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Entre a sociedade e o indivíduo: o problema da liberdade em Durkheim e Sartre

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Academic year: 2021

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Neide Coelho Boëchat

Entre a sociedade e o indivíduo:

o problema da liberdade

em Durkheim e Sartre

Doutora e mestre em Filosofia pela PUC-SP; Coordenadora e Professora do Curso de Filosofia do UniFAI (SP), onde também coordena o Curso de Pós-Graduação em Filosofia Contemporânea (neideboechat@hotmail.com) Doutor e mestre em Educação pela FEUSP; Professor dos cursos de História e Filosofia e também do Curso de Pós-Graduação em História do Pensamento Político e Social do UniFAI (SP)

(vares@usp.br)

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar e, na medida do possível, comparar a noção de liberdade em Durkheim e Sartre, destacando as diferenças que marcam ambas as perspectivas. Com isso, temos como objetivo demonstrar que, enquanto o sociólogo entende a liberdade como um processo social, a filosofia sartreana a entende como um processo puramente individual. Subjacente a esse debate, está toda a complexidade inerente à experiência da liberdade que, certamente, engloba tanto os aspectos sociais, quanto os individuais.

Palavras-chave

liberdade; indivíduo; sociedade; consciência.

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Abstract

This article aims to analyze and, where possible, compare the notion of freedom in Durkheim and Sartre, highlighting the differences that mark both perspectives. Thus, we can goal demonstrate that while the sociologist understands freedom as a social process, Sartre understands it as a purely individual process. Underlying this debate is all the complexity inherent in the experience of freedom that certainly encompasses both the social aspects, as the individual.

Keywords

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Introdução

A liberdade é, indubitavelmente, um valor inegociável para o homem ocidental contemporâneo, à medida que, através da aquisição de direitos políticos e civis, conquistados a duras penas, a maioria dos cidadãos que participam da experiência democrática, mas também dos súditos das monarquias constitucionais de nosso tempo, podem opinar, externar suas posições políticas, religiosas, ideológicas, sexuais etc., sem maiores preocupações, conquanto em alguns países, inclusive países tradicionalmente marcados pelo advento da democracia, ainda haja a necessidade de aprimoramentos em relação à expansão das liberdades civis. De fato, hoje, tanto na esfera pública quanto na esfera privada, o exercício da liberdade é maior do que o vivenciado em outros períodos da história. Contudo, reduzir a experiência da liberdade ao mundo social é, no mínimo, uma percepção simplista da realidade humana. Prova disso é que o problema da liberdade vai além do campo político, alcançando uma dimensão filosófica e existencial. Destarte, impõe-se indagar: ainda que possa ser percebida como uma experiência pessoal, até que ponto a liberdade é, de fato, uma experiência estritamente individual? Em outros termos, não haveria, por parte da sociedade, nenhum tipo de interferência com relação às decisões e às escolhas individuais? Até que ponto a liberdade constitui uma experiência genuína?

É a partir desses questionamentos que optamos por confrontar dois dos mais renomados pensadores modernos, coincidentemente franceses, um representante da sociologia e o outro da filosofia, a saber, Émile Durkheim e Jean-Paul Sartre. Esta escolha deve-se não só à importância que ambos

alcançaram em suas respectivas áreas de atuação, mas, sobretudo, às divergências que marcam suas posições frente ao tema da liberdade. Com isso, não se almeja, forçosamente, produzir uma polêmica, mas apenas confrontar dois teóricos distanciados, tanto historicamente, visto que aquele é um pensador do século XIX e este do século XX, quanto em termos substantivos, visto que a ótica durkheimiana está imbuída de um caráter fortemente sociologista, enquanto a sartreana se caracteriza pela influência da fenomenologia.

Para tanto, dividimos este artigo em três momentos. A primeira parte é dedicada à análise do sociologismo durkheimiano, com vistas a compreender o modo como o sociólogo francês lida com o tema da liberdade em sua teoria sociológica a partir da relação entre sociedade e indivíduo. A segunda parte, por sua vez, constitui um esforço no sentido de explorar a noção de liberdade na filosofia sartreana, focando, sobretudo seu caráter existencial. Por fim, a terceira e última parte visa explorar as diferenças e possíveis aproximações entre as posições sustentadas pelos dois pensadores.

1. A liberdade como uma construção social

Durkheim tem sido comumente acusado de desenvolver uma teoria sociológica de cunho eminentemente sociologista, isto é, centrada nos processos sociais, negligenciando os aspectos individuais e o próprio indivíduo, visto apenas como uma espécie de suporte das influências coletivas. De fato, as propostas do sociólogo francês dão a entender que o indivíduo é apenas uma parte do todo social, ocupando, não obstante, um lugar secundário em

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sua teoria1. Entretanto, para além dessa percepção,

difusa entre os seus críticos mais severos, é possível avistar outra linha de interpretação2. Antes,

porém, de explorarmos esta segunda linha, cumpre analisar o conteúdo da crítica mais corriqueira que, coincidentemente, também é, num plano histórico, a mais tradicional, a saber, aquela que o identifica a uma “sociologia sem sujeito”.

A maior parte dos críticos de Durkheim, afirma que o autor não destina ao indivíduo qualquer papel em sua teoria sociológica. Há, entre seus comentadores, a convicção de que o sociólogo francês, ao enfocar os processos sociais, toma o indivíduo como mero suporte das influências coletivas. Em decorrência disso, o ser individual não é mais do que um depósito do social. Certamente, esta interpretação assenta-se em uma leitura pouco receptiva às ideias do autor francês.

Decerto, desde a publicação de sua tese doutoral, Da Divisão do Trabalho Social, em 1893, o sociólogo, preocupado em compreender o malaise moderno, propõe uma análise de cunho morfológico, ainda muito influenciado pelo contato que, anos antes, trava com os trabalhos de alguns juristas e economistas alemães3. Não é demais lembrar que, para

a maior parte dos intérpretes, a experiência germânica possibilita à Durkheim definir as linhas gerais de seu pensamento, marcando posição em relação à filosofia utilitarista, difusa à época. A tese segundo a qual as

1 São representantes dessa tendência autores como Gurvitch (1986), Fernandes (1994), Dubet (1994), Silva (2001), Nisbet (2003), Adorno (2008), Parsons (2010), entre outros.

2 No que concerne a essa segunda linha de interpretação, destacam-se autores como Giddens (1998; 2001; 2005), Ramos Torre (1999), Girola (2005), Weiss (2010), Filloux (2010), entre outros.

3 Em 1885, depois de ter sido contemplado com uma bolsa de estudos, Durkheim passou um ano na Alemanha e, nesse período, tomou contato com o trabalho de um grupo de autores alemães que, segundo uma parte da literatura especializada (Cf. Giddens, 2005), foi determinante para o desenvolvimento de suas ideias.

relações contratuais são movidas pelo auto-interesse é rechaçada por Durkheim que, na contramão deste argumento, defende o primado da sociedade em relação ao indivíduo. Ao demonstrar que todo contrato é sempre precedido por um elemento não-contratual, Durkheim revela as forças coletivas, mais ou menos sutis, que determinam as relações entre os indivíduos. Sua tese doutoral é, nesse sentido, um marco para a sociologia, uma vez que o autor, a partir da crítica ao individualismo metodológico, institui as bases para uma ciência do social. Segundo o sociólogo francês, a sociedade é mais do que uma mera soma dos indivíduos. O indivíduo, ao nascer, depara-se com instituições, valores, normas, regras etc., sob os quais não exerce maiores influências.

