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O que a Mulher Siro-Fenícia pode Ensinar sobre Bullyng e Preconceito?

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Academic year: 2020

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O QUE A MULHER SIRO-FENÍCIA

PODE ENSINAR SOBRE BULLYNG

E PRECONCEITO?*

CAROLINA BEZERRA DE SOUZA**

INTRODUÇÃO: BULLYING, RELAÇÕES DE PODER E DOMINAÇÃO

A

violência escolar afeta crianças através da vida, dificultando o desenvolvimento emocional e cognitivo e com reflexos na sua saúde física e, por isso, afeta toda a sociedade. O bullying tem se tornado forma comum de violência escolar e, por isso, é assunto presente em diversas pesquisas da área de educação.

A Unesco (s/d) define e traz as consequências do bullying:

Um(a) estudante está sofrendo bullying quando é exposto(a) repetidamente e continuamente a um comportamento agressivo que intencionalmente infere injúria ou desconforto através do contato físico, ataques verbais, brigas ou manipulação psicológica. Bullying envolve um desequilíbrio de poder e pode incluir provocações, insultos, o uso de apelidos nocivos, violência física ou exclusão social. Um valentão pode operar sozinho(a) ou dentro de um grupo de colegas. Bullying pode ser

Resumo: neste artigo, pretendemos discutir uma forma de combate à violência e o bullying

através da religião, na interpretação aplicada da literatura sagrada como forma de moti-vação simbólica para uma cultura de paz e incentivo à resistência à violência e à aceitação das diferenças. Inicialmente abordaremos o bullying como fenômeno social de reprodução de estruturas de poder e dominação. Em seguida faremos uma abordagem narratológica do texto de Mc 7, 24-30, o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia, ali encontramos Jesus como exemplo de pessoa que inicialmente recusa a alteridade, mas é humanizado pelo contato de uma mulher que é sábia, corajosa e resiliente e passa a aceitar as diferenças.

Palavras-chave: Bullying. Violência. Evangelho de Marcos. Resistência. Modelos de

com-portamento

* Recebido em: 25.02.2016. Aprovado em: 23.03.2016 Este trabalho se baseia na aplicação de resultados já publicados na dissertação de mestrado de Souza (2013).

** Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC Goiás. Bolsista Capes. E-mail: carolbsouza@gmail.com.

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direto, como uma criança pedindo dinheiro ou bens de outra, ou indireta, como um grupo de estudantes que espalham rumores sobre um outro. [...] Para o valentão como para o estudante que sofre bullying, o ciclo de intimidação e violência resulta em grandes dificuldades interpessoais e uma performance escolar pobre. Estudantes que sofrem bullying são mais propensos à depressão, solidão ou ansiedade e têm baixa autoestima. Os valentões geralmente agem agressivamente por frustração, humilhação, raiva e em resposta à ridicularização social (UNESCO, s/d, p. 11, tradução da autora).

Segundo Antunes e Zuin (2008, p. 34) o bullying é cometido com o objetivo de afirmar o poder interpessoal, através da agressão, ou conseguir afiliação junto a algum grupo. Os tipos de bullyingtambém são:

diretos e físicos, que inclui agressões físicas, roubar ou estragar objetos dos colegas, extorsão de di-nheiro, forçar comportamentos sexuais, obrigar a realização de atividades servis, ou a ameaça desses itens; diretos e verbais, que incluem insultar, apelidar, “tirar sarro”, fazer comentários racistas ou que digam respeito a qualquer diferença no outro; e indiretos que incluem a exclusão sistemática de uma pessoa, realização de fofocas e boatos, ameaçar de exclusão do grupo com o objetivo de obter algum favorecimento, ou, de forma geral, manipular a vida social do colega. [...][S]uas causas, que incluem, além de fatores econômicos, sociais e culturais, os relacionados ao temperamento do indivíduo, às influências familiares, de colegas, da escola e da comunidade, às relações de desigualdade e de poder [...], a uma relação negativa com os pais e um clima emocional frio em casa, e às relações de poder existentes no ambiente escolar.

