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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC–SP Roseane Silveira de Souza

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Academic year: 2019

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Roseane Silveira de Souza

O Cidadão e a Poronga:

A peleja de Vicente Salles contra a

exclusão do negro da história do Pará

DOUTORADO EM HISTÓRIA

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PUC

SP

Roseane Silveira de Souza

O Cidadão e a Poronga:

A peleja de Vicente Salles contra a

exclusão do negro da história do Pará

DOUTORADO EM HISTÓRIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTORA em História, sob a orientação da Profª Drª EstefâniaKnotz Canguçu Fraga.

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Este trabalho foi financiado pela CAPES, no primeiro momento, e depois pelo CNPq. Sou muito grata a este incentivo, que possibilitou deslocamentos entre cidades e aquisição de material e equipamentos necessários à documentação de todo o processo de pesquisa.

Agradeço aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC–SP, pelo conhecimento compartilhado e aos colegas de curso pelas leituras críticas do projeto e seu desenvolvimento. À professora Maria Antonieta Antonacci por suas aulas sobre decolonialidade do corpo e do saber, que me fizeram refletir a respeito da ilusão e do risco das histórias únicas e perceber que há tantas histórias possíveis para serem vividas.

À professora Estefânia Knotz Canguçu Fraga, minha orientadora desde o mestrado, agradeço por sua confiança neste e naquele projeto, pelo carinho, as dúvidas e reflexões compartilhadas, indicações de leituras e o entusiasmo de sempre. Muito obrigada.

Aos professores Wilton Silva (UNESP/Assis) e Ênio José Brito (PUC–SP), membros da banca de qualificação, pela primeira leitura dedicada e generosa do trabalho, com indicações precisas e valiosas, que procurei incorporar à tese e que levo como grande aprendizado.

Às equipes da Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, onde fica a Coleção Vicente Salles, do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes (GEPEM/UFPA), em Belém, e da Biblioteca Amadeu Amaral, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), no Rio de Janeiro, pelo cuidado e dedicação demonstrados na fase de levantamento de fontes. À Cláudia Márcia Ferreira, diretora do CNFCP, agradeço pela doação das publicações do Centenário Edison Carneiro.

À Sílvia Sampaio Alencar, pela tradução competente do resumo e pela troca de informações, e ao Leo Bitar, pela Audiobiografia delicada e as conversas durante o processo.

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Ao Marcelo Rodrigues, ao Lúcio Flávio Pinto, ao Jonas Arraes e ao Paulo Nunes, que, gentilmente, cederam fontes ao trabalho. Ao Ailson Braga, que me sugeriu o título da tese. Ao cartunista Biratan Porto pelos esclarecimentos sobre o personagem Cidadão-de-Arco-e-Flecha. À Valéria Andrade, pelo Gostosa Belém de outrora..., do poeta De Campos Ribeiro. À Maria Christina e à Lúcia Mesquita pelo auxílio incrível no levantamento de fontes em Belém, na hora mais improvável da pesquisa. E ao Chico Vasconcelos que, junto com a Maria Christina, ajudou-me a desvendar o mistério das travessas Cametá e Santarém, na Cidade Velha.

Às amigas queridas, Catarina Santos, Adriana Coimbra e Maria Telvira, cúmplices de tantas dúvidas acadêmicas e extra-acadêmicas, sou-lhes grata pela ternura e pelas risadas. À Carol Gama, por me ajudar a reouvir. À Vanessa Lazzaratto, pela escuta imprescindível.

Eu teria de nascer de novo para recompensar o carinho e a atenção que me dedicaram Conceição Campos e sua família, Pedro Amorim, Januário e Francisco, ao me hospedarem em Paquetá (RJ), em todos os momentos da pesquisa. Ter a amizade de vocês é um “prazer que não se traduz”.

Como não se traduz em palavras o quanto devo à família de Vicente Salles por confiar neste projeto, sobretudo depois da morte de Vicente, partilhando memórias e material de trabalho, permitindo meu acesso ao ouro puro da biblioteca particular de Brasília e ao pequeno, mas valioso, acervo do Rio. Por acolherem a mim e ao meu trabalho, o zelo e a atenção, muito obrigada, Marena, Marcelo (e sua filha, Ana Clara), Mariana e sua família (Gael Lhoumeau, Carolina e Sofia), Márcia, e à Rubenita. Só tenho mesmo a lhes agradecer por tudo.

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“Acendo a lâmpada às seis horas da tarde Acenda a luz dos lampiões Inflame a chama dos salões Fogos de línguas de dragões Vagalumes Numa nuvem de poeira de neon Tudo claro Tudo claro à noite, assim que é bom A luz Acesa na janela lá de casa O fogo O foco lá no beco e um farol.

Essa noite Essa noite vai ter sol Essa noite Essa noite vai ter sol.”

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Roseane Silveira de Souza

O Cidadão e a Poronga: A peleja de Vicente Salles contra a exclusão do negro da história do Pará

Esta tese fundamenta-se na trajetória de vida do antropólogo, historiador e folclorista paraense Vicente Juarimbu Salles (1931–2013) em seus estudos pioneiros sobre a presença do negro na história do Pará. Trata-se de uma pesquisa circunscrita ao domínio da História Cultural, na linha Cultura e Representação, e busca identificar como aquele tema se entrelaça à história de vida de Vicente Salles, tendo como objeto a sua historiografia em torno dos sujeitos excluídos da história. Para isso, foram realizadas entrevistas com o autor, familiares, amigos e estudiosos da cultura do negro. Também foram feitas a leitura e a interpretação de obras de Salles (livros e títulos da série MicroEdição do Autor), e de sua correspondência com interlocutores diversos. Dessas fontes foram obtidos dados da infância, juventude e vida adulta do historiador, nas esferas familiar e profissional, que tentam mostrar como esse intelectual constituiu um olhar para os sujeitos à margem da história, como o negro na Amazônia. O trabalho aborda os primeiros passos da pesquisa no Pará, estimulada pelo poeta e folclorista Bruno de Menezes e pelo antropólogo baiano Edison Carneiro. Depois, o desenvolvimento do projeto, em âmbito acadêmico, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, mas, sobretudo, na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, onde Salles trabalhou de 1961 a 1972. Aborda, ainda, o panorama teórico das ciências sociais e humanas em transformação na década de 1960, quando Salles desenvolveu a investigação, resultando na obra O negro no Pará: sob o regime da escravidão, um clássico da historiografia da Amazônia, que mostrou que o negro, ao contrário de uma visão imperante à época, teve importância fundamental para a formação da sociedade paraense. No total, são apresentadas as cinco obras historiográficas que compõem essa trajetória do pesquisador em torno do tema, recortado por objetos diversificados. O estudo abrange, ainda, a interlocução de Salles com o violonista e compositor paraense Tó Teixeira nos estudos sobre folclore e música do negro, e a batalha do historiador pela publicação e difusão de sua vasta obra. A tese, enfim, expõe mais de 50 anos de estudos sobre a temática do negro no Pará, mostrando que se tratava de um projeto de vida de Vicente Salles.

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Roseane Silveira de Souza

The Citizen and the Lamp:

Vicente Salles’ defiance against the African descendant’s exclusion in Pará’s History.

This dissertation is founded on the life journey of Vicente Juarimbu Salles (1931–2013), an anthropologist, historian and folklorist of Pará, Brazil, and on his pioneering studies about the African descendant’s presence in Pará’s History. This research is circumscribed to the Cultural History’s realm, in the line of Culture and Representation. It aims to identify how this theme is intertwined to Vicente Salles’ life history, relying on his historiography as the object of study concerning the subjects who were excluded from History. The investigation’s accomplishment counted on interviews with the author, his family members, friends and scholars who research the African descendant’s culture. Readings and interpretations were also conducted through Salles’ work – books and titles from the Author’s series MicroEdição –, as well as his correspondence with several interlocutors. From these sources it was possible to collect the historian’s childhood, youth and adult life data in both personal and professional spheres, which try to show how this intellectual built a view over the subjects placed in the margins of History, like the African descendants in Amazon. The work approaches his first steps in Pará’s research, encouraged by the local poet and folklorist Bruno de Menezes and by Edison Carneiro, an anthropologist from Bahia. Later on, it encompasses the project development in the Academic sphere at the National Philosophy Faculty of Brazil’s University in Rio de Janeiro, but overall, at the Campaign in Defense of Brazilian Folklore, in which Salles worked from 1961 to 1972. The research also approaches the theoretical scenery of Social Sciences and Humanities, that were undergoing transformation in the 1960’s decade, when Salles developed the investigation resulting in the work: The African descendant in Pará: under the slavery regimen, that showed that the African descendant, contrary to an imperative vision of those times, was remarkably important to the formation of Pará’s society. Altogether, five historiographic works that build the researcher’s journey through the theme are presented, and amongst them, diverse objects were selected. The study also gathers Salles’ dialogues with Pará’s guitarist and composer Tó Teixeira in the studies about folklore and African descendant music, as well as the historian’s struggle for the publication and propagation of his vast work. Ultimately, the dissertation exposes over 50 years of studies about the African descendant theme in Pará, revealing that it was a life project for Vicente Salles.