Tal posicionamento fica ainda mais claro quando se considera a sempre polêmica noção de “fato social”. Em As Regras do Método Sociológico, obra publicada em 1895, Durkheim é bastante firme em relação às características dos fatos sociais: estes devem ser tratados pelo sociólogo como se fossem “coisas”, isto é, como algo externo ao indivíduo. Ao fazer uma afirmação deste tipo, Durkheim tem em mente duas ordens de fatores, quais sejam, (a) os fatos sociais são exteriores às consciências individuais e, por conseguinte, (b) impõem-se, de modo mais ou menos coercitivo, sobre estas. Destarte, embora não passem de representações coletivas, os fatos sociais são externos e sempre exercem algum tipo de coerção sobre os indivíduos. Contudo, essa coerção não é de ordem física, mas de ordem simbólica. Por vezes, o indivíduo sequer a percebe. Basta, porém, atentar contra uma regra, uma tradição, para sentir sua força. O olhar de desaprovação que, provavelmente, alguns direcionarão ao transgressor ou mesmo, em alguns casos, a completa repulsa dos

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membros da comunidade, são provas da existência de certos fatos coletivos que independem do indivíduo e que a ele se impõem, ainda que este não perceba imediatamente. Quanto mais difuso for o fato social, maior é o seu poder de imposição. O alcance que o fato social tem entre os membros de uma comunidade é o que determina o tipo de força que o fato em si exerce sobre as consciências particulares. Não é por acaso que Durkheim considera a generalidade a terceira característica do fato social. Exterioridade, coercitividade e generalidade são, então, elementos que, segundo Durkheim, definem o fato social.

Até mesmo os fatos aparentemente mais individuais não estão alheios às forças sociais. É essa, pelo menos, a posição assumida em O Suicídio, obra publicada em 1897, na qual o autor defende a tese de que a “morte voluntária”, ou seja, a ação consciente que leva a morte o próprio ator que a empreendeu, pode conter mais da sociedade do que se imagina. Ainda que, supostamente, o suicídio se caracterize como uma ação particular, por meio de ampla análise de dados estatísticos disponíveis à época, Durkheim procura demonstrar que, longe de ser um fenômeno subjetivo, este resulta de influências coletivas. A tipologia que o autor estabelece em relação ao referido fenômeno deixa transparecer suas verdadeiras intenções. Tanto o suicídio “altruísta”, quanto o “egoísta”, caracterizam-se, respectivamente, pela maior ou menor força do vínculo entre indivíduo e sociedade. No primeiro caso, os laços são tão fortes que o indivíduo simplesmente é tomado pelo sentimento coletivo, ao ponto de sacrificar-se em nome do grupo ao qual pertence; no segundo caso, o indivíduo, em virtude de seu isolamento, atenta contra a própria vida. Em ambos os casos, o suicídio é resultado da forte ou da frágil aproximação do indivíduo com o grupo

social. Já o terceiro tipo mencionado por Durkheim, o suicídio “anômico”, resulta de mudanças sociais abruptas, caracterizadas por um descompasso entre valores sociais vigentes e novos valores emergentes. É exatamente nesse vazio, demonstra o sociólogo, que reside o perigo, pois muitos, tendo suas certezas morais abaladas, não suportam e atentam contra a própria vida.

Em sua última grande obra, As Formas Elementares da Vida Religiosa, publicada em 1912, o mestre francês, reorientando parte das posições assumidas no início de sua carreira4, lança mão de uma

“sociologia do conhecimento”, onde explica a origem das categorias do conhecimento. Afastando-se das posições kantianas, segundo as quais essas categorias estariam dadas a priori, Durkheim defende que estas são, na verdade, construções coletivas, podendo, portanto, variar de acordo com o meio social. Dessa “sociologização” do kantismo, entretanto, não decorre que a verdade seja relativa, pois, como tratará de defender um pouco mais tarde, num curso a respeito do pragmatismo5, ainda que a verdade seja

uma construção coletiva, é sempre cumulativa. Assim,

4 Existe uma grande polêmica entre os estudiosos de Durkheim em relação a uma suposta ruptura, em termos teóricos, entre os primeiros e os últimos trabalhos do autor. Alguns intérpretes, a exemplo de Gurvitch (1986) e Fernandes (1994), defendem a tese de que o sociólogo francês abandona uma leitura morfológica/positivista, característica da fase inicial, em detrimento de uma posição espiritualista, visível, sobretudo, nas obras tardias. Já autores como Giddens (1998; 2005), Ortiz, 2002, Nisbet (2003), Pizzorno (2005) e Lukes (2005), falam numa reorientação sem, entretanto, pressuporem uma mudança absoluta em relação aos objetivos apresentados no início de sua carreira. Embora as opiniões se dividam, em consonância com este segundo grupo de autores, sustentamos que o autor reorienta os interesses de suas pesquisas, sem abandonar, porém, os pressupostos básicos de sua teoria sociológica, contidos em seus trabalhos iniciais.

5 Este curso foi ministrado pela primeira vez entre dezembro de 1913 e maio de 1914, portanto alguns anos antes de sua morte, ocorrida em 1917. Trata-se de um curso composto de algumas lições, que tinha como tema o pragmatismo, e que Durkheim teria preparado visando contribuir para a formação de seu filho Andrés que, pouco tempo depois, em 1915, morreria durante a Primeira Guerra. Infelizmente, as anotações originais do curso se perderam, mas, ainda assim, os apontamentos de alguns alunos, que acompanharam o curso, foram recuperados e organizados por Armand Cuvillier em 1955.

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pode-se aprimorar a verdade, mas não modificá-la radicalmente ou substituí-la por outra, pois, em última análise, isto implicaria aceitar o seu relativismo. Em todo o caso, o autor é enfático em relação ao tema do conhecimento: este não é uma construção puramente individual, mas social.

Posto isto, fica então uma questão crucial: como negar a pecha sociologista que recai sobre a teoria sociológica durkheimiana? Num primeiro momento, pelo menos, o sociologismo aparece como uma marca indelével de seu pensamento e, consequentemente, o indivíduo desponta como um elemento secundário em sua sociologia. Desse modo, como falar em liberdade em Durkheim se o indivíduo é tratado como mero suporte das influências coletivas? Entretanto, se as evidências favorecem as leituras consagradas, isso não impede que apresentemos outras possibilidades de análise, pois, só assim, confrontando diferentes perspectivas, é possível avançar e saber o que, de fato, pensa o autor a respeito da liberdade. Vejamos, então, uma segunda linha interpretativa.

Se em sua tese doutoral Durkheim enfatiza os processos sociais, também destaca que uma das tendências das chamadas sociedades complexas, marcadas pela intensa divisão do trabalho, é a de liberar o indivíduo da rígida imposição que a “consciência coletiva” exercia sobre as consciências particulares nas sociedades menos desenvolvidas. A intensificação da divisão do trabalho, explicada em termos morfológicos, é vista por Durkheim como um elemento decisivo para o reconhecimento da individualidade. Os indivíduos são socialmente evocados a exercerem diferentes funções, para assim comporem a complexa tessitura da sociedade moderna. De qualquer modo, a fragmentação da consciência coletiva, em face do avanço da divisão do trabalho, é

o que oportuniza ao indivíduo, histórica e socialmente situado, experimentar a sua individualidade.