Com isso, verifica-se que, além de ser uma problemática de violência física e sim-bólica, o bullying diz respeito o exercício e reprodução de formas de exercer poder, negando alteridades e cujo efeito é a manutenção de estruturas de dominação.

Para Elisabeth Young-Bruehl (2005, p. 167), a violência acontece a partir do confli-to com a alteridade: é no julgamenconfli-to de um grupo que se forma um preconceiconfli-to para o qual a violência é a forma de agir. Esta alteridade pode ser de posses, etnia, raça, gênero, religião. Assim, não se pode dizer que a violência tenha uma única raiz, mas é construção social. Se-gundo Bourdieu (2012, p. 46), a violência, seja física ou simbólica, faz parte de um conjunto de armas com que o ser humano, como agentes específicos, e instituições, como família, igre-jas, escola e Estado, contribuem no trabalho histórico e incessante de produção de estruturas de dominação.

A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de con-ceder ao dominante [...] quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes [...], resultam da incorporação de classificações assim naturalizadas, de que seu ser social é produto (BOURDIEU, 2012, p. 47).

É nos esquemas de percepção, avaliação e ação que constituem o habitus, e não na lógica consciente e cognoscente, que se dá o efeito da dominação simbólica, seja de etnia, gênero, cultura, língua etc. Ela produz os efeitos duradouros exercidos pela ordem social para harmonizar uma lógica da dominação e submissão que é tanto espontânea quanto extorquida (BOURDIEU, 2012, p. 49, 50).

Foucault (2012; 1988) entende que o poder é como uma rede múltipla de práticas, relações dinâmicas e estratégias presentes em todo lugar e tempo no meio de relações de força desiguais e móveis que constituem o corpo social. As estratégias de relações de força susten-tam e são sustentadas por tipos de saber e são intencionais e objetivas. Logo, identidades, dis-cursos sobre o corpo, sexualidade e a divisão hierarquizada dos seres humanos são formas de

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partilhar o mundo, sistemas de saberes e poderes, e tanto efeito como instrumento de poder. Assim, o exercício do poder não é resultante da escolha de um sujeito, mas de um conjunto de redes relacionais, pois as relações de força são resultado do compartilhar, das desigualdades e dos desequilíbrios que se produzem em si mesmas, enquanto se formam e atuam nos apa-relhos de (re)produção, na família, em grupos restritos e instituições (como igrejas, escolas e aparatos estatais), dando suporte divisões que percorrem do corpo social. Portanto, em um processo interpretativo da sociedade, é importante perguntar como o poder é exercido e que experiências e resistências o discurso tenta invisibilizar ou normatizar.

O cotidiano e o detalhe são fontes das relações de poder/resistência em que todas as pessoas exercem poder de alguma forma, reforçando ou negando as disputas por poder em diversos níveis. Com essa perspectiva, Foucault (2012) reforça a importância das microrrela-ções cotidianas, que influenciam e reforçam as macrorrelamicrorrela-ções. Isso torna a categorização do ser humano e as identidades passíveis de dissolução através da partilha de saber e da mudança das microrrelações.

As definições de bullying acima mostram-no como uma situação que percorre todo o tecido social a partir das microrrelações, influenciadas pelas redes de estratégias e saberes, dentro do ambiente escolar. No entanto, para além da esfera da microrrelação, precisa-se pen-sar no papel do bullying na manutenção de uma sociedade que exclui diferenças. A solução de um problema microrrelacional entre estudantes poderia influenciar em toda a sociedade para torná-la uma sociedade mais acolhedora à alteridade e menos violenta. Por causa do seu ambiente original e das suas consequências de dominação, o bullying pode ser entendido não apenas como exercício de poder, mas como forma de controle do saber, visto que os alunos que o sofrem tendem a ter baixo rendimento e problemas depressivos e de relacionamento. O bullying origina-se no preconceito em face da alteridade e silencia as diferenças físicas, de gênero e culturais, como diferenças religiosas, por exemplo. Claro que a partir dos pressupos-tos de Foucault descripressupos-tos acima, as vítimas de preconceito e bullying não devem ser pensadas simplesmente como vítimas, e sim como pessoas que participam do exercício do poder, resis-tindo ou reproduzindo as redes de poder, mas que dentro da sociedade tiveram experiências e discursos invisibilizados. Mesmo que resistam ou colaborem com o sistema que as domina, as pessoas que exercem sofrem a violência estão sob um sistema que as barbariza, impedindo as diferenças de fazerem parte efetiva da rede de conhecimento e provocar mudança social.

