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A contranarrativa de Joel Rufino dos Santos e o mito da nação

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RESUMO: A Literatura Afro-Brasileira representa a desconstrução do clássico e do cânone estabelecido a partir de um conceito de arte literária calcado na estética europeia, na medida em que vem suplementar a Literatura Nacional, assim como o Quilombo de Palmares representou a busca pela construção do ideal libertário do negro escravizado. No âmbito desse contexto, é relevante o estudo da obra de Joel Rufino dos Santos, o romance histórico Zumbi, da Coleção Biografias, como contranarrativa da nação brasileira e fruto de um posicionamento que faz a antropofagia da antropofagia oswaldiana. Este artigo busca ressaltar a personagem Zumbi dos Palmares, que passa de vilão da nossa História, aos olhos de uma sociedade escravocrata e patriarcal a herói da Literatura, na obra de Rufino.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Afro-Brasileira, Nação, Contranarrativa

RESUMEN: La literatura afro-brasileña es la deconstrucción de la clásica y el canon establecido a partir de un concepto de arte literaria sustentado en la estética europea, en que se trata de suplementar la literatura nacional, así como el Quilombo de Palmares representa la búsqueda de la construcción de ideales libertarios de los negros esclavizados. Dentro de este contexto, es relevante el estudio de la obra de Joel Rufino dos Santos, la novela histórica Zumbi, de la colección “Biografías”, como contra-narrativa de la nación brasileña y el fruto de un posicionamiento que hace la antropofagía de la antropofagía de Oswald de Andrade. Este artículo tiene como objetivo dar a conocer el carácter de Zumbi de los Palmares, que pasa de villano de la historia brasileña, a los ojos de una sociedad de esclavos y patriarcal, a héroe de la literatura en la obra de Rufino.

PALABRAS CLAVE: Literatura Afro-Brasileña, Nación, Contra-Narrativa

A CONTRANARRATIVA DE JOEL RUFINO

DOS SANTOS E O MITO DA NAÇÃO

Rodrigo Pires Paula* * rodrigopirespoeta@yahoo.com.br

Mestre em Letras: Estudos Literários: Teoria da Literatura pela UFMG.

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EM TESE BELO HORIZONTE v. 20 n. 2 maio-ago. 2014 PAULA. A contranarrativa de Joel Rufino dos Santos e o mito da nação p. 94-106

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Crítica literária e outras artes

Crítica Literária, outras Artes e Mídias

ZUMBI: CONTRANARRATIVA DA NAÇÃO BRASILEIRA

A literatura negra é aquela que trafega na contramão. Antonio Candido, a respeito da obra de Luís Gama

No contexto crítico sobre os textos literários afro-brasilei-ros, o objetivo deste artigo é dissertar sobre a importância da obra infanto-juvenil Zumbi, cuja autoria é de um grande his-toriador e literato do Estado-Nação brasileiro: Joel Rufino dos Santos1. Em sua obra, este propõe a reescrita da tradição

literária nacional, ao reconstruir uma das representações do imaginário social sobre a presença do sujeito negro, cuja voz sempre foi emudecida em textos canônicos. Na referida produção, Rufino contextualiza, na instância das produções ficcionais, um dos maiores personagens negros da nossa his-tória, Zumbi dos Palmares, componente que se apresenta como suplemento2 de sentido da noção de herói na literatura

brasileira a partir de sua publicação.

Em um primeiro momento, uma questão que se faz pre-sente na leitura da obra Zumbi é: que tipo de discurso desen-volve e representa esse texto, o histórico ou o literário? Para respondê-la, torna-se importante refletir sobre o que é apre-sentado em um texto que o identifica como forma narrativa literária: a sequencialidade das ações, a presença de um enredo trabalhado por uma voz que se posiciona como narrador, o desenvolvimento de um clímax e um desfecho? Essas tam-bém são características do discurso historiográfico. A resposta

a essa questão passa por uma discussão bem mais profunda, que se não faz adequada no momento, a qual trata do hia-to entre representação e documentação de fahia-tos, da distância entre história como registro e estória, ou seja, ficcionalização da vida. Por outro lado, apresenta a problemática do traba-lho arqueológico do historiador, em se tratando da escolha de suas fontes, pela importância atribuída a informações ou a enredos. Mesmo convivendo com as variadas possibilidades de respostas sobre o caráter genético e genérico da obra de Rufino, é possível identificar esses elementos que a traduzem como representação do imaginário coletivo.

