VIDA E RACIONALIDADE ARGUMENTATIVA
NA
MOTIVAgÃO JUDICIÁRIA
DISSERTAQÃO
DE DOUTORAMENTO EMCIÊNCIAS
DACOMUNICAQÃO
Orientadorde
itwestigacão:
Professor Tito Cardoso e CunhaLISBOA -2000
AGRADECIMENTOS
Para a realizacão deste trabalho
pude
contar com oapoio
de pessoas einstituicôes ås quais devo e
desejo
expressarpública
e sinceragratidão.
Refiro, em
primeiro lugar,
o senhor Professor Tito Cardoso e Cunha,orientador desta
investigacão
que. com saber eexperiência,
meproporcionou
emdiálogo
aberto efraterno,
umaapreciagão
sempre crítica e precisa e,sobrepassando
tudoisso,
umacompreensão
profunda
da natureza e valordaquilo
que, no curso normal doaprofundamento
deste trabalho. haveríamos deeleger
como o seuobjecto
central. adignidade
e valor da pessoa humana.Em
segundo
lugar
endereco o meu reconhecimento ao SenhorProfessor Antônio Castanheira Neves, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra,
a quemagradeco
profundamente
adisponibilidade
que teve em me receber, o
diálogo inesquecível
que meproporcionou,
onde oganho
do seu testemunho vivo epresencial
não foi menor do que a nqueza dodiálogo
quepude depois
manter com a sua vasta obra.Agradeco
também ao meu amigo PauloAlbuquerque,
Juiz de Direito eMestre em Ciências
Jurídicas,
o contributo de muitos momentos fecundos dedebate, onde
pude
colher indicacôes e testemunhosprecisos
de quem exerce e sente aproblemática
realizacão do direito e, nesse contexto, é chamado adecidir. Em
particular
Iheagradeco
o ter-sedignado
rever ocapítulo
sobre aEpistemologia
da Decisão.A todos os
colegas,
e foram muitos, que noDepartamento
de Ciênciasda Comunicacão. me deram um incentivo caloroso e fraterno e indicacôes que
foram
preciosas,
deixo, naimpraticabilidade
de a todos nomear. o meuprofundo
reconhecimento por me teremprodigalizado
a semente da amizade.Oxalá eu possa constituir para ela a boa terra.
Agradeco
também ao Sr. Procurador GeralAdjunto, junto
doSupremo
Tribunal da Justica, Dr. Laborinho Lúcio que, no tempo em que "estava
ministro" da Justica, reconheceu a
pertinência
de umaproposta
dedoutoramento embrionána e, sem reserva, me concedeu a
uequiparagão
aabsolutamente essencial numa fase em que estava em
questão
odesbravamento do
objecto
empírico
deste trabalho-os acordãos do
Supremo
Tribunal de Justica relacionados com a vida ou com a incolumidade física.
Ao senhor
professor
Leonel Ribeiro dos Santos, doDepartamento
deFilosofia da Faculdade de Letras de Lisboa.
agradego
o ter-me convidado acolaborar com um
artigo.
na edicãoespecial
sobre "Direitos Humanos" darevista
Philosophica
n.° 12, o que muito me estimulou,quando
me preparavapara escrever o
Capitulo
IV deste trabalho deinvestigagão.
Dedico este trabalho å Rosa
Mana;
ao André e âJoana,
pela partilha
detoda uma vida e, em
particular. pela
dádiva incondicional do afecto sem oqual
este trabalho não teria sobrevivido.
H. B
Vida
eRacionalidade
Argiimentativa
naMotivacão
Jadiciáría
ÍNDICE
INTRODUgÃO
4Capítulo
I - NATUREZA EFUN£ÃO
DAMOTIVAgÃO
JUDICIÁRIA
141.1. Génese da
motivagão.
1. 2.
Motivagão
eontologia
dos motivos. 1. 3. Motivacão eargumentagão.
Capítulo
II-DISCURSIVIDADE
TÉCNICA
EMOTIVAgÃO
552.1 . Da natureza técnica da
motivagão judiciária.
2.2. Ilocutorio
jurídico
emotivagão.
2.3.
Interpretagão, argumentagão
numa estrutura de debate.2.4. Racionalidade
argumentativa
namotivagão
judiciária.
2.4.1. O dactumcomo
premissa
2.4.2. Do teor
lôgico
damotivagão.
Capítulo
III-A
QUESTÃO
ÉTIC
A N AMOTTVAgÃO
1043.1. A vida como
valor,
noquadro
dasgrandes concepgôes
do Direito.3.2. 0 Direito como ordem ético-normativa.
3.3. A vidavalor
ético-jurídico
regulador
da conduta humana.Capítulo
IV- VIDA COMO PLENO VALOR DE PERSONALIDADEE DIREITOS DO HOMEM 164
4. 1. Pré-histôria dos direitos humanos.
4. 2. Direitos humanos e Modemidade.
4. 3.
Reconstrugão
dos direitos do homemsegundo
Hannah Arendt.4. 4. Como pensar a universalidade dos direitos do homem.
4. 5. A pessoa como
categoria
filosofica central dos direitos humanos.4. 5. 1 . A pessoa e as novas descobertas da ciência.
4. 5. 2. A pessoa humana e o "dever de
respeito".
4. 5. 3. A pessoa como fundamento da
responsabilidade
e dos direitoshumanos.
4. 5. 4. Vida, direitos humanos e
ontologia
dos motivos.Capítulo
V-EPISTEMOLOGIA DA
DECISÃO
2215. 1. Fundamentos para uma
epistemologia
da decisão: critérios de uma5.1.1.
Lugar
efungão
da decisão no processo de conhecimento.5. 1.2. Critérios de
credibilizagão
e dejustificagão
da decisão. 5.1.3. "Desacordo" e racionalidade de uma decisão colectiva.5. 2. A
responsabilidade política
dojuiz
namotivagão
(o
lugar
do"justo
juiz").
