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Interpretação Radical em Donald Davidson

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Academic year: 2021

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José Manuel Neves Oliveira

2º Ciclo de Estudos em Filosofia

Interpretação Radical em Donald Davidson 2012

Orientador: Professor Doutor João Alberto Cardoso Gomes Pinto

Classificação: Ciclo de estudos: Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

(2)

Índic

Introdução...2

1. Considerações Preliminares...6

1.1 Teoria Semântica da Verdade...7

1.1.1 Convenção-V...9

1.2 Caráter Empírico da Teoria de Significado...12

1.3 A Mente Segundo Davidson...16

1.3.1 Monismo Anómalo...17

1.3.2 Ações, Razões e Causas...20

1.3.3 Racionalidade...22

2. Interpretação Radical...26

2.1 Identificação dos Princípios Lógicos...27

2.2 Frase Ocasionais...29

2.3 Tomar como Verdadeiro...30

2.4 O(s) Princípio(s) de Caridade...31

2.4.1 O Princípio de Coerência...33 2.4.2 O Princípio de Correspondência...35 2.5 Triangulação e Objetividade...38 2.6 Indeterminação da Interpretação...41 3. Objeções...46 3.1 A Objeção de Foster...46 3.2 Caridade é Insuficiente...48 3.3 O Argumento Cético...50 Reflexões Finais...54 Bibliografia...57

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Introdução

O que faz com que uma palavra ou frase tenha um significado? Que capacidade permite aos humanos usar a linguagem para compreenderem e serem compreendidos? A proposta de Donald Herbert Davidson (1917-2003) é que o significado de uma expressão só é

compreensível do ponto de vista de um intérprete, i.e., do ponto de vista de alguém que tem de atribuir significados às frases usadas por outras pessoas e, que ao mesmo tempo, tem de esperar que as frases por si usadas sejam compreendidas por outros.

Que conhecimento seria então suficiente para que alguém na posição de intérprete compreenda outros? Davidson defende que a construção de uma teoria de significado para uma língua começa pela construção de uma teoria de verdade para as frases proferidas pelos falantes que se pretendem interpretar e no teste empírico dessa teoria de interpretação. Como as línguas naturais podem, potencialmente, ser usadas para produzir um número infinito de frases e dado que é impossível a alguém conhecer cada uma dessas frases, a teoria de interpretação tem, necessariamente, de usar recursos finitos. O significado de cada frase vai então depender do significado de cada uma das partes mais simples dessa língua.

Davidson concebe então um projeto idealizado de interpretação, no qual o intérprete tem de redescrever o comportamento verbal e não-verbal de forma a descobrir as crenças dos falantes e o significado das frases que eles usam. O intérprete não tem conhecimento prévio das crenças dos interpretados, nem daquilo que as palavras na língua deste significam. Não pode também pedir a falantes bilingues que o ajudem a compreender o que está a ser expresso por essas frases. Por estas razões, Davidson apelida este projeto de interpretação radical, já que responder à pergunta sobre o que é suficiente para interpretar radicalmente um falante tornará explicito, ao mesmo tempo, o que é suficiente para interpretar qualquer falante (quer fale a mesma língua que o intérprete ou não).

A teoria formal da verdade que Davidson propõe usar deve obedecer a critérios empíricos; não fazer uso de noções que a teoria pretende iluminar (como a noção de significado); poder ser utilizada de forma sistemática para interpretar qualquer uma de um número potencialmente infinito de frases que podem ser expressas numa língua natural; e poder ser descrita de uma forma suficientemente detalhada. Uma teoria de significado deve, segundo a proposta de Davidson, satisfazer todas estas condições.

Para que uma teoria de verdade possa ser assim utilizada, ela tem, antes de mais de ser modificada para lidar com línguas naturais. Davidson formula várias propostas acerca de

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como tal pode ser feito, e.g., relativizando a teoria de verdade ao momento em que a frase é proferida pelo falante. A esperança última de Davidson é que a forma lógica das frases das línguas naturais torne as suas características semânticas analisáveis, e a compreensão do significado dessas frases possível.

Este trabalho procurará responder a algumas questões relativas à metodologia de interpretação radical tal como foi proposta por Davidson. Que tipo de dados podem ser usados como ponto de partida para construir uma teoria de significado para uma língua natural? Que forma teria essa teoria interpretativa? Que tipo de dados ou indícios empíricos podem

sustentar essa teoria? E, por fim, é possível construir uma teoria interpretativa (semântica) a partir de dados não semânticos?

O propósito deste trabalho é a compreensão da interpretação radical, pois devido à natureza sistemática do pensamento de Davidson e ao papel central que o intérprete tem na sua obra, uma compreensão adequada daquilo que está em causa permite uma melhor compreensão do resto da obra de um dos filósofos mais importantes e influentes no século XX.

Com o objetivo de tornar claro o que está em causa no projeto de interpretação radical, dividi o trabalho em três partes. Na primeira parte, apresento a forma como Davidson usa algumas teses filosóficas nas suas propostas, mas também a forma como desenvolve propostas inovadoras para resolver os problemas, bem como as suas propostas para enfrentar alguns problemas da filosofia — principalmente da filosofia da mente. Assim, apresento a teoria formal da verdade que constituirá a estrutura das teorias interpretativas. Apresento igualmente algumas propostas de modificação que Davidson faz para poder usar a teoria na análise de frases de línguas naturais. Também nesta parte se apresentam as propostas de Davidson em relação à mente humana: a relação do mental com o físico; a forma como ele explica as ações humanas e aquilo que as origina; e a importância da racionalidade para entender o mental. Devido à natureza sistemática da sua obra e ao uso que ele faz das suas próprias propostas filosóficas em algumas áreas da filosofia para resolver problemas noutras áreas, a primeira parte deste trabalho reveste-se de particular importância, ao apresentar e esclarecer os

conceitos e as teorias que serão usadas durante o resto do trabalho, bem como os pressupostos que enformam o pensamento de Davidson.

Na segunda parte descrevo a forma como Davidson defende que a metodologia de interpretação radical poderia ser posta em prática. Embora a apresentação se faça

separadamente, é importante deixar claro desde já que a separação é um artifício meramente explicativo. Nenhuma das fases da interpretação radical apresentadas nesta parte pode ser

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considerada isoladamente — nem isoladamente umas das outras, nem independentemente das teses apresentadas na primeira parte. A identificação de princípios lógicos, a correlação entre as frases ocasionais às quais o intérprete assentiria e a identificação da atitude de tomar como

verdadeiro — que pode ser identificada por qualquer intérprete —, constituem o ponto de

entrada na compreensão de qualquer língua. A atribuição a um falante de uma lógica como a do intérprete, permite que o primeiro assuma que o falante raciocina, de modo geral, da mesma forma que ele. A correlação das frases ocasionais do interpretado com as do intérprete permite atribuir as mesmas condições de verdade às frases do falante que o intérprete atribui às suas frases. Assumir que ambos estão a reagir aos mesmos eventos permite ao intérprete assumir que as condições em que alguém toma uma frase por verdadeira são as condições de verdade dessa frase. Recorrendo aos princípios mencionados atrás, o intérprete está pronto a formular hipóteses não só sobre quando o falante está a exprimir uma crença, mas também sobre as condições que o levam a ter essa crença e a forma como ela é suportada por outras crenças.

Uma vez na posse de várias hipóteses acerca das crenças dos falantes, o intérprete pode começar a testar se a teoria que está a construir para interpretar um falante é adequada. Aplicando, de forma geral, o princípio de caridade a todas as frases que o falante usa o intérprete pode correlacionar as suas frases com frases do falante, de forma a assumir que as condições de verdade das suas frases têm são as condições de verdade que o falante atribui às suas frases. O uso destes princípios permite ao intérprete otimizar o acordo entre ele e o interpretado. Tal permite começar a fazer sentido das diferenças e daquilo que o intérprete pensa serem erros do falante.

Porém, mesmo se os falantes estão a reagir a eventos e objetos no mundo que estão a causar as suas crenças, fica ainda por resolver que eventos e objetos estão na origem de que crenças — o que Davidson contende é necessário para definir o conteúdo de pelo menos algumas crenças. Se pode ser estabelecida a correlação entre as reações observáveis de dois agentes aos objetos e eventos comuns, estabelece-se também — até certo ponto — qual o evento ou o objeto que causa essa crença. Por fim, se há várias formas de acomodar os indícios que se observam nas ações de um falante e não há uma forma de confirmar qual é a teoria mais adequada para interpretá-lo, então, mesmo depois de construirmos uma teoria completa de interpretação para esse agente, existirão ainda outras teorias que seriam igualmente bem-sucedidas nessa tarefa.