É claro, e Durkheim chama a atenção para este fato, que só a divisão laboral não é suficiente para garantir a coesão social nas sociedades modernas, pois, embora essa diversidade seja importante no que se refere à diminuição da violência desenfreada que caracteriza a luta pela sobrevivência, similar ao que ocorre no estado natural, não é capaz de garantir a convivência entre indivíduos de interesses tão distintos. Ainda que, nessa obra, o sociólogo francês não tenha desenvolvido todas as implicações de suas inferências, não deixa de apontar alguns caminhos nessa direção, afinal, como afirma em certa ocasião, o indivíduo torna-se um valor a ser respeitado no mundo moderno. Durkheim parece pressentir que a consciência coletiva, ainda que não tenha mais a mesma força, não desaparece das sociedades que apresentam grande complexidade. O “elemento não-contratual do contrato”, com efeito, é a demonstração de que nenhum tipo de organização social, simples ou complexa, pode prescindir de um conjunto de valores. Infelizmente, em sua tese doutoral, o autor mostra-se incapaz de explicar como isso se dá.

Em As Regras do Método Sociológico, obra de cunho programático, Durkheim, que enfatiza as características dos fatos sociais com vistas a precisar o objeto da ciência social, não deixa de tocar, ainda que tangencialmente, no tema do individualismo. O seguinte excerto é bastante elucidativo no sentido de desvelar as posições do autor a respeito do indivíduo:

Não é possível que todos se assemelhem nesse ponto, pela simples razão de que cada um tem seu organismo próprio, e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço. Por isso, mesmo nos povos inferiores,

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nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida, ela não chega a ser nula. Assim, como não pode haver sociedade em que os indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo, é também inevitável que, entre essas divergências, haja algumas que apresentem um caráter criminoso (Durkheim, 2007, p. 70-71).

Tanto nas sociedades simples quanto nas complexas, uma sincronia total entre o indivíduo e o tipo coletivo é improvável, pois, seja em termos de composição biológica, seja em termos de interesses e inclinações pessoais, os indivíduos divergem entre si e, em algumas ocasiões, em relação aos valores sociais – como comprovam os atos criminosos. Mas não é só. Pouco mais a diante, o autor faz a seguinte afirmação:

Não queremos dizer, aliás, que as tendências, as necessidades, os desejos dos homens jamais intervenham, de maneira ativa, na evolução social. Ao contrário, certamente lhes é possível, conforme a maneira como agem sobre as condições de que depende um fato, acelerar ou conter o desenvolvimento deste (DURKHEIM, 2007, p. 94).

Mas é uma nota de rodapé, inserida no Prefácio à Segunda Edição de As Regras do Método Sociológico6,

numa tentativa de responder algumas das inúmeras críticas que lhe foram dirigidas, que melhor traduz o pensamento do sociólogo francês em relação ao tema da individualidade. Nesta, o autor, de modo incisivo, observa que:

6 Trata-se da nota de número oito do referido prefácio. Conquanto alguns possam alegar que ao fazer referência, em uma nota, a um tema tão importante, Durkheim denota certo desinteresse pelo indivíduo, é preciso considerar que o foco do autor nesse trabalho são os fatos sociais e não os individuais. O embate travado com o utilitarismo o impede, pelo menos nesse momento, de realizar uma abordagem mais abrangente sobre o assunto.

Do fato de que as crenças e as práticas sociais nos penetram a partir do exterior, não se segue que as recebamos passivamente e sem lhes imprimir modificação. Ao pensarmos as instituições coletivas, ao assimilá-las internamente, nós as individualizamos, conferimos a elas, em maior ou menor grau, nossa marca pessoal; é assim que, ao pensar o mundo sensível, cada um de nós o colore à sua maneira, e que sujeitos diferentes se adaptam diferentemente a um mesmo meio físico (DURKHEIM, 2007, p. 154-155).

O trecho acima contém informações muitíssimo valiosas. Em primeiro lugar, Durkheim enfatiza que, até mesmo os fatos sociais, na visão naturalista do autor, externos e coercitivos em relação às consciências individuais, passam por modificações que dependem exclusivamente do indivíduo, isto é, da maneira como este as assimila. Desse modo, e aqui se abre espaço para um segundo argumento, o indivíduo não aparece apenas como um suporte das pressões coletivas, mas como alguém que, ao internalizar as influências sociais, atribui-lhes sua “marca pessoal”. Um terceiro ponto, sem dúvida tão importante quanto os precedentes, diz respeito à direção que o sociólogo dá ulteriormente a sua teoria. Seu próximo trabalho, O Suicídio, escrito na mesma época de As Regras do Método Sociológico, demonstra que o autor já se mostrava atento ao modo como os valores são internalizados pelo indivíduo.

É bem verdade que em O Suicídio, Durkheim está mais preocupado em apontar como os aspectos sociais influem na decisão do indivíduo tirar a própria vida, do que propriamente definir o fenômeno em questão. Destarte, ao estipular uma tipologia do suicídio, o autor pretende demonstrar que este, longe de ser um fato individual é, na verdade, um fato social. Assim sendo, o estudo que o autor empreende sobre

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o suicídio é apenas um subterfúgio para selar de vez a sorte das teses atomistas. Mas, ainda assim, é possível perceber o lugar que o sociólogo francês concede ao indivíduo em sua teoria. Se observarmos o modo como Durkheim define o suicídio altruísta e egoísta, talvez possamos chegar a um esclarecimento a respeito deste ponto. Em ambos os casos a intensidade da relação entre indivíduo e sociedade, analisada pelo sociólogo numa perspectiva subjetivista, é o que determina o tipo de suicídio. Quando os laços sociais são por demais intensos, a ponto de a percepção individual dissipar-se na experiência do grupo, predomina o suicídio altruísta. Por outro lado, quando esses laços são frágeis, a ponto de não haver uma identificação entre indivíduo e sociedade, é o tipo egoísta que predomina. Com efeito, um sujeito considerado “normal”, diferentemente do “patológico”, não está nem aquém nem além daquilo que se considera como ideal em termos de socialização. Isto implica num certo equilíbrio desejável entre indivíduo e meio social: o indivíduo não deve ser engolido pelo coletivo e, do mesmo modo, o coletivo não deve se tornar um mero adendo dos interesses particulares, pois, em qualquer um desses casos, o que se tem é uma sociabilidade incompleta que, somada a outros fatores, inclusive de cunho psicológico, pode se converter em suicídio. Subjacente a esta interpretação, repousa a ideia segundo a qual a individualidade não se perde totalmente no decorrer do processo de socialização. Há, segundo Durkheim, uma individualidade socialmente necessária. Entretanto, esta ideia, pelos menos em O Suicídio, não é completamente desenvolvida.

Uma resposta mais razoável será oferecida no artigo O Individualismo e os Intelectuais, escrito no auge da repercussão do Caso Dreyfus. Publicado em 1898, na Revue Blue, o referido artigo é uma resposta aos ataques

empreendidos pelo conservador católico Brunetière aos intelectuais franceses simpatizantes do capitão Dreyfus, os chamados dreyfusiards. Nele, Durkheim propõe uma análise mais rigorosa do fenômeno do individualismo, escapando assim à confusão, não incomum, entre individualismo e egoísmo. Segundo o sociólogo, existe uma grande diferença entre essas duas noções. O egoísmo pressupõe que o indivíduo é o centro da formulação dos valores sociais. Na perspectiva utilitarista, por exemplo, o indivíduo é livre para tomar decisões e, assim, atender aos seus próprios interesses, deixando-se guiar apenas em favor de seu prazer egoísta, sem que isso signifique submeter-se a um propósito mais elevado. Durkheim definitivamente rechaça essa posição. Para o autor, essa incapacidade egocêntrica de livrar-se da autorreferencialidade contradiz a possibilidade de experiência coletiva e, concomitantemente, abre espaço para se pensar que toda a expressão individual tem valência negativa em termos sociais – a exemplo dos antidreyfusards. Esse tipo de individualismo, que comporta características egoísticas, não pode ser avistado como a sua única expressão. Há, nesse sentido, um esforço por parte de Durkheim em demonstrar que outro tipo de individualismo não só é possível, mas desejável, sobretudo quando se considera a complexidade da vida social moderna. Destarte, esse outro individualismo, tem a sua origem na própria sociedade. Trata-se, portanto, de um “individualismo moral” que, nas sociedades marcadas por uma complexa divisão do trabalho, tende a se consolidar como o conjunto de valores predominante.