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Brasília © Rose Silveira.

Figura 2: O Cidadão-de-Arco-e-Flecha caminha pelo Mercado do Ver-o-Peso, em Belém,

no desenho de Biratan Porto, sob orientação de Vicente Salles. 36

Figura 3: O historiador e folclorista Vicente Salles durante entrevista em agosto de 2012,

no Rio de Janeiro © Rose Silveira. 40

Figura 4: Vicente Salles em 1965. Fotografia cedida pelo pesquisador. Reprodução: Rose

Silveira. 41

Figura 5: Vicente, por volta dos seis anos de idade, em Castanhal. Fotografia cedida por

Suzette Salles. Reprodução: Rose Silveira 42

Figura 6: Clóvis e Maria Christina com os filhos. Da esq. para dir., Nancy, Jeanette, Suzette, Vicente, Ivette e Conceição. José ainda não era nascido. Castanhal (PA), [s/d]. Fotografia cedida por Vicente Salles. Reprodução: Rose Silveira

44

Figura 7: Grupo escolar onde Vicente Salles estudou quando criança, em Castanhal.

Fotografia cedida pela família. Reprodução: Rose Silveira. 54

Figura 8: A Avenida Presidente Vargas, umas das principais de Belém do Pará, na década

de 1940. Fonte: Fragmentos de Belém. 58

Figura 9: Travessa Cametá, na Cidade Velha, centro histórico de Belém, onde viveu a

família de Vicente Salles a partir da década de 1940. Agosto, 2013 © Rose Silveira. 62 Figura 10: O poeta e folclorista Bruno de Menezes. In: Simpósio "Olhares sobre o

poético". 65

Figura 11: Coleção Alcebíades Nobre na Coleção Vicente Salles: a documentação que o

historiador recuperou do lixo do Teatro da Paz, em 1953 © Rose Silveira. 68 Figura 12: As Suítes de Bach, presente de Joel Pereira na partida de Vicente: "Ao meu

estimado amigo Juarimbu com a sincera afeição que te dedica este amigo de sempre. Joel". Acervo particular de Vicente Salles, Brasília © Rose Silveira.

73

Figura 13: A escritora e jornalista Eneida de Moraes em seu apartamento, em

Copacabana [s/d]. Fotografia do Acervo do GEPEM/UFPA. 77

Figura 14: Com a bibliotecária e pesquisadora de música Mercedes Reis Pequeno, no Rio

de Janeiro, em agosto de 2012 © Rose Silveira. 82

Figura 15: Edison Carneiro, ao centro (terno claro), entre funcionários da Campanha e convidados, na inauguração da Biblioteca Amadeu Amaral, em 1961. Fotografia cedida pela família de Vicente Salles. Reprodução: Rose Silveira.

84

Figura 16: Vicente e Bráulio do Nascimento (centro) na inauguração da Biblioteca Amadeu Amaral, em 1961. Fotografia cedida por Vicente Salles. Reprodução: Rose Silveira.

85

Figura 17: Vicente Salles (em destaque) em tentativa de invasão da Faculdade Nacional

de Filosofia, março de 1964. Fotografia cedida por Vicente Salles. 94 Figura 18: Marena Salles como solista da Orquestra Filarmônica Estudantil do Diretório

Acadêmico José Maurício Nunes Garcia, da Escola Nacional de Música, década de 1960. Fotografia cedida por Marena. Reprodução: Rose Silveira.

97

Figura 19: Casamento de Vicente e Marena, no dia 28 de junho de 1965, no Rio de

Janeiro. Fotografia cedida por Marena Salles. Reprodução: Rose Silveira. 97 Figura 20: (Díptico) Vicente e Marena em viagem de férias com Marcelo, Mariana e

Márcia, pela Rodovia Belém-Brasília, em 1977. Fotografias cedidas por Marena Salles. Reprodução: Rose Silveira.

112

Figura 21: A biblioteca de Vicente Salles, em Brasília, na década de 1990, antes de ser

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pintura do artista Rodrigues © Rose Silveira.

Figura 24: (Díptico) À esquerda, representações de negros pelo casal Luiz e Elizabeth Agassiz; às direita, Policarpo, no desenho de François Biard, século XIX. Fonte: SALLES, 2005a.

150

Figura 25: Conjunto de fontes utilizadas por Salles para elaboração de "O negro no Pará", na biblioteca particular de Brasília, sugere processo artesanal. Brasília, agosto de 2013 © Rose Silveira.

157

Figura 26: Anaíza Vergolino na sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, que

hoje preside © Rose Silveira. 168

Figura 27: Capa do livro de Anaíza, em coautoria com seu orientador, que faleceu antes

da publicação. 173

Figura 28: (Tríptico) As obras que complementam os Estudos sobre o Negro no Pará. 178

Figura 29: Verbete do arquivo de biografias da biblioteca de Vicente Salles em Brasília ©

Rose Silveira. 188

Figura 30: O músico Tó Teixeira lecionando violão em sua casa, no Umarizal. Fotografia

cedida por Vicente Salles © Vicente Salles. 191

Figura 31: Tó Teixeira e o baterista Falu, 1939. In: HABIB, 2013a. 194

Figura 32: No Mapa Pitoresco e Resumindo de Belém do Grão-Pará, o Umarizal, indicado pela seta, ainda é identificado pela proximidade do Igarapé das Almas. Fonte: TOCANTINS, 1963.

197

Figura 33: O antigo Igarapé das Almas em processo de saneamento, em 1966. Fotografia cedida pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto.

198

Figura 34: A Doca na década de 1970, depois da canalização do Igarapé das Almas. O

bairro do Umarizal está à direita da imagem. In: Panoramio. 198

Figura 35: Tó Teixeira e Zizi, em 9 de março de 1968. Ela morreria pouco tempo depois.

Fotografia cedida por Salomão Habib © Vicente Salles. 211

Figura 36: Livro de teoria musical encadernado por Tó Teixeira. Acervo pessoal da

pesquisadora © Rose Silveira. 217

Figura 37: Fragmento da extensa lista de músicos e outros artistas do Umarizal enviada a Vicente Salles por Tó Teixeira. Acessível na Coleção Vicente Salles/ Museu da UFPA © Rose Silveira.

223

Figura 38: O caderno de partituras dado por Tó a Vicente Salles com temas alusivos à cultura do negro no Pará. Acessível na Coleção Vicente Salles/Museu da UFPA © Rose Silveira

229

Figura 39: O disco de Tó Teixeira, 1977. Acervo da pesquisadora. 243

Figura 40: O músico e pesquisador Salomão Habib durante a entrevista, em outubro de

2013 © Rose Silveira. 247

Figura 41: O conjunto produzido por Salomão Habib em homenagem a Tó Teixeira ©

Rose Silveira. 249

Figura 42: Vicente Salles com os originais de livro sobre lundu. Agosto de 2012 © Rose

Silveira. 252

Figura 43: Salles em frente à biblioteca do Museu da UFPA. Abril de 2011 © Rose

Silveira. 258

Figura 44: Salles conversa com pesquisadores na biblioteca do Museu da UFPA, em abril

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Figura 47: Alguns exemplares antigos da série MicroEdição do Autor. Acervo pessoal de

Vicente Salles © Rose Silveira. 271

Figura 48: Os Cadernos de Cultura do MEC, primeira inspiração para as microedições.

