• Nenhum resultado encontrado

Transexual no recorte queer e o dever jurídico de explicitação de sua identidade de gênero

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Transexual no recorte queer e o dever jurídico de explicitação de sua identidade de gênero"

Copied!
181
0
0

Texto

(1)

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

Ítalo José Rebouças de Oliveira

NATAL/RN 2018

(2)

TRANSEXUAL NO RECORTE QUEER E O DEVER JURÍDICO DE EXPLICITAÇÃO DE SUA IDENTIDADE DE GÊNERO

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Leonardo Martins.

NATAL/RN 2018

(3)

Oliveira, Ítalo José Rebouças de.

Transexual no recorte queer e o dever jurídico de

explicitação de sua identidade de gênero / Ítalo José Rebouças de Oliveira. - 2019.

91f.: il.

Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2019. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins.

1. Direitos fundamentais Dissertação. 2. Transexual -Dissertação. 3. Dever jurídico - -Dissertação. 4.

Autodeterminação - Dissertação. 5. Personalidade - Dissertação. I. Martins, Leonardo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 342.7

(4)

TRANSEXUAL NO RECORTE QUEER E O DEVER JURÍDICO DE EXPLICITAÇÃO DE SUA IDENTIDADE DE GÊNERO

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Leonardo Martins.

Aprovado em 31/08/2018.

_________________________________________ Prof. Doutor Leonardo Martins

Presidente __________________________________________ 1ª Examinadora ___________________________________________ 2º Examinador ___________________________________________ 3º Examinador

(5)

Ao meu pai, maior incentivador da minha vida acadêmica. À minha mãe, Mari. À Mila, Mamá e Murilo.

(6)

A trajetória da realização de pesquisas científicas no Brasil é quase sempre tormentosa e mais cheia de dificuldades do que prazeres. Em um ambiente de crise econômica e política gravíssimas, os problemas se avolumam no percurso e o pesquisador tem, em geral, que realizar os malabarismos e sacrifícios financeiros, sociais, familiares e profissionais para apresentar uma pesquisa crítica e rigorosa sobre o tema proposto.

O alento é que nessa caminhada surgem as amizades, apoios, palavras de estímulo, os reconhecimentos e daí a gratidão é inevitável. Por essa razão que os trabalhos sempre guardam espaço para os agradecimentos. Dá mesmo vontade, ao final, de sair agradecendo e abraçando a cada um e cada uma que ajudou, incentivou, criticou, estimulou e permitiu que o caminho fosse trilhado – duro e difícil – junto, partilhado. Sob o chão seco, uma simples pétala de flor dá seu brilho e alívio.

Por isso, agradeço imensamente à carinhosa e sempre muito atenciosa orientação do Professor Leonardo Martins. Sou muito grato por cada crítica e palavra de estímulo e apoio, em especial aos desejos de “cuidado na estrada” que revelavam a doce gosto do “cuidado com o outro”. Para quem se propõe a pesquisar sobre direitos fundamentais, essa lembrança é providencial.

Agradeço também à Professora Ana Beatriz Presgrave. Suas críticas e considerações foram o norte para o aprimoramento de boa parte da linha de argumentação dessa pesquisa e a lembrança da seriedade e rigor que deve ser buscada na investigação de temas relevantes. Obrigado, Professora.

Obrigado aos membros da banca examinadora, professores e professoras do corpo docente do PPGD/UFRN e aos funcionários e funcionárias que prestam seus serviços e nos ajudam desde as coisas mais simples, às mais difíceis da caminhada.

Por fim, um agradecimento às minhas colegas e aos meus colegas de turma do Mestrado. Seguindo caminhos diversos, sempre nos encontrávamos nas curvas. É comum que mestrandos e mestrandas ao se esbarrarem, tentarem

(7)
(8)

O trabalho investiga a existência de um dever de conteúdo jurídico que racaia sobre as pessoas que vivenciem a experiência da transexualidade como identidade de gênero a explicitar sua condição nas suas relações perante o Estado e os particulares. A pesquisa tem por base a definição a respeito da transexualidade a partir de um marco teórico específico mais aproximado da chamada Teoria Queer ou “estudos transviados”, após contrapor as visões de Stoller e Benjamin, para discutir o exercício do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, na acepção da autodeterminação, como decorrência do valor da dignidade da pessoa humana. Desenvolve-se, como metodologia, uma pesquisa bibliográfica, sendo utilizado o método dedutivo e aplicação do critério da proporcionalidade para resolver as eventuais colisões de direitos fundamentais apresentadas em específico. Conclui-se que a transexualidade, no recorte das teorias queer, e com base no sistema constitucional vigente, deve ser lida como manifestação das subjetividades e individualidades, correspondendo ao exercício do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, na acepção da autodeterminação, e, eventuais relações formadas pelas pessoas transexuais e que reflitam colisões entre direitos fundamentais, devem ser resolvidas pela aplicação do critério da proporcionalidade a fim de verificar a existência de um dever jurídico de explicitação dessa identidade. Nas situações específicas analisadas, a investigação ora demonstrou a constitucionalidade da exigência dessa explicitação, ora a sua inconstitucionalidade.

Palavras-chave: Transexual – dever jurídico – direitos fundamentais – liberdade

(9)

The work investigates the existence of a duty of legal content obligation that binds people who experience the transsexuality experience as a gender identity to explain their condition before the State and individuals. The research is based on the definition regarding transsexualism from a theoretical landmark point brought by the Queer Theory or “deviance studies”, after opposing visions of Stoller and Benjamin, to discuss the exercise of the fundamental right to the free development of personality, within the meaning of self-determination as a result of the value of the dignity of the human person. As a methodology, a bibliographical research is developed, using the deductive method and applying the principle of proportionality to solve any collisions between fundamental rights as they are presented. It has concluded that transsexuality, on the Queer Theory point of perspective, and based on the constitutional system in effect, must be read as a demonstration of the subjectivities and individualities of a person, corresponding to the exercise of the fundamental right to the free development of personality within the meaning of self-determination and, any relationships that should have trans individuals and eventually are put in a collision of fundamental rights situation, should be solved by the application of the proportionality criteria, aiming to verify the existence of a legal duty to exhibit this identity. At the specific situations that are object of analysis in this work, the investigation has found that depending on the situation, the need of this explanation is found constitutional or unconstitutional.

Key-Words: transgender - legal duty - fundamental rights - freedom - personality

(10)

1 INTRODUÇÃO...11

2 TRANSEXUALIDADE: contextualização, conceituação e distinções...16

2.1 TRANSEXUALIDADE: Stoller, Benjamim, a teoria queer e o nosso recorte metodológico...19

3. JURIDICIDADE DO ELEMENTO SEXO/GÊNERO NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL E LEI DE REGISTROS PÚBLICOS (LEI 6.015/73)...28

3.1) Parâmetros constitucional...30

3.2) Níveis de exigibilidade do dado sobre “sexo/gênero” a partir de sua constitucionalidade e tratamento pela Lei de Registros Públicos...35

3.2.1) Nível inicial de exigência (Dever preliminar)...37

3.2.2) Nível posterior de exigência...40

3.3 TRANSEXUAL E AS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES...40

3.4 TRANSEXUAL E AS INTERVENÇÕES ESTATAIS (RELAÇÕES PERANTE O ESTADO)...45

3.4.1 Casamento...46

3.4.2 União Estável...57

3.4.3 Participação em eventos desportivos e culturais...58

3.4.4 Relações de trabalho: empregado e empregador...61

4. CENÁRIO LEGISLATIVO E JURISPRUDENCIAL: ATUALIDADE E PERSPECTIVAS FUTURAS...69

4.1.1 Panorama legislativo: atualidade e perspectivas futuras...69

4.1.2 Panorama jurisprudencial: premissas na formação dos precedentes...79

4.2.1 Atuação do Superior Tribunal de Justiça – STJ...80

4.2.3 Atuação do Supremo Tribunal Federal – STF...83

5. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS...87

(11)

1 INTRODUÇÃO

A dinâmica social e jurídica na atualidade é composta por inúmeros problemas antigos que ainda não foram tratados de forma suficiente, e, por problemas novos que sequer movimentaram substancialmente os estudiosos para o seu enfrentamento. Os primeiros provocam no ambiente acadêmico-científico reflexões e estudos de revisão, em um constante aperfeiçoamento das ideias, enquanto que os últimos despertam o início da construção das argumentações e análises que pretendem contribuir com a sua compreensão sistemática.