Na tentativa de explicar a importância deste “culto” ao indivíduo para o mundo moderno, que não deve ser confundido com o “culto egoísta do eu”, Durkheim recorre aos estudos sobre o fenômeno da

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religião que, desde a publicação do primeiro número da Revue L´Année Sociologique, quase na mesma época de sua resposta à Brunetière, torna-se objeto de suas preocupações. Segundo o sociólogo francês, o ser humano tornou-se, no mundo moderno, um valor inquestionável, adquirindo um caráter sagrado. Como faz questão de explicitar, tal situação surge com o próprio desenvolvimento do cristianismo. Na ótica do sociólogo, o cristianismo evidenciou a crença interior e a convicção pessoal do indivíduo como pressuposto da piedade. Contudo, esse processo não passou de um mero impulso que, nas sociedades complexas, mediante a aceleração da divisão funcional, alcançou o seu auge. Para o mestre francês, esse tipo de individualismo nada tem a ver como uma autossacralização inescrupulosa dos utilitaristas, visto que não se trata de um processo desencadeado por um indivíduo isoladamente. O individualismo moral é antes um processo social que se assenta no respeito à pessoa humana, da qual a personalidade de cada indivíduo é constitutiva. Contudo, esse “culto” dirige-se à humanidade e não ao indivíduo em particular. O argumento durkheimiano não deixa espaço a qualquer dúvida: se, por um lado, as sociedades complexas se notabilizam pela diferenciação funcional e, cada vez mais, os indivíduos diferem em suas tarefas e interesses, por outro, essas mesmas sociedades não podem existir sem o mínimo de coesão. Disso decorre que, para além de toda interdependência gerada pela diferenciação funcional, há sempre “um elemento não contratual no contrato”, ou seja, um conjunto de valores responsáveis por conectar os indivíduos que, no caso da sociedade moderna, tem como centro o próprio ser humano. Com efeito, a pessoa humana foi alçada ao ponto mais alto da moralidade moderna, adquirindo uma dimensão sagrada. Desta ideia,

defendida por Durkheim, depreende-se outra, a saber, a de que não existe uma descontinuidade absoluta entre sacralização e laicização. Isso porque a religião está na própria base da vida moral e, dessa maneira, é difícil, senão impossível, retirar de determinados valores o invólucro sagrado que os envolve. Embora o avanço da racionalidade tenha como efeito a fragilização dos símbolos religiosos, para Durkheim não chega a ser um absurdo o fato de que este processo, somado a divisão do trabalho social, tenha contribuído para tornar o indivíduo um valor máximo no mundo moderno, originando o individualismo moral. Outra ideia importante, também decorrente da condição alcançada pelo indivíduo na modernidade, diz respeito à aparente contradição entre este e a sociedade. Segundo o sociólogo, o avanço do individualismo não configura um risco à coesão social se, obviamente, este responder às necessidades coletivas.

A primeira parte de sua Educação Moral, obra publicada postumamente, clarifica as transformações concernentes à moralidade, sobretudo no que se refere às sociedades complexas. Ao definir a moral como um “sistema de regras de ação que predetermina a conduta”, Durkheim visa lançar as bases de uma moral laica, consoante com as exigências racionais das sociedades modernas. Para tanto, o autor se propõe buscar “no próprio seio das concepções religiosas, as realidades morais que ali estão perdidas e dissimuladas”, descobrindo-lhe “os equivalentes racionais dessas noções religiosas que, durante muito tempo, serviram de veículo às ideias morais mais essenciais” (DURKHEIM, 2008b, p.24-25). Reconhecendo as dificuldades de tal empreendimento, em vista da relação umbilical entre religião e moral, Durkheim constata que a moralidade possui dois elementos basilares, aos quais respectivamente nomeia

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de “espírito de disciplina” e “espírito de adesão”. A primeira dessas disposições é marcada pelo fato de que toda a regra impõe ao indivíduo uma “regularidade” necessária à vida social, o que só é possível em virtude da “autoridade” da qual está imbuída. Essa regulação é imprescindível não só para a vida social, mas igualmente para a formação do caráter, pois, sem ela, o indivíduo ficaria a mercê de suas paixões. Nas palavras do autor, “sempre que as nossas tendências se tornam libertas de qualquer medida, quando nada há que as limite, elas tornam-se tirânicas, e o primeiro escravo é o próprio sujeito que as experimenta” (DURKHEIM, 2008b, p. 56). Mas, para além da dimensão coercitiva das normas, o indivíduo cumpre o seu “dever”, a elas submetendo-se, pois as vê como um “bem”. Desse modo, se a submissão a uma regra moral exige sacrifícios que, muitas vezes, atentam contra os desejos egoístas, é preciso reconhecer que esse processo contém um caráter positivo, pois, sem essa abnegação, o indivíduo estaria condenado a uma vida egocêntrica. A adesão ao grupo constitui um passo fundamental para o desenvolvimento do autocontrole e, consequentemente, para o exercício da liberdade, na medida em que nos protege de forças imorais ou amorais, elevando-nos à condição de seres sociais. Entretanto, ao pensar sobre qual a moral seria mais adequada à sociedade moderna, Durkheim apresenta um terceiro elemento: o “espírito de autonomia”. Este, certamente, constitui um elemento-chave para se compreender a questão da liberdade em Durkheim. Vejamos, então, quais as implicações do incremento da autonomia em sua teoria moral. A posição defendida pelo autor é a de que a autonomia da vontade está vinculada à diversificação funcional, definindo-se pelo exercício da razão. Como faz questão de enfatizar: “querer livremente não é querer o absurdo; pelo

contrário, é querer o que é racional, que o mesmo é dizer, é querer agir em conformidade com a natureza das coisas” (DURKHEIM, 2008b, p. 86). Assim, o indivíduo moderno tem a seu favor a possibilidade de aderir, esclarecidamente, a um determinado conjunto de valores, sem que isto signifique uma submissão inconsciente. Uma norma, para ser validada, deve comportar certa razoabilidade, pois, do contrário, poderá ser rejeitada. Se nas sociedades tradicionais, devido à forte consciência coletiva, tal recusa mostrava-se improvável, reduzindo-mostrava-se a ações isoladas, algumas delas consideradas “criminosas”, nas sociedades complexas, onde o indivíduo tornou-se o centro da vida moral, essa situação é cada vez mais estimulada. Ainda que o autor reconheça que isoladamente um indivíduo pouco ou nada pode contra uma norma estabelecida, abre espaço para se pensar em ações coletivas estruturadas e questionadoras. Por essa ótica, o exercício da liberdade nas sociedades modernas está atrelado, de um lado, ao desenvolvimento da cidadania e, de outro, à vinculação dos indivíduos aos grupos sociais. Isso explica porque o autor se preocupou com o destino da educação francesa, com as agremiações profissionais e com o Estado em sua teoria. Em suma, a liberdade em Durkheim só pode ser pensada na perspectiva da cidadania, da racionalidade e da união entre os indivíduos com vistas a mudanças. Longe de restringir-se a interesses particulares, a liberdade se define pela capacidade que o indivíduo tem de se aproximar de outros e, em conformidade com a razão, avaliar às normas, aderindo ou modificando-as.