Fonte: MDC Revista de Arquitetura e Urbanismo. 272

Figura 49: As "Réflexions" deram à forma e o conceito para as microedições de Salles.

Fonte: Open Library. 272

Figura 50: As últimas microedições publicadas por Salles. 277

Figura 51: Salles ao lado de Lúcio Flávio Pinto, no auditório Benedito Nunes, UFPA,

abril de 2011 © Rose Silveira. 278

Figura 52: Álbum de família da família Salles, cedido por Marena Salles © Rose Silveira. 285

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INTRODUÇÃO 16

1. AS TRAVESSIAS DO CIDADÃO-DE-ARCO-E-FLECHA DO INTERIOR DO

PARÁ ATÉ BELÉM, RIO DE JANEIRO E BRASÍLIA 43

1.1 O MENINO VICENTE, SUA FAMÍLIA E O MUNDO QUE ELE VIA 43

1.1.1 A Família Salles pega a estrada e ruma para a capital, Belém 57

1.1.2 O ano de 1954: tempo de travessias 70

1.2 O MOÇO VICENTE SALLES PARTE NUM ITA PARA O RIO DE JANEIRO 74

1.2.1 O reencontro com Eneida de Moraes 76

1.2.2 Com Edison Carneiro, na “trincheira do folclore” 83

1.2.3 “Fechado por ser um antro de comunistas” 92

1.2.4 O dia em que o moço Vicente se casou com Marena, a moça do violino 95

1.3 NA LINHA DO HORIZONTE: BRASÍLIA 107

1.3.1 A família se aventura pela Belém-Brasília 111

1.3.2 O Cidadão se aposenta, mas a peleja continua 114

2. A PELEJA DO CIDADÃO PARA ESCREVER UMA HISTÓRIA DO NEGRO

NO PARÁ 120

2.1 O PROTEGIDO DO PRETO VELHO E DOS PAJÉS 120

2.1.1 Vicente Salles entre o folclore e a história 133

2.1.2 O negro no Pará, capítulo por capítulo 138

2.1.3 Sujeitos com nome, sobrenome e atos 143

2.1.4 A pesquisa nos arquivos, na ponta do lápis 155

2.2 COM ANAÍZA VERGOLINO, NAS MESMAS ÁGUAS 168

2.3. UM LIVRO, SUA TRAJETÓRIA E SEUS DESDOBRAMENTOS 176

3. LÁ VEM TIO TÓ! 189

3.1 O HOMEM TOCADO PELO GOSTO DA LEMBRANÇA 189

3.1.1 A história, a memória e a geografia na sola do sapato 194

3.1.2 Vai, Antônio, ser Teixeira na vida 201

3.1.3 Pelica, lâminas de ouro, alto relevo... 212

3.2 VOCÊ É CAPAZ DE RECORDAR? 218

3.2.1 Um disco para Tó Teixeira 233

3.3 A MÚSICA REVISITADA DO POETA DO VIOLÃO 245

4. MORRER, DORMIR, TALVEZ SONHAR 253

4.1 O CIDADÃO E A PELEJA PELA PUBLICAÇÃO DE SEUS LIVROS 253

4.1.1 Entre recusas e aprovações, o percurso de duas obras 260

4.1.2 Como surgiu a série MicroEdição do Autor 270

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FONTES 291

Arquivos 291

Depoentes 291

Bibliografia consultada de Vicente Salles 292

Correspondências 295

Documentos audiovisuais 302

Documentos sonoros 303

BIBLIOGRAFIA GERAL 304

ANEXOS 330

I. Arquitetura Narrativa Revista | Novembro de 2011 331

II. Carta de Vicente Salles para Rose Silveira (29/04/2012) 332

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INTRODUÇÃO

Redação de jornal, 8 de outubro de 1991. A pauta do dia era uma entrevista com o antropólogo, historiador, musicólogo e folclorista paraense Vicente Salles, de passagem por Belém – ele morava em Brasília –, para divulgar um projeto fonográfico que acabara de produzir sobre bandas de música. Uma pauta especial em se tratando de alguém que alçara à condição de clássico da historiografia do Pará. O autor de O negro no Pará: Vicente Salles! Para uma jovem repórter da editoria de Cultura, aquela presença impunha responsabilidade e tanto. Como não o conhecia pessoalmente, era inevitável imaginar como seria ele. Seria austero ou implacável com os neófitos?

Ele adentrou a redação e as dúvidas se desfizeram. Um homem às vésperas dos 60 anos, de baixa estatura, tranquilo, riso fácil, uma pessoa permeável. Em dez minutos de conversa, parecia um velho conhecido falando de seu trabalho, didaticamente, gesticulando bastante, valorizando as perguntas com informações precisas, ricas em detalhes. Tinha acabado de se aposentar do IPHAN/Pró-Memória e estava divulgando o álbum Bandas de música de ontem e de sempre: três CDs contendo 25 peças de 25 autores desconhecidos e pesquisados por ele, em realização da Federação Nacional das Associações Atléticas Banco do Brasil (FENABB). Também me ofertou o livro

Sociedades de Euterpe: as bandas de música no Grão-Pará, quarto volume de uma série sobre história da música, que havia sido editado por ele mesmo em 1985 e que, na circunstância daquela pauta, permitiria compreender a extensão do trabalho do pesquisador sobre as bandas de música.1

Aquela produção denotava um pesquisador em plena atividade, apesar da aposentadoria. Pelo contrário, sem as obrigações institucionais, Salles poderia se dedicar ainda mais ao seu trabalho particular de pesquisa, sobretudo retornando ao Pará, onde estavam os temas e objetos de seus estudos, e de onde ele partira 37 anos antes.

Vicente Juarimbu Salles, nascido em 27 de novembro de 1931, na Vila do Caripi, município de Igarapé-Açu (PA), e falecido em 7 de março de 2013, no Rio de Janeiro, era antropólogo formado pela Faculdade Nacional de Filosofia da extinta Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou 25 livros e 51 números da série MicroEdição do Autor, livretos artesanais, de pequena tiragem, feitos por ele mesmo. Essas obras versam sobre um sem-número de temas relacionados à

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Amazônia, do século XVII ao século XXI, obrigatórias para quem deseja estudar a região – o Grão-Pará, sobretudo. Envolvem folclore, música, teatro, literatura, artesanato, humor, imprensa, política e, notadamente, os chamados estudos africanistas, estudos sobre a trajetória do negro no Brasil. Também escreveu biografias e elaborou bibliografias.

Seus pais, Clóvis e Maria Christina Salles, ambos cearenses que migraram para o Pará nas primeiras décadas do século XX, tiveram sete filhos. Salles era o terceiro. A família deslocou-se pelo interior do Pará, entre Igarapé-Açu e Castanhal, onde viveu às proximidades do Petimandeua, área de remanescentes de quilombos, mudando-se para Belém, onde se estabeleceu em 1946. Vicente Salles mudou-se, em 1954, para o Rio de Janeiro, e, em 1975, para Brasília. Em 2012 voltou a residir no Rio de Janeiro.

O escritor foi casado por 48 anos com a violinista e pesquisadora carioca Marena Isdebski Salles, com quem teve três filhos: Marcelo e Mariana, músicos, e Márcia, bancária. Os filhos mais velhos deram-lhes as netas Ana Clara (filha de Marcelo e da violoncelista Cláudia Grosso Couto) e Carolina e Sofia (filha de Mariana e do violoncelista Gael Lhoumeau). Atualmente, a família encaminha a publicação de inéditos do autor e decide o destino de seu acervo particular.

Depois daquela primeira entrevista, reencontrei Vicente Salles em 2003, durante a realização do projeto Tocando a Memória – Rabeca, para o qual fora contratado como consultor pelo Instituto de Artes do Pará (IAP).2 Em 2005, para a mesma instituição, em parceria com o (hoje extinto) Programa Raízes,3 produzi o documentário O negro no Pará: cinco décadas depois...,4 que homenageava Salles no cinquentenário de suas pesquisas sobre o tema.