Em qualquer dos casos, desde que bem apresentadas as problemáticas, haverá relevância da pesquisa contínua e rigorosa.

Há, ainda, nesse contexto, temas já bastante antigos que se apresentam com novos ares e forçam o enquadramento científico das questões neles inseridas dada sua expansão nas relações entre os indivíduos e implicações na sociedade. Sobretudo nas ciências humanas, muitos temas não são absolutamente “novos”, mas, dado seu impacto social, variável geográfica e temporariamente, tornam necessárias reflexões constantes, numa tentativa de acompanhar o processo de penetração social da temática e possibilitar a melhor compreensão por parte da sociedade.

Um exemplo disso são as diversas questões que envolvem a relação entre sexualidade, gênero, sociedade, direito e moral.

Não há que se dizer que debates a respeito das relações homoafetivas, gênero ou mesmo transexualidade sejam nomeadamente “novos”, como se fossem fenômenos produzidos, com exclusividade, pela sociedade atual. Ao contrário, muitas das questões de pesquisa que são apresentadas sobre essa temática são reflexões novas a respeito de um tema antigo.

No que diz respeito à transexualidade, a ciência do Direito tem contribuído para elucidar muitas das dúvidas que surgem não apenas para as pessoas que ostentam essa condição, mas, também, para os demais que com elas se relacionam. Debates como a possibilidade jurídica de autorização para a realização da cirurgia de adequação, utilização do nome social e a alteração do prenome e da informação sobre o sexo no registro civil têm sido objetos de

(12)

estudo da doutrina jurídica e de juízes e tribunais no enfrentamento de casos concretos1.

Porém, em verdade, há outras questões de pesquisa que ainda não receberam o tratamento devido por parte dos estudiosos.

A caracterização do sujeito transexual implica, inegavelmente, uma condição peculiar que pode gerar debates relacionados às consequências jurídicas, tais como a possibilidade de responsabilização civil em caso de omissão do esclarecimento de sua condição perante o cônjuge, anulação do casamento, responsabilidade civil em caso de questionamento pelo terceiro da condição de transexual etc. Há, ainda, outras questões que podem advir da relação entre o indivíduo e o próprio Estado, presente o fenômeno da transexualidade, como, por exemplo, situações de concursos públicos em que a aplicação de testes físicos pode ser questionada diante da participação de uma pessoa trans.2

Grande parte dessas questões decorre da investigação da existência em tese de dever jurídico do transexual em explicitar sua condição perante terceiros, que configura o objeto central do presente trabalho.

A esse respeito é preciso compreender o foco da presente investigação para se concentrar no debate específico em que se funda.

1 Dois destaques em julgamentos no Supremo Tribunal Federal brasileiro: recurso extraordinário com repercussão geral já reconhecida (RE 845779, originário de Santa Catarina, relatoria do Min. Luís Roberto Barroso) definiu que “constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade 3. Repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias – uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas –, bem como por não se tratar de caso isolado”. E, o Recurso Extraordinário 670422, originário do Rio Grande do Sul, relator Min Dias Tóffoli, que discute sobre a utilização do termo transexual no Registro Civil. Ementa: “CONTEÚDO JURÍDICO DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL. DISCUSSÃO ACERCA DOS PRINCÍPIOS DA PERSONALIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, INTIMIDADE, SAÚDE, ENTRE OUTROS, E A SUA CONVIVÊNCIA COM PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA VERACIDADE DOS REGISTROS PÚBLICOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA”. 2 Ressalte-se, nesse caso, que é preciso cautela no sentido de se avançar com críticas que apontam para a tese de que tais questões de pesquisa partem do pressuposto do que pessoas transgênero ostentam condição idêntica a pessoas cisgênero e que qualquer forma de debate a respeito de tratamento desigual seria, pois, movida pelo preconceito. Não é forçoso considerar que a situação peculiar em que se apresenta a pessoa transexual pode sim conduzir a tratamento desigual que ofereça condições de uma igualdade material. Ademais, situações muito específicas que sói ocorrer presente a situação da transexualidade, revelam que há certos temas de conteúdo jurídico que merecem atenção. A ciência não pode servir de panfletagem ideológica, qualquer que seja, nem ter os melindres de evitar temas em face das polêmicas do porvir.

(13)

Isso porque quando se trata de discussões a respeito de gênero e sexualidade, uma infinidade de debates e teorias surge em um cenário conturbado de ideias, discursos e argumentações.

O primeiro capítulo do trabalho se dedica, portanto, a cuidar dos parâmetros terminológicos e conceituais, definindo o recorte metodológico em que se tratará do conceito da origem da transexualidade. Algumas distinções conceituais são imprescindíveis para que se possa fazer uso das expressões corretas a indicar o que de fato se pretende. Assim, não há de se confundir conceitos como gênero, expressão de gênero, identidade de gênero, sexualidade, orientação (vocação sexual), e a partir dessa distinção, situar a figura da pessoa transexual como sujeito social, inclusive com direitos e deveres na ordem constitucional.

Atualmente, os diversos debates a respeito das questões que envolvem gênero, sexualidade, direito e moral, implicam uma crescente necessidade de aprimoramento das bases teóricas de compreensão do tema, sobretudo em razão de que é cada vez mais forte a participação nos grupos sociais desses novos sujeitos, com novos perfis, a exigir o tratamento jurídico eficaz para os chamados grupos minoritários.

O questionamento a respeito de uma suposta existência de um dever jurídico de explicitação da condição de transexual perante o Estado e terceiros, antes de tudo, insere o indivíduo como sujeito de direitos permitindo o gozo das mais diversas posições jurídico-subjetivas, seja para exigir de parte do Estado prestações ou omissões, seja para a imposição em face de particulares.

As inúmeras possibilidades de ocorrências de fatos sociais relacionados com a questão do transexual, com as mais diversas implicações jurídicas, revelam a necessidade da formulação teórica sólida a fim de contribuir com a correta inserção dessas pessoas como sujeitos de direitos na ordem jurídica nacional.

Tome-se como exemplo, apenas para elucidar, a seguinte situação hipotética: dois jovens se conhecem em uma festa e iniciam um relacionamento amoroso sólido que os leva ao noivado e posterior casamento. A vida sexual ativa, como de um casal qualquer, e, certo momento da vida conjugal, o homem sugere que devem começar a pensar em ter filhos. Nesse momento, após longo período juntos desde o namoro, ela resolve contar que, na verdade, não nasceu

(14)

mulher e que, portanto, não pode engravidar. Pergunta-se: é essa hipótese de anulação do casamento? Haverá, no caso, responsabilidade civil para indenizar os eventuais danos supostamente alegados por aquele que se sentiu “enganado”?

Essas questões têm por base a problemática apresentada no presente trabalho, uma vez que a correta caracterização da identidade de gênero do transexual e a elucidação da dúvida a respeito da existência de um dever jurídico de explicitação da sua condição perante o Estado e terceiros são seu ponto de partida.