Como poderia a interpretação detextos sagrados contribuir para a superação de uma problemática tão profunda? Segundo Zabatiero e Leonel (2011, p. 185), “mitos de origem, genealogias e etiologias, e narrativas, [...], são mecanismos de construção do outro e do si mes-mo”. As narrativas bíblicas apresentam uma autoridade geradora de sentido que faz dos seus parâmetros modelo de comportamento e de identidade. Os textos sagrados são orientadores da vida social e religiosa de comunidades cristãs. Definem valores e relações a partir do paradigma colocado pela figura de Jesus: uma pessoa cuja prática de relacionamento recupera a identidade daqueles ao seu redor, livrando-os de opressão social, religiosa, econômica ou física, por meio de ensinamentos, curas e exorcismos. Ele estabelece assim um novo modelo relacional.

OBJETIVOS E MÉTODOS

O objetivo deste trabalho é mostrar que os textos sagrados podem ser fonte de mo-delos inspiradores de ação que poderiam colaborar com uma cultura de paz. Assim, busca-se

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no texto de Mc 7,24-30, nas relações com Jesus, exemplos de acolhimento, de resistência e resiliência. A metodologia utilizada é a análise da narrativa, um método sincrônico que es-tuda os componentes da narrativa e sua relação dentro da história. Também utilizamos aqui a hermenêutica feminista, pois o um dos protagonistas do texto é uma mulher, assim o foco é na relação de Jesus com essa mulher e nas características dela juntamente com as de Jesus. RESULTADOS: ANÁLISE DO TEXTO

Na primeira metade do Evangelho de Marcos, quando é narrado o ministério de Jesus na Galileia e circunvizinhanças, fica a narrativa do exorcismo da filha da siro-fenícia (Mc 7,24-30). Uma mulher busca a ajuda de Jesus para curar sua filha possessa de um espírito imundo. Após receber uma recusa de base preconceituosa, ela persuade Jesus por meio da sua força argumentativa convencendo-o a curar sua filha. Segue-se uma tradução instrumental da perícope Mc 7,24-30:

24 Mas, saindo de lá, foi para as fronteiras de Tiro. E entrou na casa, queria que ninguém soubesse e não pôde passar despercebido. 25 Mas imediatamente, ouvindo sobre ele uma mulher cuja filhinha tinha um espírito imundo veio e caiu prostrada a seus pés. 26 Mas a mulher era grega, de família siro-fenícia nascimento; e rogava-lhe que expulsasse o demônio de sua filha. 27 E lhe dizia: deixa pri-meiro serem saciados os filhos (as crianças/descendentes). Porque não é bom tomar o pão dos filhos (as crianças/descendentes) e para jogar aos cachorrinhos. 7,28 Mas ela respondeu e disse: Senhor, mas os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas das crianças. 29 E disse a ela: por causa desta palavra vai, o demônio já saiu da filha. 30 E partindo para sua casa, encontrou sua criança lançada sobre a cama e o demônio tinha saído dela (Tradução da autora).

Toda a seção entre 6,22 e 8,21 tem em comum o motivo do pão, que é repartido com a chegada do reino. É significativo aqui que esse debate e a ‘conversão’ de Jesus por meio dos argumentos socioreligiosos da mulher, usando da metáfora do pão, se localiza entre as duas multiplicações de pães e peixes, sendo que a segunda simbolicamente indicando para a missão de Jesus que inclui os povos da gentilidade. A partir desse texto, Jesus faz uma série de milagres em território gentio.