Além do pesquisador, foram ouvidos antropólogos, sociólogos e musicólogos que utilizavam a obra de Salles em suas pesquisas, assim como representantes do movimento negro e habitantes do Petimandeua, em Castanhal (Pará). O DVD foi lançado em Belém, na sede do IAP, em 2005, e no Rio de Janeiro, no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, em 2006, conjuntamente com a terceira edição, revista e ampliada, de O negro no Pará: sob o regime da escravidão.

2 Como assessora de Marketing Cultural e Comunicação Social do IAP entre os anos de 2003 e 2006, acompanhei projetos da instituição, entre os quais, Tocando a Memória – Rabeca.

3 O Programa Raízes era uma ação governamental vinculada à então Secretaria Especial de Defesa Social, voltada para a defesa de direitos de comunidades quilombolas e indígenas no Pará. Esse programa podia firmar convênios com outros órgãos do governo e assim o fez com o Instituto de Artes do Pará (IAP), com a finalidade de produzir publicações, documentários e mídias relacionados àquelas temáticas. 4 O documentário foi dirigido por Afonso Gallindo, com quem dividi o roteiro. Marcelo Rodrigues fez

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Entre 2007 e 2009, ao realizar pesquisa sobre as histórias invisíveis do Teatro da Paz para o mestrado em História na PUC-SP,5 li as obras de Vicente Salles dedicadas ao teatro e à música entre os séculos XVII e XIX, que são referenciais na historiografia da região. Nelas, dei-me conta da forma singular de Salles abordar fatos e sujeitos que caíram no esquecimento da história, conceito pilar do meu próprio trabalho. Percebi como o autor, ao inserir pequenas biografias dentro de um vasto panorama temático e temporal, transitava por aqueles sujeitos como o poeta-personagem Dante enveredara pelos círculos do Inferno, ao lado do poeta Virgílio, ouvindo o lamento dos supliciados por reconhecimento e memória no mundo dos vivos. Não à toa, Dante Alighieri era um dos autores prediletos do historiador e um de seus alteregos. Salles abordava aqueles sujeitos no momento em que suas trajetórias individuais tiveram sentido nas lutas coletivas ou na ressonância de movimentos globais no Grão-Pará.

Um exemplo pode ser retirado de Épocas do teatro no Grão-Pará ou Apresentação do teatro de época (EDUFPA, 1994), que repassa, em dois tomos, quase quatro séculos de teatro em Belém. Ao se reportar ao contexto da inauguração do Teatro da Paz, em 15 de fevereiro de 1878, e às peripécias do empresário pernambucano Vicente Pontes de Oliveira para assegurar o contrato de arrendamento da temporada com a sua companhia, Salles compõe pequenas biografias dos artistas. Vê-se que ele compila fragmentos sobre aqueles sujeitos quase perdidos no tempo, para traçar-lhes o perfil.

Emília Augusta Câmara, esposa de Joaquim Infante Câmara, coloca-se com José de Lima Penante entre os primeiros artistas paraenses a fazer carreira fora da província. Nascida em Belém, em 1845, aos vinte anos de idade, em 1865, já excursionava, com o marido, escriturada na empresa Vicente Pontes de Oliveira, apresentando-se nas principais praças do Nordeste e, em 1875, no Rio de Janeiro. Fez-se notar em dramas e comédias, mas foi sobretudo excelente caricata. Morreu em Belém a 9.06.1885.

Manuela Lucci foi outra artista que findaria seus dias em Belém, em 1898, em completa decadência, quase esquecida, depois de haver brilhado em todas as praças do Norte, Nordeste e Rio de Janeiro. Foi uma das maiores incentivadoras do nosso teatro. Nos últimos tempos, no Pará, dedicava-se a ensaiar grupos de amadores. Era portuguesa, nascida em Lisboa, de pais italianos (Silva, 1938, p. 226). Segundo outra fonte, era italiana e teria vindo para o Brasil, com seus pais, com apenas três anos de idade (Bastos, 1898, p. 802). Era irmã de Carmela Andrade, que se casou com o maestro Francisco Libânio Colás, e morreu ainda jovem, em São Luís, a 16.10.1893, e de Augusto Lucci, que morreu a 8.07.1870 vítima do naufrágio do Purus, abalroado pelo Arary, próximo à boca do Paraná, em frente ao Paraquecuara (Rio Negro/AM) (SALLES, 1994, tomo 1, p. 79).

5 Dissertação intitulada Histórias invisíveis do Teatro da Paz: da construção à primeira reforma. Belém do

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E prossegue, traçando a trajetória dos Irmãos Lucci, depois, do ator João Máximo, mais o ator, cantor e compositor baiano Xisto de Paula Bahia, entre outros, até retomar o assunto da primeira temporada no teatro.

Exemplo semelhante pode ser encontrado em A música e o tempo no Grão-Pará

(Conselho Estadual de Cultura do Pará, 1980), que ele pretendia editar em quatro volumes, publicando apenas o primeiro e o último – o já citado Sociedades de Euterpe. Quando traça o quadro dos festejos em torno de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, no século XIX, mostra toda sorte de manifestações artísticas pelo entorno da igreja consagrada à padroeira dos paraenses, entre elas, as retretas das bandas de música nos coretos. Na década de 1850, o governo provincial instituiu e subsidiou bandas de música nas corporações militares.

A mais famosa banda de música, nesse tempo, era a do Batalhão de Artilharia. Seu mestre era o professor Luís de França da Silva Messias, um dos mais distintos músicos do Pará. Nascido no Piauí, por volta de 1820, viera moço para Belém e ganhou prestígio regendo essa banda de música. Desdobrou as atividades de regente da orquestra de bailes do Recreio Militar, aparecendo também à frente de conjuntos instrumentais nos coros das igrejas de Belém, destacando-se ainda como organista, regente de coros, professor e mestre da banda de música do Instituto de Educandos. Em 1854 vencia 600$000 como professor de música vocal e instrumental. Sua produção musical era executada constantemente, compreendendo hinos, missas, vésperas solenes, trezenas, Te Deum. Autor de uma “Missa Fúnebre”, que teve inúmeras execuções. Morreu na vila de Monsarás, hoje Soure, ilha do Marajó, a 10 de julho de 1886 (SALLES, 1980, p. 179).

A partir daí retoma sua narrativa sobre a atividade musical em Belém, o ensino da música e outros tópicos. E, no decorrer da narrativa, volta a incluir pequenas biografias, mantendo esse movimento até o fim.

Ainda na minha pesquisa sobre o Teatro da Paz, seguindo as pistas de Salles em

Épocas do teatro no Grão-Pará, e baseada em fontes até então inéditas, pude constatar que o pintor pernambucano Crispim do Amaral era o verdadeiro autor de uma das primeiras representações pictóricas da República no Brasil. Inaugurada em 1890, a

Alegoria da República, pano de boca da sala de espetáculos do Teatro da Paz, era oficialmente creditada ao cenógrafo francês Eugène Carpezat, em cujo atelier parisiense a peça fora confeccionada a partir da criação de Amaral. Para compor essa história, recorri às biografias do artista escritas por Salles, uma delas para um livro ainda inédito sobre o desenho de humor no Pará, cujos originais ele, generosamente, cedeu-me.

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historiografia? E, indo além, como não indagar sobre a quase invisibilidade do próprio Vicente Salles ao ter sua obra tão pouco difundida além das divisas do Pará, apesar de sua contribuição à historiografia sobre o negro na Amazônia e sendo ele um intelectual nada avesso a entrevistas, publicação de artigos, eventos públicos, encontros acadêmicos?6 Esses questionamentos motivaram a elaboração do projeto para obtenção do doutoramento em História, no campo da História Cultural, no âmbito da linha de pesquisa Cultura e Representação, apontando, inicialmente, para uma investigação sobre a prática historiográfica de Vicente Salles na representação de sujeitos excluídos da história.7

Entre os personagens escolhidos estavam a exploradora francesa Madame Octavie (Octaville ou ainda Otille) Coudreau, o litógrafo alemão Hans-Karl Wiegandt, o ator cearense José de Lima Penante e o jornalista Bento Aranha, todos com atuações incidentes sobre o século XIX. Como sujeito coletivo, selecionei o negro escravizado, na temporalidade que Salles estabelecera em O negro no Pará, do século XVII ao século XIX, tendo a Abolição como limiar.