Propõe-se mais adequado pensar na legitimidade de um texto por sua natureza discursiva. Dessa forma, Doris Sommer, ao abordar sobre o surgimento do gênero roma-nesco na América Latina, contribui, quando declara que os:

[…] latino-americanos provavelmente estavam a par da legiti-mação da narrativa na história defendida por Bello e chegaram até a considerar a narrativa como sendo história; vários deles conclamavam a ação literária como parte da campanha pela construção da nação.

[…]

Os romances iriam ensinar ao povo a sua história, seus há-bitos que acabavam de se formular, e as ideias e sentimentos que vinham sendo modificados por acontecimentos sociais e políticos ainda não divulgados.3

1. Joel Rufino dos Santos nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1941. Historiador, romancista e intelectual engajado na causa negra, teve seus trabalhos proibidos pela censura militar de 1964 e, em dezembro de 1972, foi detido na rodoviária da cidade do Rio de Janeiro e mandado para o presídio Hipódromo, em São Paulo. Lá, permaneceu como preso político por um ano e meio, devido a sua militância com a Ação Libertadora Nacional (ALN) – organização clandestina que pregava a luta armada.

Atualmente, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona nos cursos de Letras (graduação) e de Comunicação Social (pós-graduação). Tem artigos de História e inúmeros contos publicados em importantes revistas e antologias do país. Foi subsecretário de Defesa e Promoção das Populações Negras do Rio de Janeiro e membro integrante da Diretoria do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Ao longo de sua carreira, vem publicando ensaios, romances históricos e literatura infantil, além de livros didáticos, tendo sido agraciado em 1979 com o prêmio Jabuti de Literatura Infanto-Juvenil.

2. A ideia de suplemento partiu, em seu gênese, do filósofo Jacques Derrida. Ele considera que o signo é sempre o suplemento de si mesmo. Uma oposição fora/ dentro (escrita/discurso) tem de introduzir um terceiro elemento (o suplemento) para que possa produzir um sentido daquilo que verdadeiramente o suplemento difere (presença). Contudo, o suplemento não é de fato um terceiro elemento já que participa em, além de transgredir ambos os lados da “oposição”.

3. SOMMER. Ficções de fundação, p. 24.

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Em contrapartida, não devemos pensar que o texto de Joel Rufino se configura como uma narrativa tradicional, mesmo porque seu campo discursivo não reflete em nada o caráter nacionalista brasileiro, muito menos se constrói por meio da representação de uma brasilidade ufanista, como em O

guarani, no século XIX, por exemplo. Zumbi surge como a narrativa às avessas, devido aos signos que elabora, aos su-jeitos que a desenvolvem e aos cenários em que transitam suas personagens. Esse movimento não é fundamentado no projeto de fundação de um campo discursivo-literário das nações românticas e pedagógicas latino-americanas do sécu-lo XIX. Zumbi conta a história de outra nação, na contramão do modelo patriarcal e patrimonialista4.

Mas em que sentido pode-se considerar essa obra como uma contranarrativa da nação brasileira? Levando-se em consideração a problemática do ponto de vista, fazendo uma metáfora da arte cinematográfica, Zumbi representa o deslo-camento da câmera. Esta, por sua vez, não mais se encontra instalada nos olhos do senhor da “Casa-Grande”, muito me-nos me-nos dos “cativos”, que residiam debaixo das rédeas do po-der senhorial, mas sim nos olhos de quem transgrediu esse sistema, de quem se impôs como sujeito, contra as amarras do poder ideológico e discriminatório daqueles que repre-sentavam a voz da “pátria-amada mãe gentil” e que eram os únicos atores conducentes do contexto histórico da nação brasileira. Por esse viés, não se pode ignorar que o discurso

literário é de alguma forma uma representação do histórico, no sentido de que se estabelece como cenário de culturas, relacionado com a vida social.

Doris Sommer, ao se referir a algumas obras literárias latino-americanas, no momento de seu surgimento como discursos representativos de nações, apresenta alguns moti-vos que as definem como tal, destacando o zelo e a preocu-pação dos escritores latinos em criar “narrativas edificantes e autônomas”5 e relata: “tudo isso faz crer que a literatura tem

a capacidade de intervir na história, de ajudar a construí-la. Gerações de escritores e leitores latino-americanos assim o supunham”6. O objetivo desses escritores era obter

“inde-pendência cultural ao canibalizar um leque de tradições eu-ropeias, meramente matéria-prima nas mãos americanas”7.