2. A liberdade como condição de existência

Jean-Paul Sartre foi um filósofo francês, nascido no início do século XX (1905) e que

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despontou, nos meados deste século em Paris com um pensamento inovador e revolucionário, através do qual colocava em questão a consciência humana em sua relação com o mundo, iluminando essa relação por um viés existencial no qual a consciência surgia como portadora de uma absoluta e necessária liberdade.

Contudo, a liberdade apontada por Sartre não era a mesma liberdade de que falava o senso comum de sua época, como não é o que se reconhece da liberdade também em nossa atualidade, ou seja, o contraponto da servidão. A liberdade é focalizada em seu pensamento por um viés ontológico, ou seja, de acordo com o filósofo, o homem é um ser ontologicamente livre, o que significa que a liberdade lhe surge como algo necessário.

Entretanto, em tal consideração não se configura qualquer abstração, muito pelo contrário, é no plano real e concreto que Sartre elabora esta sua compreensão. Melhor dizendo, é através de uma ontologia fenomenológica, ancorada na realidade concreta, que este filósofo tenta descrever ser humano que ele apreende como necessariamente livre.

Assim sendo, Sartre nos apresenta o homem como um ser portador de uma consciência absolutamente livre, isto é, ela é livre e não pode deixar de sê-lo. Logo, a liberdade não é algo a ser conquistado como se fosse um prêmio, até porque, longe de ser um prêmio, ela é muito mais uma condenação: “o homem está condenado a ser livre” (SARTRE, 1978, p. 9), afirmava o filósofo em sua conhecida conferência de 1946.

Entretanto, não se trata aqui, de uma liberdade abstrata ou de uma absoluta transcendência; a liberdade de que nos fala Sartre desponta no interior de uma consciência inserida no mundo e comprometida com ele por uma relação indissolúvel, ou seja, ela está

sempre mergulhada em uma situação.

Estar em situação, para Sartre, significa estar colocado de forma absoluta dentro de seu meio, estabelecendo com esse meio uma relação significante. Com isso, ele quer dizer que é o próprio homem que significa as coisas do mundo que, em si mesmas, não têm significado algum; o mundo sem o homem é totalmente desprovido de significado e as coisas do mundo, simplesmente são; é a consciência humana que diz o que são essas coisas; é ela que significa as situações nas quais está inserida; uma determinada situação, por exemplo, pode ser significada como uma situação de adversidade, ou como um estado de coisas favorável, em função de suas necessidades e dos seus fins por ela mesma colocados. É ela, portanto, que escolhe o mundo no qual resolveu se situar e, determinando assim, a cada momento, as suas escolhas ela escolhe-se a si mesma, construindo, ao longo de sua existência, a sua essência singular. Localiza-se aí, como sabemos, o princípio existencialista, segundo o qual a existência precede a essência.

Com efeito, se somos seres mergulhados no mundo, vamos sempre encontrar uma infinidade de fatores que obstaculizam nossos projetos, mas, segundo Sartre, são exatamente tais fatores que tornam possível o exercício da liberdade. A liberdade é, antes de tudo, um exercício que exige da consciência um grande e constante esforço de superação, ao apreender-se diante dos obstáculos e das contingências que ameaçam o alcance e a realização de seus fins. Tomemos, como exemplo, uma situação cujas adversidades se apresentem como um todo desfavorável: uma mãe pobre e sozinha, vivendo em uma região periférica de nossa cidade. Sem dúvida, as condições de adversidade que tal mulher terá que enfrentar são bastante difíceis, e

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não foram escolhidas por ela. Entretanto, pela ótica de Sartre, tais obstáculos em nada comprometem a sua liberdade. Ao contrário, são esses obstáculos e essas resistências no campo da facticidade que vão possibilitar a essa mulher exercê-la plenamente. De fato, nada garante que seus desejos e objetivos sejam alcançados, ao contrário, provavelmente, muitos de seus fins não terão êxito. Mas o fato de não obter o que necessita ou de não ter sucesso em suas tentativas, não significa que sua liberdade tenha sido comprometida. O que é preciso deixar claro é que, pelo olhar sartriano, a liberdade não está atrelada à obtenção ou ao sucesso dos empreendimentos desenvolvidos; ela é apenas um exercício de busca das finalidades colocadas por determinada consciência e de superação dos obstáculos encontrados durante esse processo. A liberdade dessa mulher, portanto, se manifesta na escolha da atitude e dos recursos criados por ela diante das dificuldades que se apresentam a cada momento daquela situação que lhe foi imposta.

Dessa forma, ser livre é escolher; é fazer escolhas em um mundo concreto, entre os possíveis que a nós se apresentam em determinada situação. Escolhemos e somos conscientes de nossas escolhas, pois – afirma o filósofo – “é preciso ser consciente para escolher e é preciso escolher para ser consciente. Escolha e consciência são uma só e mesma coisa. O que não é possível é não escolher, pois quando não escolho, estou escolhendo ainda a não-escolha” (SARTRE, 2001, p.506).

É interessante observar que, embora o filósofo mantenha sua preocupação em permanecer sobre o solo da realidade concreta, ele não abandona o aspecto ontológico de sua investigação; seu olhar se desloca como num vai-vem do ôntico ao ontológico assegurando sempre, neste último solo, o aspecto

necessário de sua proposta. Para compreender, por exemplo, a consciência de liberdade, faz-se necessário, considerar que o modo de existir dessa consciência está assentado em seu caráter temporal, pois a temporalidade é a forma pela qual a consciência desenvolve sua relação com o mundo. O que Sartre observa é que sua existência se constitui através de uma temporalização que é vivenciada, simultaneamente, sob as três dimensões temporais: o presente, o passado e o futuro: o presente é uma rápida fuga em direção a um futuro que lhe falta, logo, o futuro é algo que ainda não é; o passado é uma facticidade; logo, é algo que já foi e que não pode mais ser modificado. Dessas três dimensões temporais, o filósofo enfatiza a importância do futuro, pois uma vez que a consciência é sempre intencional, todos os seus atos são realizados em nome de uma intenção que os antecede, o que significa que ela está sempre voltada para a construção de um projeto a ser realizado; um projeto futuro que ela busca realizar como algo que fará dela aquilo que ela ainda não é, mas que pretende ser, ou seja, um projeto livremente criado na tentativa de encontrar sua plenitude.

Entretanto, é exatamente nessa busca que reside o grande conflito da consciência humana, pois, enquanto consciência, ela é um ser ao qual sempre falta algo, um ser incompleto, inacabado, portador de uma transcendência e de uma liberdade que lhe possibilita procurar sempre seu complemento. Daí sua incessante elaboração de projetos e sua eterna esperança de um dia alcançar sua plenitude, mas, daí também, a garantia do estatuto de uma consciência infeliz7 . Em suma: a consciência humana, nada mais é

do que uma constante realidade em curso que busca

7 A consciência infeliz foi um tema desenvolvido por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito e assimilado por Sartre ao elaborar sua ontologia fenomenológica.

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sua totalização e sua completude que, por sua vez, faria dela um ser inteiro, pronto, acabado e ao qual nada faltasse, ou seja, segundo Sartre, o que ela busca é ser uma coisa, pois só o modo de ser das coisas tem essas características. Mas como, por outro lado, ela não pode se desvincular de seu aspecto transcendental e de sua liberdade, o filósofo acaba por concluir que o desejo da consciência é ser uma coisa sem deixar de ser consciência; é ser livre e transcendente sem deixar de ser plena e completa, isto é, a sua busca traduz-se pelo desejo de ser Deus – busca essa que já em sua origem, está condenada ao fracasso. E é na angústia que ela vivencia a condição de ser uma perpétua totalização-em-curso.