5. 3. Da tensão entre a teoria e a
experiência
âfungão
social dadecisão.
Capítulo
VI-PARA UMA
POĨÉSIS
DAJUSTigA
E DAVIDA,
PROLEGÔMENOS
A UMAESTÉTICA
DO DIREITO 2816.1.0 "ser da
poesia"
e a"habitagão
do homem".6. 2. Fundamentos
ontolôgicos
dojusto
e do útil e da suacondigão
de atributo unitário do real.6. 2. 1. Sentido grego de
poĩésis
a suasarticulagôes
com o"justo
e oútil".
6. 2. 2. Poĩésis e Modernidade
-o
"justo",
entre o "utilitarismo" e a"mitologia
romântica".6. 3. Direito e fundamento de uma nova ordem
arquitectônica
deregulagão.
Conciusão
-O
PORQUÊ
DE UMAPOĨÉSIS
DAJUSTI^A
E DA VIDA 365Introdugão
"Cumplida su tarea de justiciero, ahora era nadie.
Mejor dicho era el outro: no tenia destmo sobre la
herray había matadoa umhombre."(1)
0 sentido
primordial
dojudicativo
decidir,
como momento crucial darealizagão
doDireito,
noduplo
desígnio
de dar um fim a um conflito socialconcreto e no de promover, muito para além
dele,
arealizagão
de umacomunidade humana
pacífica,
onde a vida humana possaemergir
como valorético-jurídico
relevante,
encontram-sejá
presentes
na luminosidadeexemplar
do decidir
prudencial
que se nos oferece na narrativa bíblica dojulgamento
queilustra a "sabedoria de Salomão"
(2):
Duasprostitutas
que viviam na mesmacasa, mães de dois
recém-nascidos,
vão â presenga do reipedir
justiga,
reivindicando-se,
cadaquaí,
dacondigão
de mãe da únicacrianga
sobreviva doinsôlito acidente que vitimou uma delas.
Apôs
ter ouvido atentamente osdepoimentos
contraditorios daspartes,
Salomão manda que Ihetragam
umaespada
e, num retôrico eprocedimental
simulacro,
ordena que, comela,
cortem ao meio a
crianga
viva para dar dela metade a cada uma.A narrativa
chega
a seu termo, dando-nos conta de como, em presengada iminente
execugão
da ordem dorei,
nesse momento extremo, semanifestam,
inequívocos.
os índices que haveriam dedesignar
a verdadeiramãe. 0 narrador conta que uma das
mulheres,
"comovida nas suasentranhas", disse de
pronto
ao rei:"rogo-te,
meu senhor, que Ihe dês a ela omenino
vivo;
não o mateis". Terá sido então, naimediagão
mesma desse actoespontâneo
e deabdicagão
extrema, que a autoradaquelas palavras
realizara,
sem ter disso consciência, a prova decisiva da sua verdadeira
condigão
demãe.
0
quadro
em presengaconfigura, paradigmaticamente,
o momentoinstituinte de uma
qualquer
decisãojudicativa,
procedendo
apartir
daenunciagão
de uma voluntas que tem no fio daespada
o seu exercitivocomplemento
morte" â
incerteza,
no sentido do radical latino "caedo"(=matar),
presente
nosentido
etimolôgico
do"decideré',
onde oprefixo
"cte"significa
separagão.
A
espada
surge então comosigno
darealizagão
daJustiga
e a vidacomo
objecto
incindível,
noquadro
de umarealizagão
dajustiga
que, assim,se oferece como altemativa ã violência e, em
particular, ãquela
sua formaparoxística
a que chamamos"vinganga",
na medida em que, como no-lo ensinaRicoeur,
esta se afirma comopretensão
de realizar ajustiga
em casoprôprio.
Por esta razão, a
espada
que evoca ajustiga
na narrativabíblica,
no seusimbálico decidere, não
pode
encontrar nos dueloscavalheirescos,
desuposta
reposigão
da honraultrajada,
o seu correlatohistorico-cultural,
uma vez queneles o sentido de
justiga
tem ínsita a marca ancestral davinganga,
istoé,
odesejo
de realizar ajustiga pelas prôprias
mãos,
que a belacitagão
deBorges
em
epígrafe
tão sabiamente condensa:aquele
quevinga
uma morte matandoo
homicida,
toma-se"nada",
istoé,
o outro.Por
opgão
metodolôgica
nãoelegemos
as condutas dosagentes
doscrimes de homicídio, a inserir no campo
problemático
dapsicossociologia
e dacriminologia,
comoobjecto
da nossa reflexão.Elegemos,
sim,
comoquestão
prioritária
asuportar
a nossainquirigão,
o sentido que a vida humana obtém noquadro
darealizagão
do direito e o modo como aí se articula com toda umasíntese
axiologico-jurídica
que funda a validade do direito.Na economia deste nosso estudo. a metáfora da
espada
tem nocapítulo
V o seu correlativo
desenvolvimento,
sob o fio daepistemologia
dadecisão,
referida
já
a umquadro
delegalidade positiva,
onde se convocam critérios de uma decisão racional, mas onde também se nãodeseja
umajustiga
moldadapor uma racionalidade de estrita
apodicticidade.
