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A PREEMINÊNCIA DA MÃO DIREITA NA BÍBLIA

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Academic year: 2021

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DARLYSON FEITOSA

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Resumo: a história da humanidade tem mostrado uma prevalência ou preemi-nência do lado direito sobre o lado esquerdo. Ao lado direito foram dadas as conotações positivas e ao esquerdo as conotações negativas. A preeminência do lado direito pode ser vista na linguagem popular, na literatura, na religião, na política. Especialmente na religião judaico-cristã essa preeminência é profusa: é a mão direita de Deus quem dá a vitória; Jesus está à direita de Deus e os salvos estarão à sua direita no juízo final.

Palavras-chave: Direito. Esquerdo. Cultural. Religioso. Bíblia. A PREEMINÊNCIA DA MÃO

DIREITA NA BÍBLIA*

M

ão direita absorve nesse texto uma significação plural: o lado direito físico e metafórico do corpo, bem como o ambiente físico ou espiritual e, ainda, elementos físicos e espirituais que fazem parte da realidade humana, em particular a realidade dos personagens e contextos bíblicos. No Ocidente, o corpo significa algo além da composição biológica. Ele aparece como o depositário biológico da alma ou da mente. De modo geral, esquece-se que o corpo está – como o ser humano – delimitado não apenas por seu aparato biológico, mas também pela cultura. Conforme observa Osório (2005), “a cultura, qualquer que ela seja, atua sobre o corpo tanto no sentido de limitá-lo quanto de modificá-lo, mas tam-bém lhe atribuindo significados específicos”. Hertz (1980) discorre a respeito do uso que as culturas fazem do corpo em “A Preeminência da Mão Direita: um estudo sobre a polaridade religiosa”. Observa-se o uso quase que universal da mão direita, em detrimento da esquerda.

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O que Hertz argumenta é que isso se deve não a uma característica biológica humana, mas a uma característica cultural. Buscando um universal cultural, Hertz demonstra como as culturas sobrepõem aos lados direito e esquerdo significados de origem ou de conotação religiosa. No âmbito da literatura bíblica, a metáfora da prevalência do direito sobre o esquerdo não é contestada – ela faz parte natural das imagens e declarações vétero e neotestamentárias, algumas de cunho não apenas narrativo, mas também doutrinário. É o lado direito que desponta como sendo o lado positivo, origem das virtudes e destino dos virtuosos. Uma antiga declaração bíblica assim expressa: “A tua destra, ó Senhor, é

gloriosa em poder; a tua destra, ó Senhor, despedaça o inimigo” (Ex 15,6), onde se vê o direito devidamente concebido em termos posi-tivos e, naturalmente, associado à divindade. É essa perspectiva que majoritariamente encontramos nos dois testamentos. O cultural está em intercessão com o religioso, não havendo preocupação dos autores bíblicos com a justificativa da prevalência ou preeminência do direito sobre o esquerdo.

Com base em Hertz é que nos inserimos no texto bíblico, analisando-o sob tal perspectiva. Visto que há freqüentes declarações que dão preva-lência natural ao direito, presume-se que por época da composição dos documentos javistas (c. séc. X a.C.) a aceitação cultural de tal prevalência já se observava.

A PREVALÊNCIA CÚLTICA DO LADO DIREITO

Hertz (1980, p. 104) argumenta que “uma oposição fundamental domina o mundo espiritual dos homens primitivos, aquela entre o sagrado e o profano”. O culto prestado a Iahweh traz em si essa oposição, velada, mas ainda assim explícita, entre dois pólos, com a prevalência do direito: Imolarás o carneiro e, com um pouco de sangue, untarás o lóbulo da orelha direita de Aarão e de seus filhos, o polegar direito das mãos e o polegar di-reito dos pés, e aspergirás o sangue em volta do altar. Tirarás a gordura do carneiro, isto é, a cauda, a gordura que cobre as vísceras e a membrana do fígado, os dois rins com a gordura que os envolve e a coxa direita, pois este é o carneiro da investidura (Ex 29,20.22).

Depois de matá-lo, Moisés pegou o sangue e untou o lóbulo da orelha di-reita de Aarão, o polegar da mão didi-reita e o dedão do pé direito. Mandou

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que os filhos de Aarão se aproximassem, untou-lhes com sangue o lóbulo da orelha direita, o polegar da mão direita e o polegar do pé direito e, depois, derramou o sangue em torno do altar. Pegou a gordura, a cauda, toda a gordura que cobre as vísceras, a camada gordurosa do fígado, os dois rins com a gordura e a perna direita. Do cesto dos pães sem fermento, posto diante do SENHOR, tomou um pão sem fermento, uma torta sem fermento amassada com azeite e um bolinho, e colocou tudo sobre as partes gordurosas e sobre a perna direita (Lv 8,23-26).

Quanto ao peito e à perna direita, ofereceu-os com um gesto diante do SENHOR, como Moisés havia ordenado (Lv 9,21).

O sacerdote pegará um pouco do sangue da vítima de reparação e untará o lóbulo da orelha direita do purificando, bem como o polegar da mão direita e o dedão do pé direito (Lv 14,14).