A cena também se localiza logo após uma sequência de conflitos de Jesus com autoridades judaicas acerca de tradições, leis alimentares e das questões de pureza (7,1-23), aspectos que separavam judeus e gentios. Haveria de se esperar uma resposta positiva de Jesus à mulher, mas ela não vem facilmente. Além do espanto que a resposta dura de Jesus causa nos leitores que veem em Jesus “um modelo perfeito de cortesia e moralidade que não se con-taminava com sua cultura patriarcal ou com a natureza humana” (MALBON, 2001, p. 427), o texto causa inquietação porque parece deixar a lógica narrativa de lado. Antes dessa mulher, Jesus havia curado um gentio também possesso (5,1-20), e provocara ali tanto admiração como rejeição, e também havia curado três mulheres, uma das quais também se aproximara dele de forma inconveniente. Portanto, previamente, ele já havia rompido tanto as barreiras da gentilidade como as de gênero. Não se entende exatamente então o motivo da recusa, mas ela acontece e faz do texto um ponto importante no contexto do Evangelho como um todo, pois não é típica do personagem. Porém, o posicionamento do texto, a motivação explicitada e a retórica, dão a entender que a missão aos gentios, talvez aliada a motivos sociais, é mesmo o tema principal da perícope (MARCUS, 2010, p. 552-3; MALBON, 2001, p. 426-7; GNI-LKA, 1986, p 342-3). Para Myers (1992, p. 254), a ideologia da inclusão/abrangência é a

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pedra angular da nova ordem social construída por Jesus em Marcos. Segundo Kelber (1979, p.37-8), o autor do Evangelho de Marcos sente e escreve de uma perspectiva judaica, por isso, a integração dos gentios é um problema difícil. Seu argumento começa com a abolição de tabus rituais, mas, conforme se desenvolve, é radicalizado ao ponto onde todas as normas rituais de pureza estão sob escrutínio e uma nova moralidade de pureza interior substituiu a pureza exterior. Ao lidar com a mulher siro-fenícia, ele força o novo senso de identidade comunal aos seus limites geograficamente, etnicamente e sexualmente. Ainda, segundo Fa-bris (1990, p. 499), o episódio é posto em relevo porque dá “uma solução autorizada a um problema de grande interesse para a comunidade: a inclusão dos pagãos na história salvífica”.

Lima (2001, p. 37) apresenta a seguinte estrutura para a cena: • v. 24 – Introdução;

• v. 25, 26 – a) A mulher chega à casa e pede a cura da filha • v. 27 – b) Jesus nega-se a tender o pedido

• v. 28 – c) a mulher argumenta seu pedido • v. 29 – b’) Jesus atende o pedido da mulher

• v. 30 – a’) A mulher volta para casa e recebe o milagre

É uma estrutura concêntrica que obedece a alternância de discurso dos personagens e a oposição dos temas (chegada e saída da mulher, negativa e aceitação). A parte central é o argu-mento da mulher, e esta é a única vez que uma mulher tem voz direta em um discurso em todo o Evangelho de Marcos. Segundo Ringe (2001, p. 83), a pergunta hostil inicial de Jesus, a resposta e o reconhecimento da efetividade desse desafio espelham a forma dos conflitos de Jesus com as autoridades nos Evangelhos Sinóticos. A mulher o vence e muda sua mente. Para Myers (1992, p. 252), embora seja a réplica da mulher que dê o aspecto particular dessa narrativa, o fato de ela desejar conversar sobre o assunto e “defender os direitos do seu povo ao poder libertador do ministério de exorcismo de Jesus” aprofunda ainda mais a sua afronta a ele.

O motivador inicial da ação é a possessão da menina e, com isso, o estado deplorá-vel em que ela e sua mãe se encontravam com marginalização de gênero e social-religiosa. No entanto, como a cura não é o centro da narrativa, a peripécia, ou a dificuldade a ser superada, é colocada pelo próprio Jesus com sua recusa. É a resposta da mulher, como centro da narra-tiva que abre a possibilidade para a sua resolução: Jesus muda de ideia e realiza a cura.