A temática específica proposta no presente trabalho não recebeu, ainda, tratamento por parte da legislação nacional. Grande parte dos trabalhos acadêmicos que abordam as problemáticas relacionadas aos direitos do transexual encaminham-se na análise dos direitos de personalidade referentes à alteração do prenome e sexo no registro civil, ao direito de autodeclaração, uso de banheiros, mas sem consignar a respeito da eventual existência de um dever jurídico de explicitação da condição de transexual por parte do sujeito em suas relações privadas e perante o Estado.

A pretensão em responder, à luz da distinção entre juízos morais e jurídicos, acerca da eventual existência de um dever jurídico do transexual em explicitar sua condição nas suas relações sociais, nesses moldes, não tem sido objeto de análise.

Isso porque não há pretensão em investigar a existência ou a moldura de um esquema moral que supostamente coaja a pessoa transexual em explicitar sua condição nas suas relações perante terceiros e o Estado; mas de verificar se no panorama jurídico-dogmático tal dever existe.

A preparação de uma legislação que atenda ao contexto específico da construção das identidades de gênero para além do binário oferecido pelo discurso dominante, e a construção de uma jurisprudência que atenda aos padrões de previsibilidade, segurança jurídica e racionalidade dentro de uma temática ainda pouco explorada, dependem, grande parte, da interpretação e aplicação de alguns direitos fundamentais no contexto das relações de gênero. No segundo capítulo busca-se apresentar alguns dos fundamentos constitucionais e jusfilosóficos aplicáveis ao reconhecimento da identidade

(15)

transexual e de que maneira esses fundamentos podem auxiliar na resposta ao problema inicial.

O terceiro tópico situa o transexual nesse contexto e analisa cenários específicos para a investigação da existência de um dever jurídico de explicitação de sua transição entre gêneros. São analisadas as relações de casamento, formação e caracterização de União estável, participação em eventos desportivos, participação em eventos culturais e relações de emprego. Na maioria dos casos, a solução a respeito da questão que envolve saber se existe o dever de explicitação do trânsito entre gêneros revela colisão entre direitos fundamentais, demandando aplicação do critério da proporcionalidade em quatro etapas.

Ao final, apresenta-se um panorama geral do atual tratamento legal e jurisprudencial sobre a pessoa transexual, e, com base nas premissas estabelecidas antes, algumas perspectivas futuras para esse tratamento.

(16)

2 TRANSEXUALIDADE: contextualização, conceituação e distinções

A multiplicidade de vertentes nos debates que envolvem as questões de gênero implica em uma pluralidade de definições a respeito da identidade da pessoa transexual e visões sobre a origem e características da transexualidade. De um ou outro modo, é possível dizer de início que a transexualidade é um fenômeno factual3 e, por essa razão, demanda esforços da comunidade científica para identificá-lo com precisão e, a partir disso, estudar os impactos nas mais variadas vertentes do conhecimento.

Para efeitos da problemática desse trabalho que se situa no campo da ciência do Direito, a investigação diz respeito a saber se caracterizada a pessoa como transexual recai sobre ela um dever de conteúdo jurídico específico de explicitar sua identidade como transexual nas suas relações entre particulares e o Estado.

Contudo, a formulação de uma linha argumentativa coerente que possa oferecer uma resposta razoável a essa questão depende, inicialmente, de um recorte metodológico para se definir, a partir disso, a base teórica sobre a qual se conceitua a transexualidade como elemento decisivo para o problema apresentado.

Isso porque as variações de abordagens a respeito do termo podem impactar nas consequências jurídicas da investigação de eventual dever jurídico no sentido de obrigar a pessoa transexual em deixar evidenciado esse aspecto de sua individualidade.

Estaria a transexualidade situada no campo dos aspectos psíquicos? Trata-se de manifestação dos perfis biológicos? Ou se enquadra no cenário dos arranjos sociais?

Dizendo de outro modo: trata-se de coercitiva característica inata ou “defeituosa” da personalidade psíquica, desarranjo dos sistemas biológicos e endocrinológicos, ou consequência do livre desenvolvimento da personalidade em um mundo de conceitos plurais e de vivências e experiências dinâmicas?

3 No sentido de que é um “fato da sociedade” ou, se preferirem, um “fato na sociedade” para evitar confusões precipitadas de se entender que o conectivo “da” indica um “produto”.

(17)

A resposta a essas questões preliminares depende do referencial teórico adotado sobre o qual devem se desenvolver, coerentemente, os argumentos posteriores que enfrentam o problema inicial.

A título exemplificativo, na hipótese do debate a respeito do casamento – abordado adiante – apenas essa demarcação teórica pode auxiliar a evitar soluções diversas – e até mesmo antagônicas algumas vezes – para uma mesma pergunta: haveria validade ou invalidade de uma celebração de casamento no caso de um dos nubentes não ser informado a respeito da transexualidade do/a outro/a?

O elemento normativo eventualmente utilizado para indicar a existência de “erro essencial sobre a pessoa” dependerá, antes, do próprio conceito de transexualidade referenciado para se definir se estar-se ou não diante de um vício e em que momento ele se “manifestaria”.

Assim, se João casa com Maria e posteriormente é informado de que Maria é transexual, soluções jurídicas diversas poderiam ser apresentadas caso se entenda ser a transexualidade dado inato ou “defeituoso” da personalidade, desajuste biológico ou construção a partir das visões de mundo lastreadas no exercício das liberdades e individualidades. O mesmo se diga no caso de João casar com Maria e após ser informado por ela do seu desejo atual de transitar para o gênero oposto. O acionamento dos instrumentos legais variará consideravelmente conforme a visão que se tem desse fato da vida que é a transexualidade dos sujeitos.

Daí principiarmos por essa tarefa.

O termo “transexual” foi citado a primeira vez na literatura científica em um trabalho de Hirschfeld em 1923, sendo utilizado sem qualquer distinção com o travestismo e em conjunto com as ideias relacionadas ao homossexualismo. Só em 1940 foi que o termo ganhou nova conotação para representar o desejo de um indivíduo de viver o papel do sexo oposto ao do seu nascimento. 4

É possível agrupar as teses que buscam definir a origem da transexualidade em dois grandes grupos: um que realiza uma leitura do

4 PINTO, Maria Jaqueline Coelho. A vivência afetivo-sexual de mulheres transgenitalizadas. 2008. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2008. doi:10.11606/T.59.2008.tde-27052008-141851. Acesso em: 02.07.2018, p. 42.

(18)

fenômeno a partir de um referente psicanalítico com propostas de critérios que tornem possível não apenas o diagnóstico, mas, também, o tratamento a partir da escuta terapêutica; e o segundo grupo que visualiza a transexualidade como originária de uma estrutura de caráter biológico. O primeiro grupo tem como propulsor das ideias o psicanalista Robert Stoller, já o segundo tem por base os trabalhos de Harry Benjamim.