É notório que, no caso brasileiro, até pelo menos o final do século XIX, não se logrou êxito, pois, os escritores brasi-leiros, ainda imersos numa rede de influências literárias e culturais construída pela tradição de fundamento colonia-lista, acabaram reproduzindo discursos literários europeus baseados em imagens que os que vinham da Europa tinham do Brasil, e como resultado disso romances de fundação tais qual O guarani surgem como narrativas repletas de invencio-nices “deturpadas”, descomprometidas com cenários sociais, éticos e morais da maioria dos nativos nacionais. Em Homi Bhabha (1998), encontramos o seguinte comentário: “[o] nacionalismo não é o que parece, e, sobretudo, não é o que 4. Segundo Weber, patrimonialismo

é uma forma tradicional de organização da sociedade, inspirada diretamente na economia doméstica (oikos) e baseada em uma autoridade santificada pelas tradições. A dominação patrimonial constitui caso especial de estrutura patriarcal de dominação, com o poder doméstico descentralizado mediante a repartição de terras e de pecúlios aos filhos e outras pessoas dependentes do círculo familiar. O patrimonialismo como forma tradicional de autoridade vincula-se a uma ordem estamental, onde os direitos e as obrigações são alocados basicamente de acordo com o prestígio e os privilégios dos grupos estamentais. A organização política patrimonial dar-se-ia na medida em que o dominante organizasse em forma análoga ao seu poder doméstico o poder estatal.

5. SOMMER. Ficções de fundação, p. 24.

6. Idem. Ficções de fundação, p. 25. 7. Ibidem, p. 15.

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parece a si próprio… os fragmentos e retalhos culturais usados pelo nacionalismo são frequentemente invenções históricas arbitrárias […]”8. Obviamente que aqui não se deseja

invali-dar o papel dessas construções ficcionais em seu valor estéti-co e cultural, nem ao menos ignorar a sua importância estéti-como produção fundadora do sentimento de nação no âmbito das artes. No entanto, o questionamento passa pela sua integri-dade como representação da voz de uma coletiviintegri-dade que de longe reproduzia o todo social em suas diversas esferas.

É possível entender também a construção de uma estru-tura social embasada na subordinação de inúmeros sujeitos a um sistema de castas, como o sempre foi em vários momen-tos da história da humanidade. Por outro lado, essa estrutura não é absolvida nem assimilada como resultado natural, em se tratando da existência de inúmeras vozes emudecidas e da constante tentativa de apagamento dos sujeitos subalterniza-dos por parte de quem detinha o poder econômico e social.

Ainda sim, o desejo de uma independência econômica e cultural que se fazia urgente pelas circunstâncias que se apre-sentavam no novo cenário nacional continuou enraizado no imaginário coletivo; e, é claro, este representado por aque-les que detinham voz nesse contexto. Assim, o modernismo de 1922, nas figuras de Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Annita Malfatti etc., de caráter antropofágico, sur-giu em “plenos pulmões”. E durante muitas décadas, mesmo

criticando um nacionalismo ufanista e a dependência de matrizes europeias, assim propondo uma escrita essencial-mente brasileira, de estética própria, esse movimento não tinha representatividade substancial de negros, mestiços ou indígenas.

Somente nesse tempo intitulado pós-modernidade, após tantas lutas e conquistas sociais, emerge uma busca efetiva desses sujeitos que ainda representam as chamadas mino-rias na posição que ocupam nos textos literários canônicos. Assim, Zumbi, no âmbito do advento das produções literá-rias afro-brasileiras, surge como parte de um processo que ambiciona a ruptura dos padrões literários canônicos brasi-leiros, em devir, propondo a reescrita da tradição. Dessa for-ma, vê-se agora o emergir de outros campos discursivos, ou seja, representando outras nações. Aqui, dissertamos sobre a literatura da nação afro-brasileira, de forma mais estrita, da nação zumbi, num momento em que se convive com a aparente eterna angústia dos paradigmas artísticos da pós--modernidade: a busca pela totalização.

A literatura afro-brasileira, assim como a judaica, a femi-nina e a homoerótica surge no panorama das artes brasileiras e universais e em meio a esse mapeamento genealógico in-saciável, com a emergência desses sujeitos e locais de cultura que antes conviviam à margem dos discursos oficiais, signi-ficando a desconstrução9 do cânone e da estética de gênese

8. BHABHA. O local da cultura, p. 19-42.

9. Desconstruir um texto é fazer com que as suas palavras-charneira subvertam as próprias suposições desse texto, reconstituindo os movimentos paradoxais dentro da sua própria linguagem. Derrida fez repensar a forma como a linguagem opera. Desconjuntando os valores de verdade, significado inequívoco e presença, a

desconstrução aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de qualquer coisa, mas como a infinitude do seu próprio “jogo”. Desconstruir um texto não é procurar o seu sentido, mas seguir os trilhos em que a escrita ao mesmo tempo se estabelece e transgride os seus próprios termos, produzindo então um desvio [dérive] assemântico de

différance. Todo o signo só significa

na medida em que se opõe a outro signo, por isso se pode dizer que é essa condição da linguagem que constantemente diferencia e adia os seus componentes que concede significância ao signo. Estas teses foram consolidadas por Roland Barthes numa fase já pós-estruturalista, que começa com o artigo “A morte do autor” (1968) e continua nos livros S/Z (1970) e O