Se o tema principal é a gentilidade, o cenário é essencial à cena. A viagem a terras pagãs descrita em Mc toca somente territórios e localidades habitadas por judeus. O redator de Marcos deu novo sentido às indicações topográficas: a passagem de Jesus por essas terras se converte em sinal da missão pagã, de cuja legitimidade e necessidade ele está convencido (THEISSEN, 1997, p. 81). Em termos macrogeográficos, a narrativa se passa nas regiões de Tiro, no campo ao redor da cidade fenícia. É um território gentio fronteiriço, onde habitavam judeus e gentios, que abarcava três mundos culturais: fení-cio, judeu e helênico. Jesus se encontrava fora da sua região usual. Ao colocar a cena nessa região de fronteira, Marcos traz à tona a história de relações conflituosas entre os judeus galileus e a população de Tiro.

Preconceitos agressivos mantidos através de uma situação de dependência econômica e legitimados por tradições religiosas dificultaram as relações entre os de Tiro, mais helenizados, e a população judia, que vivia em bairros como a minoria em Tiro, tanto na área dentro da cidade, como na área campesina. Provavelmente os tíreos, mais fortes economicamente, frequentemente deixavam sem pão a população judia do campo, comprando cereal no interior (THEISSEN, 1997, p. 93).

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Havia uma tradição de relatos bíblicos do Antigo Testamento que condenava Tiro1. Era uma região rica, com metalurgia, comércio e púrpura, mas não possuía autonomia agríco-la, de forma que os camponeses da região produziam para a cidade rica e viviam em situação de pobreza (LIMA, 2001, p. 98-101).

Na microgeografia, a cena se dá em um espaço privado: uma casa cujo dono não é especificado. Não se sabe se a casa é de gentios ou de judeus, em um território misto, as duas possibilidades ocorrem. Ela representa um lugar de retiro para Jesus que buscava permanecer oculto. A cena trata de mais uma tentativa, frustrada, de Jesus de estar só2, após uma etapa difícil de controvérsias e recusas ao seu projeto. Uma casa seria um espaço mais propício a uma mulher que o espaço público, mas ela não fora convidada. O lugar íntimo de reclusão é invadido pela mulher (MALBON, 2001a, p. 427-8). Para Myers (1992, p. 252), isso seria uma afronta à honra de Jesus e sua recusa poderia ser compreensível. A cena finaliza com a chegada da estrangeira em sua própria casa, onde chega também a novidade do Reino (LIMA, 2001, p.41).

Acrescente-se ainda, em termos de microgeografia, um cenário metafórico, menor ainda que a casa, mas interno a ela: debaixo da mesa. É o espaço dedicado aos cães, aos gen-tios, no caso, à mulher gentia e sua filha (LIMA, 2001, p.42). O texto, mesmo aceitando que os cães (gentios) estejam no mesmo ambiente recebendo do mesmo tipo de coisa que os filhos (israelitas), afirma-lhes um lugar e um destino: ficam debaixo da mesa (em segundo lugar) e recebam as migalhas do pão.

Os personagens são três: a mulher, sua filha e Jesus. Como atuantes principais, temos os interlocutores do diálogo: a mulher e Jesus. Sendo a menina citada no início, e apa-recendo, mas sem ação, no fim.

As características de Jesus, nesse texto, advêm do seu próprio discurso e da sua rea-ção diante da réplica da mulher. Como ele é rude com a mulher, se utilizando da metáfora dos cães3 para identificá-la como gentia, possivelmente uma exploradora, aparece inicialmente ainda preso a tradições religiosas judaicas ou a estigmas sociais de divisão de estratos. Segundo Soares, Correia Júnior e Oliva (2012, p. 144), a recusa se dá por uma questão de procedência, mas não de exclusão, pois a frase de Jesus dá a entender que chegará o momento dos gentios serem atendidos.