Tema e Objeto – Nos ajustes do projeto, uma avaliação das fontes levantadas naquele primeiro momento mostrava a existência de uma documentação mais expressiva, do ponto de vista quantitativo, sobre a temática do negro como sujeito excluído. Não só isso. As fontes também indicavam uma melhor adequação da abordagem pelo gênero biográfico, ao invés de um estudo sobre a escrita historiográfica do autor. As entrevistas com Salles para a produção do documentário O negro no Pará: cinco décadas depois... já indiciavam a relação memorial do pesquisador com aquele seu objeto de estudo. Uma das evidências mais pungentes era a declaração dele de que as lembranças da vivência com sua mãe de leite, Maria Pretinha, teriam motivado nele a observação da sociedade paraense pelas relações sociais que os negros estabeleceram na região amazônica.

As outras indicações dessa relação vieram da leitura de seus livros, de algumas de suas microedições e do primeiro questionário que lhe enviei em 29 de maio de 2009, por e-mail, ao qual respondeu, em junho, por carta convencional. Nesse questionário, entre muitos outros pontos, reiterava a importância, já explicitada no documentário, de seu trabalho na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro com o antropólogo e folclorista baiano Edison Carneiro, militante da causa da liberdade dos cultos afro-brasileiros. Na

6 Sempre que Vicente Salles ia a Belém, dedicava uma parte de seu tempo a conversar com jovens pesquisadores na biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, que abriga a Coleção Vicente Salles. Não raro era vê-lo, nessas ocasiões, cercado de moças e rapazes interessados em conhecer sua história ou seu ponto de vista sobre algum tema de pesquisa. Ver figura 44, na página 259.

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campanha, foram realizados vários registros sonoros de manifestações da religiosidade afro-brasileira no Rio de Janeiro, dos quais Salles participou ativamente.

Ainda em junho de 2009, também por correspondência, ele me encaminhou cópias de algumas fontes utilizadas na elaboração do livro Os mocambeiros, que aguardava publicação pelo Instituto de Artes do Pará. Eram matérias de jornal, mapas e cartas que mostravam os desdobramentos de sua pesquisa, articulando as expedições de Madame Coudreau, na última década do século XIX, pela região Oeste do Pará, onde havia áreas de mocambos, à exploração dessas mesmas terras por uma empresa do setor mineral, entre as décadas de 1970 e 1980. Salles escreveu uma série de artigos para o jornal A Província do Pará, em 1984, denunciando o que seria a farsa da “descoberta” da existência de

descendentes de negros escravizados naquela região.

Quer dizer, a cada nova confrontação entre a bibliografia editada do autor e a documentação que ele mesmo fornecia, ou os seus depoimentos a respeito de passagens de sua vida, mais se solidificava a ideia de uma ligação estreita da vida de Salles com aquela historiografia. Da mesma forma, a batalha do escritor pela edição de seus livros chamava a atenção pelo fato de que, apesar de autor renomado e da relevância de sua produção, seus originais ficavam por anos engavetados em instituições oficiais, aguardando a publicação. Apenas dois livros de Salles em catálogo,8 Marxismo, socialismo e os militantes excluídos (2001) e O negro na formação da sociedade paraense (2004), foram editados comercialmente, ambos pela editora Paka-Tatu, de Belém. Estórias do Eldorado nos tempos calamitosos da devastação contadas pelo Cidadão-de-Arco-e-Flecha e escritas pelo folclorista e historiador Vicente Salles (2010a), editado pela Thesaurus, de Brasília, foi pago por ele mesmo, da mesma forma que os últimos números da série MicroEdição do Autor.

Problematização, domínios e referenciais teóricos – Reorientada, esta pesquisa manteve-se no campo da História Cultural, visando à narrativa da vida de Vicente Salles, recortada pelos estudos que ele empreendeu sobre o negro no Pará, em quase 60 anos de atividades como pesquisador, afirmando, de forma pioneira, a importância desse sujeito na formação da sociedade paraense. Considerando os indícios de que a dedicação a esse amplo tema tem relação com as memórias afetivas e com a trajetória profissional do autor, e ainda que esse tema se integra a outra temática recorrente em sua historiografia, a dos sujeitos excluídos da história, a principal indagação desta pesquisa é como a história de

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vida de Vicente Salles engendrou o pesquisador da presença do negro na história do Pará?

Outras questões auxiliares se impõem: Qual o percurso e as condições materiais de seu trabalho de pesquisa? Como ele construiu o campo teórico-metodológico de suas investigações? Como abordou a invisibilidade do sujeito histórico em seus trabalhos? Como Vicente Salles difundiu sua obra? Por que ele mesmo se tornou quase invisível para a história?

É preciso dizer que duas trajetórias biográficas de Vicente Salles foram realizadas em tempos recentes. Em 2007, Karla Aléssio Oliveto defendeu a dissertação de mestrado “Vicente Salles: trajetória pessoal e procedimentos de pesquisa em música”, no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Em 2012, Alessandra Regina e Souza Mafra também defendeu uma dissertação de mestrado, intitulada “O arauto da cultura paraense: uma história intelectual de Vicente Salles”, pelo Programa de História da Universidade Federal do Pará.

No trabalho de Karla Oliveto, dividido em quatro capítulos, destaco, inicialmente, a acuidade em decifrar os “procedimentos de pesquisa” aludidos no subtítulo da dissertação, mostrando o passo a passo do trabalho de Salles da coleta à análise do material, passando pela grafia musical. Oliveto descreve os métodos da pesquisa etnográfica participante de Salles, uma influência direta de sua atividade na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Outro destaque é a compilação e a explicação sobre as linhas de pesquisa em música em toda a obra de Vicente Salles, oferecendo aos pesquisadores um panorama generoso dessa produção.

Na pesquisa de Alessandra Mafra, apresentada em três capítulos, Vicente Salles é observado como um intelectual polígrafo, cujos principais eixos de análise são a música, o negro e o folclore. A partir deste enfoque, centra sua atenção em dois temas: o folclore, principalmente, pelo qual tece os “momentos-chave” da vida do pesquisador, sua formação, sua pesquisa de campo e a prática do colecionismo que engendrou a Coleção Vicente Salles, um ponto importante deste trabalho; e o negro, pelo qual a autora traça uma trajetória da publicação de O negro no Pará sob o regime da escravidão e sua recepção, sobretudo as divergências entre Salles e o jornalista Lúcio Flávio Pinto sobre questões relacionadas ao movimento da Cabanagem (1835–1840) presentes naquele livro.

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memoriais de sua formação; além da importância da formação como antropólogo e folclorista para a definição das linhas de pesquisa que adotou no decorrer de seu trabalho profissional. Além disso, as duas pesquisas permitem-nos refletir sobre a dificuldade, a luta vã, de abarcar toda a obra de Salles dada a sua variedade temática. Daí a recorrência aos recortes.

Minha escolha pelo biografismo como abordagem historiográfica, além de motivada pela singularidade do personagem biografado para a historiografia da Amazônia e para as ciências sociais brasileiras, deixa entrever a empatia da autora com as narrativas e seus recursos estilísticos. A construção do personagem, o ponto de vista narrativo, as possibilidades de entrelaçamento da palavra com outras linguagens, como a poesia, a música e a imagem, são alguns aspectos que se colocam diante do narrador, oferecendo-lhe instrumentos guias para a condução de seu personagem no tempo e no espaço.9

Não pretendo aqui esboçar um grande panorama histórico e teórico dos estudos biográficos na chamada guinada subjetiva observada nas ciências sociais e humanas a partir da década de 1980. Tampouco pretendo discorrer sobre o paradigma historiográfico da Nova História Cultural, na qual essas biografias mais recentes se inserem – só para relembrar, a prática da escrita biográfica, na acepção de relato de vida, já era conhecida no mundo antigo; e, em francês, há um registro da palavra no século XVIII (BORGES, 2010, p. 204). Muito menos vou problematizar o atual frisson em torno das biografias no mercado editorial. Esses exercícios, afinal, vêm sendo realizados, amiúde e exemplarmente, em farta bibliografia acessível em língua portuguesa10 e mesmo no noticiário na imprensa diante da polêmica em torno das recentes tentativas de censura prévia à produção de biografias no Brasil.11

No entanto, gostaria de fazer algumas considerações sobre as soluções teórico-metodológicas que presidem esta pesquisa e sua escrita. Primeiro, a modalidade de

9 Sobre recursos narrativos ficcionais, uma teoria do romance e a discussão sobre a verossimilhança na ficção, Cf. WOOD, 2011.