Ali se dará a ver o modocomo, por uma
estratégia implicada
numparticular
"estilo" demotivagão
pretensamente "técnico,
neutral enecessitante",
se fará seccionar o vínculo depessoal compromisso
entre quemjulga
e quem éjulgado
e o não menosnecessário vínculo entre o
juiz
e a comunidadejurídica,
erodindo apossibilidade
de um efectivo contioio democrático, mesmo que fora "difuso", darealizagão
do direito.Tudo se passa como se, no
prolongamento
dobrago
que eticamenteexecuta a decisão, a
Justiga
tivesse de ser dada por umdispositivo
maquínico,
por
justificar
a nossa tese que vai no sentido de valorizar menos ascapitulagôes explícitas
dosjuizes,
se bem quereais,
em matéria de omissão das escolhas depolítica
dedireito,
do que ascapitulagôes implícitas,
aocorrerem de modo inconsciente e sem dolo mas a
cumprirem,
por issomesmo, de modo mais
eficaz,
uma intencionalidade sistémica que ostranscende e que parece relevar de uma retorica inconsciente que vemos
presente
na foucaultia ordem dada ao discurso e que, aocumprir-se
"par
uncertain nombre de
procédures qui
ont pour rôle d'enconjurer
lespouvoirs
et lesdangers,
d'en maîtriser l'évenementaléatoire,
d'enesquiver
lalourde,
laredoutable matérlalité"
(3),
está decidida a atravessar o discurso damotivagão
judiciária
e a neleperpetuar
uma ideia dejustiga
pretensamente neutral,
objectiva
e necessitante.Daí formularmos a nossa
suspeita
de que ainvocagão
do inconscientecomo
perigoso
fundoinsondável,
capaz de conspurcar a racionalidade clara eiluminada do
sujeito
transcendental,poder
bemrepresentar
um eficaz "artifícioretôrico"
(a
relevar do mau uso daretôrica)
que visaesconjurar
aperigosa
subjectividade
e o dado aleatôrio do discurso damotivagão
judiciária.
0 discurso que na narrativa bíblica
enquadra
a sábiadecisão,
outracoisa não faz do que fazer falar os factos por si mesmos, como se, na sua
manifestagão
mesma, ajustiga
não tivesse a necessidade de serjustificada.
De facto, de nenhum modo se insinua ou se
pressente
ali a necessidade dejustificar
as razôes que fundam a decisão tomada.Â
contraluz destaprecedente
eloquência
dos factos devem procurarcompreender-se
asprofundas
razôes quesubjazem
âs razôestécnicas,
invocadaspelo
Supremo
Tribunal deJustiga (S.T.J.),
parainterpretar
restritivamente os normativos queregulam
a suacompetência
de conhecer em matéria defacto,
como a seutempo
se verá.A
preclara
narrativa coloca-nos aindalonge
dascondigôes
histôrico-culturais que fizeram consagrar a
obrigagão
queimpende
sobre osjuizes
relativamente â
motivagão
das suas decisôes; maislonge
ainda nos situa,possivelmente,
quanto
â intencionalidadepela
qual hoje
tanto seenjeita
a vozincômoda e silenciosa dos factos.
Mas o que então se afirma
já,
inexorável,
é oprestígio
das sábiasalmotagarias
da Alemanhamedieval,
o correlativo elemento que farásurgir
uma forma demotivagão implícita
das decisôes dejustiga
como se mostrará nocap. I deste nosso trabalho. No
primeiro
como nosegundo
dos casos, oprestígio
dajustiga
realizada toma-se modelodisponível
para uma mimesis de umajustiga
realizanda. A Modemidade ao consagrar na Lei aimpositiva
obrigagão
de motivar as decisôes dejustiga,
fá-lo a coberto de umaintencionalidade e uma utilidade bem diversas
daqueloutras.
Dissoprocuraremos dar conta no cap. I em que
abragaremos
o tema da "natureza efungão
damotivagão
judiciária".
Como seu
prolongamento
natural teremos, nocapítulo
II,
umacomplexa
discursividade
técnica,
dealgum
modo resultante do facto de que nem sempre o direito e os factos "falam" com aeloquência
de uma cartesiana evidênciaempírica
ouracional,
o que não éajudado pela complexidade
entretecida poruma
legislagão
porventura
redundante econflitante,
a convocar também umacondicente
tramitagão processual, complexa
eburocrática,
pararealizagão
dodireito no
tempo presente.
Importa
dizer que oprôprio
conteúdo damotivagão
do S. T.J.,
não obstante sereportar
âpratica
de crimes contra a vida ou a factos que atentam contra a incolumidade física de pessoas, é por vezes estritamentetécnico-jurídico,
muito por"culpa"
das suas estritascompetências,
ocupando-se
asmais das vezes, com a
definigão
de institutosjurídicos
adjacentes
ao caso eque são
objecto
damotivagão
do recursointerposto junto daquele
Alto Tribunal.Dessa discursividade técnica
pretendemos
dar conta, através de umrecorte, tão exaustivo
quanto
nos forpossível,
dasespecificidades
do discursojudiciário
que tomámos comoobjecto
empírico
da nossa reflexão. Constituídopor sessenta acôrdãos do
Supremo
Tribunal deJustiga,
o seu conteúdoreporta-se,
directa ou indirectamente, âprática
de ilícitos que atentam contra avida ou contra a incolumidade física de pessoas humanas. No termo do
capítulo
II pensamospoder
assumir oconjunto
dos acôrdãos como um todosignificante,
capaz de identificar um "estilo"particular
demotivagão judiciária
aveicular uma intencionalidade
propria
que se denuncia.Importa
não esquecerque as decisôes
jurídicas
convocadas nestes acôrdãos são,naturalmente,
ocomportam
umjudicativo
decidir que é eieproprio
constituinte emrelagão
aosistema,
mesmoquando
nelas se atenta åsparticularidades
do caso emlitígio.
Bem
longe
estamos, nestesentido,
daquele
ancestral,empírico
eintuitivo decidir em
equidade
que acima nos foioferecido,
tão caro quefoi,
também,
ao clássico modopretoriano
decompletar
odireito,
a revelar-se entãonuma dimensão de extra-sistematicídade efectiva e a preocupar-se, "com uma
convencibilidade
conseguida
ao nível mais baixo daoportunidade
pontual
momentânea"(4).