Na terceira parte apresento três objeções à proposta de Davidson. A primeira objeção põe em causa que uma teoria de verdade do tipo que Davidson propõe seja suficiente para

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interpretar um falante de uma língua estranha. Nem mesmo saber que essa teoria é uma teoria para a língua que se pretende interpretar é suficiente. A segunda objeção ataca o coração da teoria davidsoniana, pondo em causa que o princípio de caridade, tal como é proposto por Davidson, seja suficiente para interpretar frases de uma língua estranha. A terceira e última objeção é a objeção cética. Questiona que a interpretação que qualquer teoria de interpretação deve aceitar não ponha em causa todo o projeto, já que, se for possível construir várias teorias de interpretação, igualmente verdadeiras, para uma determinada língua o intérprete não tem modo de escolher qual é a teoria que interpreta de facto a língua estranha nos termos da sua. As reflexões finais procuram responder às questões levantadas nesta introdução tendo em consideração as explicações desenvolvidas ao longo do trabalho e as objeções que podem ser avançadas à interpretação radical.

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1. Considerações Preliminares

A interpretação radical está na base de um ponto de vista metodológico a partir do qual Donald Davidson se propõe estudar a natureza da mente e do significado. Trata-se de uma situação hipotética em que não há acesso a tradutores/traduções ou dicionários, nem

conhecimento específico dos estados mentais do interpretado. São estas as características que tornam este projeto de interpretação radical.

A situação exige assim que se construa, desde o início, uma interpretação dessa pessoa como falante e como agente. Nesta situação, um intérprete (o intérprete radical) deve produzir uma interpretação de uma pessoa a partir daquilo que pode observar, ou seja, o

comportamento (verbal e não-verbal) de alguém. Visto que não conhece o significado de nenhuma frase proferida pelo agente, não tem acesso a falantes bilingues que possam servir de intermediários, nem existem dicionários disponíveis, o intérprete radical deve construir de raiz uma teoria que lhe permita interpretar todas as frases que o interpretado profere (atual ou potencialmente). O resultado esperado é uma teoria que atribua crenças e desejos ao

interpretado e explicite o seu significado. Tal quer dizer também que o intérprete atribuirá, no final do processo de interpretação radical, conteúdo (proposicional) às atitudes do

interpretado. Se tal puder ser feito, então esse falante terá sido interpretado.

Como é óbvio a teoria usada para interpretar não pode assumir à partida conhecimento do significado das palavras usadas: tal seria assumir à partida aquilo que se pretende

descobrir. O intérprete radical está confinado a correlacionar as circunstâncias extralinguísticas (os eventos que ocorrem e os objetos que existem no ambiente num determinado momento) de uma elocução que possam explicar a causa dessa elocução e as frases (frases ocasionais, num primeiro momento) proferidas pelo agente. Associando-as aos seus comportamentos de forma a construir uma teoria acerca das crenças e dos desejos do interpretado o intérprete pode atribuir significados (na sua própria língua) às elocuções do interpretado, procurando antes de mais atribuir os mesmos valores de verdade às frases com condições de verdade semelhantes. Certamente que não bastará para interpretar relacionar estas frases ocasionais com elocuções do agente. Tal seria manifestamente insuficiente. Eventualmente, serão também as relações (lógicas e causais) entre as frases plausivelmente atribuídas ao agente que permitirão a interpretação de frases mais abstratas, i.e., menos ligadas ao comportamento diretamente observável.

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Na secção 1.1 abordarei a teoria formal em que Davidson se baseia para construir a sua metodologia de interpretação radical. Na secção 1.1.1 apresentarei algumas modificações que Davidson propõe fazer a essa teoria formal, para que possa ser aplicada a linguagens naturais. A secção 1.2 aborda o problema da aplicação empírica da teoria de verdade

construída na secção 1.1.1, visto que é ainda necessário esclarecer mais detalhadamente como proceder para interpretar alguém. Na secção 1.3 procuro esclarecer as teses davidsonianas acerca da mente humana, nomeadamente as relações mente-corpo (1.3.1), a teoria da ação que ele desenvolve (1.3.2) e a forma como ele entende a racionalidade (1.3.3).

1.1 Teoria Semântica da Verdade

Alfred Tarski propôs, num dos seus mais importantes artigos,1 explorar uma maneira de

produzir “uma definição satisfatória de Verdade, isto é, uma definição que seja materialmente

adequada e formalmente correta.”2 Por adequação material entende uma forma sistemática de

apresentar as condições de verdade para cada uma de um número infinito de frases de uma linguagem. A correção formal diz respeito à semântica da linguagem, i.e., aos termos que estão definidos e são usados nessa linguagem, e ao seu modo de combinação por forma a criar frases de complexidade variável a partir das partes mais simples dessa linguagem, pela aplicação recursiva dos recursos da teoria. A sua intenção não é fornecer o sentido ou a intensão do termo ‘verdade’ mas somente definir a sua extensão, i.e., as classe dos objetos aos quais o termo pode ser aplicado, tal que formem expressões verdadeiras (na linguagem para a qual o termo está a ser definido).

A conceção de verdade que Tarski tem em mente deve conformar-se ou “fazer justiça à conceção aristotélica clássica de verdade,” ou seja à conhecida definição: “dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro.”3 No entanto considera que tanto a formulação

aristotélica, como outras similares a ela, são pouco precisas e claras. Vejamos então como Tarski propõe que se construa uma teoria da verdade (que esteja de acordo com a intuição aristotélica).

Se tomarmos uma frase simples, por exemplo ‘a neve é branca’, sob que condições podemos afirmar que a frase é verdadeira ou que a frase é falsa? Segundo a conceção

1 Cf. Tarski, 1990. Os exemplos desta secção são retirados daqui. Cf. também Evnine, 1991; Glüer, 2011. 2 Tarski, 1990, 75. (Itálico meu)

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aristotélica de verdade que o autor usa a frase é verdadeira se a neve é branca, e é falsa se a neve não é branca. A teoria semântica de verdade tem então de “implicar a seguinte

equivalência: A frase ‘a neve é branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca.”4 A

frase do lado esquerdo da bicondicional contém o nome da frase (uma forma de referir a frase que queremos analisar) e a frase do lado direito é a frase ela própria. Há duas razões para que a frase do lado esquerdo inclua o nome da frase, designadamente, que numa frase em que se afirme que algo é verdadeiro, o que quer que substitua o ‘algo’ não pode ser uma frase, pois está no lugar de sujeito da frase. Por outro lado, não faz sentido que ao falar de um qualquer objeto as nossas frases se refiram ao seu nome e não ao próprio objeto.

Partindo das considerações anteriores, o autor propõe então que se substitua uma qualquer frase arbitrária da nossa linguagem por uma letra, por exemplo ‘p’ e que o nome dessa frase arbitrária seja substituído por uma letra ‘X’ (o nome da frase pode ser substituído por qualquer letra desde que se defina explicitamente o que esse nome refere).

Somos agora capazes de formular de forma precisa as condições debaixo das quais consideramos o uso e a definição do termo «verdadeiro» de tal maneira que todas as equivalências da forma (T) possam ser afirmadas, e chamaremos a uma definição de

Verdade «adequada» se todas essas equivalências dela se seguirem.5 O resultado, evidente, é uma frase da forma “ ‘X’ é verdadeira se e só se p”.