Depois, com o azeite que ficou na palma da mão untará o lóbulo da orelha direita do purificando, o polegar da mão direita e o dedão do pé direito, por cima do sangue da vítima de reparação (Lv 14,17).

Depois de imolar o cordeiro do sacrifício de reparação, pegando um pouco do sangue da vítima, o aplicará sobre o lóbulo da orelha direita, sobre o dedo polegar da mão direita e sobre o dedão do pé direito do purificando (Lv 14,25) Com o azeite que tem na mão untará o lóbulo da orelha direita, o polegar da mão direita e o dedão do pé direito do purificando, no mesmo lugar onde aplicou o sangue da vítima de reparação (Lv 14,28).

Não temos registros de indagações sobre a possibilidade de, na ausência ou impedimento dos membros do lado direito, usar-se os membros do lado esquerdo do corpo humano. O lado direito surge no texto de forma natural, numa provável aceitação pacífica de uma prática cultural já enraizada, onde o rito é mero reflexo ou expressão cultural vigente. Ou seja, a narrativa não tenta impor ou provar que o lado direito é melhor do que o esquerdo – simplesmente o narra.

Do lado sacerdotal, a parte honrosa que cabe ao sacerdote é igualmente oriunda de membros do lado direito dos animais:

Dareis também ao sacerdote a coxa direita, como tributo de vossos sacrifícios de comunhão. O sacerdote aaronita que oferecer o sangue do sacrifício de comunhão e a gordura terá a coxa direita como parte (Lv 7,32.33). A carne, porém, será tua. Igualmente teus serão o peito oferecido com um gesto e a coxa direita (Nm 18,18).

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Aparentemente, o que está implícito entre o ofertante e o sacerdote é a confiança mútua que a parte ofertada corresponde rigorosamente à prescrição da lei. Ambos devem ter conhecimento prévio sobre a ana-tomia animal, a fim de não incorrerem involuntariamente em enganos tanto na dádiva como na recepção da dádiva.

Na tradição patriarcal a metáfora também está presente, como nas narrativas de bênção:

Mas Israel estendeu a mão direita e a colocou sobre a cabeça de Efraim, que era o mais moço, e a esquerda sobre a cabeça de Manassés, cruzando as mãos, embora Manassés fosse o primogênito (Gn 48,14).

José viu o pai colocando a mão direita sobre a cabeça de Efraim e ficou contrariado. Pegou a mão do pai, removendo-a da cabeça de Efraim para a de Manassés, e lhe disse: “Não é assim, meu pai! O primogênito é este! Põe a mão direita sobre a cabeça dele” (Gn 48,17-18).

Observa-se que em tais diretrizes cúlticas, não há quaisquer objeções ou inqui-rições quanto a prevalência da mão direita, orelha direita, dos polegares (mão e pé) direitos, do peito e da coxa direita. Esses elementos já fazem parte do rito. Talvez por isso Hertz (1980) insista em vincular a origem de tal prevalência do direito sobre o esquerdo à questão cultural (no caso, religiosa) e não a fatores biológicos. O direito e o esquerdo seriam reflexos da antítese existente entre o sagrado e o profano, reflexos das esferas contrastantes que existem em todo o universo. “Coisas, seres e poderes atraem ou se repelem mutuamente, incluem ou se excluem mutuamente, dependendo do fato de gravitarem em direção a um ou outro dos pólos” (HERTZ, 1980, p. 106). Na bênção patriarcal, a possibilidade da mão esquerda ser usada no proferimento da bênção é praticamente inexistente. Ainda assim, caso ocorresse, é possível que o proferimento fosse transformado não em bênção, mas em maldição ou, como no caso de Manassés, ser uma explícita hierarquização: o direito prevalece sobre o esquerdo.

O LADO DIREITO COMO POSIÇÃO HONROSA E SALVÍFICA A Revolução Francesa apresentou um quadro sugestivo sobre as concepções

da direita e da esquerda, cujas conseqüências podem ser notadas hoje. Os jacobinos tomaram lugar à esquerda do rei e os girondinos à direita.

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Pelas concepções e posturas políticas que defendiam, os dois grupos fomentaram a divisão e linguagem político-partidária em torno das três posições: centro, direita e esquerda. Os jacobinos mostravam mais simpatia com o povo e menosprezo à elite; reivindicaram maior proteção e assistência ao pobre; os girondinos mostravam mais sim-patia para com a elite, antisim-patia ao sistema de distribuição de renda, simpatia aos empresários e antipatia ao povo. Daí se tem a concepção partidária nas democracias ocidentais.