Apesar
de todos ospersistentes
tropismos
face a umpositivismo
sistémico-legalista,
é ainda de extra-sistematicidade que notempo
presente
sefala,
emparticular
em DireitoCivil,
onde "aequidade
implica,
em últimaanálise,
um
prescindir
formal da Ciência doDireito,
aqual
sô actua ao nível depré-entendimento, e
pela
suacapacidade
insubstituível de preparar um caso paraa decisão". Assim
entendida,
a extra-sistematicidadepresente
no direitoactual,
não obstante se manifestar num decidir que
"prescinde
da autoridadeparticular
das
proposigôes juspositivas",
não deixa contudo derespeitar
"o sentidomaterial do
jurídico
[que,
todavia,
surge] despido
de tecnicismo e formalismosespúrios",
na fundamentadaopinião
de Menezes Cordeiro(5).
A vida humana que, no feliz acaso da narrativa
evocada,
se manifestacomo não cindida
pela
espada,
não deixa ainda de ser também ali enunciadacomo
potencialmente
cindível. E sê-lo-â por todo otempo,
da nossa histôriacomum, em que se há-de subverter a ordem dos factores ou dos fins que
legitimam
arealizagão
dodireito,
seja pela postulagão
de um Estado absoluto,seja pela
absolutizagão
de umapraxis
comunitária em que apessoa-humana
seja despojada
da sua lídimacondigão
de destinatária última do direito. O estudo iniciado nocapítulo
III e que nocapítulo
IV secompleta, pretende
darconta da
transformagão progressiva
dascondigôes
histôrico-culturais quehaveriam de
permitir
aconsagragão
da vida humana comopleno
direito depersonalidade
na Modernidade.Em
particular
se mostrará, na reflexão sobre agénese
econsagragão
dos direitos humanos, que o direito â vida se afirmará mais tarde como valor
ético-jurídico
limiar dorecíproco
e constitutivo reconhecimento do outro comopessoa. Sô a
partir
dadenegagão
de todas asadjudicagôes
histôrico-culturaistitularidade efectiva do direito â sua vida
biolôgica,
épossível
aceder,
a umoutro
nível,
å suacondigão
mesma depessoa-humana,
titular de direitos humanospositivos
e correlativasresponsabilidades.
Tomando a vida humana como um bios
primordial, condigão
do existirde cada novo
homem-sujeito,
vemo-la assumir-se como limiar hermenêutico mínimo dacompreensão
de toda arealizagão
do direito-enquanto
"irredutívelem que todos os homens se
equivalem" (6)
epressuposto
"dogma pratico
radicado na
propria
dignidade
dapessoa"
(7)
- onde se revelajá,
pela
mediagão
do reconhecimentointersubjectivo
do outro como pessoa, umacrescentado e comunitário valor
ético-jurídico
primordial,
tambémcondigão
depossibilidade
de todos os demais direitoscongregados pelo
dever derespeito
para com a
pessoa-humana.
Sob uma matriz de
responsabilidade
e dereconhecimento,
a pessoahumana surge, por um investimento comunitário de
sentido,
como destinatária última de toda arealizagão
do direito.Aliás,
será mesmo por se referir âpessoa constitutivamente
responsável,
que alegalidade positiva
adquire
também o fundamento
primeiro
da sua validade como direito. Firmar apessoa-humana como destinatária de toda a
realizagão
do direito,comporta
necessariamente a
denegagão
absoluta da intencionalidadepressuposta
pelo
utilitarismo
hedonista,
marcadopela
desafeigão pelos
outros, numapalavra,
adenegagão
radical de uma intencionalidade narcísica voltada para a merafruigão
de direitossubjectivos.
Mascomporta
também o desfazer de umamiragem
derefracgão
narcísicaprotagonizada pelo
utilitarismo funcionalistaestratégico
que, na suapretensa
completudo
(de princípios
sistematizados ehierarquizados
a fazeremprivilegiar
a ideia de uma totalidadeharmoniosa),
serevê na Eisthesis da sua
auto-contemplagão
estética,
a revelar-se embrionáriajá
no Direito romano mas a consumar-se, defacto,
no utilitarismoestatal-funcionalista de matiz
positivista
e no utilitarismosubjectivizante,
aparentemente
antinômicodaquele,
de merafruigão
de direitos semresponsabilidades.
Diremos que a sustentabilidade de uma sociedade de mera
fruigão
dedireitos
subjectivos,
sem as correlativasresponsabiiidades,
é um absurdo facilmentecomprovado pelo
argumento
apagôgico
de que sempre aí setodos os direitos e a outros coubesse apenas viver para
respondere,
no sentidoetimologico
deste termo(8),
pelo
compromisso
de realizar as necessidadesalheias,
uma vez que so há direitos materiaisquando
o seucumprimento puder
serexigido
aalguém
comcapacidade
para os realizar.Apagogico equívoco
que, noessencial,
caracteriza bem oauto-engano
do Senhor da mítica narrativa da
Fenomenologia
doEspfrito
deHegel,
com osresultados que se conhecem. Absurdo filiado também no mesmo
pecado
narcísico
protagonízado
por um Direito sem pessoas,compenetrado
naauto-produgão
estética de si mesmo como um todo harmonioso e coerente.So a
consideragão
dapessoa-humana,
como amanifestagão
mesma deum
interpessoal, recíproco
e comunitárioreconhecimento,
que a constitui nomesmo acto que funda a
prôpria
comunidade,
numa rede derelagôes
jurídicas
entretecida de direitos e de
deveres,
nospermite
esperar fundar uma novaordem
arquitectánica
deregulagão
em vista de um horizonte derealizagão
deuma
poĩésis
dajustiga
e da vida. Sôultrapassando
o homojuridicus
moderno-iluminista na suaabstracgão
genericista, pelo
reconhecimentointersubjectivo
do outro como
pessoa-humana,
nos parecepossível
fundar uma comunidadejurídica
que tenha naresponsabilidade
prôpria
oprincípio
quegarante
aosoutros a titularidade de direitos humanos fundamentais e, na
responsabilidade
dos outros, a
garantia
dafruigão
dos seusprôprios
direitos.No sexto e último
capítulo
deste trabalho procuramosdenegar
aperspectiva
holista de um sistema harmonioso e coerente que vive para siproprio,
inquirindo
para além e através dosconstrangimentos impostos pela
"actual
situagão
problemática
darealizagão
dodireito",
de que fala CastanheiraNeves
(9),
ascondigôes
depossibilidade
de um habitar humano sobre a terraque se
exprima
por umajustiga
maisprofunda
e solidária. Tantopassará,
necessariamente
pela superagão
dosutilitarismos,
de âmbito mais ou menosregional,
epela
consecugão
de uma utilidade queseja
expressão
darealizagão
plena
dapessoa-humana.