10 Para citar algumas obras que têm a biografia como tema ou objeto de estudo: LEJEUNE, Phillippe. O pacto

autobiográfico: de Rousseau à internet (Humanitas; UFMG, 2008); DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida (EDUSP, 2009); ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (EDUERJ, 2010); BORGES, Vavy P. Misérias e grandezas da biografia. In: ______. PINSKY, Carla B. Fontes históricas (Editora Contexto, 2010), p. 203-233; AVELAR, Alexandre Sá; SCHMIDT, Benito B. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (Letra e Voz, 2012). Para estudos do campo teórico da Nova História Cultural, um clássico: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia (Elsevier, 2011).

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trajetória biográfica. Segundo, o recorte em torno da invisibilidade, ou exclusão, de sujeitos e fatos, que remonta às noções de memória e esquecimento na história.

Trajetória biográfica – Sobre este conceito, refiro-me a um recorte particular na vida do biografado, diferentemente do modelo de narrar uma “vida total”. As aspas dizem respeito exatamente ao equívoco que esse empreendimento significa, ainda que se almeje narrar uma vida do nascimento à morte, com todos os seus contornos e particularidades. E, mais do que isso, a trajetória implica uma dinâmica simbólica e significativa dessa vida particular em relação a um processo histórico global.

Em uma perspectiva convergente, o historiador Alexandre Avelar (2012, p. 69) reporta-se à utilização de dois modelos de biografia em curso: a biografia representativa e o estudo de caso. No primeiro, o indivíduo enfocado é uma síntese de outras vidas, não sendo privilegiada a sua singularidade, ou excepcionalidade. No segundo modelo está pressuposta a “trajetória individual”, a vida que ilustra uma realidade mais ampla,

estabelecida com a “análise macroestrutural da sociedade e dos quadros explicativos

subjacentes”. Para o autor, na trajetória, o biografado é “exemplo, não problema”.

O sociólogo Pierre Bourdieu (1996), ao analisar a produção de “obras culturais” (literatura, artes visuais, artes cênicas, moda, jornalismo, publicações etc.), defende a observação da historicidade dessa produção. Isso implica a percepção tanto de seus códigos internos, suas transformações ou perenidades, quanto as condições históricas do campo (cultural, econômico, educacional, midiático etc.) em que se insere. Essa providência anularia a tendência do crítico em analisar a obra cultural como uma essência em si mesma, alheia às pressões históricas sobre o seu campo. Ou, na crítica que faz ao marxismo, de buscar determinismos, como a categoria de classe, para enquadrar a obra e seus produtores, que ele denomina “agentes singulares”.

Essa análise, para ele, concretiza-se com o conhecimento da trajetória dos agentes singulares, resultando, em consequência, no conhecimento da própria produção. Essa trajetória é definida pelas relações que os agentes estabelecem com as “forças do campo”, mobilizando, para isso, seus recursos simbólicos, materiais, culturais e corpóreos, ou seja, o seu habitus.12 Ou, como o próprio Bourdieu define, reportando-se à criação literária, mas que se estende às demais linguagens do campo cultural (grifo no original):

Diferentemente das biografias comuns, a trajetória descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo literário, tendo ficado claro que é apenas na estrutura de

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um campo, isto é, repetindo, relacionalmente, que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicação em tal ou qual revista, ou por tal ou qual editor, participação em tal ou qual grupo etc. (BOURDIEU, 1996, p. 71–72).

Portanto, esse pensar relacional e em movimento aponta a uma narrativa em que o biografado é um ser impermanente, errante, em ação e envolto em paixões na grande peleja da vida. No caso de Vicente Salles, sua trajetória se move pelos momentos em que a sua existência teve sentido público como intelectual, na produção de livros, artigos, microedições, discos, documentações; na sua discreta atuação política; no apoio a artistas e pesquisadores, e na batalha pela publicação e difusão de seus livros. Isso não exclui, por óbvio, a incursão na dimensão afetiva de sua vida, pois ela o constitui e é ela que anima e dá partida a esta mesma narrativa.

A percepção desse movimento do particular ao global coincide com a própria perspectiva do autor na sua historiografia, quando distingue sujeitos anônimos exemplares ou as “bagatelas” da história, como se refere aos fragmentos com os quais constrói a sua pesquisa, e os relaciona a um contexto mais amplo. Assim, diria que este é o gesto singular impresso na abordagem da trajetória deste autor, expressão tomada de empréstimo do historiador François Dosse (2009), um dos referenciais teóricos desta pesquisa no campo do biografismo.

Apesar de não prescrever fórmulas para uma escrita biográfica, Dosse considera exemplar a abordagem feita pelo linguista, filósofo e crítico literário suíço Jean Starobinski nas biografias que escreveu do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau e do escritor francês Michel de Montaigne:13 perceber um gesto singular entre o existir e o pensar do autor, buscando na obra e fora dela elementos de pertencimento entre um e outro, mesmo que entre vida e obra não haja coerência, mesmo que a perspectiva do autor mude ao longo do tempo.

A ideia não é descobrir a chave dos mistérios do biografado, nem encerrar toda a sua existência numa visada. É encontrar as conexões possíveis entre a sua existência e seu pensamento. Dosse chega a afirmar que esta deveria ser uma regra no empreendimento biográfico dos intelectuais: “...penetrar a estrutura endógena da obra com tudo quanto ela ostenta de símbolos e ideias, mas também resgatar aquilo que o texto evoca a fim de magnificar ou combater o mundo social externo” (DOSSE, 2009, p. 370).

13 Do primeiro, Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle (1971). Na tradução brasileira,

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Tempo e espaço – Sobre as categorias temporais e espaciais da narrativa, algumas observações. O fato de Salles estar vivo a maior parte do tempo em que esta pesquisa se desenvolveu e ter consentido em participar como depoente fortaleceu a premissa de que uma vida existe a partir do momento em que é narrada. Fortaleceu, pois contribuiu para realizá-la. E, ao morrer, ganhou nova narrativa no depoimento de outros.

O sujeito que narra engendra uma linguagem e esta se enreda ao tempo da vida que se faz ao narrar. Temporalidade móvel por ações que a memória empreende na varredura por aquilo que é significativo ao sujeito biografado. A escolha pelo significativo, para apresentar outro referencial teórico-metodológico desta pesquisa, a historiadora Vavy Pacheco Borges (2010, p. 220–221), “já é uma certa forma de interpretação, ou seja, uma atribuição de sentido”.

A mobilidade do tempo, se a princípio parece uma vantagem, exige habilidade do biógrafo para que a narrativa se torne compreensível e não se confunda com uma visão finalística da vida do biografado. Aí haveria o risco da falsificação (BORGES, 2010, p. 224), induzindo à ilusão de uma vida predestinada ao futuro que teve. Portanto, mesmo havendo uma datação linear ou por diferentes temporalidades, a biografia fala no presente o que é passado, e o passado, por isso, torna-se uma promessa de futuro. A biografia fala do próprio tempo, sobre a sua elasticidade, quando é perpassada pelo fluxo da memória.

Perceber o tempo também pode ser inferi-lo dos detalhes, das fotografias, dos vestígios que deixa no corpo da pessoa, na sua fala, na forma descontínua ou errante como rememora. No decorrer da pesquisa, ao folhear os álbuns de fotografias de família, observar entrevistas do historiador em jornais e programas televisivos, e mesmo observá-lo nos dois últimos anos de sua vida, foi inevitável ver esse tempo assim inscrito e levá-observá-lo ao texto. Aqui, vem à memória a filosofia dos tempos históricos do historiador Reinhart Koselleck (2006, p. 14), para quem a concepção de tempo é mutável, pois é linguagem e, sendo assim, dotado de historicidade. “Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido”, indica.