Agora perguntamo-nos “qual é a relação lógica entre as duas frases: «X é verdadeira» e ‘p’.”6 A relação interessante aqui é a de equivalência, denominada equivalência da forma-V,

quando falarmos da teoria semântica da verdade. Cada uma das equivalências da forma-V que possam ser construídas para uma linguagem constitui uma definição parcial de verdade. O conjunto de todas as equivalências de forma-V de uma linguagem natural L1, constitui uma

definição de verdade para essa linguagem L1. Uma definição de verdade (para uma qualquer

frase de uma linguagem) será adequada se a equivalência — i.e., se a bicondicional — for verdadeira. Pelos princípios da lógica proposicional, uma equivalência é verdadeira se e só se ambos os componentes são verdadeiros ou ambos os componentes são falsos. Uma definição “geral” para uma determinada linguagem tem de ser o conjunto de todas as equivalências da forma-V que possam ser formuladas para as frases dessa linguagem.7

4 Tarski, 1990, 78.

5 Tarski, 1990, 80. (Itálico no original) 6 Tarski, 1990, 79.

7 É talvez por esta razão que Tarski insiste em dizer que a sua teoria não é uma teoria de verdade no sentido clássico, mas somente que qualquer teoria de verdade adequada tem de implicar equivalências da forma-V para todas as suas frases verdadeiras. O propósito de definir uma teoria deste tipo é definir a extensão dessa teoria, i.e., a classe de todas as frases verdadeiras dessa linguagem.

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Para que a verdade como propriedade de uma determinada linguagem possa de facto ter a aplicação que Tarski pretende, a propriedade ela mesma não fará parte dessa linguagem, sob pena de inconsistência. Para tal deve ser efetuada e rigorosamente respeitada uma

distinção entre metalinguagem e linguagem objeto. A linguagem objeto é aquela para a qual estamos interessados em construir uma teoria semântica de verdade. Para que tal possa ser feito, a linguagem objeto não pode ser semanticamente fechada, i.e., não pode conter o termo ‘é verdadeiro’. Esse termo só pode fazer parte da linguagem que se usa para analisar a

linguagem objeto, ou seja, só pode fazer parte da metalinguagem. (Se tal não é o caso, a linguagem está sujeita a paradoxos como o paradoxo do mentiroso).

Por fim falta definir o próprio termo ‘é verdade’, o que Tarski propõe fazer empregando o conceito de satisfazibilidade. Esta

é uma relação entre objetos arbitrários e certas expressões chamadas «funções

proposicionais». Estas são expressões como «x é branco», «x é maior que y», etc. A sua estrutura formal é análoga à de frases; no entanto, elas podem conter as chamadas variáveis livres (como ‘x’ e ‘y’ em «x é maior do que y»), as quais não podem ocorrer em frases.8

A noção de satisfazibilidade é operacionalizada quando ocorre a substituição das variáveis livres que ocorrem nas funções proposicionais de forma a obter frases verdadeiras — e.g., se numa função proposicional “x é branco” substituirmos o ‘x’ por ‘neve’ obtemos a frase verdadeira a neve é branca. A função proposicional é dita ser satisfeita somente nos casos em que a variável livre é substituída por um nome de um objeto de forma a tornar a frase

verdadeira, e é dita não ser satisfeita nos outros casos. Desta forma Tarski define o conceito geral de verdade nos termos da noção de satisfação.

1.1.1 Convenção-V

No centro da interpretação radical está a ideia de uma teoria formal de verdade e, mais geralmente, que uma teoria formal pode ser usada para criar uma teoria semântica para línguas naturais. Como diz Davidson

Uma língua pode ser vista como um objecto complexo abstracto, definido dando uma

lista finita de expressões (palavras), regras para a construção de concatenações significativas de expressões (frases), e uma interpretação semântica das expressões significativas baseada nas características semânticas das palavras individuais.9

8 Tarski, 1990, 91. Sobre o conceito de satisfação cf. também Evnine, 1991. 9 Davidson, 1992, 107. (Itálico meu)

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Dadas algumas transformações propostas por Davidson, ele pensa que uma teoria de tipo definido por Tarski é adequada para dar o significado das expressões de uma língua.10

Davidson esclarece até a ideia básica do seu próprio projeto da seguinte forma

Tal como Tarski, eu quero uma teoria que satisfaça a [teoria semântica de verdade], mas onde ele assume a noção de tradução para iluminar a de verdade, eu quero iluminar o

conceito de tradução ao assumir compreensão parcial do conceito de verdade.11

O significado das frases é uma função do significado das partes mais simples que as compõem e da combinação dessas partes mais simples através de operadores lógicos. As partes mais simples das frases são tratadas como axiomas de um sistema formal que determina a referência ou as condições de satisfação da aplicação dos termos. Estas

combinações produzem teoremas (na forma de frases-V) que definem o significado das frases de uma língua natural.

Ainda que o número de frases que podem ser produzidas numa língua natural seja infinito, o facto de as capacidades humanas serem finitas requer a aplicação de um número finito de regras sobre um número também finito de expressões da língua. Logo, o número de expressões a partir do qual as frases são construídas tem de ser finito, assim como as regras de formação de tais frases — pelo que qualquer teoria de significado adequada para lidar com línguas naturais também deve ser composicional.

O produto da aplicação desta teoria (as frases-V ou equivalências da forma-V) permite relacionar de forma simples frases (sejam ou não de uma mesma língua natural) de forma a definir as condições de verdade de qualquer frase expressa nessa língua.12

Há uma frase-V correspondente a cada frase da língua para a qual a verdade está em questão, [e] a totalidade das frases-V fixa exatamente a extensão, entre as frases, de qualquer predicado que tenha a função das palavras ‘é verdadeiro.’ Daqui é claro que

apesar das frases-V não definirem a verdade, elas podem ser usadas para definir a aplicação correta do predicado de verdade [truth predicatehood]: qualquer predicado é

um predicado de verdade se torna todas as frases-V verdadeiras.13

Sigamos o exemplo anterior: “ ‘a neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca.” O dispositivo atrás descrito permite definir as condições de verdade de uma frase (mais exatamente do uso de uma frase), sem usar nenhum recurso que não esteja já presente na

10 Cf. Davidson, 1967b; Davidson, 1973b; Davidson, 1976; Evnine, 1991; Glüer, 2011. 11 Davidson, 1976, 173. (Itálico meu)

12 Cf. Davidson, 1973b.

13 Davidson, 1973b, 65. (Itálico meu ) (As traduções dos excertos são da minha responsabilidade. As expressões que aparecem em itálico entre parênteses retos indicam a expressão original, quando existiu dúvida quanto à tradução das mesmas para português.)

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própria linguagem em que é usada. Davidson defende efetivamente que a teoria formal da verdade e a teoria do significado se completam mutuamente, quando afirma que

[…] dar condições de verdade é uma forma de dar o significado de uma frase.

Conhecer o conceito semântico de verdade para uma língua é saber o que é para uma frase — qualquer frase — ser verdadeira, e isto equivale, num sentido importante que

podemos dar à afirmação, a compreender uma língua.14 Embora não possamos dizer diretamente que a frase-V

(V) ‘A neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca

fornece o significado da frase mencionada, podemos afirmar, com base nas passagens citadas acima, que Davidson defende que saber o significado de uma frase é saber em que condições uma frase seria verdadeira e que tal é suficiente para sabermos o significado dessa frase. Assim, parece defender que o conhecimento das condições de verdade de uma qualquer frase de uma língua natural é necessário e suficiente para saber o significado dessa frase.

O resultado final da aplicação desta teoria do significado são teoremas que nos permitem dizer o que uma determinada frase significa, já que a aplicação sistemática deste processo fornece o significado de qualquer expressão da língua natural que se quer

compreender. A esperança de Davidson é que a aplicação sistemática desta teoria a duas línguas diferentes (em conjunto com alguns constrangimentos formais) permita criar uma teoria da interpretação (radical) para línguas naturais.

Ainda assim falta resolver algumas dificuldades relativas a este processo, tal como a seguinte: dado que aquilo que é requerido da teoria é que produza bicondicionais verdadeiras, a frase-V:

(V*) ‘A neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca e a relva é verde é aceitável?

Visto que tanto a frase do lado esquerdo da bicondicional como a do lado direito são verdadeiras, aparentemente teríamos um resultado esperado. Davidson está bem ciente do problema e tenta resolvê-lo impondo mais restrições à sua teoria de modo a que não produza resultados tão estranhos, tal como veremos na secção seguinte.

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1.2 Caráter Empírico da Teoria de Significado

O sucesso da aplicação a linguagens naturais de uma teoria de verdade modificada só será, no entanto, confirmada ou não conforme tiver sucesso na interpretação de frases numa linguagem natural.