O vocabulário mostra como muda o posicionamento de Jesus. A palavra tekna (v.27), que significa ‘filho legítimo’ ou ‘descendente’ é usada com relação aos israelitas, en-quanto a menina é associada a cãezinhos. Na réplica, a mulher utilizando a palavra paidion (v.28), que tanto significa ‘criança’ ou ‘criança submetida a um serviço laboral’. Quando muda sua atitude, Jesus usa thygatrion (v.29), que significa ‘filha pequena’ (TEZZA, 2006, p.102-3). Essa alteração de vocabulário mostra que Jesus se humanizou com a resposta da mulher, se mostra disponível a mudanças com base em interferências relacionais. Fica claro que a construção do Reino de Deus é um projeto aberto a novas possibilidades. O texto de-safia a um compromisso com a vida concreta, a fugir dos paradigmas religiosos, sociais e de gênero.

Enquanto nenhum atributo é apresentado a Jesus pelo narrador, as duas apresentam algumas características. A primeira é que ambas são anônimas. A filha da mulher estava pos-suída por um espírito impuro. A situação da menina é calamitosa, pois com a possessão, ela seria triplamente impura do ponto de vista judeu, pois é mulher, estrangeira e possuída por demônio. Essa caracterização da filha se estende à mãe, também triplamente impura. Não há

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menção à família ou status marital. Ela é apresentada como uma mulher. Ela também é apre-sentada através de sua filha, o que indica que sua vida é regulada pelo sofrimento da criança (MILLER, 2002, p. 122). Essa mulher é grega e siro-fenícia. Com grega, pode-se entender uma indicação de sua formação e pertença cultural e religiosa. Para Theissen (1997, p.82-4) e Ringe (2001, p. 86), o atributo grega implicava uma pessoa com conhecimento da língua grega e provavelmente ampla integração na cultura helenística, além disso, a localizam em um estrato social superior, ela faria parte daquele grupo cujas políticas e o estilo de vida causavam sofrimento aos vizinhos camponeses judeus, o que estaria contra a nova ordem de Jesus. Por outro lado, não é explícita na cena a identificação da pertença social da mulher, e o fato da cena se dar no campo, não na cidade, diminui a possibilidade de ela ser da elite.

A mulher também é caracterizada por suas próprias atitudes e discurso. Primeiro, ela age sozinha para conseguir a cura de sua filha e libertação para as duas. Porquanto viola as regras de conduta feminina, de pureza judaicas e ignora as barreiras sociais e religiosas entre judeus e gentios, motivada pelo cuidado com sua filha, ela é uma pessoa corajosa que rompe separações. Ao reagir à recusa de Jesus, ela se recusa a perder a esperança, o faz com criativida-de e sabedoria, criativida-de uma maneira audaz. Mostra-se resiliente, mantendo a postura, a recusa não a faz perder a fé e a confiança de conseguir a cura para a filha. Ela inicia a resposta chamando Jesus de Senhor. Embora possa ser um termo de respeito, é também um título cristológico e é a única passagem em que um ser humano se dirige a Jesus como Senhor no Evangelho de Marcos (MILLER, 2002, p. 142). Isso mostra que, mesmo diante da recusa ela ainda re-conhece em Jesus um homem santo. Segundo Richter Reimer (2012, p.134), ela representa

uma parcela da população autóctone da região de Tiro/Sidon que conhecia Jesus, mas que ainda não era plenamente aceita e acolhida em seu movimento, nas comunidades cristãs. Portanto, junto com a argumentação que mudou a perspectiva de Jesus, convertendo-o de sua decisão primeira em recusar o socorro solicitado, a mulher o confessou como Senhor.

Para Marcus (2007, p. 367-8), a forma com que a mulher vence a dificuldade é por inteligência e auto-humilhação: transforma os cães de rua a que Jesus se refere em cães domésticos que têm acesso a onde a família come. A humilhação se dá em aceitar a metáfora gentios-cães e, portanto, na qualidade superior e temporal dos judeus na história da salvação. Por causa dessa resposta, Jesus reconhece e afirma a inteligência e humilhação da mulher e exorciza o demônio à distância. Para Theissen (1997, p. 94), esse milagre não consiste somen-te na cura à distância, mas na superação dos preconceitos entre povos e culturas, que é igual-mente dissociador, pois têm bases sociais, econômicas e políticas, já que havia um problema de relações de exploração entre a Galileia e Tiro. Mas a mulher acha a saída: assume a metá-fora colocada por Jesus e a reestrutura. Com isso, permite observar a situação de forma nova e traspassar fronteiras inter-humanas carregadas de preconceitos. Ela conseguiu retirar da me-táfora uma atitude positiva e sobrepôs o brutal rechaço. “Ela mesma se comporta como um cão fiel: crê que Jesus, apesar da negativa, pode e quer ajudar” (THEISSEN, 1997, p. 94-5).