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de novo sob a urgência do tempo de finalização (consciente) de sua vida. Tó Teixeira, amigo e informante de Vicente Salles sobre folclore e música, também se sentia profundamente vinculado ao bairro onde nasceu e viveu a vida inteira: o Umarizal.

Assim, no que tange à espacialidade, utilizarei as dimensões vislumbradas pelo geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan de espaço e lugar. O primeiro, relativo a distâncias, extensões e rede de lugares. O segundo, uma “concreção de valor”, para usar as palavras de Tuan (1983, p. 14). Essas duas categorias, tal como pensadas por Tuan, realizam-se na experiência, no corpo, no pensamento, no sentimento e na memória. São também sensoriais, cinestésicas, pois estão ligadas às percepções corporais do indivíduo no processo de aprendizado ao longo da vida, permitindo-lhe alcançar a habilidade no conhecimento espacial e no reconhecimento dos lugares. Quando o espaço se torna familiar, transforma-se em lugar (TUAN, 1983, p. 83), pois a ele se incorpora um critério íntimo de valor atribuído pelo próprio indivíduo.

História e ficção – Se comecei a falar da escolha pelo biografismo no aspecto da linguagem ficcional, retorno a ele para finalizar estas reflexões. A discussão sobre os limites entre história e ficção no campo narrativo encontra na biografia um lugar privilegiado de reflexão, pois se impõe, de forma permanente, a discussão sobre o estatuto da verdade, que aspira a ser incontestável, em tensão com a subjetividade da narrativa. Sobre a verossimilhança na escrita biográfica, creio que a discussão posta pela crítica Elena Gualtieri no artigo de título sugestivo The impossible art,14 sobre a obra de Virginia Woolf como biógrafa e crítica literária, é ilustrativa desta questão.

No ensaio The new biography, de 1927, Woolf discorre sobre fato e ficção na biografia, dualidades cunhadas por ela, de forma metafórica, como “granito e arco-íris”. Gualtieri percebe que, de um lado, Woolf advoga a tensão necessária entre as dualidades em nome da preservação do hibridismo da narrativa, e, de outro, critica as soluções encontradas por certos autores quando não deixam claro o que é fato e o que é ficção na sua abordagem. Para Gualtieri, Woolf não consegue resolver esse quebra-cabeça e, ao tentar esboçar um referencial para a questão, na conclusão daquele ensaio, deixa evidente o embaraço.

Verdade de fato e verdade de ficção são incompatíveis; então [o biógrafo] está agora, mais do que nunca, exortado a conciliá-las. Porque pareceria que a vida que é enormemente real para nós é a vida fictícia; isto reside na personalidade mais do que no ato. Cada um de nós é mais Hamlet, Príncipe da Dinamarca, do que ele é John Smith, do Corn Exchange. Desta forma, a imaginação do biógrafo

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é sempre estimulada a usar a arte dos romancistas em fazer arranjo, sugestão e efeito dramático para expor a vida privada. Então, se ele vai muito longe no uso da ficção, para ignorar a verdade ou apenas para apresentá-la de forma incongruente, ele perde os dois mundos; ele nem possui a liberdade da ficção, nem a substância do fato (WOOLF apud GUALTIERI, 2000).

Creio que a conciliação apontada por Woolf neste trecho pode ser direcionada igualmente ao exercício da historiografia de modo amplo, pois a narrativa historiográfica é uma construção de linguagem tanto quanto a narrativa biográfica. Esta, por sua vez, não pode prescindir de sua dimensão historiográfica. Biografia, afinal, é um modo de fazer história.

Dito de outro modo, os recursos estilísticos narrativos estão a serviço tanto da ficção quanto da escrita historiográfica. Sendo linguagem, abrem ao escritor a possibilidade de apreender e engendrar a complexidade da vida de alguém: os encontros vividos, as manifestações de sua vida interior, as agruras, os prazeres, o erradio da vida, as marcas de seu pensamento e da sua obra. “Não apenas o biógrafo deve apelar para a imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e dos lapsos temporais que procura preencher como a própria vida é um entretecido constante de memória e olvido”, afirma Dosse (2009, p. 55).

Neste caso, Vicente Salles, como personagem, favorece uma narrativa por sua afeição pela literatura e pela ficção, a ponto de integrar-se a elas em metáforas, alteregos e pseudônimos. Salles quis ser humorista, violinista e poeta. Fracassou em todas as tentativas, segundo ele mesmo, sem abrir mão do humor, da música e da poesia nas suas pesquisas e na forma de se enunciar. Mas forjou para si um Frederico, seu lado “safado”, como ele se referiu ao personagem de sua juventude; um Dante que escrevia cartas para sua Beatriz/Marena; um Leonardo Lessa que assinava artigos na imprensa; um Juarimbu Tabajara que participava de concursos de poesia; e o Vicente Juarimbu, quando precisou fugir aos interrogatórios da polícia, durante a ditadura militar. Sem falar que ele mesmo é o Cidadão-de-Arco-e-Flecha, como será visto daqui a pouco.

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De qualquer forma, as definições teórico-metodológicas são bússolas, não prisões. E, em virtude da própria característica da linguagem ficcional, que estabelece negociações permanentes com o texto e suas possibilidades, a narrativa biográfica pode ser flexibilizada, escapando aos enquadramentos, quer a rigidez das categorias, quer as armadilhas totalizantes. Associada ao fluxo da memória e do esquecimento, essa escrita só poderia mesmo movimentar-se por evasão, supressões e retornos.

Memória e esquecimento – A esse respeito, as dimensões da memória e do esquecimento são compreendidas neste trabalho em dois vieses: a construção individual e desta em relação ao social; e a tarefa do historiador em buscar novos sentidos para a história. O primeiro viés encontra porto no trabalho em história oral do sociólogo Michael Pollak (1989, 1992) que oferece noções importantes quanto à organização da memória, que é operada tanto em nível individual quanto social, por seletividade consciente ou não, e que diz respeito à constituição de uma identidade social. Ou seja, o indivíduo e os grupos constroem a representação de sua imagem social a partir de um processo que envolve a seleção dessa memória, apropriações de memórias de outrem entre projeções e transferências; as transformações e permanências das memórias ao longo do tempo.

Especialmente no nível coletivo, Pollak introduz as noções de “enquadramento da memória” e “memórias subterrâneas”. O primeiro relaciona-se à constituição oficial das memórias das instituições (Estados, empresas, partidos, organizações sociais) e que podem ser absorvidas pelos indivíduos, em projeções e transferências, na produção de uma identidade social, que possibilitará também seu enquadramento e inserção. O segundo refere-se às memórias que escapam a esse enquadramento, mantendo-se em silêncio consentido, estratégico, resistente, em comunicação latente, porém subterrânea, até o momento em que sua revelação pública encontra sentido. Um exemplo bastante ilustrativo que Pollak oferece são os sujeitos excluídos da memória oficial.

Ao longo da pesquisa, foi perceptível esse tráfego da memória, do nível individual ao social, na elaboração do personagem. Salles, com sua experiência de pesquisador e entrevistador, sabia gerir o discurso em torno de suas memórias, recortando o sentido público de sua vida, com algumas concessões em relação a aspectos cotidianos. Em muitos de seus relatos percebia-se a recorrência a versões já cristalizadas (enquadradas) por ele e que podem ser encontradas, às vezes com as mesmas palavras, no seu Um retrospecto – memória, escrito em 2004 e atualizado posteriormente.

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a ligação edipiana que tinha com sua mãe de leite, Maria Pretinha, que o alimentou também com histórias de assombração e música, motivando-o a começar os estudos sobre o negro no Pará. Por essa visão psicanalítica ele também, por vezes, intentou uma interpretação histórica de fatos ocorridos no Pará, como sendo efeitos de uma “repressão do eu” diante do processo de colonização.

Também é importante enfatizar, na constituição dessa memória, o sentimento de identidade de Salles em relação ao grupo de folcloristas do Rio de Janeiro, concentrados na Campanha da Defesa do Folclore Brasileiro, sobretudo no período em que foi coordenada pelo antropólogo baiano Edison Carneiro (no período entre 1961 e 1964), seu mestre. A batalha desse grupo pela institucionalização do folclore como disciplina tornou-se a batalha pessoal de Salles também. E, sobretudo, isso dizia respeito aos embates entre Carneiro e o sociólogo paulista Florestan Fernandes por um ponto de vista hegemônico sobre os estudos do folclore. Enquanto o primeiro defendia a autonomia da disciplina, o segundo defendia seu caráter auxiliar em relação às ciências sociais.