Se tem razão Machado, no seu verso "Caminante no
hay
camino, sehace camino al andar"
(10),
então teremosdescoberto,
"a/andar",
que todo olabor de
reconstrugão
critico-reflexiva do direito, em ordem ârealizagão
deuma
poĩésis
dajustiga
e da vida e de uma nova elegítima
estética do direito, nos terá de encaminhar até ao decisivo momento doproblemático
decidirjudicativo,
amanjedoura
da universalmanifestagão
da nossahumanidade,
onde o direito tem o seu
privilegiado
momento derealizagão,
mas ondepode
também ser efectivamenteexercida,
consciente e reflexivamente, uma novaintencionalidade que assuma a
realizagão
do direito comofungão
dasuperior
realizagão
da pessoa humana.A este limiar de
compreensão
nos há-de levar,particularmente,
a luzdas reflexôes de Perelman, Hannah
Arendt,
Ricoeur, Castanheira Neves eFernando Bronze. Com eles se desvanece o
"empertigo"
do homemplenamente
racional e autônomo daideologia
liberal,
na sua auto-suficiênciaenganadora
de quem pensadispensável
a eticidade comopré-condigão
de ser um "bom cidadão" e odialôgico
erecíproco
reconhecimento,
nos direitos e naresponsabilidade.
Talvez que no horizonte da "medida diametral" de que falaHôlderlin, a que haveremos de recorrer para realizar o
pleno
habitar do homemsobre a terra, não
esteja
já
o homojuridicus
modemo-iluminista,
nem mesmo ohomo oeconomicus convocado
pelo
Rawls daTheory
ofJustice,
oupelo
Marxdo Das
kapital,
mas talvez sim o "homem rico" de que falava ojovem
Marx,
ohomem na posse de todos os seus sentidos e não apenas obcecado
pelo
sentido do ter. Tanto
comporta
umaprofunda revolugão já
ao nível dos factoresexôgenos
ao direito, istoé,
daalteragão
doproprio quadro
da racionalidade emque nos movemos, e no
plano
interno aoprôprio
direito,
aalteragão
dosfactores
endôgenos
da sua actual crise.Teremos de acreditar que a
alteragão
dos factoresexôgenos,
relativos â racionalidadedominante,
poderá
ser induzida a breve trecho por uma tomadade consciência que
compromete
cada um de nôs com asprofundas
injustigas
edegradantes condigôes
que tornamhoje
descartáveis sectores cada vez maisamplos
dapopulagão
mundial, acentuando numa espessura de sentido uma"fome e sede de
justiga"
semprecedentes.
Num espagopúblico
cada vez maisdependente
dopapel
mediador dacomunicagão
social de massas, doponto
de vista funcional e normativo, atransformagão
dos sobreditos factoresexôgenos
convoca necessária e
urgentemente
osprofissionais
dacomunicagão
e dopúblico
emgeral
para umarelagão
decompromisso
com osprincípios
contidosna Deciaracão da UNESCO sobre os Media, de 1993.
Ao direito caberá,
pelo
seu lado, constituir-se como altemativa credível âendogenos
motivos da sua crise interna. Emparticular
seperfila
comoimediatamente
possível
o exercício crítico reflexivo dojudicativo
decidir,
para através dele exercer apedagogia
do reconhecimento que se espera de uma"finalidade
longa
da decisão".Por se tratar de um trabalho elaborado no âmbito das Ciências da
Comunicagão,
preocupamo-nosaqui,
sobretudo, com o fazer a ponte entre asrazôes enunciadas nos textos dos acôrdãos e a
praxis
real da nossapartilha
comunitária de
discurso, tentando,
por estavia, prestar
o nosso melhorcontributo para a
alteragão
doquadro
de racionalidadeutilitarista,
legitimada
pelos
progressos técnico científicos emproveito
de um concentracionismo deriqueza
semprecedentes
que é factor demarginalizagão
e deempobrecimento
inversos de grupos humanos situados na
periferia.
Antes que nos tornemos de todo insensíveis ao muito que "vemos,
ouvimos e
lemos",
importa
agir
pelo
melhor meio. E este não nos parece deverser outro que o da
alteragão
dosquadros
formais em que tomou assento oactual estado de coisas.
Notas
biográficas
(1)
-J. L.
Borges,
Artifícios,
"Elfin", cit.,
p. 72.(2)
-Livro dos Reis, 1.g RS 3
-§
16.(3)
-Michel
Foucault,
L'ordre dudiscours, cit.,
pp. 10-11.(4)
-Menezes
Cordeiro,
A. Manuel daRocha,
Da boa fé em DireitoCivil,
cit., p.1207.
(5)
-Menezes
Cordeiro,
op. cit., p. 1205.(6)
-Art. Kaufmann,
Gerechtigkeit
-der vergessene
Weg
zum Frieden, p. 25,citado por Femando
Bronze,
Metodonomologia
daSemelhanga
e daDiferenga,
p. 288.(7)
- M.Criele,
Recht undpraktische
Vemunft,
p. 65, citado por Fernando(8)
-cf. A. Castanheira
Neves,
"Pessoa,
Direito eResponsabilidade",
cit.,
p. 10.(9)
- A.Castanheira
Neves,
Metodologia
Jurídica, cit.,
p.15.
(10)
I
-Natureza e
fungão
da motivacãojudiciária
1. 1 .