O fato é que a mulher demonstra uma enorme força argumentativa. Ela não pa-rece assumir exatamente a metáfora ou concordar com sua caracterização como cão. Mas, admitindo a existência do preconceito, rejeita a metáfora ao revertê-la e, assim, antecipar as expectativas escatológicas de acolhimento de Judeus e gentios. As crianças, que estão à mesa, sempre deixam migalhas, e muitas vezes de propósito, para que os cachorrinhos em baixo da mesa sejam saciados. Ou seja, ao evocar o espaço metafórico debaixo da mesa e usar uma

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cena doméstica cotidiana carregada de emoção, a mulher faz Jesus mudar seu olhar, perceber a existência de outros tipos de pessoas marginalizadas que podem ser alvo do seu ministério. Sua força argumentativa está em mostrar que Jesus é Senhor para ela e que na casa, ou no Reino, as diferentes formas de vida têm acesso ao mesmo tipo de suprimento. Com a con-versão de Jesus, as duas puderam receber libertação, o demônio fora embora da filha e há a possibilidade de reconstrução (RICHTER REIMER, 2012, p. 134-5; SOARES, CORREIA JÚNIOR, OLIVA, 2012, p. 243-4).

CONCLUSÃO

A cena analisada traz diversas características que podem motivar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e inclusiva a partir do simbolismo religioso.

As características da mulher de coragem frente a dificuldade de sua realidade (a possessão e as separações sociais), resistência, resiliência e sabedoria frente ao preconceito, ao começar o diálogo que muda sua vida e a de Jesus, revertendo seus argumentos inspira uma postura diferente daqueles que sofrem opressão a partir de um exercício de poder ativo na resistência e a recusa de um modelo dominador e opressor de sociedade que os trata com desprezo ou com uma atitude superior.

A postura de Jesus também motiva reflexão sobre as atitudes de todos no que se refere à relação com o diferente. Na cena, ele se deixa modificar por uma pessoa que é diferente em gê-nero, cultura, religião e posição social. Ele se humaniza com a presença da alteridade e muda os planos de ministério para uma implantação do Reino de Deus que seja inclusiva desde o início. WHAT CAN THE SYROPHOENICIAN WOMAN TEACH ABOUT BULLYING AND PREJUDICE?

Abstract: in this work, we intend to discuss a way to combat violence and bullying through

reli-gion, in the applied interpretation of sacred literature as a symbolic form of motivation for a cul-ture of peace and encouraging resistance to violence and for the acceptance of differences. Initially we discuss bullying as a social phenomenon of power and domination structures reproduction. Then we will make a narratological approach to the text of Mark 7: 24-30, the exorcism of the Sy-rophoenician woman daughter, where we find Jesus as an example of a person who initially refuses to otherness, but is humanized by the contact of a woman who is wise, courageous and resilient and comes to accept the differences.

Keywords: Bullying. Violence. Gospel of Mark. Resistance. Role models.

Notas

1 Is 23,1-18; Ez 26,1-28; Jl 3,4-8; Am 1.9-10; Zc 9, 2-4.

2 Assim como em 1,35-39; 2,1; 3,20; 6,31.45-46; 7.24; 9,30-31. Jesus busca, nesses textos, estar só ou fugir da multidão.

3 ‘Cão’ é um insulto forte no mundo mediterrâneo, são considerados catadores, impuros e não animais domésticos. O diminutivo não é menos insulto e pode ter sido usado por se referir à criança. O termo era utilizado para se referir a grupos hostis ao povo de Deus ou às leis de Deus, os ricos habitantes de Tiro poderiam se encaixar nessa descrição de inimigos dos judeus pobres residentes nessa região de fronteira (RINGE, 2001, p. 89).

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