Uma teoria de verdade liga o falante e o intérprete: ao mesmo tempo descreve as capacidades e práticas linguísticas do falante e dá substância àquilo que o intérprete conhecedor sabe que lhe permite compreender o significado das asserções do falante.15 Se uma teoria da interpretação não tiver sucesso empírico será inútil, pelo que a sua

aplicabilidade tem de ser testada: “uma teoria que passe os testes empíricos é uma [teoria] que de facto pode ser projetada para casos não observados e casos contrafactuais.”16

“Kurt profere as palavras ‘Es regnet’ e dadas as circunstâncias adequadas sabemos que essa pessoa disse que está a chover.” E então podemos fazer duas perguntas: “O que

poderemos saber que nos permita dizer isto?” e “De que forma o poderíamos saber?”17 A

questão é, portanto, que conhecimento nos permite interpretar os outros ou, por outras palavras, que constrangimentos têm de ser aplicados a qualquer teoria interpretativa para

que seja bem sucedida.

Esta estratégia permite substituir a pergunta “O que é o significado?” por outra à qual talvez seja possível uma resposta mais inteligível: “o que é suficiente um intérprete saber de

forma a entender um falante de uma língua estranha, e como poderia o intérprete sabê-lo?”18

A resposta à pergunta acerca daquilo que permite a interpretação de alguém parece ser o conhecimento do significado de cada uma das expressões significativas de uma qualquer língua.19

Visto que as línguas naturais possuem um número finito de expressões básicas, mas um número infinito de frases podem ser construídas pela combinação destas expressões, qualquer teoria de interpretação terá de explicar o significado das expressões básicas da língua e as diferentes formas de combinação, se pretende fornecer uma teoria do significado dessa língua.20 A ideia geral de partida é a seguinte:

15 Davidson, 2005a, 52. 16 Davidson, 1976, 174.

17 Davidson, 1973a, 125 e 126, respetivamente. 18 Davidson, 1994, 126. (Itálico meu)

19 A tradução de um idioma noutro parece aqui ser insuficiente para uma caraterização semântica de expressões de uma língua. Alguém pode saber que a expressão ‘Es regnet’ é traduzida pela expressão ‘Il pleut’ sem que saiba o que nenhuma destas signifique.

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os fenómenos aos quais recorremos são os interesses extralinguísticos e as atividades que a linguagem permite levar a cabo, e estas são servidas por palavras somente enquanto as palavras estão incorporadas (ou numa dada ocasião acontece estarem) em frases.21

Não podemos esperar interpretar as intenções de um falante ao proferir uma frase, sem que tenhamos uma teoria que nos permita interpretar as suas elocuções. E não podemos interpretar as elocuções de alguém sem que saibamos quais são as suas intenções ao proferir a frase que profere, nas ocasiões em que a profere. A teoria da interpretação radical deve, então, explicar ambos os fatores simultaneamente — e, ao mesmo tempo, tem de se basear em recursos finitos para fornecer o significado de um número potencialmente infinito de frases. Se tal puder ser feito, há esperança de explicar de que forma um intérprete pode compreender as elocuções de um falante de uma qualquer língua (mesmo uma língua completamente estranha). Como diz Davidson

na interpretação radical, contudo, espera-se que a teoria forneça uma compreensão das

elocuções particulares que não é dada à partida, de forma que os indícios conclusivos para a teoria não podem ser amostras de interpretações corretas. Para lidar com o caso

geral, os indícios devem ser de um tipo tal que estariam disponíveis a alguém que não

sabe já de que forma interpretar [as] elocuções que a teoria deve explicar: devem ser

indícios que possam ser afirmados sem o uso essencial de conceitos linguísticos tais

como significado, interpretação, sinonímia, e outros que tais.22

A solução de Davidson requer a aplicação sistemática da teoria formal da verdade proposta por Tarski para a definição de um predicado de verdade numa determinada língua, ‘verdadeiro em L.’ O autor modifica, no entanto, a teoria original, tal que esta possa ser aplicada a línguas naturais, permitindo incluir elementos indexicais e outras propriedades que a teoria formal da verdade tal como proposta por Tarski não consegue explicar.

A aplicação de uma teoria de verdade deste tipo ajuda a compreender a forma como funcionam as linguagens naturais. As vantagens previsíveis do seu uso são: (i) as frases-V permitem definir as condições de verdade de qualquer frase, sem que tenham de aplicar recursos que não estejam já usados na frase a ser analisada; tal é vantajoso para a teoria de interpretação radical, visto que evita falar de significados antes de qualquer interpretação. (ii) O otimismo reforçado pela história da filosofia, (notavelmente o modo como Frege propôs uma forma de formalizar expressões tais como ‘todos’, ‘algum’ e ‘nenhum’) de que

explicando uma pequena parte simples da linguagem se possa fazer luz sobre as partes mais complexas, através de métodos recursivos, já que estas partes mais complexas são formadas a

21 Davidson, 1973a, 127.

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partir das partes mais simples, para as quais sabemos construir frases-V adequadas.23 Atribuir

à verdade um papel central de forma construir uma teoria da interpretação é vantajoso já que, como diz o próprio Davidson, a verdade

é uma propriedade simples que é predicada, ou não, a elocuções, enquanto que cada

elocução tem a sua própria interpretação; e a verdade está mais apta a ligar-se a

atitudes relativamente simples dos falantes.24

Impostos constrangimentos suficientes para a aplicação da teoria formal da verdade, espera-se que as frases-V produzidas correspondam a interpretações adequadas, i.e., que tenham como resultado bicondicionais verdadeiras, mesmo quando relacionam duas línguas diferentes. Espera-se ainda que os indícios (que servem de base à teoria) não sejam descrições detalhadas das crenças e dos desejos dos falantes — tal seria assumir, logo à partida, a interpretação e isso tornaria o método circular. Mas há que assumir, no entanto, uma interdependência entre as crenças e os significados das frases proferidas: “um falante toma uma frase como

verdadeira por causa daquilo que a frase significa (na sua língua) e por causa daquilo em que ele acredita”25 e, além disso, que qualquer falante demonstra a atitude de tomar como

verdadeira uma qualquer frase (que não difere de crer na verdade dessa frase). É importante explicar a importância disto de forma a esclarecer o principio de caridade,26 já que não é

possível atribuir conteúdos às crenças de alguém, sem que muito do que ele acredita seja verdadeiro. O que é importante, de facto, é que a teoria usada maximize o acordo entre os interlocutores, i.e., a teoria implica que o intérprete considere qualquer interpretado como tendo crenças, na sua maioria, verdadeiras (pelos seus padrões).

Estamos então em condições de esboçar as condições mais básicas necessárias para proceder à interpretação radical.27

O primeiro passo a dar é a identificação das constantes lógicas, i.e., a identificação das palavras que quando usadas pelo intérprete servem como constantes lógicas (tal implica “ler” a nossa própria lógica na língua do interpretado). O propósito é encontrar a melhor forma de fazer encaixar as nossas constantes lógicas na língua a ser interpretada como “uma grelha a ser aplicada à linguagem de uma só vez.”28 Ao fazer isto resolvemos alguns dos problemas

relativos à forma lógica das frases.

23 Cf. Davidson, 1973a. 24 Davidson, 1973a, 134.

25 Davidson, 1973a, 134. Acerca da atitude de tomar como verdadeiro cf. secção 2.3. 26 Cf. Secção 2.4.

27 Cf. Davidson, 1973a, principalmente páginas 136 e segs. 28 Davidson, 1973a, 136.

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O segundo passo procura interpretar as frases que são tomadas por verdadeiras (ou falsas) consoante as mudanças no ambiente, ou seja, frases ocasionais.29 O primeiro e o

segundo passo limitam a interpretação de predicados e de alguns termos singulares.30

Por fim, interpretam-se as frases cujo valor de verdade não parece variar consoante as mudanças no ambiente.