Sartre nos aponta ainda, que toda essa busca incessante e esse complemento nunca alcançado que acaba por fazer do homem um ser que não é, ou seja, um ser que tem-de-ser, se dá no interior de um movimento cujo percurso temporal constitui o que ele denomina circuito de ipseidade. Neste movimento, o homem toma distância de sua realidade atual e opera, então, duas nadificações: por um lado, ele coloca um estado de coisas como ideal e, por outro, ele posiciona a situação atual como um nada em relação a esse estado de coisas colocado. Dito de outra forma: ele concebe uma situação ideal, mais satisfatória no plano dos possíveis e ilumina a situação presente, ressignificando-a, à luz dessa possibilidade, desse nada, para nadificar, a partir daí, a sua situação atual, reconhecendo-a como insuportável.

Sem dúvida, toda essa descrição nos coloca no plano ontológico, ou seja, no reino do necessário e, por isso mesmo, pode parecer uma descrição abstrata. Contudo, é no seio mesmo da realidade concreta que toda essa liberdade é vivenciada; é do fundo de uma concretude material que desponta o indivíduo

como portador de uma liberdade absoluta e que se coloca no mundo em busca da realização de seu projeto. Não se trata de um conceito ideal, nem de uma liberdade restrita à liberdade de pensamento; a liberdade, segundo Sartre, é algo que se dá no âmbito de um fazer humano situado entre o presente e um projeto futuro, levando-se em conta ainda, nesse trajeto, todos os obstáculos impostos pela facticidade que circunscreve seu campo de ação.

Para deixar mais clara a radicalidade com que esse filósofo francês afirma a sua noção de liberdade faz-se necessário esclarecer alguns aspectos fundamentais do seu pensamento, pelos quais ele pretende refutar todo e qualquer determinismo: em primeiro lugar, Sartre era um ateu convicto; ele negava a existência de Deus. Logo, não há espaço em sua filosofia para qualquer recurso justificativo de ordem divina. Em segundo lugar, para ele, o homem não tem uma essência pré-determinada; ele é um ser em construção; um ser a se fazer; um ser do futuro. Por outro lado, não existe também, segundo ele, uma natureza humana que justifique suas escolhas; não podemos falar de uma natureza humana da mesma forma, por exemplo, como falamos de uma natureza animal ou vegetal, pois o ser humano é, antes de tudo e qualquer coisa, um ser livre e consciente de sua própria liberdade, portanto, não seria possível atribuir a este ser uma natureza humana, que torne previsível os seus atos; como é previsível o desenvolvimento de um vegetal ou de um animal; tudo o que podemos constatar neste ser livre é uma condição humana.

É ainda com esse antideterminismo radical, que Sartre desenvolve sua crítica à noção de inconsciente proposta por Freud, como uma instância psíquica topologicamente descrita, com a qual o pai da psicanálise pretendia explicar e determinar por

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uma relação de causa e efeito, as condutas humanas, aparentemente inexplicáveis.

O homem, sartriano, é um ser sempre consciente, indeterminado, autor de suas próprias escolhas e decisões e que carrega em si mesmo, de forma necessária, a sua inevitável liberdade. Nada o determina e, assim sendo, dizia o filósofo, “o homem está só e sem desculpas” (SARTRE, 1978, p. 9).

Dessa forma assim colocada, tal consciência de liberdade só poderia ter como corolário a total responsabilidade por cada uma de suas condutas: se o homem é o único agente de suas escolhas, se não há qualquer fator determinante e transcendente que oriente os seus atos, ele e somente ele, poderá ser o responsável pelas suas atitudes. Não há para quem transferir a própria responsabilidade. A radicalidade do filósofo não deixa o menor espaço, ou a menor brecha para essa transferência.

Tal autonomia se complica ao nos transportarmos para o reino da ética onde temos que lidar com o conceito-chave deste reduto que é o valor. A questão que se impõe é: como conciliar essa noção tão radical de liberdade com o cumprimento dos valores éticos estabelecidos pelo nosso corpo social?

É preciso esclarecer que, para Sartre não há valores pré-estabelecidos; o homem é “a fonte absoluta de todos os valores” e nada poderia justificar a adoção deste ou daquele valor pois, assim como não há uma natureza humana que justifique as nossas escolhas; “assim como não há valores inscrito em um céu inteligível” (SARTRE, 2001, p. 409), também não há qualquer ordem pré-estabelecida de valores que possa justificar as nossas condutas8.

Sem dúvida alguma, esse pressuposto

8 Podemos observar que nesse aspecto, Sartre aproxima-se da inquietação de Nietzsche ao perguntar: “qual é o valor dos valores”?

sartriano é algo bastante polêmico, pois traça um caminho para a tão discutida questão de uma relatividade ética ou de uma ética da subjetividade que tanto atemoriza, segundo este filósofo, a falsa moral burguesa. Todavia, não se trata aqui de uma subjetividade com um teor deontológico, tal como o queria Kant. Muito pelo contrário, segundo Sartre, a proposta de um imperativo categórico, fundamentado na prerrogativa do “deves, logo podes”, com seu caráter formal e universal, negligencia, por um lado, as características contingentes da realidade humana em situação, e por outro, deixa ainda encoberto nesta fórmula, que tal possibilidade, aí afirmada, retorna e recai incondicionalmente sobre o dever. Este aspecto incondicional da possibilidade não leva em consideração o ser passado da consciência, suas vivências anteriores e suas reais possibilidades; estes ficam falazmente suplantados pelo imperativo do dever, cujo cumprimento fará do indivíduo um sujeito de interioridade.

Para Sartre, além de a moral ser algo criado por cada ser humano em particular, ela traz ainda consigo mesma, o caráter da não-permanência dos valores que a sustentam, ou seja, os valores são relativos a cada situação vivida; cada indivíduo constrói seus valores, de acordo com a situação em que se encontra. O que significa que os valores são criados em função de cada necessidade e em função de cada momento. A moral de Sartre é por isso mesmo reconhecida como uma moral de criador.

Nisso tudo, o que importa, diz o filósofo, é que o valor criado a cada momento da nossa existência seja criado em nome da liberdade e é, precisamente nessa exigência, que reside a possibilidade de se manter o compromisso com a construção de uma moral autêntica.

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Essa exigência de autenticidade pretendida por Sartre foi perseguida pelo filósofo durante todo o seu trajeto. Todavia, vemos um movimento muito interessante em seu percurso. Apesar de ter-se mantido, sempre, desde 1943 – quando ele escreveu seu ensaio de ontologia fenomenológica -, no solo da fenomenologia, a relação entre a liberdade e a moral volta aparecer, em 1958, sob um novo aspecto, isto é, desta vez ela surge concretamente problematizada, em outra obra, a Crítica da razão dialética (que só veio a ser publicada em 1960). Entretanto, sua teoria descritiva, nessa obra, não será mais uma ontologia da realidade humana, mas sim uma filosofia concreta da sociedade e da história. Até porque, como ele próprio afirmava, “a ontologia é necessária, mas não é suficiente para se construir uma moral” (SARTRE, 2001, p. 673).