A existência desses dois troncos explicativos sobre o chamado “dispositivo da transexualidade”, sugerido por Berenice Bento, baseados nas teses de Stoller e Benjamim, não significa negar a multiplicidade de teses e pesquisas sobre o fato. Porém, em geral, os mais diversos trabalhos sobre essa temática estão agrupados ou em torno da posição psicanalítica ou ao lado da visão biologista.5

Hoje, somam-se a esse debate os estudos que visualizam a transexualidade como uma manifestação de uma vivência das identidades construídas nos ambientes culturais e sociais, de forma flúida, inseridos no contexto dos debates a respeito de gênero.6

5 BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo...p. 168-169.

6 A respeito da multiplicidade do debate sobre as questões de gênero, Thaysi Cruz da Costa e Rita de Lourdes Lima escrevem que: “Percebe-se que a discussão de gênero é um terreno em constantes tensionamentos, de pensamentos diversos e por vezes distintos. Costa (1994) destaca algumas perspectivas de análises, com as quais a categoria gênero foi se construindo e se constituindo durante seu percurso teórico. A autora apresenta 5 perspectivas. A primeira trabalha a discussão de gênero como uma variável binária. Essa vertente foi formulada no campo de estudos da linguística, sob um viés positivista, na qual os pesquisadores atentavam para correlações estatísticas entre o gênero do interlocutor, diferenciando a linguagem feminina da masculina. Já a segunda vertente discutia o gênero enquanto papéis dicotomizados, em que se enfatizava o caráter social do gênero, compreendido como os papéis assumidos pelos indivíduos na sociedade. Ou seja, a ênfase era dada às representações sociais de feminino e masculino que são moldadas na sociedade. A terceira linha de estudo corresponde ao gênero como variável psicológica. Nesse campo o gênero é tido como uma orientação ou força da personalidade, analisado a partir de coeficientes, numa escala de grau, onde se tem o coeficiente de alta masculinidade e feminilidade, tendo a androgenia como uma combinação das pontuações elevadas. A quarta vertente refere-se ao gênero como sistemas culturais partindo do pressuposto de que as diferenças entre homens e mulheres deve-se ao fato de que estes vêm de diferentes subculturas sociolinguísticas “em que aprenderam diferentes regras para interação, diferentes modos de discurso, (...) e diferentes direitos e deveres de falar e ouvir (COSTA, 1994, p. 154); e por fim, a quinta vertente aponta o gênero como relacional, analisa o sistema social de relacionamentos em que estão situados os interlocutores. Na verdade, inúmeras abordagens que utilizam gênero o fazem utilizando essas diferentes linhas de análise, mesclando-as.” Gênero e tendências contemporâneas: uma análise do Seminário Internacional “Desfazendo gênero”, Revista Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 14, n. 2, p. 416 - 429, ago./dez. 2015.

(19)

A proposta do presente capítulo é apresentar essas diferentes visões a respeito da transexualidade e, a partir daí, realizar o recorte metodológico que será utilizado como base teórica para a definição da transexualidade e relacionar tal conceito com a problemática do trabalho a respeito de eventual dever jurídico de explicitação dessa característica da pessoa em suas relações.

2.1 TRANSEXUALIDADE: Stoller, Benjamim, a teoria queer e o nosso recorte metodológico.

Robert Stoller escreveu em 1975 o livro “A experiência transexual” apontando os principais elementos psicanalíticos indicativos para a possibilidade da “anormalidade sexual”, envolvendo o homossexual, bissexual, travesti e transexual.

Para essa corrente de pensamento, a origem da transexualidade estaria na relação da criança com sua mãe que invejava a posição dos homens e seu desejo inconsciente de ser homem era transferido para o filho. A ligação extrema da mãe superprotetora com o seu filho não permitia a deflagração psíquica do conflito de Édipo dada a inexistência da rivalidade com a figura paterna. Assim, a verdade sobre o transexual estaria em sua infância, sendo a essência a relação com a mãe.7

A descrição da “mãe stoleriana” indicadora de um comportamento desviante do feminino é de uma pessoa enérgica, eficiente, afeita aos negócios, vestindo-se de uma maneira masculina, cabelos curtos e sempre utilizado slacks e camisas do seu marido.8

Nessa abordagem, a experiência transexual desmonta o padrão psicanalítico arquitetado pelas ideias de Stoller e, assim, recebe o rótulo de doença. A atuação de um terapeuta poderia interferir nesse processo e readequar o comportamento para que sejam afirmadas as masculinidades na criança, evitando, assim, uma transexualidade na fase adulta.

Na tentativa de provar o sucesso da terapia em crianças, Stoller apresenta “resultados” do tratamento, como o caso de uma lista feita por um menino em terapia com comportamentos que ele deveria evitar para firmar-se como homem:

7 BENTO, Berenice. p. 170. 8 BENTO, Berenice, p. 170.

(20)

1- Não brincar com meninas;

2- Não brincar com bonecas de meninas; 3- Não se vestir com roupas de meninas; 4- Nem mesmo olhar no armário da irmã; 5- Não se sentar como uma menina; 6- Não falar como uma menina; 7- Não ficar de pé como uma menina; 8- Não pentear o cabelo como uma menina; 9- Brincar como um menino;

10- Não usar maquilagem;

11- Não deixar que seu quarto pareça um quarto de menina; 12- Não fazer poses

13- Ser um menino.9

Percebe-se que os esforços das visões psicanalíticas são para que se possa enfileirar os conceitos de sexo, comportamento social e afetividade sexual10, de maneira que o desvio desse padrão corresponderia a uma patologia. Assim, se o menino nasce com pênis, há desde logo uma expectativa comportamental para sua convivência em sociedade que ele precisa atender e performar dentro do esperado, da mesma maneira que seus desejos sexuais já devem estar preparados para apontar para o sexo oposto, a mulher. O mesmo se diga da mulher.

O papel do terapeuta é corrigir ou reforçar esse alinhamento. Nesse caso, o transexual apresentava dois “problemas”: 1) a insatisfação com o órgão genital e sua designação de sexo originário; 2) o desejo sexual despadronizado. A correção deveria, desse modo, se dar em ambos os cenários.

Na visão psicanalítica de base stoleriana, a experiência da transexualidade correspondia, portanto, como um desvio da normalidade padrão na medida em que a pessoa desejava estar no corpo do sexo oposto, e não necessariamente dirigia seu desejo sexual para o sexo correspondente ao

9 STOLLER, Robert, APUD, Bento, Berenice. A reinvenção do corpo…p. 177.

10 Preferimos usar a expressão “vocação sexual” para referirmo-nos às manifestações afetivos/eróticas. Nesse caso, o conceito diz respeito ao sentimento de atração e satisfação do ponto de vista afetivo/erótico dos indivíduos entre si. Como se sabe, expressões como “opção sexual” ou, mais recentemente “orientação sexual” foram amplamente utilizadas para designar o comportamento sexual. O termo “opção” foi abandonado por significar uma “escolha voluntária”, incompatível com as manifestações de atração/satisfação do desejo. Ao nosso ver, também inconveniente a expressão “orientação sexual” dado que corresponde, certa medida, a uma ideia de que a pessoa foi “guiada/orientada” para as manifestações afetivo/eróticas, ou que “guia/orienta” terceiros sobre isso, o que, inclusive, reforçaria a tese da patologização do comportamento sexual e seu tratamento. A melhor expressão que designa o sentido espontâneo e individual das manifestações da liberdade de escolha dos parceiros sexuais é, portanto, a que aponte para um sentimento íntegro não deliberado, mas intrínseco da visão de mundo do sujeito, como releva a locução “vocação sexual”.

