un sueno m e tiene, / ciego, sin pena, ni gloria».

H o j e e m dia, há teólogos a rever o problema destas crian-cinhas — e para eles talvez se inclinasse Calderon de la Barca, se agora vivesse. Seja c o m o for, só o rico vai para o Inferno. Por ser rico? N ã o . P o r ser egoísta e cruel. Para os outros, curto foi o Purgatório. Ouve-se o T e - D e u m r u m o r o s o e solene, toca a música e o M u n d o pede a benevolência d o público.

N ã o há dúvida. Calderon de la Barca criou u m a teologia dramá-tica de ideias e teses existencialistas e religiosas, traduzindo em símbolos a filosofia da vida e a teologia do destino h u m a n o , t u d o isto ao alcance das massas d o seu t e m p o . C o m o nota F.° R u i z R a m ó n , na esteira de Micheline S a u v a g e8, as personagens

simbó-licas de Calderon de la Barca são forças que a n i m a m a grande e dolorosa aventura da Criação. A dialéctica fez-se teatro e a articulação

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das ideias transformou-se e m j o g o cénico, sobretudo nos autos sacramentais: «El auto sacramental capta el j u e g o (la aventura de los hombres) en su fuente ontológica, fuera de la Historia, en su intemporal desnudez... Calderon n o pinta ni cuenta, p o n e en escena los papeies dei Gran J u e g o »9. E assim, o auto sacramental

calde-roniano desnuda as personagens das suas máscaras, quer dizer do simples acidental, para nos revelar o que nessas personagens há de essencial.

C o n t u d o , Calderon de la Barca não é só isto e gostaríamos de escrever duas ou três páginas avaras sobre El Alcalde de Zamalea, o u recordar aos leitores o riso macabro de La Bojiganga de la Muerte10. Mas, «representaciones / es aquesta vida toda», diz ele

n o final de El Gran Teatro dei Mundo. P o r isso, façamos de conta que teatro é t a m b é m esta comunicação — e deixemos cair o

p a n o1 1.

M Á R I O M A R T I N S

9 FRANCISCO R U I Z R A M Ó N , Historia dei Teatro Espanol ( M a d r i d , 1 9 6 7 ) p . 3 7 8 .

1 0 MÁRIO MARTINS, Introdução Histórica à Vidência do Tempo e da Morte, t. 2 (Braga, 1969)

pp. 87-94.

11 Se tivéssemos de dedicar estas páginas, h a v í a m o s de as oferecer a D . Francisco de Portugal, Marquês de Valença, que e m 1739 p u b l i c o u e m Lisboa o seu Discurso apologético

em defensa do theatro hespanhol, encarnado sobretudo e m Calderon. E t u d o isto, sem desautorizar

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