Prazer do Texto (1973). A teoria de

Barthes aproxima-se da de Derrida: a leitura crítica de um texto literário não tem um objetivo de um sentido único, mas a descoberta da sua pluralidade de sentidos.

O interesse de Derrida no texto literário advém do facto de certos textos transgredirem os limites tradicionais de representação da literatura. A perspectiva do crítico literário em relação à desconstrução é um pouco diferente, pois não está imediatamente preocupado com o facto de certos textos postergarem as categorias da metafísica

ocidental, mas preocupa-se antes com as propriedades singulares da escrita em si. >>>

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europeia, no sentido de suplementar a literatura brasileira, tal como o quilombo de Palmares representou a busca pela construção do ideal libertário afro.

O que é a literatura afro-brasileira? Nas palavras de Octavio Ianni (1988, [s.p.]), “é um imaginário que se articu-la aqui e ali, conforme o diálogo de autores, obras, temas e invenções literárias. É um movimento, um devir, no sentido de que se forma e transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da Literatura Brasileira […]”. Ou seja, apesar da desdita de muitos estudiosos essencialmente acadêmicos, a literatura afrodescendente é identificada, no conjunto das produções ficcionais brasileiras, como literatura produzida por sujeito de descendência afro, que aborda o tema da negritude, cujo ponto de vista expressa uma linguagem que se caracteriza pela utilização de signos que a identifiquem com a poética afro-brasileira, e é direcionada ao público que naturalmente será constituído por sujeitos que reconheçam e aceitem esse movimento do olhar sob o objeto literário e/ou acreditem na diferença. Analisando a literatura brasileira sob a metá-fora do acidente geográfico rio, a literatura afro-brasileira significa uma de suas vertentes. Porém, se pensarmos nas bases que constroem o significado desse universo ficcional, em que também são inseridos autores canônicos da ficção tradicionalista [num sentido lato], como Machado de Assis, por exemplo, percebemos que a literatura afro-brasileira é

o refluxo desse rio, no sentido de percorrer o caminho de retorno, ressignificando valores vigentes. Não no sentido do regresso à origem, pois, segundo Arqueologia do saber, de Michel Foucault, essa está para sempre perdida, rasurada, distante de qualquer mapeamento arqueológico. Mas no sentido de valorizar uma produção literária afro-brasileira, presente, desde há muito, no âmbito de uma leitura da lite-ratura nacional configurada como sistema10.

As narrativas literárias representam o campo retórico--político que dissemina o discurso da nação. Nesse senti-do, a partir do momento em que o Brasil se firmou como Estado-Nação, o conjunto de produções literárias nacionais pode ser lido como a composição de um sistema, como meio discursivo de representação do pensamento e das constru-ções socioculturais brasileiras.

Segundo Homi Bhabha (1998), “as problemáticas fronteiras da modernidade estão encenadas nessas temporalidades ambi-valentes do espaço-nação. A linguagem da cultura e da comu-nidade equilibra-se nas fissuras do presente, tornando-se as figuras retóricas de um passado nacional”.11 Nessa abordagem,

Zumbi surge como fator de questionamento de uma tradição

historiográfica fortemente estabelecida, mas que não resiste às influências da diluição das fronteiras nacionais, da emergência de novos registros memoriográficos, resultados da ascensão sociocultural de sujeitos antes efetivamente excluídos. Zumbi

10. Conceito de Antonio Candido, em

Formação da literatura brasileira,

que define sistema literário, formado pela existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade.

11. BHABHA. O local da cultura, p. 202.

9. >>> Quer se seja contra ou a favor de Derrida, há que aceitar que, enquanto método de análise textual, o modelo desconstrucionista que ele propõe funciona efetivamente, obrigando-nos a repensar a forma como o texto é formulado. Se tomarmos em consideração as proposições dissimuladas ou impronunciadas no texto, se revelarmos os

buracos negros do texto e os seus suplementos ou contradições internas de maior subtileza, o texto pode significar algo muito diferente daquilo que a princípio parecia querer dizer.