(21)

esperado. Nesse caso, a cirurgia de redesignação de sexo era o tratamento coerente e eficaz. Se, eventualmente, a pessoa transexual narra que não tem desejo de realizar o procedimento médico-cirúrgico, seria orientada a assumir a homossexualidade para adequar seu estado psíquico ao seu comportamento social. 11

Esse modo de ver a transexualidade12 teve forte impacto na ciência a ponto de se categorizar a transexualidade como patologia clínica, no Cadastro Internacional de doenças, o que foi recentemente alterado pela Organização mundial da saúde – OMS. 13

A corrente adversa à visão da psicanálise sobre a transexualidade advoga a ideia de que a origem desse comportamento está na biologia e na definição de “sexo”. Harry Benjamim, principal teórico dessa vertente de pensamento, defendeu que o “sexo é composto por vários sexos: o cromossomático (ou genético), responsável pela determinação do sexo e do gênero (XX para mulheres e XY para homens); o gonádico (gonodal) que poderia ser dividido em sexo germinal (procriação) e o endocrinológico; o fenotípico, caracterizado pelas aparências físicas; o psicológico, relacionado ao entendimento e aceitação psíquica dos papeis relacionados ao corpo biológico

11 Vieira explica: “Transexual é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo uma concepção moderna, o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem. Um transexual feminino é, evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de neurodiscordância de gênero. Suas reações são, em geral, aquelas próprias do sexo com o qual se o norte.” VIEIRA, Tereza Rodrigues. Mudança de sexo – aspectos médicos, psicológicos e jurídicos. Psicólogo

inFormação. São Paulo: ano 4, n. 4, p. 63-77, jan/dez. 2000, p. 64.

12 Pinto pondera ao trazer lição de Frignet que “substituir o sexo pelo gênero permite propor, à primeira vista, uma explicação elegante da transexualidade: [...] haveria, de um lado, o sexo real, o da reprodução sexuada, imposto pela natureza, consagrado em geral pela aparência e quase sempre aceito pelo indivíduo; e, do outro, o registro subjetivo do gênero que, na maioria dos indivíduos, concordaria com o sexo, o transexualismo mostrando, no entanto, a possibilidade de uma discordância. Tal hiato, insuportável para o sujeito, levaria o transexual a querer uma modificação de seu sexo para pôr este de acordo com o seu gênero.” PINTO, Maria Jaqueline Coelho. A vivência afetivo-sexual de mulheres transgenitalizadas. 2008. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2008. doi:10.11606/T.59.2008.tde-27052008-141851. Acesso em: 02.07.2018.

13 Recentemente (18.06.2018), a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou durante lançamento da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11), a retirada dos transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais. Dessa maneira, o termo foi descolado para o capítulo sobre saúde sexual, e passa a ser chamado de incongruência de gênero.

(22)

(o sexo psicológico é o mais flexível) e o jurídico, estabelecidos pelas normas da sociedade e leis jurídicas.

Segundo Berenice Bento

Ao localizar a origem das identidades de gênero no sexo cromossomático e a sexualidade no sexo germinal, Benjamim reafirma e reatualiza Tardieu, para quem a verdade última dos sujeitos deveria ser buscada não nos comportamentos, mas na biologia dos corpos, e, no caso de Benjamim, principalmente nos hormômios. A consequência imediata das posições de Benjamin é a definição da transexualidade como uma enfermidade.14

O procedimento cirúrgico também é visto por essa corrente de pensamento como o tratamento correto para que se possa adequar o corpo às experiências da sexualidade, tidas por “normais” a partir do sexo compreendido. Logo, uma pessoa que nasceu homem diagnosticado como transexual deveria, necessariamente, submeter-se a cirurgia para que seu corpo pudesse tomar a forma feminina e estar pronto para prática sexual com o sexo oposto, numa clara busca de alinhamento entre o sexo corporal e o desejo. Fato é, porém, que essa lógica não corresponde a realidade de toda pessoal transexual.15

Essas formas de visualizar o fenômeno factual da transexualidade contribuíram para universalizar o conceito patológico, o diagnóstico e o tratamento, diferenciando do travestismo e da homossexualidade.

No presente trabalho essas visões a respeito da transexualidade não serão adotadas como base teórica para nossas formulações. Primeiro porque a patologização da transexualidade vem sendo abandonada paulatinamente pela própria ciência; segundo porque conceitos diversos como corpo, comportamento social e desejo sexual são indevidamente alinhados como consequentes óbvios (corpo-pênis-comportamento masculino-desejo pela mulher); e, terceiro porque na compreensão vigente que tem sido objeto de fundamentação por parte dos juízes e tribunais que autorizam as alterações e averbações nos Registros Civis

14 BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo, p. 186.

15 “Ao longo do meu trabalho de campo, conheci histórias de vida de transexuais que tem uma vida sexual ativa; vivem com seus/as companheiros/as antes da cirurgia; pessoas que fazem a cirurgia não para manterem relações heterossexuais, pois se consideram lésbicas e gays. Aproximei-me de outros que não acreditam que a cirurgia lhes possibilitará ascenderem à masculinidade ou à feminilidade, pois defendem que suas identidades de gênero não serão garantidas pela existência de um pênis ou de uma vagina e que, portanto, a principal reivindicação é o direito legal à identidade de gênero, independente de cirurgia.” BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo, p. 189.

(23)

de pessoas transexuais, está, em geral, fixado – como se verá adiante – que o exercício da liberdade de desenvolvimento da personalidade, no contexto das relações de gênero é que explica melhor essa vivência das identidades, conforme se verá em seguida.

Atualmente, eclodiram as visões que rediscutem o papel do gênero na definição do sexo e das identidades. Os chamamos “estudos transviados” ou da “Teoria Queer” reproblematizam os esquemas prévios definidores dos padrões para questionar a legitimidade das identidades impositivas. 16

Nessa perspectiva, a transexualidade passa a ser concebida como uma vivência das pessoas17 e corresponde a uma identidade de gênero experimentada a partir das concepções de mundo do sujeito18. Trata-se, pois, de uma decisão íntima em performar sua identidade conforme suas concepções de vida, sem, coercitivamente, vivenciar os padrões de identidade que lhe foram impostos, ou admitir a sexualização do corpo dentro da heteronormatividade.19

16 Anotam, Connell e Pearse que “nos anos 1990, essa linha de pensamento deu origem a um movimento transgênero influenciado pela teoria queer, sobretudo nos Estados Unidos, que desde essa época teve impacto considerável em todo o mundo. Esse movimento enfatizou a instabilidade de fronteiras do gênero, rejeitou o “binarismo” entre masculino e feminino e tentou, de várias maneiras, viver de fora, ou para além, ou através das categorias de gênero.” CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Tradução e revisão técnica Marília Moschkovich, São Paulo: nVersos, 2015, p. 214.

17 PINTO anotou que o "fenômeno transexual" começou a compor o quadro das modificações históricas da percepção científica, cultural e política da identidade sexual no século XX. Por conseqüência, a sociedade contemporânea passa por transformações significativas, e múltiplos arranjos surgem fora do referencial binário dos corpos (masculino e feminino). Em vista disso, os movimentos das chamadas “minorias” sexuais têm merecido especial atenção de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores e psicólogos, entre outros. É, portanto, dentro desse quadro de diversidade que a transexualidade precisa ser compreendida.” PINTO, Maria Jaqueline Coelho. A vivência afetivo-sexual de mulheres transgenitalizadas. 2008. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2008. doi:10.11606/T.59.2008.tde-27052008-141851. Acesso em: 02.07.2018.

18 É essa visão do discurso que faz com que Butler tenha afirmado ao tratar sobre o que chamou de ordem compulsória do sexo/gênero/desejo que “concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado casual do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo.” BUTLER, Judith P. Problemas

de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15a edição, tradução de Renato Aguiar, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017, p. 25-26.

19 “A experiência transexual destaca os gestos que dão visibilidade e estabilidade aos gêneros e estabelece negociações interpretadas, na prática, sobre o masculino e o feminino. Ao mesmo tempo quebra a causalidade entre sexo/gênero/desejo e desnuda os limites de um sistema binário assentado no corpo-sexuado (o corpo-homem e o corpo-mulher). (...) os olhares acostumados no mundo dividido entre vagina-mulheres-feminino e pênis-homem-masculino ficam confusos, perdem-se diante de corpos que cruzam os limites fixos do masculino/feminino e ousam reinvidicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e ao

(24)

Uma “decisão” que não pode ser considerada arbitrária, “sem sentido” e deliberadamente consciente, mas que é tomada, ao contrário, mediante um largo processo de formação/construção da personalidade, deslocado politicamente dos padrões – não por uma questão de simples discurso político desafiador – fundado na liberdade individual de um modo de ser no mundo e de viver conforme suas percepções subjetivas.