Este método pretende resolver o problema da interdependência das crenças e dos significados tornando as crenças constantes tanto quanto possível, enquanto se procura

[atribuir] significado.31

A base para este constrangimento é uma posição holista que Davidson defende ser central na compreensão das atitudes proposicionais de agentes racionais, de tal modo que só à luz de muito acordo sobre que crenças se acredita serem verdadeiras é que podemos discordar sobre quais são falsas. Somente se considerarmos, até indicação em contrário, que a maioria das crenças de qualquer interpretado são verdadeiras (quaisquer que elas sejam) podemos interpretá-lo.32

Se uma teoria formal de verdade, ao tornar explícitas as condições em que uma frase é verdadeira, dá as condições de verdade dessa frase numa determinada língua (como já foi assumido atrás), seria fácil pensar que as frases-V dariam o significado de uma frase. Mas não se segue que, porque uma teoria fornece as condições de verdade, se possa dizer que essas condições de verdade são satisfeitas. No caso da interpretação radical não sabemos se a verdade das frases-V é, ou não, satisfeita visto que tal seria assumir a própria interpretação. Como diz Davidson, referindo-se especificamente ao papel crucial que o holismo desempenha na sua posição,

o nosso problema atual resulta do facto que na interpretação radical não podemos assumir que uma frase-V satisfaz o critério de tradução. O que temos ignorado, contudo, é que fornecemos um critério alternativo: este critério é que a totalidade das frases-V deverá […] adequar-se otimamente aos indícios sobre frases tomadas por verdadeiras por falantes nativos. A ideia presente é que aquilo que Tarski assumiu à partida [outright] para cada frase-V pode ser indiretamente descoberto por um

29 Um exemplo de uma frase ocasional é o João dizer ‘está a chover’, quando está a chover ao pé do João na altura em que ele profere a frase. Devido ao modo como os valores de verdade destas frases dependem das mudanças no ambiente, Davidson vê aqui uma forma simples de começar a correlacionar, de forma sistemática, valores de verdade das frases do intérprete com valores de verdade das frases do interpretado.

30 Incluindo pelo menos alguns predicados diádicos e outros de maior aridade, bem como aqueles que respeitam a termos tais como os termos de massa (não contáveis) e termos gerais.

31 Davidson, 1973a, 137. (Itálico meu)

32 Não quer dizer que assumamos uma posição de confiança absoluta no poder da razão humana no que diz respeito à formação de crenças verdadeiras, simplesmente que só se considerarmos que a maioria das crenças que alguém possui são verdadeiras é que podemos pretender interpretar.

(17)

constrangimento holístico. Se esse constrangimento é adequado, cada frase-V fornecerá de facto uma interpretação aceitável.33

A referência à tradução é uma referência à forma como Tarski formula a sua teoria. Visto que a sua pretensão original era que a teoria fosse aplicada a linguagens formais, bastava-lhe definir as condições de tradução de uma frase noutra para demonstrar a equivalência. O que Davidson lembra na passagem supracitada é que tal dispositivo não se encontra diretamente à sua disposição. A interpretação dependerá da construção de uma teoria de verdade para uma língua natural que possa ser confirmada empiricamente, ou seja, cuja aplicação sistemática

seja suficiente para compreender essa língua natural.

1.3 A Mente Segundo Davidson

Visto que Davidson considera que a interpretação só pode ocorrer através da atribuição de atitudes proposicionais a agentes, e que não possuindo uma teoria de interpretação para a sua língua, a única forma de a construir é pela observação de padrões de comportamento, falta ainda abordar as teorias davidsonianas que procuram explicar a relação mente-corpo e a ação humana. Assim na secção 1.3.1 abordo o monismo anómalo, a teoria que Davidson

desenvolveu para explicar as relações mente-corpo. Na secção 1.3.2 abordo as suas posições acerca da ação humana e a causalidade, que nas teorias acerca da mente têm um papel fundamental que é necessário esclarecer. Não só Davidson defende que as relações entre a mente e o mundo são de natureza maioritariamente causal, como defende serem também de natureza causal as relações entre atitudes proposicionais e ações dos agentes. E na secção 1.3.3 abordo a questão da racionalidade, que estando umbilicalmente ligada à secção 1.3.2, explica a razão por que não podemos atribuir qualquer crença a um agente, sob pena de nem sequer podermos assumir que ele tem uma mente (pelo menos suficientemente semelhante à nossa) que o torne interpretável.

1.3.1 Monismo Anómalo

O monismo anómalo34 é uma forma da teoria da identidade para a mente defendida por

Davidson que procura explicar a forma como se relacionam eventos físicos (que ocorrem no cérebro) e eventos mentais. Nas palavras do próprio autor, o monismo anómalo

33 Davidson, 1973a, 139. (Itálico meu)

(18)

sustenta que as entidades mentais (objetos e eventos particulares com localização espácio-temporal) são entidades físicas, mas que os conceitos mentais não são por

definição ou por lei natural redutíveis a conceitos físicos.35

A dificuldade reside na necessidade de explicar de que forma um sistema físico — regido, portanto, por leis físicas estritas — pode dar origem a um sistema mental que não é regido por leis estritas e ser explicado como sujeito a essas mesmas leis.

Para explicar como tal coisa, aparentemente contraditória pode ocorrer, Davidson enuncia três princípios36 argumentando que eles não são contraditórios:

(1) Princípio da Interação Causal: pelo menos alguns eventos mentais interagem causalmente com alguns eventos físicos. Por exemplo, as atitudes

proposicionais dos agentes (crenças, desejos e intenções) causam ações e, por outro lado, os conteúdos proposicionais dessas atitudes são, pelo menos em parte, causados por objetos e eventos no mundo.

(2) Princípio do Caráter Nomológico da Causalidade: se dois eventos estão relacionados como causa e efeito, então há uma lei estritaque descreve a relação entre esses eventos, para que estes possam ser integrados num enunciado (relacional) de causalidade.37

(3) Monismo Anómalo: não existem leis psicofísicas estritas, isto é, leis que identifiquem tipos de eventos mentais com tipos de eventos físicos.

E adianta ainda, que se “todos os três princípios são verdadeiros, então aquilo que deve ser feito é explicar a aparência de contradição.”38 Noutro lugar parece ir um pouco mais longe,

pelo menos no que diz respeito ao princípio (1), quando afirma “todos os eventos mentais estão causalmente relacionados com eventos físicos.”39

Davidson pensa que a condição (1) é óbvia, ou seja, que crenças, desejos e intenções causam movimentos corporais e que eventos físicos causam pelo menos algumas crenças. Estes dois casos constituem formas de relação entre o físico e o mental.

A condição (2) aponta para as diferenças entre conceitos físicos e conceitos mentais. Os conceitos mentais caracterizam-se por relações lógicas, e por conseguinte obedecem a

35 Davidson, 1993a, 185. (Itálico meu)

36 Estes princípios aparecem formulados originalmente em Davidson (1970a). A formulação aqui apresentada aparece em Davidson (1999). Cf. também Davidson, 1974b.

37 Acerca da explicação davidsoniana da causalidade, ver seção 1.3.2. 38 Davidson, 1970a, 209. (Itálico meu)

(19)

critérios de racionalidade e coerência, ficando a sua identificação a dever-se à sua posição no conjunto mais vasto de todas as atitudes proposicionais do agente.

Os conceitos físicos não. A condição (3) impede o reducionismo do mental ao físico — quer através da definição de eventos mentais como eventos físicos, quer pela definição de leis que procurem relacionar o mental com o físico de forma estrita — ao mesmo tempo que pretende conservar o monismo. Para tal é empregue o conceito de superveniência: “uma propriedade M é superveniente a um conjunto de propriedades P se e só se M não distingue nenhuma propriedade não distinguível pelas propriedades em P.”40

O monismo anómalo assemelha-se ao materialismo na sua afirmação de que todos os eventos mentais são físicos, mas rejeita a tese, normalmente considerada essencial para o materialismo, de que explicações puramente físicas possam ser dadas dos fenómenos mentais. “O monismo anómalo revela uma tendência [bias] somente porque admite a possibilidade de que nem todos os eventos são mentais, enquanto insiste que todos os eventos são físicos.”41

Com esta posição Davidson pretende estabelecer uma explicação do mental, tal que qualquer

exemplar de evento mental é um exemplar de evento físico, numa relação de superveniência.