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dos Palmares, que nunca fez parte dos manuais oficiais como herói, apresenta-se, na obra de Rufino, como a releitura da história do negro no âmbito da escravidão afro-brasileira, pois representa outro local de cultura, que se distingue dos textos que atravessam o viés da escrita canônica da sociedade patriar-cal brasileira. Além, Zumbi assume um caráter épico, na me-dida em que estabelece um cenário atemporal12, assim como

as produções da epopeia grega, e como construção historio-gráfica de uma “nação negra” independente da comunidade imaginada13 brasileira. Nos moldes do universo da literatura

canonizada, Zumbi não se configura como uma narrativa tra-dicional, mas como o refluxo que percorre o sentido desse rio caudaloso representado pelo universo literário desde Homero.

Zumbi é a contranarrativa, construída sob o pensamento da

pós-modernidade, entendida para além do movimento peda-gógico da história.

Segundo Bhabha (1998), há outra temporalidade, distinta da linha do tempo de desenvolvimento contínuo, que cons-trói o discurso da nação e que reside na região de um pós--moderno, distinto do conceito de senso-comum, esse que indica o prefixo “pós” como algo simplesmente “além de”.

Zumbi configura-se como a terceira margem do rio, residente na região limítrofe de um “tempo-duplo”, estabelecido entre o eu-enunciador que se quer sujeito da negritude, buscando nos calabouços da ancestralidade a “superação […] em que o arcaico emerge às margens da modernidade […]”14, e um eu

atrelado à noção pedagógica de temporalidade. No concei-to de tempo pleno15, construído sob a égide do pensamento

bakhtiniano, encontramos, no panorama da nossa história literária tradicional, “a visão homogênea e horizontal asso-ciada com a comunidade imaginada da nação”16.

É interessante destacar que o discurso literário é um meio de difusão dos elementos que constroem a nação como co-munidade imaginada. Carlos Alberto Pasero, professor da

Universidad de Buenos Aires, relata:

Es sabido que las imágenes narrativas contribuyen de manera notable a la conformación del imaginario social pero también se nutren de él. El texto literario funciona como si fuera el escenario de problemas culturales, se relaciona con la vida so-cial y convoca al debate. Las obsesiones confluyen de manera simbólica. Por consiguiente, no hay mejor marco para el abor-daje de la novela histórica y su interpretación que ponerla en su contexto histórico: problemas contemporáneos, ansiedades y conflictos hacen que el trabajo refleje, refracte, o replantee problemáticas colectivas. La emergencia de la novela histórica en los últimos tiempos, responde, seguramente, a esa premisa fundamental y es indudable que expresa los problemas propios de la posmodernidad.17

Pasero faz referência à ideia de romance histórico, termo que surge como característica do objeto de estudo deste artigo: 12. Que não varia em função do

tempo [convencional]. Ou seja, não temporal ou intemporal.

13. A nação é formada no imaginário coletivo, originada pelo conjunto de elementos que a constituem: como por exemplo, língua, forma de governo, crença religiosa, regime político, em suma, a forma de organização que a configura como comunidade imaginada.

14. BHABHA. O local da cultura, p. 204.

15. Esse conceito de tempo pleno foi desenvolvido por Bakhtin e trabalhado por BHABHA. Disseminação – o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: BHABHA. O local da

cultura, p. 204.

16. BHABHA. O local da cultura, loc.

cit.

17. PASERO. Metaficción

historiográfica y novela histórica, p. 168.

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Una caracterización más ajustada, en términos genéricos, de las

características de las novelas históricas contemporáneas, la hace Seymour Menton. Él habla de “nueva novela histórica” para refe-rirse a las narrativas que presentan las siguientes particularidades: La subordinación, en distintos grados, de la reprodución mi-mética de cierto período histórico a la presentación de algunas ideas filosóficas, difundidas en los cuentos de Borges y aplica-bles a todos los períodos del pasado, del presente y del futuro. […] las ideas que se destacan son la imposibilidad de conocer la verdad histórica o la realidad; el carácter cíclico de la historia y, paradójicamente, el carácter imprevisible de ésta, o sea que los sucesos más inesperados y más asombrosos pueden ocurrir. La distorsión consciente de historia mediante omisiones, exageraciones y anacronismos.