-Génese da
motivagão
Falar de
"génese"
damotivagão
judiciária
significa,
antes demais,
pensar nas
condigôes
historico-sociais queconsequenciaram
osurgimento
nalei deste instituto auto e
hetero-regulador
daaplicagão
do direito. Um breveexcurso
diacronico,
que nos faráaportar
â baixa Idade Média(1),
melhor nosfará
compreender
e ilustrar o modus constitutivo daexperiência jurídica
damotivagão
que apenas serávigente,
séculos maistarde,
no solo de umarequerida
coexistência dapositivagão
do direito com areorganizagão política
do
territôrio,
em Estados com umpoder
central forte e com direito codificado. Situamo-nos na baixa IdadeMédia,
finais do ano800,
numtempo
emque, como diz Menezes Cordeiro na sua obra Da Boa Fé no Direito
Civií,
no fiode
pensamento
de Koschaker que o autorinvoca,
nasciaincipiente
uma ideia deEuropa
sob a influênciaconjunta
daIgreja
e doImpério
Romano-Germânico. Ter-se-ãodado,
então,
alteragôes profundas "que
prenunciaram
aevolugão
concretizada nos séculossubsequentes"
dessa mesma ideia deEuropa (2).
Estamos em presenga de uma sociedadeorganizada,
nas suasestruturas
politico-sociais,
emfungão
do modo deprodugão
feudal e arevelar,
em termosaxiologicos,
uma forte influência dos valores do cristianismo que,segundo
os citados autores, tanto tinham derevolucionário,
na sua abertura â universalidade(como
adiante severá,
no que conceme ao fundamento do valor universal da pessoahumana),
como tinham de conservador, nocontributo que davam â
manutengão
da ordem existente.A
experiência jurídica
dessetempo,
emparticular
naAlemanha,
investiao suserano da
condigão
deaplicador
dodireito,
leia-se o costume. 0conde,
ouo seu substituto,
presidia
ao conselho dos almotacéis eaplicava
o direito(entenda-se,
ocostume)
rodeadopelo colégio
dos homens bons. Pressente-se aí umarelagão
não mediada, por autoridades einstituigôes jurídico-judiciárias,
entre o direito e a vida da comunidade. De sorte que, sendo o costume e a
vontade do suserano as "fontes imediatas" do direito, no sentido que a esta
desinência confere o
professor
Castro Mendes(3),
de um direitoaplicando
senhorfeudal
(Hofgerich,
nalíngua
alemã)
entre nosdesignado pelo
nome de"Almotagaria".
Nestas
circunstâncias,
não encontramos na baixa IdadeMédia,
emparticular
antes do séculoXII,
uma ideia unitária de direito e, menos ainda, ade um
princípio
embrionário demotivagão judiciária.
Fora
daquele
universo condal deaplicagão
dalei,
basicamente constituídopelo
costume epela
vontade do suserano, surgem na Alemanha osprimeiros tragos
deuniformizagão
do direito:primeiro,
nalegislagão
relativa aodireito
provincial
emunicipal,
onde se fez sentir a fonteinspiradora
do Direitolombardo;
depois,
já
pelo
ano de1235,
secundando osesforgos
decompilagão
iniciadospela
ciênciajurídica
italianajá
no séculoprecedente,
com oaparecimento
doprimeiro grande
tratado de Direito feudal emlíngua
alemã(4).
Entretanto. nos domínios onde
imperava
estaespécie
dejustiga
rural,
paradigma
primeiro
deste modelo deorganizagão judiciária,
astransformagôes
sôcio-econômicas
operadas
farãosurgir
umabuligosa
classe socio-economica(a burguesia)
a requerer orápido surgimento
dealmotagarias
urbanas, aptas
adirimir conflitos de novo
tipo.
Algumas almotagarias,
na Alemanhadesignadas
pelo
termo"oberhof',
comegam a gozar de
grande prestígio,
pelo
que a elas comegam a recorrer asalmotagarias
vizinhas, solicitandojurisprudência
pararesolugão
dos seuscasos mais
complexos.
Tanto levou a que se fosse instituindo o uso e,depois,
o costume de a elas recorrer como tribunal de recurso, com a
consequente
necessidade de se dar
alguma
sistematicidade e assento escrito ao que antesera pura
imediagão
eoralidade,
fazendo constar no processo aindicagão
dosfactos e dos motivos invocados
pelo juiz,
bem como das razôes queintegram
apretensão
daspartes
e asolugão produzida
naalmotagaria
"recorrida".Deste modo, com a
progressiva hierarquizagão
dasalmotagarias
surge,pela primeira
vez, oprocedimento
do recursojudicial
e, com ele, uma forma demotivagão
comummente referida como uma forma demotivagão implícita.
Na sua intrínseca natureza, esta modalidade
incipiente
demotivagão,
sUrgú como um
pæ-moderno
"efeitodispositivo1'
de controlo dos actosjudicativos.
Um tal cuidado, que se assume face a uma eventualidade derecurso para
almotagaria
de maiorprestígio,
nãopode
deixar de ter efectivosas
almotagarias
de menor dimensão.Implícita,
estamotivagão
dassentengas,
oferece-se-nos como umsingular
caso de institutojurídico
cuja
vigência
antecipa
a suapositivagão
legal,
queenquanto
usus inicia, neste tempo da baixa medievalidade, agesta
que o há-de fazeraportar,
na forma de leipositiva,
ao direito moderno-iluminista.A par deste modelo, dominante na Alemanha, surge
progressivamente
em outropontos
do continente europeu, um outro modelo deorganizagão
judiciária
sob a influência das chamadas "formas de direito culto". Aoprestígio
das
"oberhof,
virácorresponder,
nestemodelo,
oprestígio
dassistematizagôes
de máximasjurisprudenciais
de índole racionalista, precursoras daconcepgão
de um "direito natural"universal,
herdadas do direitoromano. De entre as
sistematizagôes
aparecidas
nestetempo
depré-recepgão
do direito romano, é
justo
destacar oCorpus
iuris civilis de Justiniano e asdiversas Ordines iudiciarii, tomadas ius de referência
obrigatôria.