Perceba-se que a partir desse marco teórico a identidade de gênero do transexual deve ganhar vida própria, como expressão da identidade, parte integrante da dignidade da pessoa humana, conforme se destacará a seguir. Assim, a transexualidade pode ser melhor compreendida desplugada desse viés patológico de síndrome, nem como uma posição discursiva, mas como um conjunto que compõe uma trajetória de vida surgida de contradições nessa “corporificação social”.20

A expressão “trans” é um termo guarda-chuva utilizado por algumas pessoas que se declaram em situações de trânsito identitário de gênero, seja como uma negativa política aos padrões (drag queen, drag king, crossdress), seja como manifestação de suas individualidades e dos deslocamentos das identidades, como é o caso do travesti e do/da transexual.

Por terem um gênero que lhes foi atribuído sem negociação que não as contemplam (feminino/masculino) e pelo fato de se identificarem com gênero distinto vivenciam a experiência entre gêneros, ficando entre o gênero de atribuição e o de identificação. 21 e 22

Desde um ponto de vista discursivo, não há porque restringir as

fazê-lo podem ser capturados pelas normas de gênero diante da medicalização e patologização da experiência.” BENTO, Berenice Alves de Melo. O que é a transexualidade? São Paulo: Braziliense, 2008, Coleção primeiros passos, p. 21-22.

20 Nesse sentido, CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Tradução e revisão técnica Marília Moschkovich, São Paulo: nVersos, 2015, p. 216.

21 MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Inclusão de travestis e transexuais

através do nome social e mudança de prenome: diálogos iniciais com Karen Schwach e outras fontes. Artigo publicado na Revista Oralidades, Universidade de São Paulo, Ano 06,

Número 11, Jan/Julho 2012, p. 91.

22 Destaque-se que o uso da nomenclatura transhomem e transmulher para exprimir essa identidade específica, a nosso ver, ao invés de corresponder a uma manifestação de rótulo de conteúdo preconceituoso, realiza uma afirmação dessa identidade como manifestação própria, livre e soberana do indivíduo. Se a pessoa deseja ser reconhecida com essa identidade, ou se prefere assumir o binário homem-mulher, ou mesmo identificar-se como “sem gênero”, a isso corresponde um exercício de vivência da identidade.

(25)

performances de identidade ao binário discursivo dominante.23 Assim é que poder-se-ia afirmar em síntese:

a) as construções discursivas, ideológicas e de poder que configuram o binário das identidades de masculino e feminino não podem ser impostas coercitivamente, nem excluem as diversas possibilidades de experiências de vida da pessoa, sobretudo nos contextos da sociedade atual;

b) a pluralidade das visões de mundo possibilita ao indivíduo a construção de suas identidades24, inclusive de gênero, sendo a transexualidade uma dessas identidades possíveis;

c) a transexualidade corresponde a uma dada identidade de gênero, performando as figuras do transhomem e transmulher que vivenciam as experiências do masculino e do feminino segundo suas formas de ver e pensar a si mesmo e seu lugar no mundo.

Toda essa relevantíssima discussão a respeito dessa “construção” do gênero implica debate profundo do ponto de vista teórico, mas que, aqui, será utilizado como pano de fundo para a solução da problemática apresentada.

Não há, pois, um compromisso prévio em aprofundar as teorias de gênero ou posicionar-se diante delas, senão que utilizá-las para compreender o fenômeno da pessoa transexual e então problematizar a questão do eventual dever de explicitação ou do direito ao sigilo.

Longe de embandeirar correntes ideológicas específicas na suposta defesa de direitos de grupos minoritários, a adoção do referencial teórico a partir das teorias queer é uma constatação do atual cenário da posição jurisprudencial. A partir das expectativas sociais desses comportamentos é que constroem os conceitos de “masculino” e “feminino”. Assim, tomamos gênero

23 Já desde o ponto de vista do sistema jurídico-normativo, é preciso ter em conta, como já afirmado em nota acima, que em diversas situações o sistema jurídico impõe que se opte por uma das correntes discursivas do binário homem-mulher, como, por exemplo, para aplicação das regras de aposentadoria. Esse debate será feito adiante ao se analisar o conteúdo desse dever jurídico.

24 Como afirmou Foucault ao supor que “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”, assim, nas questões de gênero, estar-se-á diante de uma pluralidade de visões, todas moldadas pelo discurso majoritariamente construído à luz dos consensos morais articulados ao longo da história, sob as mais diversas influências.” FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,

pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24a

(26)

como algo posto. É possível reconhecer uma pessoa como homem ou mulher, menino ou menina, de forma instantânea e com base nesse reconhecimento organizar nossos afazeres em torno dessa distinção. Casamentos, esportes e toda a convivência social moldam-se às expectativas de padrões de comportamento atribuídas aos sexos biológicos.25

Essa definição prévia do marco teórico que conceitue a transexualidade é importante, sobretudo, porque uma vez caracterizada a pessoa como transexual para efeitos de aplicação das normas jurídicas que lhe forem pertinentes, serão exatamente esses elementos que devem ser identificados como agentes de distinção entre outras manifestações e performances de identidade dos indivíduos.

O trabalho, portanto, adota a visão de que a transexualidade corresponde a uma vivência de construção das identidades26, de maneira que possibilita ao indivíduo que se entende como identificado ao gênero oposto ao que lhe foi designado, de performar sua identidade e obter, por consequência, o reconhecimento legal dessa identidade.

Assim, ao se referir a respeito de uma pessoa transexual se estará aqui fazendo menção a uma característica da identidade vivenciada pelo indivíduo a partir de sua visão de mundo, construída fora das interdições e dos padrões discursivos que lhe foram impostos com a designação do sexo de nascimento, e que, por essa razão, não reconhece sua identidade como sendo aquela relacionada a esse sexo original, e, no exercício do livre desenvolvimento da personalidade, reivindica o reconhecimento legal dessa identidade oposta da que lhe foi designada originariamente.27

A partir dessa ideia é que se indaga: a pessoa que vivencia a experiência do trânsito entre gênero, e que, portanto, apresenta-se para a sociedade com os elementos e signos designativos do sexo oposto ao que lhe foi designado originalmente, e que, com isso, pode confrontar as expectativas sociais a

25 CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Tradução e revisão técnica Marília Moschkovich, São Paulo: nVersos, 2015, p. 36-37.

26 Daí porque utilizamos em vários momentos a expressão “experiência” para nos referirmos a transexualidade.

27 Portanto, não há que se confundir com a figura do/da travesti que – embora se apresentem com os elementos e signos que dão inteligibilidade ao sexo oposto – não reivindicam a identidade do sexo oposto ao que lhes foi designado originariamente.

(27)

respeito de sua identidade, possui o dever jurídico de explicitar sua transexualidade nas relações perante terceiros?

Como compatibilizar o interesse pelo sigilo do/da transexual e a proteção da segurança das relações jurídicas que podem ser inauguradas e desenvolvidas tendo como elemento importante o dado sobre o sexo dos envolvidos?

Desde logo, é importante destacar que a resposta a essa questão não pode ser dada de forma genérica a induzir a respeito da existência de um dever abstrato, aplicado à todas as situações da vida, ou de um direito ao sigilo, igualmente genérico.