Esta tese requer que não seja possível formular leis estritas acerca do mental, ou seja, que “podem existir afirmações gerais verdadeiras que relacionem o mental e o físico” e podem até apresentar-se sob a forma de leis — podendo ser expressas através de condicionais contrafactuais e afirmações gerais, cuja correção vai sendo verificada empiricamente — “mas que não são nomológicas.”42 Para Davidson os predicados mentais e os predicados físicos são

tão dissimilares, que não há leis estritas que os possam relacionar (daí apelidar a sua posição de monismo anómalo). Em rigor o que está em causa é a redução ontológica de eventos mentais a eventos físicos devido à natureza causal da relação — que Davidson pensa poder ser expressa de vários modos.43

Falta somente distinguir entre o que Davidson apelida de leis estritas e leis não estritas, de forma a compreender claramente o que está em causa no monismo anómalo. Devemos começar por esclarecer que

leis devem ser frases verdadeiras universalmente quantificadas. Elas devem também ser nomológicas: devem suportar contrafatuais, e ser confirmadas pelas suas instâncias. […] Para serem qualificadas de estritamente nomológicas, não devem conter termos singulares referentes a objetos particulares, localizações ou tempos. Afirmações

40 Davidson, 1999, 30. (Itálico no original) 41 Davidson, 1970a, 214. (Itálico meu) 42 Davidson, 1970a, 216. (Itálico no original) 43 Cf. Secção 1.3.2.

(20)

estritamente nomológicas não contêm frases abertas como “permanecendo o resto igual”, ou “sob condições normais”.44

Para além disso, distingue também entre leis heteronómicas e autonómicas. As leis autonómicas caracterizam-se pela possibilidade de adicionar condições usando o mesmo vocabulário que a lei original usa, por exemplo nas leis da física em que novos dados podem ser introduzidos de forma a tornar uma explicação mais detalhada, sem que esses novos dados sejam formulados por outra ciência que não a física. Pelo contrário as expressões que podem denotar leis, mas que necessitam para a sua explicação de usar vocabulário de outras ciências, são apelidas de heteronómicas, e.g., nas considerações acerca da racionalidade de agentes, em que o vocabulário tanto da psicologia como da filosofia têm de ser usados para tornar claro aquilo que está em causa. Este tipo de lei é obviamente muito importante nas considerações acerca do monismo anómalo, ao permitir relacionar eventos mentais e físicos de forma complementar, ao mesmo tempo que permite a afirmação da existência de leis (não estritas) que regulam as relações entre os dois domínios.

São somente os eventos enquanto descritos no vocabulário do pensamento e da ação

que resistem a ser incorporados num sistema determinista fechado. Estes mesmos

eventos, descritos em termos físicos apropriados, são tão suscetíveis de previsão e de

explicação como outros.45

1.3.2 Ações, Razões e Causas

Uma razão (neste caso um par crença-desejo) racionaliza uma ação somente quando descreve o que o agente pretende ao executá-las e o que o leva a crer que essa é a melhor forma de o fazer — e.g., uma forma de explicar alguém ter escolhido uma pera em detrimento de uma maçã é dizer que o agente acha pêras mais saborosas do que maçãs e acreditou que comer uma pera e não uma maçã seria mais satisfatório.46 A este par Davidson chama razão

primária — a razão pela qual o agente executou uma determinada ação — e afirma ainda que

todas as razões primárias são causas das ações. “Central para a relação entre uma razão e uma ação que esta explica é a ideia que o agente executou a ação porque ele tinha essa razão.”47

44 Davidson, 1995b, 203-204. (Itálico no original) 45 Davidson, 1974, 230. (Itálico meu)

46 Cf. Davidson, 1963. Várias razões podem ser apontadas para uma determinada ação. O agente pode ter, por exemplo, preferência por frutas de cor amarela em detrimento de frutas de cor encarnada, da mesma forma que pode preferir frutas que não sejam esféricas, etc. O que importa são as razões que o agente possui e que causam a ação.

(21)

Uma razão racionaliza uma ação somente se nos leva a ver algo que o agente viu, ou pensou ver, na sua ação — alguma característica, consequência ou aspeto da ação que o agente quis, desejou, prezou, achou relevante, benéfico, obrigatório, ou agradável.48

Além disso a explicação de uma ação de um agente deve incluir i) a razão pela qual o agente executa a ação que executa e ii) a crença que a ação executada é apropriada para atingir os seus objetivos. Portanto apontar a razão pela qual alguém faz algo é apontar a pró-atitude, ou a crença relacionada, ou ambas. A razão primária é a razão pela qual um agente executa uma dada ação, e a razão primária é precisamente a causa dessa ação.49

“Redescrever a ação dá à ação um lugar num padrão, e neste sentido a ação é

explicada.”50 Para justificar a afirmação defende que as ações podem ser explicadas a partir de

razões e que, embora as causas sejam separáveis dos seus efeitos, não se segue que as razões não podem ser causas. Mas a inclusão num padrão mais geral não melhora a nossa

compreensão do que está envolvido na explicação das ações, porque o padrão (no seio do qual as razões encontrariam justificação) contém ele próprio razões e ações.

A noção de redescrição de uma ação tem ainda de enfrentar outros problemas. Tomemos o exemplo de um agente que pressiona um interruptor para acender a luz da sua casa. Esta ação pode ser redescrita apontando as razões que o levaram a executar a ação, nomeadamente, a crença de que carregar no interruptor acende a luz e o desejo de acender a luz na divisão da casa onde se encontra. Mas, sem que o agente saiba, ao acender a luz está também a permitir que alguém que o tem seguido fique a saber que já está em casa. Desta forma há duas formas de descrever a ação. Numa delas a ação é descrita como ‘o agente pressiona o interruptor para acender a luz’ e na outra como ‘o agente avisa o seu perseguidor de que está em casa.’51

Qualquer que seja a descrição das ações do agente, o único critério necessário é que as razões façam parte de um sistema de atitudes que possa ser atribuído ao agente de forma a preservar a sua racionalidade. Visto que a relação entre uma causa e uma ação é entendida como uma relação entre dois eventos, “no sentido em que um dos eventos causa o outro se for de facto a razão para ele,”52 essa relação pode ser entendida ao mesmo tempo como racional e

causal, sem que no entanto possa ser entendida em qualquer umas das duas descrições aqui em causa como uma lei estrita.

48 Davidson. 1963, 3. 49 Cf. Davidson, 1963.

50 Davidson, 1963, 10. A ideia de padrão refere-se ao conceito de racionalidade. Cf. seção 1.3.3. 51 Exemplo retirado de Malpas, 2010.

(22)

A noção de causa que aqui intervém deriva de uma tese específica de Davidson.53 Uma

causa pode ser definida como uma relação entre dois eventos, x e y, tal que há um único evento x que ocorreu antes de um único evento y, e x foi a causa de y. Embora a relação de causalidade se aplique a eventos, a descrição dessa relação diz respeito aos termos singulares que denotam esses eventos. As descrições da relação de causalidade são linguísticas, e podem ser expressas de formas variadas, mas a relação de causalidade ocorre entre eventos que são entendidos como particulares, portanto irrepetíveis. A descrição da relação entre x e y não é importante já que as relações de causalidade obedecem a condições de extensionalidade, i.e., a substituição de termos coextensionais na frase não altera o valor de verdade da mesma. O facto de a relação de causalidade poder ser descrita desta forma, permite não assumir à partida a existência de uma lei estrita que relacione (causalmente) tipos de eventos. Aquilo que interessa na explicação da causalidade é a estrutura lógica das frases verdadeiras que expressam relações de causalidade. A frase é verdadeira se e só se o evento denotado pela

primeira expressão causou o evento denotado pela segunda expressão.

1.3.3 Racionalidade

Davidson escreve: “entendo por racionalidade o que quer que envolva pensamento

proposicional.”54 Somente se há um padrão identificável nas ações de um agente, é que ele

pode ser considerado racional e a única forma de atribuir estas atitudes proposicionais particulares a alguém é vê-las como parte de um sistema coerente de atitudes — crenças, desejos e intenções: “o conteúdo de uma atitude proposicional deriva do seu lugar no padrão [de todas as atitudes]”55 e “estes princípios são partilhados por todas as criaturas que têm

atitudes proposicionais ou que ajam intencionalmente.”56 Ainda de acordo com Davidson,

um padrão naquilo que é observado é central para a inteligibilidade das escolhas de um

agente; ele determina a nossa capacidade para entender a ação como tendo sido feita

por uma razão.57

Deste ponto de vista, a racionalidade não pode ser entendida como um problema empírico. Tem de ser assumida à partida e qualquer coisa que se diga acerca da mente deve conformar-se com ela.

53 Cf. Davidson, 1993a; Davidson, 1995b; Evnine, 1991; Malpas,2010, §2.4; Glüer, 2011. 54 Davidson, 2001b, xiv. Cf. também Davidson, 1995a; Davidson, 2001c; Ludwig, 2004. 55 Davidson, 1970a, 221.