La ficcionalización de personajes históricos a diferencia de la fórmula de Walter Scott – aprobada por Luckács – de prota-gonistas ficticios. […]

[…]

Los conceptos bajtinianos de lo diálogo, lo carnavalesco, la parodia y la heteroglosia. De acuerdo con la idea borgeana de que la realidad histórica son incognocibles, varias de la NNH proyectan visiones dialógicas al estilo de Dostoievski (tal como lo interpreta Bajtín), es decir, que proyectan dos interpretaciones o más de los sucesos, los personajes y la vi-sión del mundo.18

Um exemplo de texto que foi criado com intuito de ser a narrativa da nação brasileira e “romance histórico” tradicio-nal é a obra de José de Alencar O guarani, que representa um pensamento ideologizado do discurso da nação, em que o narrador conta uma história repleta dos exageros românticos do século XIX representativa de uma visão distorcida sobre parte do povo brasileiro da época – os indígenas. Mediante a caracterização desse tipo de narrativa ficcional como roman-ce histórico, podemos classificar o texto de Rufino como tal? Se pensar-se que a obra de Joel Rufino dos Santos repre-senta um discurso que percorre o sentido contrário em rela-ção às narrativas da narela-ção brasileira, pode-se afirmar que o autor de Zumbi constrói outra lógica, um contradiscurso, que desestabiliza o ideário da pátria-mãe brasileira e cria outra nação, um discurso literário que representa a comunidade negra do quilombo, daqueles que foram desterritorializa-dos e se uniram em prol da formação de uma nação: a nação Zumbi. Rufino constrói uma história oposta à história ofi-cial, que “encarna la resistencia y la contestación contra el discurso hegemónico”19, ou seja, escreve o romance histórico

da negritude.

Na tradição do romance histórico brasileiro, não encon-tramos textos que relatem sobre o grande mito de resistência contra a escravidão negra no Brasil, Zumbi dos Palmares.20

De outra forma, desde há muito, temos o conhecimento da 18. PASERO. Metaficción

historiográfica y novela histórica, p. 166.

19. Idem, p. 167.

20. Palmares foi, com efeito, a maior rebelião e manifestação mais emblemática, como é sabido, dos quilombos coloniais. Resistiu por cerca de cem anos às expedições repressivas, promoveu assaltos aos engenhos e povoações coloniais e estimulou fugas em massa de escravos na capitania.

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forte presença de personagens brancos ou branqueados, no âmbito do universo ficcional, pelo menos no que concer-ne à formação da literatura nacional como sistema.21 Como

exemplo, dentre outros atores importantes que mudaram o curso da história brasileira, podemos citar Getúlio Vargas, personagem branco do romance de Rubem Fonseca, Agosto. Nessa obra, o autor ficcionaliza a morte de um dos grandes personagens brasileiros. Em outros exemplos, encontramos Peri, de O guarani, e Iracema, personagem de livro de mesmo nome, representações de importantes figuras indígenas en-contradas pelos europeus no âmbito da invasão da América, simulacros distorcidos de atores sociais da vida palpável, branqueados no contexto da Literatura Brasileira.

No contexto amplo de nossa historiografia, poucas fo-ram às vezes em que tomamos notícia sobre a existência e a importância do líder negro que construiu o maior grupo de resistência contra a sociedade branca e estamental que se formou no Brasil, desde a chegada do europeu, no transcor-rer dos séculos. Tivemos de aguardar o surgimento da veia literária de um historiador por formação, autoidentificado como afrodescendente – Joel Rufino dos Santos – para se inserir num livro de caráter biográfico a representação de um personagem importante historicamente no contexto de uma literatura escrita sob um olhar afro-brasileiro e que se configura como o contramovimento em relação ao discurso literário oficial.

PELO VIÉS DA ANTROPOFAGIA

De quatro, Zeus figura em (ex)cultura nativa o(culto) orixá Exu vai comendo-lhe o cu BARBOSA, Márcio. Cadernos negros 13, p. 46

O livro de Rufino representa a assimilação do discurso do negro por parte da cultura letrada, assim como toda a literatura afrodescendente na proposta de um novo projeto ficcional brasileiro. Dessa forma, a construção da literatura afro-brasileira como vertente da produção nacional transita pela transculturação, entre o local da pena e do papiro na so-ciedade branca e ocidental, e o lugar de cultura das narrativas orais dos africanos e afro-brasileiros. O discurso literário do negro brasileiro tem na natureza de sua construção a an-tropofagia como etapa da transformação do tabu em totem. E ainda atesta-se que a história contada em Zumbi, por ser representação de um imaginário o qual ficou tanto tempo na obscuridade (num processo em que se desejava o apagamen-to compleapagamen-to do negro subalternizado), surge como resultado de uma longa luta pela derrubada dos “muros” da discrimi-nação étnico-racial, conforme representa a fala do narrador de Zumbi: “Zumbi se foi, mas volta em cada negrinho que sorri”22.

Mas, em que sentido, a literatura afro-brasileira ou, mais especificamente, a obra de Rufino, significa um discurso de 21. CANDIDO. Formação da literatura

brasileira, p. 23-25.