Sob adesignagão
de "direitoculto",
ou apenas de "direitoromano",
elas vãoalargando, pela aprendizagem,
a sua influência a todo o continente europeu.Esta influência do direito romano no continente europeu
completar-se-â,
decisivamente e com toda a
energia,
no movimento deprofunda
transformagão
cultural induzidapelo
renascimento humanista o século XIV.Ao
impulso
humanista dorenascimento,
respondeu
o direito com a suacientifizagão
ehumanizagão
aexprimir-se
já
napretensão
de substituir å irracionalidade, aomisticismo,
empirismo
e á puraintuigão
dosprocedimentos
associados âprodugão
da prova apesquisa
e o estudoracionais,
já
norealgar
"do
jurídico,
os aspectosligados
â pessoa e asrelagôes
por ela ocasionadas". Neste sentido a"recepgão"
do direito romano, e apositivagão
do direito queconvoca, teve o mérito de fazer introduzir a
ruptura
com a irracionalidade deprocessos que a alta Idade Média levara ao seu
paroxismo,
indo além dasOrdálias,
já proibidas pelo
Concílio de Latrão em 1215, dojuízo
deDeus,
dasjustas,
dajustiga privada,
do costume e do arbítrio(5).
Percorrendo caminhos desencontrados, em
particular
nopressuposto
fundamento
axiolôgico
que os motiva como , oimpulso
humanista do direito doséculo XIV retoma de facto o fio de uma intencionalidade humanista e
universalista
já
expressa na "Carta de S. Paulo aos Gálatas". De facto, oacolhido intra academicos da escolástica e, sob o
magistério
preclaro
evigoroso
de S. Tomás deAquino, ganhara
corpo na doutrina de um "direitonatural"
qualitativamente
mais elevada no seu fundamentoaxiolôgico
e no seupressuposto
humanismo,
já
que revolucionariamente percursor de umaarquitectônica
de direito queelege
o "dever derespeito
para com a pessoahumana" como sua
pedra
angular.
Â
dilucidagão
daquela
ideia daremos mais fundamentado alcance natemática dos direitos humanos a que nos
reportaremos
no cap. IV.Importa
entretanto
postular
que muito diferentedesta,
esbogada
intencionalidadejusnaturalista
deinspiragão
cristã, foiaquela
outra quepresidiu
åcodificagão
epromulgagão
do direitocanônico,
formalmenteinspirado
no direito romano, por serjá
de índole mais conservadora quetransformadora,
maistemporal
que divina e mais institucional que universalista.A
integragão
do direito romano, como formaprestigiada
de direitoculto,
é coetânea do fenômeno histôrico de
reunificagão política
territôrio em reinos estáveis e,logo
aí,
o direito canônico fará a suaaparigão,
comosobrecôdigo
uniformizador e
legitimador
do direito dos reinos do continente europeu, querinsinuando-se
pelo
ensino, querimpondo-se
comoregulativo
desobreposta
eefectiva
vigência.
Osjulgamentos
de Deus e asOrdálias,
interditos em 1215 por decisão do Concílio deLatrão,
são apenas ailustragão
mais remota deuma intrusão que,
aliás,
sereforga
com aconsolidagão
dopoder
central daIgreja,
por volta do séculoXIV,
e com o crescendo de influência dos tribunais eclesiásticos. Já em estudo anterior fizemos alusão a estestribunais,
dizendo deles que "antes mesmo dos tribunais laicos,adoptaram
a forma escrita do processo, característica doprocedimento
extra ordinem em uso noBaixo-Império,
de quem,afinal,
colheram o modelo em que se inscreve oprocedimento
romano-canônico. Tal como então, osjuizes
tomam-sefuncionários
cujo poder
Ihes vem doimperador" (6).
Esta influência estende-seportoda
aEuropa
e afirma-se, semgrandes
intermitências,
até finais do séculoXVIII e entre nos,
pelas
razôes histôricas que se conhecem, até ârevolugão
liberal de 1820.
A
restauragão
de umpoder
central forte, nos últimos séculos da Idademédia,
trouxeconsigo
novaforga
âorganizagão judiciária,
emparticular
emInglaterra
eFranga,
onde o rei, enquantoguardião
do direito e do costume,toma a
personificagão
mesma dajustiga.
Como no-lo ensina Habermas emStrukturwandel
derÔffentlichkeit(7),
a esferapública
toma-se então um cénico"espago
derepresentagão"
-do
poder.
Não é ainda otempo
de "darrazôes",
de que nos falará
Bentham,
e tambémjá
não é o do "livre epúblico
exercício da razão" dasrepúblicas
clássicas.É
a esta data quePhilippe
Godding,
no seuexcelente estudo
"Juisprudence
et motivation des sentences, duMoyen
Age
â la fin du 18e siêcle"(8),
reporta
osurgimento
do"precedente judiciário"
enquanto
resultado dacriagão
de cúriasespecializadas
emquestôes
judicativas
com autonomia dejurisdigão
nasprincipais
cortes.De
alguma
forma areunificagão
dosreinos,
acriagão
de um fortepoder
central,
de par com aadopgão
das formas do direitoescrito,
tendemprogressivamente
para auniformizagão
do direito, para aformalizagão
progressiva
dos seus actos e,portanto,
para aconstituigão progressiva
de umaarquitectura
judiciária hierarquizada,
abrindo caminho para amotivagão
dosactos dos
juizes
numprincípio
de utilidade intocável e deauto-regulagão
dosistema
judiciário
e do seu controlopelo
poder
político.
No
quadro
político-administrativo
monárquico,
surge então umsegundo
esbogo
de umamotivagão:
a que se prescreve mas não se exerce com arequerida regularidade
e que por isso nãoadquire
acondigão
de direitovigente.
Supomos
que aexperiência jurídica
portuguesa
seajusta
dealgum
modo a esta
segunda
modalidade demotivagão judiciária.