A partir daí, o foco central do seu pensamento se volta, para uma constatação fundamental, em nome da qual, ele abre novos campos de investigação e tal constatação resume-se na seguinte afirmativa: “a práxis humana vem se desenvolvendo desde os primórdios da história até os nossos dias sob o reino da escassez” (SARTRE, 1982a, p. 259). C o m efeito, podemos observar que a escassez tornou-se, desde então, um tema que se destacou como um fio condutor pelo qual e, a partir do qual, inúmeros outros temas se desvelaram como pontos que mereciam ser investigados numa sucessão circular aparentemente infindável e que exigiu do filósofo a construção de dois tomos de uma grande obra, a saber, a Crítica da razão dialética já citada acima. Logo nos primeiros capítulos dessa obra, ele apresenta ao leitor a sua preocupação, ao afirmar que “a escassez surge, é verdade, como um fato contingente, mas torna-se uma relação fundamental, na medida em que três quartos da população mundial é subalimentada. E

complementa mais adiante que “a escassez dos bens materiais que asseguram a existência biológica fazem dela, o fator quantitativo da alienação, e do homem, o seu produto histórico” (SARTRE, 1982, p. 235-236). Mas a questão que lhe instiga é: como se desenvolvem as relações humanas dentro de um cenário como esse? Logo, em um primeiro momento, algo lhe fica muito claro:a partir do momento em que uma pluralidade de consciências apreender uma realidade na qual não há o suficiente para todos, a relação entre os homens se constituirá como uma relação de antagonismo que ameaça a liberdade de todos os envolvidos.

Ao empreender sua pesquisa – e isso precisa ficar bem claro – Sartre permaneceu fiel às suas investigações anteriores, mantendo-se no solo da fenomenologia. A escassez é investigada, enquanto fenômeno; e não como um fato que significa que o que lhe interessa é a forma pela qual cada indivíduo ou grupo de indivíduos apreendem o seu surgimento, e é preciso considerar que o fenômeno é apreendido tal como ele aparece.

Ao desenvolver sua pesquisa, Sartre observa que na medida em que as condições econômicas da luta contra a escassez exigem da sociedade certa organização, esta sociedade terá que definir os limites da escassez para cada um dos seus grupos, isto é, ela precisa reduzir o número de seus componentes para poder subsistir. Evidencia-se, com isso, que a tensão da escassez se desvela como algo que tem sua origem no aspecto quantitativo dos indivíduos. Dessa forma, os grupos passam a ser definidos por seus excedentes. Vejamos a afirmação do próprio filósofo:

Essa redução numérica (...) não assume, de fato, a forma de homicídio, mas não há dúvida de que cada sociedade escolhe discretamente seus mortos (...) não se mata,

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mas deixa-se morrer (...) faz-se o controle de natalidade, pois, nesse caso, cada criança ao nascer é um futuro consumidor. (SARTRE, 1982a, p. 241).

Com isso, o filósofo constata que a questão moral surge fundamentalmente assentada no aspecto quantitativo da humanidade e a forma histórica do maniqueísmo aparece aqui, como o primeiro estágio da ética sob a forma de sociedade de classe. A sociedade se organiza para combater a escassez, as classes se formam e, nesse caso, o Mal passa a existir no mundo sob a forma de práxis humana, como o inimigo de classe. Podemos observar que Sartre já coloca aí, uma causa material e exterior à liberdade de decisão moral do sujeito.

Nesse caso, uma organização capitalista que, por exemplo, é a nossa, exige uma classe capitalista e uma classe trabalhadora. A repartição de uma sociedade em duas classes significa também a divisão da moral em dois tipos: temos, dessa forma, uma “moral burguesa capitalista que impõe seus valores, os mantêm e os perpetuam (...) através da elaboração de uma estratégia econômica, social e política” (SARTRE, 1982b, p. 44). Tais valores lhes parece ter uma validade absoluta e, assim sendo, tornam-se obrigatórios para toda a humanidade. O espírito, a arte e a cultura surgem como o fim supremo de realização pessoal, ou seja, como o Bem maior, e só o homem cultivado poderá ser um ser por inteiro. Os não-pertencentes à classe dos homens cultivados, não são homens inteiros, são sub-homens, logo, devem ser tratados como coisas. Esse humanismo burguês, segundo o filósofo, apresenta-se contraditório: por um lado, ele justifica a exploração capitalista, mas por outro, exige sua supressão, pois se seus valores, são válidos para todos, são universais, logo, eles deveriam

exigir também a emancipação do trabalhador.

No que se refere à classe trabalhadora, vê-se também aí uma profunda ambiguidade: o trabalhador aceita e mantém os valores da classe dominante como ideal a alcançar, gerando, no interior de sua classe, uma tensão e um esforço para satisfazer às exigências dos valores morais impostos pela classe dominante. Mas o que eles não percebem, contudo, é que, na medida em que eles se esforçam para alcançar tais valores impostos, eles estão reforçando não só os valores colocados pelas classes que os submetem e exploram, como reforçam também a possibilidade de se submeter às condições de sub-homem na qual foram colocados.

A moral burguesa rejeita, de fato, a condição da classe trabalhadora identificando o trabalhador, como o “Mal”, e o trabalhador reconhece esta sua definição, mas a experiência lhe mostra também, que ele pode até escapar dessa condição, enquanto indivíduo, mas não enquanto membro de sua classe original.

O sentido moral da Crítica é inteiramente realista: o homem é um ser material no meio de um mundo material que o esmaga. Assim sendo, ele age pela matéria e sob a ordem da materialidade para modificar, no interior dessa dialética, este mundo que lhe é hostil. A história, nada mais é, portanto, do que um processo que tem a humana como fio condutor. Na verdade, o que Sartre insiste em mostrar é que a estrutura dialética da ação individual é a única base concreta da dialética histórica.

A realidade histórica surge, então, sob dois aspectos aparentemente contraditórios: 1º - a atividade pela qual o sujeito faz a história e 2º - passividade pela qual ele é constituído por ela. Esses dois aspectos correspondem a duas referências do processo histórico de constituição do indivíduo, ou seja: ele

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interioriza as determinações objetivas e exterioriza essas mesmas determinações, já transfiguradas pela sua subjetividade. Nessa reciprocidade, a mediação surge nos dois pólos da relação: tanto o sujeito se faz mediação, pois ele é atingido pela materialidade, como também a objetividade, na medida em que resiste à ação individual.

Mas a questão que nos surge imediatamente diante desse quadro conceitual é: como fica a liberdade humana, enquanto fundamento de todos os valores, frente à inércia dessa materialidade circundante?

O que Sartre pretende mostrar, neste caso é que a liberdade, como relação humana, descobrindo-se a si mesma no mundo da exploração e da opressão, descobre-se e apreende-se em sua alienação, e os valores, não encontrando mais seus limites em sua própria estrutura ontológica, vão encontrá-los na inércia da materialidade. Com isso, ele conclui, então, que:

(...) todo sistema de valores repousa na exploração e na opressão, mas nega a exploração e a opressão; todo sistema de valores confirma a exploração e a opressão, mas contribui para a instalação de aparelhos que neguem a exploração e a opressão; todo sistema de valores deixa de ser sistema e os valores deixam de ser valores, porque as circunstâncias os transformam em valores superados e eles acabam sendo substituídos por novos valores descobertos (SARTRE, 1982b: 357).9

Sem dúvida, a inteligibilidade desse processo vai depender da dialética entre as determinações históricas e a liberdade - que, em seu limite, é a ação de constituir-se a si mesmo e apropriar-se do mundo,

9 Novamente vemos aqui a presença de Nietzsche com sua concepção de uma transvalorização de todos os valores.

mas como essa ação nunca é inteiramente realizada, a libertação se coloca como um processo inacabado de totalização e, sob este ponto de vista podemos falar de um fracasso histórico, assim como podemos falar do fracasso da consciência infeliz.

Dessa forma, o pensamento filosófico sartriano que, em suas primeiras obras, apresentava o caráter originário da liberdade nas buscas infindáveis de novas criações e em sua luta pelo alcance de uma totalidade inalcançável, mantém sua continuidade na Crítica, na medida em que essa liberdade, agora efetivada em um processo histórico, tenta escapar da alienação que lhe vem das exigências impostas pela escassez do mundo material, negando essas mesmas exigências.