A análise deve ser feita a partir da compreensão sobre a relevância do dado “sexo” para o desenvolvimento das relações jurídicas que se pretende inaugurar e desenvolver.

Logo, não se espera da presente pesquisa, fundamento genérico que indique ou negue abstratamente o dever investigado.

Antes de adentrar nas específicas situações escolhidas para ilustrar a problemática é preciso identificar os parâmetros normativos e os fundamentos jusfilosóficos que servirão de base para a compreensão da resposta ao problema.

(28)

3. JURIDICIDADE DO ELEMENTO SEXO/GÊNERO28 NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL E LEI DE REGISTROS PÚBLICOS (LEI 6.015/73)

Após essa contextualização conceitual a respeito da temática da transexualidade é preciso formular a linha argumentativa sobre a qual se desenvolverá a construção da resposta àquela que é a problemática do presente trabalho: se existe no sistema jurídico um dever de caráter normativo que obrigue as pessoas trans a explicitarem sua condição de gênero como transexual nas relações perante particulares e o Estado.

Essa investigação abrange, a rigor, duas perspectivas: 1) exercício dos direitos e liberdades individuais e relações entre particulares em um ambiente de um sistema jurídico-democrático; 2) compreensão dos contornos das eventuais intervenções estatais que impliquem tal exigência e sua constitucionalidade a partir da análise da área de proteção dos direitos fundamentais atingidos.

A possibilidade de alguém vivenciar a experiência da transexualidade a partir de suas concepções de mundo e de construir sua identidade apresentando-se socialmente com os elementos inteligíveis do sexo oposto ao que fora designado em seu nascimento e que consta de seu Registro Civil tem fundamento Constitucional e em normas do Direito internacional.

O presente capítulo se propõe a identificar os parâmetros constitucionais que fundamentam o tratamento jurídico da pessoa transexual e, a partir do conteúdo normativo desses parâmetros e da investigação dos fundamentos jusfilosóficos que dão suporte ao exercício de direitos pelas pessoas transexuais, buscar solucionar a problemática a respeito da existência de eventual dever jurídico dirigido às pessoas transexuais de explicitarem sua identidade de gênero nas relações perante terceiros.

As interdições que o sistema jurídico poderia impor, nesse caso, configurariam intervenção em direito fundamental do indivíduo? Se sim, qual ou

28 Sem desconsiderar a importância da distinção conceitual entre o dado biológico do “sexo” e a “construção social” do conceito de “gênero”, optou-se pelo uso da expressão “sexo/gênero” tendo em vista que a legislação brasileira faz uso da expressão “sexo” de maneira indiscriminada. Como se verá adiante nesse capítulo, a condição biológica (sexo) atestada no Registro civil de nascimento recebe tratamento jurídico direcionado às construções sociais de gênero (masculino e feminino) como se fossem uma decorrência lógica.

(29)

quais? Seriam tais intervenções adequadas constitucionalmente? Em que circunstâncias poder-se-ia falar em um direito ao sigilo da pessoa transexual em não ser obrigada a explicitar sua identidade como “homem transexual” ou “mulher transexual” ou num direito à informação por parte de terceiros que com eles/elas se relacionam?

Para isso, é preciso destacar a juridicidade do elemento “sexo/gênero” e sua importância no contexto do exercício das liberdades humanas.

A Lei de Registros públicos – LRP, Lei 6.015/73, estabelece que o assento de nascimento deverá conter29 o sexo do registrando como elemento indispensável a identificação da pessoa natural.

Tal exigência legal, implica, desde logo, a impossibilidade de omitir-se essa informação ou de submetê-la ao crivo da escolha30 por parte do pai e da mãe. Nesse caso, o assento se dá como “feminino” ou “masculino”31 a partir da análise anatômica (vagina/pênis).

Sabe-se que a sociedade tem interesse em não confundir seus membros entre si. A esse interesse de caráter público está somado o interesse de caráter

29 Lei 6.015/73 Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:

1°) o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ou aproximada;

2º) o sexo do registrando;

3º) o fato de ser gêmeo, quando assim tiver acontecido; 4º) o nome e o prenome, que forem postos à criança;

5º) a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;

6º) a ordem de filiação de outros irmãos do mesmo prenome que existirem ou tiverem existido; 7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal.

8º) os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;

9o) os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde;

10) o número de identificação da Declaração de Nascido Vivo, com controle do dígito verificador, exceto na hipótese de registro tardio previsto no art. 46 desta Lei; e

11) a naturalidade do registrando.

30 Uma primeira questão constitucional se apresenta aqui: é possível se falar na existência de um direito por parte do pai, mãe ou mesmo do(a) registrando(a) de, nesse momento inicial do assento no Registro civil, optar pelo não preenchimento desse item no formulário ou de preenche-lo segundo sua escolha fazendo constar o “sexo escolhido” pelo genitor e genitora? A resposta a essa questão não parece auxiliar na solução da problemática do presente trabalho, devendo, portanto, ser objeto de outro estudo.

31 Tecnicamente, considerado o critério biológico os animais são classificados quanto ao sexo como “macho e fêmea”, ou – como se usa para seres humanos – “homem e mulher”. A classificação em “masculino/feminino” representa gênero. Os assentos de nascimento no Brasil, porém, revelam que se faz uso de maneira indiscriminada da expressão “feminino” como “sinônimo” de “mulher/fêmea”, e do “masculino” como indicador de “homem/macho”. Daí porque no presente tópico usarmos a expressão “sexo/gênero”.

(30)

privado do indivíduo em se identificar e não ser confundido com outrem. É assim que tanto o nome, quanto a identidade gênero funcionam de um lado para atender ao interesse da coletividade, e de outro para atender ao interesse do próprio indivíduo.32

Os ideais de individualização, segurança e privacidade são alguns dos propósitos do legislador da Lei de Registros Públicos ao estabelecer quais os elementos de identificação dos indivíduos.

É disso que decorre a juridicidade do elemento “sexo/gênero” para os indivíduos.

A partir de tais propósitos é que se pode investigar a respeito da constitucionalidade de eventuais intervenções estatais no sentido de exigir da pessoa transexual a explicitação de sua identidade de gênero nas suas relações perante o Estado e os particulares.

3.1) Parâmetros constitucional:

A análise da juridicidade do elemento “sexo/gênero” constante do registro civil de nascimento, passa, ainda, pela compreensão do tratamento constitucional oferecido à esse dado da identidade das pessoas.

O sistema constitucional brasileiro protege esse dado (sexo/gênero) a partir do exercício de quais direitos fundamentais e qual sua área de proteção? A nosso ver, esse elemento de identificação pessoal se relaciona com os direitos fundamentais da liberdade e livre desenvolvimento da personalidade na perspectiva da autodeterminação e outros direitos de porte Constitucional.

a) Liberdade e livre desenvolvimento da personalidade: o direito à autodeterminação, artigo 5o, X, da Constituição da República Federativa do Brasil

A nosso ver, eventual compreensão da existência de um dever jurídico do transexual de explicitar sua identidade de gênero em suas relações perante terceiros e o Estado corresponderia a intervenção ao direito fundamental à

32 DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e direitos LGBTI. 7a edição, revista e atualizada, São Paulo: Revista dos tribunais, 2016, p. 229.

(31)

liberdade de autodeterminação (art. 5o, X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, CRFB/88), decorrente da dignidade da pessoa humana.