Entrenôs,
aimpositiva obrigagão
de motivar as decisôes surge,expressamente,
já
nas"Ordenagôes
manuelinas\ como se vê no seu LivroIII,
título 50, pg. 60 e épreceitualmente
expressa de novo nas"Ordenagôes filipinas".
Mas não será
despiciendo
considerar que, não obstante aprecariedade
do efectivo controlo desta
obrigagão,
ascondigôes
que tornarampossível
asua
ordenagão preceptiva
tiveramjá
o seubergo
na unidadejurídico-administrativa levada a cabo, entre
nôs,
por D. Afonso II, sobinspiragão
dosprincípios
do direito romano trazidospela
mão do canonista VicenteHispano. É
de
presumir,
do nossoponto
de vista naexperiência jurídica
portuguesa
damotivagão
e emparticular
nasOrdenagôes Filipinas,
uma intencionalidadeassociada a
especiais
razôes deprudência política
e deadministragão
jurídico-política
do territôrio.Da
experiência
jurídica
francesa colhemos o testemunho dadenegagão,
pela
prática,
daimpositiva
motivagão
dassentengas
promulgada
em dois actoslegislativos,
comummente consideradosefémeros,
em resultado de não teremconseguido
efectivavigência.
Referimo-nos ârecomendagão
expressapelos
EstadosGerais,
naFranga
do séculoXVI,
no sentido de que todas assentengas
deveriam ser motivadas.Recomendagão
que não passou dissomesmo, quer em razão de uma absoluta
indiferenga
do meiojudiciário
relativamente â suaaplicagão,
quer daincapacidade
dopoder
jurídico-político
paraimpor
a suaaplicagão.
Numa outra
perspectiva,
tais iniciativas terão de ser consideradas comoindicadores de uma intencionalidade que brevemente haverá de obter
consagragão
efectiva.Deparam-se-nos
como umaespécie "premiêre"
de umaestratégia jurídico-política
a levar a cenapelo positivismo jurídico
nascente em1791, mas a reflectir
já
a intencionalidadeestratégica
de controlo do que seconsiderava ser "a liberdade excessiva dos
juizes".
Michel Foucault ilustra bem as subtilezas deste percurso em Surveiileret
Punir,
fazendo-nos notar que até ao triunfo darevolugão burguesa,
que abreportas
â IdadeModerna,
não estavam criadas ascondigôes
para aaplicagão
co-extensiva e uniforme do direito ao todo nacional. A
aplicagão
da Lei fazia-se através da ostensãoesporádica
eexcessiva,
processualmente
servida por umformalismo extremo e redutor em matéria de
produgão
da prova-o sistema
das
"provas
legais"
ou da aritmética das provas-que vemos
adoptado pelos
despotismos
da Idade Clássica ou do"Antigo
Regime".
Esta sobredita "aritmética" terá funcionado como instrumento
metodolôgico
aoservigo
dos"espectáculos
da dor" num mesmopropôsito
derecodificagão
cosmética de umaimagem
de direitopersonificado
naimagem
do soberano. Mas essa mesma
aparigão,
por serfantasmagôrica
e estarassociada a uma desmedida chocante entre o acto "ilícito" e a medida da pena,
denunciava por si a
incapacidade
dopoder político
exercer um controlo maisefectivo e
alargado,
mais subtil e eficaz, daaplicagão
do direito.Esta dificuldade so
pôde
sersuperada
pela
Modemidade que soubecriar, a
partir
de fundamentosjus-filosôficos
ejuridico-doutrinários
consistentes e sérios, asinstituigôes
e asestratégias jurídico-políticas (como
a que seexprime
no exercícioseparado
dospoderes) adequadas
a umaaplicagão
uniforme do direito a todo o corpus social e territorial.
No terceiro e definitivo
trago,
amotivagão
judiciária
surgirá
então,já
acoberto de uma intencionalidade e de uma validade solidamente
alicergadas,
na forma de lei
positiva
evigente. Importa,
porisso,
reconhecer que a efectivavigência
deste instituto,("vigência"
no sentido em que a define A. Castanheira Neves(9),
istoé, enquanto
modo-de-ser "normativo-histôrico" que se assuma,não apenas
intencionalmente,
mas como "dimensão constitutiva daprática
social"),
é uma realidade serôdia na historia do direitoocidental,
se em contativermos que a sua
consagragão
efectiva se dá apenas, comforga
exercitiva e com visibilidadebastante,
emFranga
no ano de1791,
no solo de umaontologia jurídica positivista (10), estatisto-legalista
do direito da modemidade. Defacto,
foimergulhando
as suas raízes no solo constituídojá
pelo
princípio
liberal daseparagão
dospoderes,
enunciado por Locke eMontesquieu,
já
pelo princípio,
enunciado por Rousseau eKant,
queproclama
a lei comoexpressão
da vontadegeral,
que a árvore daontologia jurídica
post-revolucionária,
trouxeconsigo
os frutos daidentificagão
do direito com a lei eda
imperativa
necessidade de uma modalidade demotivagão judiciária
quedesse conta da estrita
conformagão
das decisôes dejustiga
com esse novoabsoluto nascente
-a
lei,
em vista daprioritária
subsistência da sua coerência e seguranga.Em presenga de um
pensamento
e de umaprática
jurídicos
em que aúnica fonte de direito é a lei, a
ontologia
dos motivos aí consentida é correlativada nula liberdade do
juiz
de motivar as suas decisôes fora da lei, onde a únicaténue
excentricidade, praeter
legem,
que veio a ser consentidajá
numsegundo
momento, seria apenas a da
inquirigão
da vontade dolegislador
e apenas noscasos em que a
interpretagão
da lei era consentida,já
que fora dessa restritacircunstância,
vigorava
oprincípio interpretatio
cessat in claris.Dir-se-á,
por isso, que, apartir daquele
seu momentoontogénico,
amotivagão judiciária
recebe a marcaprofunda
de uma intencionalidadefundamentante,
gerada
noquadro
daspreocupagôes
formalistas ecodificadoras do