Carneiro pediu a Salles, em abril de 1964, quando foi exonerado do cargo devido à sua orientação marxista, que permanecesse na “trincheira do folclore”. Esse pedido foi uma espécie de código tácito de resistência, lealdade e de reconhecimento daquela identidade do folclorista como um lutador num campo de batalha, na peleja da memória contra o esquecimento.

Em relação à memória e esquecimento na operação historiográfica, julgo mais uma vez pertinente recorrer, tal como fiz no mestrado, ao historiador Antonio Mitre (2003), na defesa do esquecimento para a renovação da história. Ele utiliza como metáfora dessa necessidade o personagem Irineu Funes, do conto Funes el memorioso, de Jorge Luis Borges. Depois de um acidente, algo acontece à memória de Funes, que passa a se lembrar de tudo, absolutamente tudo o que vive, o que vê, o que ouve, sem se esquecer de nada. Com isso, ele termina seus dias preso a uma cadeira, paralisado, porque só acumula informações, sem conseguir descartá-las, não fazendo abstração nenhuma.

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Esquecer com método não é perder a capacidade de lembrar ou recusar-se a lembrar. Significa renovar o sentido da história, escrever outra história, para que não se corra o risco de trivializar o passado, apaziguando-o numa memória assentada, definitiva, inquestionável. Para isso, o autor crê numa investida na releitura das fontes, em novos questionamentos, atentando ao valor das fontes, não só na quantidade.

Creio que foi esse o caminho trilhado por Vicente Salles ao duvidar da historiografia que se escrevia sobre a Amazônia até a década de 1960, desconhecendo ou desmerecendo a presença do negro na região. Ainda que Salles seja um historiador de muitas fontes e menos afeito a um trabalho essencialmente conceitual, o modo como constrói sua historiografia sobre os processos de exclusão acenam para aquela renovação de sentido.

Trabalho com as fontes e metodologia – A propósito das fontes, passemos aos aspectos metodológicos, a algumas considerações sobre mudanças ocorridas e descobertas nos rumos da pesquisa, à escolha do título e, finalmente, à capitulação.

As fontes que fundamentam este trabalho são:

 Livros e microedições de Vicente Salles relacionados ao negro, como tema principal: O negro no Pará: sob o regime da escravidão (IAP; Programa Raízes, 2005); Vocabulário crioulo: a contribuição do negro ao falar regional amazônico

(IAP; Programa Raízes, 2003); O negro na formação da sociedade paraense

(Paka-Tatu, 2004); Os mocambeiros (IAP, 2013) e Lundu: canto e dança do negro no Pará (MicroEdição do Autor, n. 48, 2012, n. 48). E ainda: Memorial da Cabanagem (Cejup, 1992) e As raízes da cultura mestiça na Amazônia: singularidades de um modelo cultural ternário (MicroEdição do Autor, n. 50, 2010).

 Originais de O negro no Pará: sob o regime da escravidão e de Os mocambeiros.  O texto inédito “Vocabulário crioulo: a fala do negro no Pará”, de 2003.

 A MicroEdição n. 44: Um retrospecto – memória (2007), autobiografia.

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 Correspondências de Vicente Salles com Rose Silveira, com o músico e compositor Tó Teixeira, os antropólogos Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino, o músico Valdemar Silva e o jornalista Lúcio Flávio Pinto.

 Recortes de jornal.

 Documentário audiovisual O negro no Pará: cinco décadas depois... (bruto e editado).

 Documentos sonoros: disco compacto Lá vem Tio Tó (1977); gravações de cantigas de roda, cantos rituais, modinhas, tambores e vozes da rua provenientes da Coleção Vicente Salles; e o LP Suítes para Orquestra, de J. S. Bach, sob a regência de Fritz Reiner.

 Fotografias: acervo pessoal de Vicente Salles e Marena Isdebski Salles, acervo de Suzette Salles, acervo pessoal de Rose Silveira e reprodução de fotografias de Tó Teixeira, do livro Tó Teixeira: o poeta do violão, de Salomão Habib.

O trabalho com as fontes no fluxo narrativo orientou-se pela capitulação da tese e pelo trabalho temporal, ora resultado de certa linearidade, ora dissolvendo -a em tempos submetidos às temáticas. Foi necessário vislumbrar essa linearidade como reforço à estrutura interna da narrativa, como uma arquitetura, principalmente no primeiro capítulo, no qual há quatro momentos ou passagens: entre o interior do Pará e Belém; entre Belém e o Rio de Janeiro; entre o Rio de Janeiro e Brasília; e entre Brasília e o Rio de Janeiro, entre as décadas de 1930 e 2000.

No geral, as fontes se entrelaçam e se complementam, independente de sua natureza. O importante é a informação que trazem à narrativa. Os temas têm prioridade sobre a questão temporal, como já foi dito, mas adequam-se ao tempo, quando necessário, para a compreensão das passagens na vida do personagem.

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As correspondências fluem nesta narrativa como diálogos que são, de fato, entre Salles e seus interlocutores. Para isso, as Correspondências Expedidas e Recebidas, tal como arquivadas na Coleção Vicente Salles, foram organizadas por datas e entrelaçadas para que respondessem umas às outras. Mesmo as correspondências sem data puderam ser inferidas pelo conteúdo, para que esse diálogo se estabelecesse.

As imagens, principalmente as fotografias, seguem esse mesmo perfil dialógico com o texto. E a escolha das imagens baseia-se, sempre que possível, na categoria que Roland Barthes, em A câmara clara (1984), denominou o punctum da imagem: o recorte significativo para o observador que pode apontar para uma vida externa à imagem, a partir da qual outra vida pode ser narrada. Pelo punctum não se afere a qualidade ou a artisticidade da fotografia, mas a sua capacidade de conduzir o observador a uma leitura fora dos códigos culturais já impressos na própria imagem.

Sobre as fontes orais, foi estabelecido o seguinte critério de identificação: todas as informações obtidas com Vicente e Marena Salles em entrevistas para esta pesquisa serão identificadas no tópico “Entrevistas”, nas Fontes e Referências, dispensando, assim, remissões no fluxo do texto. As demais serão indicadas pontualmente no local das transcrições.

A partir das fontes orais, faço observações sobre a mudança de rumo da pesquisa. A morte de Vicente Salles durante esse processo, além da perda evidente que significava, mudou a metodologia no uso das fontes orais. A princípio, a ideia era traçar a trajetória de Salles por meio de sua narrativa, cruzando-a com o conteúdo de seus livros, fontes levantadas ou produzidas por ele e recolhidas ao seu arquivo; suas entrevistas e artigos para jornais. As correspondências de Salles com interlocutores diversos trariam “outras vozes”, mas convergentes aos temas propostos, levando à seleção de apenas três conjuntos de cartas da Coleção Vicente Salles.

A dois outros depoimentos foi concedido integrar esse primeiro momento: o de Marena Salles, esposa de Vicente, que o acompanhou em sua jornada como pesquisador, muitas vezes auxiliando-o na coleta e tratamento de fontes, e na transcrição de partituras, pois é musicista profissional, violinista, professora de música e pesquisadora da área. E, claro, na reconstituição de períodos importantes de sua família, nas mudanças de cidade e em detalhes cotidianos que o historiador claramente desconsiderava como relato, mas que ela, minuciosamente, relembrava, ajudando a dar uma visão menos editada dessa vida.

Imagem

Figura 1: Arquivo de notas biográficas da biblioteca particular de Vicente  Salles em Brasília © Rose Silveira.
Figura 3: O historiador e folclorista Vicente Salles durante entrevista em agosto de 2012, no Rio de Janeiro
Figura 4: Vicente Salles em 1965. Fotografia cedida pelo pesquisador. Reprodução: Rose Silveira.
Figura  5:  Vicente,  por  volta dos  seis  anos  de  idade, em  Castanhal.  Fotografia  cedida por Suzette Salles
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Referências

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