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assimilação? Segundo Oswald de Andrade, a antropofagia, como movimento e tendência literária dos escritores mo-dernistas brasileiros da década de 1920, significa a absorção do inimigo sacro a fim de transformá-lo em totem. Ou seja, a partir do início daquela década, a antropofagia representou a apropriação do discurso literário canônico europeizado, a fim de assimilar as características mais fortes do dominador, eliminando o que não era pertinente e agregando as caracte-rísticas peculiares do campo discursivo literário nacional, no sentido de construir uma legítima literatura brasileira.

Num movimento similar, o livro Zumbi significa a antro-pofagia da antroantro-pofagia; enfim, o discurso de um afro-bra-sileiro representado por meio de um instrumento da cultura ocidental, o gênero romanesco, narrando a história de um dos grandes ícones da afro-brasilidade. E, ao ler a obra de Rufino, ouvimos um som que provém do fundo de nosso espírito, como se fosse o toque dos atabaques. Dessa forma, a literatura afro-brasileira representa esse campo de constru-ção do imaginário afro-brasileiro, o campo de projeconstru-ção dos elementos culturais da negritude, a desconstrução da noção de identidade nacional única, coesa e inabalável. E como mo-vimento antropofágico, essa literatura inaugura outro viés, em que os sujeitos que a produzem se afirmam nesse outro local cultural, e Zumbi se estabelece como uma metonímia da afro-brasilidade.

Se a obra de Rufino é a antropofagia da antropofagia das narrativas literárias nacionais, cabe perguntar se esse perso-nagem é possuidor das características que competem aos he-róis da literatura do discurso hegemônico. O mito do herói na literatura é criado no contexto da gênese da poesia como gênero. Desde Homero, as figuras que ocuparam esse lugar no texto ficcional tinham características marcantes de sal-vadores de uma pátria ou de uma civilização, como Ulisses, por exemplo; possuidores de características que reuniam o que existia de melhor nos seres humanos de uma determina-da comunidetermina-dade. No caso determina-da nação brasileira, o grande líder palmarino não reunia essas características. Pelo contrário, era o inverso, caso se tenha como parâmetro o modelo da literatura canônica. Zumbi, então, pode ser definido como anti-herói nacional? Levando-se em consideração o modelo grego, clássico, europeu, Zumbi foi o grande trickster.23 Por

outro lado, quando se reloca a câmera cinematográfica da “casa-grande” para o “quilombo”, os valores se invertem, e esse personagem passa a ocupar o lugar de herói de outra nação, a nação negra. Ainda refletindo-se sobre o papel da figura do herói, Georg Lukács explica: “em todo o rigor, o herói da epopeia não é nunca um indivíduo. Desde sempre, considerou-se como uma característica essencial da epopeia o facto de o seu objecto não ser um destino pessoal, mas o de uma comunidade”24. Ou seja, da mesma forma, Zumbi como

herói da afro-brasilidade é a representação da comunidade

23. O termo trickster, ou seja, aquele que conhece o trick, (truque, estratagema em

inglês), é originário da mitologia dos povos indígenas norte-americanos e designa, hoje, um número variado de “heróis trapaceiros”. Sua característica mais importante é a astúcia - é através dela que ele age, ora prejudicando os homens, indignando-os; ora beneficiando o coletivo em que sua figura se insere, despertando, portanto, admiração e sendo considerado um “herói civilizador”.

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dos quilombos e anti-herói da nação brasileira e das narrati-vas épicas dessa nação. Nesse sentido, é possível caracterizar

Zumbi como uma obra antiépica.

Como resultado, o grande líder quilombola apresenta-se à literatura como um mito fundacional de um pensamen-to de libertação, e pensamen-todo o seu conteúdo como signo reside nos calabouços da memória coletiva dos seus ancestrais e, portanto, nas estruturas arqueológicas dos textos literários de vários poetas e romancistas desse sistema. A tentativa de escavação no texto literário do que representou o herói da nação Zumbi na história do povo dela é matéria para anos de estudo, porém faz-se aqui um esboço do conteúdo que permeia o discurso literário desse escritor o qual disserta sobre esse local de cultura diverso do que reza a tradição literária canônica. Vale ressaltar o valor do lugar cultural definido por Homi Bhabha, que o enfatiza, em seus ensaios, e possibilita situar a obra de Rufino como a representação do novo, do insurgente, que reside na configuração da lite-ratura pós-moderna: “o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural”25.