56 Davidson, 1985, 195.

(23)

A racionalidade pode ser vista (pelo menos) de um ponto de vista teórico ou de um ponto de vista prático. No primeiro caso incide sobre a questão de como se chega a ter crenças verdadeiras, excluindo casos de sorte epistémica. No segundo caso, incide sobre a questão de, dadas as crenças e os desejos de um agente, como pode este atingir os seus objetivos. O grau de racionalidade

de alguém depende do grau em que as suas atitudes exibem um padrão […] idealmente apropriado para a persecução dos seus objetivos práticos e teóricos.58

Davidson defende que é uma condição necessária para a racionalidade de um agente que este tenha atitudes proposicionais.59 Nesta classe de atitudes proposicionais inclui as

crenças, os desejos e as intenções.

Identificamos pensamentos, distinguimos entre eles, descrevemo-los pelo que são,

somente enquanto eles podem ser localizados dentro de um padrão denso de crenças

relacionadas.60

Ou posto de um modo ligeiramente diferente

Uma das formas como as proposições são identificadas e distinguidas umas das outras é pelas suas propriedades lógicas, o seu lugar numa rede lógica. Mas então não parece

ser possível ter uma atitude proposicional que não está racionalmente relacionada com outras atitudes proposicionais.61

É patente, portanto, que o autor considera a racionalidade um conceito normativo, i.e., que constitui o padrão a partir do qual é possível atribuir atitudes proposicionais a um agente.

Davidson defende igualmente que a atitude mais importante é a de crer, quando afirma que “crença — de facto crença verdadeira — desempenha um papel central entre as atitudes proposicionais. Deixem-me portanto falar de todas as atitudes proposicionais como

pensamentos.”62 A citação anterior reforça a ideia de que o autor considera que ter

pensamentos é ter atitudes proposicionais e que as crenças têm um papel fundamental para qualquer agente, pelo que a sua identificação será crucial para a interpretação.

A racionalidade ou capacidade de ter pensamentos implica então o holismo, i.e., a tese de que as crenças não existem em isolamento, mas que só podem ser identificadas em

contraste com muitas outras atitudes, sem que se possa afirmar sequer qual seria o número aceitável de crenças que um agente teria de possuir para que se lhe atribuísse a crença de que a neve é branca, por exemplo. Esta ideia é expressa quando o autor afirma que “as crenças

58 Ludwig, 2004, 345.

59 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1997a. 60 Davidson, 1982, 98. (Itálico meu) 61 Davidson, 1985, 189. (Itálico meu) 62 Davidson 1982, 99.

(24)

suportam-se e dão-se conteúdo umas às outras. As crenças têm igualmente relações lógicas umas com as outras.”63 Para que o agente possua essa crença, defende o autor, é necessário

que possua um grande número de outras crenças, por exemplo que a água é composta por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio, que pode existir sob diferentes estados físicos, que é essencial para a vida, que as pessoas praticam desportos na neve, etc. São estas relações que permitem identificar essas crenças, sempre por relação a outras crenças e conceitos.

Se os pensamentos existem em padrões de muitas atitudes, que se suportam

mutuamente, que tipo de relações existem entre as várias atitudes proposicionais? A resposta de Davidson é que têm entre si relações lógicas, tais como as proposições. Daqui conclui que “ter uma só atitude proposicional é ter uma lógica no geral correta, no sentido de ter um padrão de crenças logicamente coerentes.”64 Isto explica a ligação entre possuir atitudes

proposicionais e ser racional. Davidson afirma mesmo que “um grau de racionalidade ou consistência é portanto uma condição de possuir crenças.”65 A última frase parece defender

que consistência entre as crenças de um agente é semelhante a ser racional, ou, por outras palavras, que ser racional é não acreditar (conscientemente), e.g., numa conjunção da forma (p&~p). No entanto, tal não garante a impossibilidade de irracionalidade. Somente que o agente é irracional se estiver consciente da contradição e não modificar pelo menos uma das suas crenças tal que a contradição deixe de se verificar.66

A teoria de racionalidade que tenho vindo a expor parece enfrentar um problema com ações e atitudes proposicionais consideradas irracionais (pelos padrões dos intérpretes, pelo menos). Mesmo assim mencionarei alguns dos ensaios que tratam da questão da

irracionalidade, somente para ajudar a clarificar a racionalidade.

As atitudes proposicionais “nunca são irracionais por si só, mas somente como parte de um padrão mais vasto.”67 Portanto, só podemos considerar um agente irracional, segundo

Davidson, se presumirmos que ele é racional, visto que

qualquer criatura com atitudes proposicionais, tem de mostrar muita consistência no seu pensamento e ação, e neste sentido possuir os valores fundamentais da racionalidade; contudo, ele pode desviar-se destas, as suas próprias, normas.68

Deste ponto de vista, a racionalidade é de tal forma básica na interpretação de qualquer agente que até as ações e crenças irracionais só o são quando entendidas à luz dos princípios mais

63 Davidson, 1997a, 124. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1977. 64 Davidson, 1982, 99.

65 Davidson, 1997a, 124.

66 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1985. 67 Davidson, 1985, 192.

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gerais de racionalidade, que Davidson pensa, necessariamente, todas as criaturas capazes de pensamento possuem.

Qualquer atitude proposicional de um agente tem um lugar no padrão mais amplo de todas as atitudes proposicionais desse agente e esse lugar garante que a atitude em causa é logicamente coerente com um número indefinidamente grande de outras atitudes. Logo, não temos outra escolha a não ser encontrar um padrão de racionalidade no comportamento de um agente (caso contrário não conseguiríamos compreender nada acerca da forma como esse agente pensa). Se não conseguirmos atribuir a um agente racionalidade suficiente, não conseguimos interpretá-lo como um agente, i.e., como alguém na posse de atitudes

proposicionais à luz das quais as suas ações fazem sentido e as suas crenças estão justificadas. Logo, a interpretação radical obriga a encontrar racionalidade em qualquer padrão de crenças que possa ser atribuído aos interpretados.

Aquela característica que distingue crenças de outras atitudes é a sua objetividade já que o seu valor de verdade — serem verdadeiras ou serem falsas — depende não do agente que possui a crença, mas de algo exterior a esse agente.69 Daí que o caso particular das

crenças assuma uma importância especial — dado seu papel central no conhecimento do mundo. Assim sendo, ser racional implicará sempre ter crenças verdadeiras acerca do mundo (pelo menos nos seus traços mais gerais). Tal permite, entre outras coisas, que Davidson rejeite o ceticismo acerca do mundo exterior, por ser incompatível com a mente humana.

(26)

2. Interpretação Radical

Neste capítulo veremos com maior pormenor de que forma o projeto de interpretação radical poderia ser posto em prática. “No essencial o método será o de correlacionar frases tomadas

por verdadeiras com frase tomadas por verdadeiras através de uma definição de verdade.”70

Embora no método de interpretação radical não se possam separar as várias fases, para que a explicação fique clara é necessário identificar vários passos que devem ser dados para que, segundo Davidson, o método possa ter sucesso. Deve ficar no entanto sempre claro que a separação é artificial e que numa situação de interpretação radical os vários passos referidos a seguir têm necessariamente de ser dados em conjunto e os seus resultados continuamente revistos à luz de novas informações.

Assim na secção 2.1 abordarei a questão de como podem ser identificadas as palavras que expressam princípios lógicos numa língua completamente estranha. A secção 2.2 aborda o papel fulcral que as frases ocasionais têm na metodologia de interpretação radical. A secção 2.3 tenta tornar mais explícito de que forma um intérprete pode atribuir uma atitude de crença a alguém, mesmo que não saiba qual é o conteúdo dessa mesma crença. Na secção 2.4

procuro esclarecer o que são e de que forma intervêm na interpretação radical o princípio que Davidson denominou princípio de caridade. Aqui não só tentarei explicitar quais são as duas formulações que o princípio pode assumir, como também justificar a sua importância. Na secção 2.5 é abordada uma questão que se liga diretamente à filosofia do conhecimento de Davidson, nomeadamente a sua tese que o conhecimento tem três características fundamentais que se sustentam mutuamente, i.e., o conhecimento da própria mente, o conhecimento de outras mentes e o conhecimento do mundo exterior. A ideia central exposta nesta parte do trabalho é a de uma relação entre agentes racionais que procuram comparar as suas reações mútuas aos estímulos salientes do seu meio, a qual Davidson chama triangulação. Por fim a secção 2.6 trata de uma das consequências da interpretação radical. Devido à natureza das relações mente-mundo e à impossibilidade (dada a característica radical da interpretação) de confirmação externa da teoria que os intérpretes constroem, é possível a construção de várias teorias de interpretação igualmente bem sucedidas na sua missão, mas incompatíveis entre si.