Em resumo, o que Sartre nos coloca é que a eliminação da escassez e das classes sociais seria a condição de possibilidade para uma relação autêntica entre os homens. A moral jamais poderia ser determinada por uma construção teórica a partir de um sistema social existente, ela deve ser algo criado para além de qualquer sistema, algo que possibilite ao homem redescobrir a práxis em seu livre desenvolvimento, como a única relação ética possível, do homem com o homem, na luta pelo domínio da materialidade.

A moral é necessária e torna-se, portanto, o sentido mesmo da História como uma história de emancipação e de criação de uma consciência que se quer livre; e a ética toma, assim, a forma e o sentido de uma teleologia da humanidade.

3. Algumas considerações

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Sartre mantêm posições completamente diversas a respeito da noção de liberdade. Isso, certamente, deve-se ao modo como cada um deles entende o indivíduo em sua relação com o mundo. Como sociólogo, Durkheim não pode concordar com a ideia de que o indivíduo é livre por natureza, pois, tal premissa, pressupõe que a sociedade é resultado das ações e escolhas individuais. Aceitá-la seria o mesmo que negar a existência de fenômenos sociais independentes das consciências particulares e, assim, impossibilitar a consolidação de uma ciência do social. Ademais, o embate travado com a filosofia utilitarista, considerada por Durkheim uma apologia ao egoísmo, impede-o de ver a liberdade como um exercício “absolutamente” individual, isto porque, para o sociólogo, o próprio indivíduo é produto da evolução social e, por conseguinte, a experiência da liberdade também. Segundo o autor, o individualismo metodológico, difuso entre os utilitaristas, está na contramão da vida coletiva. Na esteira de outros intelectuais franceses, a exemplo de Saint-Simon, Comte, Bourgeois, Renouvier que, tempos antes, enfrentaram os problemas inerentes à consolidação da sociedade industrial, procurando transcender ao debate entre individualismo e do socialismo, Durkheim também se ocupou dessas questões e, ao seu modo, tentou escapar aos excessos de ambas as posições que tanto agitaram o ambiente político francês durante o processo de instauração da Terceira República. Mantendo-se fiel ao positivismo comteano, Durkheim vê a liberdade como um produto social, porém, dialogando tanto com a tradição iluminista, sobretudo em sua vertente kantiana, quanto com a tradição liberal inglesa – ainda que na contramão da lógica dos liberais ingleses, segundo a qual a mudança do caráter humano está na base do desenvolvimento social –, aponta a individualidade,

e por consequência a autonomia, como implicações necessárias à sociedade industrial – caracterizada pela complexificação das relações funcionais. Com isso, o autor pretende escapar aos riscos de um sociologismo e de um individualismo extremos, harmonizando-os por meio do individualismo moral, conquanto nunca tenha perdido de vista a superação dos conflitos inerentes à sociedade francesa por meio da consolidação do sistema republicano – o que muitos de seus críticos, sobretudo marxistas, denunciam como sendo uma posição eminentemente burguesa. Com efeito, para o autor, a liberdade resulta de um processo evolucionário e, nesse sentido, está sempre vinculada a valores socialmente determinados – o individualismo moral é uma necessidade da sociedade moderna, devido à complexa divisão funcional. Tendo em vista que para o autor a liberdade corresponde à “libertação das forças físicas obscuras e irracionais” que cercam o indivíduo, só a partir da submissão às normas é que podemos romper com os ditames da vida biológica e assim acessar uma existência social. Porém, nas sociedades diferenciadas essa adesão deve dar-se de maneira esclarecida. Reconhecendo todas as limitações que nos cercam, o autor enfatiza que é possível ao indivíduo, porque autônomo e racional, avaliar e modificar a realidade social a partir de ações coletivas, desde que estas não correspondam mais às necessidades coletivas, pois, na ótica durkheimiana, isoladamente o indivíduo pouco ou nada pode fazer contra as forças coletivas.

Sartre, por sua vez, não desconhece a força das ações coletivas - segundo o filósofo, estas são necessárias. Contudo, vemos que ele não só insiste na prevalência da ação e das necessidades individuais, mas estabelece também a prioridade da matéria como fator de mediação nas relações humanas. Ouçamos o

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que diz o filósofo:

(...) por mais universal que seja, o acontecimento só poderá ser vivido, como sua própria superação em direção à unidade de todos, se sua universalidade for objetiva para cada um ou, se preferirmos, se em cada um criar uma estrutura de objetividade unificante (SARTRE, 1982a, p. 451).

A inteligibilidade da dialética entre a liberdade e a necessidade ilumina-se, dessa forma, por aquilo que Sartre designa por sentido das realidades, ou seja, o sentido do que é, por princípio, proibido: a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver. A impossibilidade de mudar (âmbito da necessidade) torna-se o próprio objeto a ser superado (âmbito da liberdade).

Por outro lado, na medida em que ele localiza ainda na necessidade, o ponto de partida de todas as relações do homem com o mundo, ou seja, na medida em que “tudo se descobre na necessidade” a liberdade manifesta-se atrelada à necessidade; para cada indivíduo, em sua vivência singular, a liberdade desponta pela necessidade de dissolver a impossibilidade do real.

Seria interessante apontar ainda que Sartre distingue dois tipos de mediação humana em sua relação com a materialidade: o primeiro é uma práxis comum na qual os homens estão unidos em nome de uma mesma empresa negociada, que visa e conduz ao mesmo objetivo. Essa empresa visa certa ideia de matéria e, nesse caso, é ela ao mesmo tempo naturalista e materialista, pois é a matéria que produz sua própria ideia. O segundo é um tipo de mediação serial em que “os mesmos homens (ou outros) constituem-se em relação à práxis comum como Outros, isto é, que a interioridade sintética do grupo que

trabalha é trespassada pela exterioridade recíproca dos indivíduos, na medida em que esta constitui sua separação material” (SARTRE, 1982a, p. 282). Tais mediações deixam claros os ecos do materialismo histórico deixados pelo pensamento de Marx: o homem modifica a realidade material na exata medida em que esta o modifica. Mas Sartre acentua essa dialética, colocando nesta intervenção material as marcas deixadas pela elaboração dos projetos humanos: “o porvir vem ao homem pelas coisas na medida em que veio às coisas pelo homem” (SARTRE, 1982a, p. 289), o que significa que os homens deixam gravados na matéria as ações empreendidas na construção de seus projetos e nessa medida os homens formam entre si pela matéria um vínculo de interioridade que os une mas que, ao mesmo tempo, também os separa.

Para concluir, cabe aqui, um comentário de Jean-Paul Sartre que, ao analisar a importância desse vínculo material, argumenta que “podemos aceitar, ao mesmo tempo, prescrição de Durkheim: ‘tratar os fatos sociais como coisas’ e a resposta de Weber: ‘os fatos sociais não são coisas’. Os fatos sociais são coisas, na medida em que todas as coisas, direta ou indiretamente são fatos sociais” (SARTRE, 1982a, p. 289).

De qualquer forma, não podemos desconsiderar o fato de que estamos diante do pensamento de um sociólogo e de um filósofo, o que significa que estamos diante da ciência e da filosofia e, dessa forma, a liberdade é desvelada por cada um desses pensadores sob um viés específico.

Mas, por outro lado, ainda que levemos em consideração todas essas especificidades, ou outras mais em função do ponto de vista cronológico e cultural no qual estavam inseridos estes dois pensadores, podemos observar que a cultura e o tempo

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que os separam ainda é bem menor do que aquilo que os aproxima, isto é, se pensarmos na ênfase dada à liberdade enquanto fator fundamental ou, mais ainda, enquanto um valor de referência no que diz respeito à construção da realidade humana, talvez possamos concluir que a proximidade entre eles é algo que ainda merece ser pensado.

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