No que se refere a esse direito fundamental, segundo Martins, a isso corresponde, na visão alemã predominante, a capacidade de determinar, autonomamente, seu próprio destino (autodeterminação), como por exemplo, casar-se ou não, ter filhos ou não, definir sua orientação sexual, etc. Além desse aspecto, engloba ainda o direito à autoconservação, como o caráter confidencial de uma consulta médica e seus documentos; e a forma como a pessoa escolhe se apresentar publicamente (autoexposição), o que se dará pelo exercício das normas que tratam da personalidade, como imagem, voz, honra pessoal etc.33

A dignidade da pessoa humana como propulsora desse livre desenvolvimento da personalidade possibilita a construção de identidades plurais, sobretudo quando relacionada ao modelo de sociedade atual em que o exercício das capacidades individuais de autodeterminação, autoexposição e autoconservação são moldados por contextos cada vez mais abertos à diferença e à quebra de paradigmas.

É esse princípio que impede que interpretações e construções teóricas sejam feitas em ofensa à dignidade, seja por razões moralistas, científicas, atuando como norte para todos. Nesse sentido, se pode afirmar que a dignidade humana traduz a medida da intervenção humana na natureza, ampliando o direito para outras áreas, e reconhecendo que os direitos humanos atuam como paradigmas bioeticistas, exigindo-se a proteção da integridade e da identidade de gênero humano como tarefas da bioética.34

A busca pelo reconhecimento de identidades individuais, significa, como adverte Castells35, a dissolução das identidades compartilhadas, sinônimo da

33 MARTINS, Leonardo. Introdução à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. In: Martins, Leonardo. Tribunal Constitucional Federal alemão: as decisões anotadas sobre direitos fundamentais. v. 1: dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental à vida e à integridade física, igualdade. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2016, p. 50.

34 GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. A transexualidade sob a ótica dos direitos

humanos: uma perspectiva de inclusão. 2012. Tese (Doutorado em Diretos Humanos) -

Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. doi:10.11606/T.2.2012.tde-04032013-105438. Acesso em: 2018-07-12.

35 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação, Volume 2. Tradução Klaus Brandini Gerhardt, 9a edição, revista e ampliada, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018, p. 492.

(32)

dissolução de uma sociedade como sistema social relevante, onde florescem novas formas de poder36.

Esse conjunto de argumentos deve ser considerado na análise de eventuais intervenções estatais no sentido de proteger o dado individual do “sexo/gênero” e, daí, de se exigir que a pessoa transexual explicite sua identidade, como condição para o exercício de direitos, sobretudo, fundamentais. A fim de ilustrar as possibilidades de intervenção estatal que correspondam a criação de um dever jurídico para a pessoa transexual explicitar sua condição nas suas relações perante o Estado, pode-se exemplificar:

a) concursos e seleções públicas exigir, dentre os documentos solicitados para efetivação da inscrição ou posse, declaração que explicite a identidade de gênero transexual, quando houver37 38 para promover tratamento desigual com base nessa condição;

b) legislação infraconstitucional que estabeleça o direito informacional de terceiros e o dever informacional da pessoa transexual;

c) decisão judicial que entenda pela existência de responsabilidade civil no caso da omissão do transexual sobre sua identidade de gênero nas suas relações perante terceiros.

A previsão constitucional no sentido de que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5o, X) apresentam a área de proteção dessa garantia incluindo o livre desenvolvimento

36 “A nova forma de poder reside nos códigos da informação e nas imagens de representação em torno das quais as sociedades organizam suas instituições e as pessoas constroem suas vidas e decidem o seu comportamento. Esse poder encontra-se na mente das pessoas.” CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação, Volume 2. Tradução Klaus Brandini Gerhardt, 9a edição, revista e ampliada, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018, p. 497.

37 Na Universidade Federal da Paraíba – UFPB, o formulário de identificação para seleção do Doutorado no Programa de pós-graduação em Ciência da Informação continha expressamente a opção de identidade de gênero, possuindo como itens de resposta para o candidato: “( ) homem cis, ( ) homem trans, ( ) mulher cis, ( ) mulher trans, ( ) Travesti, ( ) não-binário.” Nesse caso, percebe-se que há certa coação para que as pessoas que vivenciam a identidade trans explicitem tal condição, o que, como se sabe, nunca se exigiu das pessoas cis. Importante mencionar, no entanto, que o formulário foi, mais tarde, adaptado para conter os itens: “( ) homem (cis ou trans); ( ) mulher (cis ou trans), ( ) não-binário, ( )_________.” O que, para nós, parece mais adequado às ideias aqui defendidas. No entanto, importante dizer que se o dado a respeito da identidade de gênero em nada importa para efeitos da seleção, não há porque indagar ao candidato sobre esse aspecto de sua identidade.

38 O referido formulário pode ser encontrado no Anexo II do edital de seleção N° 05/2017, em http://www.ccsa.ufpb.br/ppgci/contents/copy_of_documentos/edital-processo-seletivo-ppgci-doutorado_-2017-2018-4-0-retificado.pdf

(33)

da personalidade (direito à autodeterminação).

Questão importante seria a indagação a respeito de em quais circunstâncias poderia o Estado exigir acesso aos elementos da intimidade e vida privada do indivíduo sem que a isso correspondesse em intervenção não adequada constitucionalmente ao direito fundamental à liberdade de autodeterminação.

Dito de outra forma: caso o Estado exija do indivíduo a informação a respeito do sexo é suficiente – no caso da pessoa transexual – a resposta dentro do binário “homem ou mulher”, ou existe o dever adicional (plus) a respeito da identidade de gênero transexual?

Não há, no entanto, como estabelecer uma resposta padronizada para essa questão sem questionar antes em qual circunstância se requer a explicitação do dado a respeito da identidade de gênero do indivíduo e qual a importância desse dado para a situação casuística.

A resposta, portanto, somente poderia ser investigada, situação a situação.

Nas situações investigadas, sejam quais forem, considerada a área de proteção do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, na acepção da autodeterminação, sua interpretação depende, ainda, da correlação com outros direitos fundamentais para aplicação da proporcionalidade, o que somente pode se dar casuisticamente.

É preciso compatibilizar, por exemplo, a liberdade do desenvolvimento da personalidade e o direito à autodeterminação com o direito de terceiros que se relacionam com pessoas transexuais, de maneira a proteger a intimidade e a vida privada de todos, sem distinção.

No caso da pessoa transexual, o fato dela apresentar-se socialmente com todos os elementos de inteligibilidade de um sexo diverso daquele do nascimento pode gerar eventuais conflitos39 com a revelação posterior dessa identidade. Não há que se negar que essa circunstância não está presente no

39 Para Berenice Dias Somente é possível identificar o sexo de um indivíduo por sua tão aparência e postura. Ninguém verifica seus órgãos sexuais para definir a que gênero pertence. Portanto, se insere a pessoa em determinado grupo social pelo que aparenta ser, como se comporta socialmente e não pela genitália que não está aparente. Basta haver a identificação social com as características de gênero. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e direitos

Referências

Documentos relacionados

Depois da abordagem teórica e empírica à problemática da utilização das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação em contexto de sala de aula, pelos professores do

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

Desta forma, foram criadas as seguintes hipóteses de investigação: H1 – O compromisso organizacional e o engagement são diferentes para as categorias dos militares dos

The challenges of aging societies and the need to create strong and effective bonds of solidarity between generations lead us to develop an intergenerational

Este ap´ os fazer a consulta ` a base de dados e carregar toda a informa¸ c˜ ao necess´ aria para o preenchimento da tabela envia-a para o Portal de Gest˜ ao onde a interface

Reduzir desmatamento, implementar o novo Código Florestal, criar uma economia da restauração, dar escala às práticas de baixo carbono na agricultura, fomentar energias renováveis

Reducing illegal deforestation, implementing the Forest Code, creating a restoration economy and enhancing renewable energies, such as biofuels and biomass, as well as creating