(27)

2.1 Identificação dos Princípios Lógicos

O primeiro grande papel que a teoria da verdade vai ter na interpretação radical é na identificação do padrão de operações lógicas. Este primeiro passo na interpretação radical requer ler a nossa própria lógica nas ações do interpretado (entre as quais estão elocuções de frases). Como Davidson afirma: “não temos outra escolha senão projetar a nossa própria lógica nas crenças de outros” pelo que “a estratégia é assumir que as crenças de um

interpretado são logicamente consistentes.”71 Desta forma, neste primeiro passo aquilo que o

intérprete radical deve procurar é

a melhor forma de adequar a nossa lógica, tanto quanto necessário para produzir uma teoria que satisfaça a convenção-V, à linguagem nova; isto pode significar ler a estrutura lógica da teoria de quantificação de primeira ordem (com identidade) na linguagem, não tomando as constantes lógicas uma a uma, mas tratando pelo menos

esta parte da lógica como uma estrutura a ser adequada à linguagem de uma só vez. Os

indícios aqui serão as classes de frases tomadas sempre como verdadeiras ou tomadas sempre como falsas por quase todos os falantes (potenciais verdades lógicas) e padrões de inferência.72

Davidson parece assumir que a referência à lógica de primeira ordem com identidade é, para qualquer intérprete como nós, metodologicamente necessária para a interpretação e que qualquer agente racional — i.e., qualquer agente como nós — opera necessariamente segundo os mesmos princípios lógicos do que nós. Qualquer criatura capaz de pensamento tem uma estrutura de atitudes proposicionais coerente, i.e., cujas relações entre si não violam princípios lógicos fundamentais (os quais os agentes têm de respeitar, pelo menos do ponto de vista do intérprete). Caso contrário a interpretação seria desde logo impossível. Os princípios lógicos que regem o nosso pensamento têm, necessariamente de ser aplicados a qualquer pensamento de um agente que queiramos interpretar. Tal necessidade é expressa na seguinte passagem:

[s]e a metalinguagem possuir estrutura quantificacional vulgar, é difícil, se não for impossível, descobrir algo exceto estruturas quantificacionais vulgares na linguagem objeto.73

Quando, e se for possível resolver questões de forma lógica, o resultado da aplicação destes constrangimentos formais será a descoberta de padrões lógicos semelhantes em todas

71 Davidson, 1980, 157. (Itálico meu) Cf. também seção 1.3.3.

72 Davidson, 1973a, 136. (Itálico meu) A convenção-V refere-se à teoria tarskiana de verdade modificada por Davidson de forma a poder ser aplicada a línguas naturais tal que possa servir como teoria de interpretação para essa mesma língua. Nomeadamente que a noção de verdade é um princípio primitivo, que qualquer agente racional é capaz de explicitar e como tal pode ser aplicado na construção de frases-V capazes de interpretar expressões numa língua diferente.

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as criaturas racionais. Ler a estrutura da lógica de primeira ordem no pensamento de

qualquer agente capaz de ser interpretado é uma condição necessária para a possibilidade de interpretação radical: “o resultado da aplicação destes constrangimentos formais é, então,

adequar a linguagem objeto como um todo ao leito procustiano da teoria da quantificação.”74

Desta forma fixa-se como condição necessária para a existência de pensamento que a estrutura de atitudes proposicionais seja consistente, ou seja, que não contenha contradições lógicas.

A estrutura é formal no sentido em que é possível aplicá-la a qualquer conjunto de atitudes proposicionais de um agente e que não precisa de levar em conta o seu conteúdo. Este constrangimento requer somente que o intérprete construa a sua teoria de interpretação para que essa teoria produza concordância nos aspetos mais básicos do pensamento. Assim, o intérprete deve modificar a sua teoria de interpretação para que as ações e elocuções do interpretado continuem a preservar os princípios lógicos. O contrário tornaria a interpretação completamente arbitrária e portanto impossível. Por exemplo quando alguém afirma

verdadeiramente a frase “O Pedro é mais alto do que o Miguel” tem também de afirmar a verdade da frase “O Miguel é mais baixo do que o Pedro” sob pena de passar a ter duas crenças que violam os princípios lógicos mais elementares. Caso isso não aconteça, cabe ao intérprete modificar a estrutura da sua teoria (das suas crenças em relação ao significado das frases afirmadas pelo interpretado) de forma a acomodar a verdade de ambas as frases, preservando as leis do pensamento — de acordo com o que Davidson apelida de princípio de caridade (Cf. secção 2.4.1). O intérprete tem, repetindo a frase de Davidson, de fazer a lógica do interpretado acomodar-se no leito procustiano da sua própria lógica.

O mesmo se passa com o interpretado, já que este é simultaneamente intérprete. Ele tem de acomodar os seus princípios lógicos ao padrão lógico dos pensamentos da pessoa que está a interpretar. A mutualidade destes princípios cria espaço suficiente para que os erros de parte a parte tenham significado. Só desta forma é possível discordar de forma compreensível acerca de crenças tidas por qualquer agente e só se for possível discordar acerca de alguns pormenores ou identificar erros, é possível confirmar empiricamente a teoria de interpretação, pois o intérprete está obrigado a modificar o padrão de crenças que atribuirá ao interpretado de forma a vê-lo sempre como uma criatura racional.

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2.2 Frase Ocasionais

Tendo identificado as palavras que servem o propósito de operadores lógicos na linguagem do interpretado e as implicações que isso traz, o intérprete procura atribuir valores de verdade a frases ocasionais — aquelas cuja verdade ou falsidade depende de condições presentes na altura em que são proferidas — tais como ‘está a chover’. Visto que esta frase é verdadeira se e só se está a chover, nas imediações de quem a profere e é falsa se não é esse o caso, essa e outras frases ocasionais são indispensáveis para atribuir significado a alguns termos da linguagem.75

A interpretação de predicados comuns e nomes depende fortemente de elementos indexicais no discurso, tais como demonstrativos e tempo, já que são estes que mais diretamente permitem que predicados e termos singulares estejam relacionados com os objetos e eventos no mundo.76

Também a existência de demonstrativos e outros elementos indexicais nas linguagens naturais não pode ser ignorada nem posta de parte como irrelevante. Como lembra Davidson,

os demonstrativos não podem ser eliminados de uma linguagem natural sem perda ou

transformação radical, não restando portanto alternativa senão acomodar a teoria a

eles.77

A sua proposta é modificar a teoria de verdade de forma a relativizar, não as frases, mas elocuções de falantes a tempos. Uma teoria deste tipo teria como resultado que as condições de verdade da frase seguinte poderiam ser expressas da seguinte maneira: ‘Estou cansado’ é verdadeiro se (potencialmente) proferido por S, no momento t, se e somente se S está cansado no momento t.78

O uso de frases com elementos indexicais permite um teste muito mais sensível para correlacionar frases tomadas por verdadeiras por um agente com frases tomadas por verdadeiras por outro agente, já que mudanças nas condições que se verificam nas

imediações destes mudam os valores de verdade que lhes são atribuídos. São estas frases ocasionais que permitirão a Davidson afirmar que, embora só uma crença possa justificar outra crença, algumas partes desse conjunto terão de estar ligadas ao mundo exterior, de tal forma que não é possível um sistema de crenças coerentes em que não exista nenhuma

75 A estratégia é que podendo atribuir significado a um número suficientemente vasto de frases, é mais fácil atribuir significado às restantes, tendo o holismo como uma condição necessária para que haja pensamento e assumindo que o pensamento é expresso pela linguagem.

76 Davidson, 2005a, 64. (Itálico meu)

77 Davidson, 1967b, 33. (Itálico meu) O exemplo que se segue é retirado do mesmo ensaio. 78 Em que S refere o sujeito que profere a frase e t o momento em que a frase é proferida.

Referências

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