Outro comentário de Bhabha sobre a valorização histórica da cultura ilustra os desdobramentos da ascensão da literatura afro-brasileira representados aqui em Zumbi como sintomas

da assimilação de outras culturas, antes marginalizadas, por parte do discurso oficial e da valorização da produção artística da periferia, reconhecida e defendida pelos próprios sujeitos produtores como sendo frutos de seu lugar cultural.

O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projeções da “alteridade”. Talvez possamos agora sugerir que histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos – essas condições de fronteiras e divisas – possam ter o terreno da literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições nacionais, antes o tema central da literatura mundial.26

Nesse sentido, ainda de forma sintomática, na chegada da pós-modernidade, os diversos estratos sociais, antes colo-cados à margem, se posicionaram nas fronteiras dos locais ideológicos de produção artística, causando uma espécie de ruptura, resultado de um processo em que emergem novos significantes, os quais começam a percorrer a história da cultura oficial no sentido do retorno, ressignificando as re-lações entre os diversos sujeitos que compõem a sociedade. E Zumbi torna-se o resultado desse processo, como fruto da cultura afro-brasileira presente na construção dos signos da negritude e na preservação de uma memória ancestral de resistência.

25. BHABHA. O local da cultura, p. 27.

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A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na

consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes – mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de sexualidades policiadas. Isto porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes desloca-mentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos. É nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movi-mento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalen-te, do além que venho traçando: “sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apres-sados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens… A ponte reúne enquanto passagem que atravessa”.27

Ao ler Zumbi, é possível identificá-lo como reescrita de parte da história que revela o processo de desterritorializa-ção vivido pelo povo negro no momento da diáspora e sob as amarras da civilização ocidental. Em nível da classifica-ção como gênero romanesco, Zumbi ressignifica o concei-to de texconcei-to ficcional e se configura como contranarrativa, se tomarmos como parâmetro a corrente tradicionalista da

literatura lato sensu. E após essa abordagem sobre a inserção desse herói quilombola no universo ficcional, atesta-se que o livro de Rufino situa-se em região limítrofe entre a ciência histórica e a literatura. Ainda, ao se questionar sobre o quan-to Zumbi tem de ficcional e se é possível traçar paralelos com a bibliografia de seu protagonista, surge como hipótese acei-tável a constatação de que esse grande personagem negro migrou dos documentos da ciência histórica para o discurso literário da negritude, sendo multiplicado em signos da lite-ratura afro-brasileira, como uma busca da reterritorialização da cultura do povo negro no âmbito da arte literária vigente.

Além disso, também é possível classificar a obra de Joel Rufino dos Santos como romance pós-moderno e como fic-ção fundacional da nafic-ção afro-brasileira. E essa classificafic-ção só se torna aceitável como resultado do projeto estético de Rufino. Comprometido com o seu lugar cultural, o narrador em Zumbi ultrapassa os limites impostos pela tradição literá-ria nacional aos sujeitos não componentes da elite sociocul-tural, política e financeira, no momento em que se posiciona como sujeito das ações, com um ponto de vista vinculado às heranças da respectiva ancestralidade. A emergência desses novos sujeitos na literatura é um sintoma das rasuras em nar-rativas tradicionais da pós-modernidade tal qual a criação de outras. Nas palavras de Bhabha (1998), “as contranarrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras 27. BHABHA. O local da cultura, p. 24.

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totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas.”28

Por outro lado, a pós-modernidade de Zumbi não a clas-sifica como inocente questionamento da identidade da na-ção unívoca, tampouco um eventual esboço de efervescên-cia cultural de um eu-enunefervescên-ciador afrodescendente, mas sim como representação da coletividade de uma epopeia negra, configurando-se como uma “grande narrativa” da Literatura Afro-Brasileira. Conforme atestam as palavras de Homi Bhabha: “[…] se o interesse no pós-modernismo limitar-se a uma celebração da fragmentação das ‘grandes narrativas’ do racionalismo pós-iluminista, então, apesar de toda efer-vescência cultural, ele permanecerá um empreendimento profundamente provinciano”29. Efetivamente, o movimento

de resistência do qual fez parte o grande herói quilombola Zumbi dos Palmares, representado no livro de Rufino, está longe de ser um empreendimento meramente provinciano.

Segundo Bhabha (1998), a linguagem da coletividade e da coesão nacionais está agora em jogo, em questionamento. Como contranarrativa da nação brasileira, Zumbi é o abalo “sísmico” da ideia de integridade nacional de um povo uni-forme, de caráter unívoco. Assim, o texto de Rufino repre-senta o local de fundação, no campo do discurso literário, da nação Zumbi.

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28. Idem. O local da cultura, p. 211.

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