No âmbito religioso, Hertz (1980, p. 111) exemplifica com os Maori, povo nativo da Nova Zelândia, afirmando que entre eles “o lado direito é o lado sagrado, a sede dos poderes bons e criativos; o esquerdo é o lado profano, não possuindo nenhuma outra virtude, exceto [...] certos poderes perturbadores e suspeitos”. Bobbio (2001) estabelece uma série de distinções entre os dois lados, baseado no ideal de igualdade para poder diferenciar os conceitos de direita e esquerda no âmbito político. Tais posicionamentos são encontrados nas narrativas e poesia bíblicas, onde o lado direito se impõe como honroso:

Betsabéia foi até o rei Salomão para falar a respeito de Adonias. O rei levantou-se e veio a seu encontro, prostrou-se diante dela e, depois, sentou-se no trono. Puseram também um trono para a mãe do rei, a qual sentou-se à sua direita (1Rs 2,19).

Filhas de reis estão entre as tuas prediletas; a rainha está à tua direita, vestida com ouro de Ofir (Sl 45,10).

Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés (Sl 110,1).

Ainda que Salomão tenha se prostrado diante de sua mãe, a narrativa pre-cisa onde está, de fato, a preeminência: no lado direito do rei, então ocupado por Betsabéia, posição igualmente dedicada à esposa do rei. Essa posição honrosa é especialmente destacada em duas situações cruciais para a fé cristã: o lugar onde Jesus Cristo se encontra e o juízo final, vistos como alvos a serem alcançados pelos fiéis. Sobre a posição do Cristo ressurreto, afirma-se:

Jesus respondeu: “Tu o disseste. Além disso, eu vos digo que de agora em diante vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo nas nuvens do céu (Mt 26,64).

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Jesus respondeu: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo com as nuvens do céu” (Mc 14,62).

Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu e sentou-se à direita de Deus (Mc 16,19).

Mas, de agora em diante, o Filho do Homem estará sentado à direita do Deus Todo-Poderoso (Lc 22,69).

E agora, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu o Espírito Santo que fora prometido pelo Pai e o derramou, como estais vendo e ouvindo (At 2,33). Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados (At 5,31). Mas Estêvão, cheio do Espírito Santo, fitou os olhos no céu e viu a glória de Deus e Jesus, que estava à sua direita e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus (At 7,55.56).

Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressusci-tou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós (Rm 8,34). o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais (Ef 1,20).

Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus (Cl 3,1).

Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacer-dote, que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus (Hb 8,1). Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pe-cados, assentou-se à destra de Deus (Hb 10,12).

olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus (Hb 12,2). o qual, depois de ir para o céu, está à destra de Deus, ficando-lhe subor-dinados anjos, e potestades, e poderes (1Pd 3,22).

Sobre o juízo final a prevalência do direito é assim exposta:

então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo (Mt 25,34).

É comum que a interpretação sobre essa condição honrosa e salvífica expres-sada pelo lado direito seja considerada de forma literal. Dá-se então o caso de se passar de uma linguagem originalmente metafórica para

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a concepção de uma linguagem literal, com inevitáveis implicações teológicas. Ao se admitir a existência literal de um ambiente à destra, passa-se automaticamente para uma concepção material: Iahweh, que antes era Espírito, passa a ser Espírito e Corpo. O Cristo triunfante da parousia será, sob tal condição, necessariamente visível com uma forma, para que se possa identificar sem maiores dificuldades os fieis que estão à sua direita e os infiéis à esquerda. Por conseguinte, a admissão literal de um lado divino implica na própria mudança desse divino: antes Iahweh era inacessível aos olhos humanos, tanto por ser invisível como por ele mesmo determinar que não podia ser visto. Ainda assim foi possível mentalizar a sua destra! Na perspectiva cristã, facilitada pela presença corporal de Jesus, seus seguidores não tiveram maiores dificuldades em ouvi-lo falando sobre as posições honrosas e salvíficas daqueles que estiverem do seu lado direito.

O LADO DIREITO COMO GARANTIA DE SEGURANÇA, VITÓRIA, ALEGRIA E COMPROMISSO

O lado direito se sobrepõe ao esquerdo também quanto ao relacionamento com a divindade. Se por um lado se observa a supremacia do direito em termos cúlticos, escatológicos e salvíficos, de igual forma essa supremacia se configura na dimensão cotidiana, isto é, na práxis cristã. Conforme Hertz (1980, p. 116), “o rei leva os emblemas de sua realeza no lado direito, coloca à sua direita os que ele julga serem mais merecedores de receber, sem poluí-las, as emanações de seu lado direito”. No relato bíblico essas emanações vêm de diferentes formas:

O Senhor, tenho-o sempre à minha presença; estando ele à minha direita, não serei abalado (Sl 16,8).

Tu me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente (Sl 16,11).

Mostra as maravilhas da tua bondade, ó Salvador dos que à tua destra buscam refúgio dos que se levantam contra eles (Sl 17,7).

Também me deste o escudo da tua salvação, a tua direita me susteve, e a tua clemência me engrandeceu (Sl 18,35).

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santo céu com a vitoriosa força de sua destra (Sl 20,6).

A tua mão alcançará todos os teus inimigos, a tua destra apanhará os que te odeiam (Sl 21,8).

Pois não foi por sua espada que possuíram a terra, nem foi o seu braço que lhes deu vitória, e sim a tua destra, e o teu braço, e o fulgor do teu rosto, porque te agradaste deles (Sl 44,3).

E nessa majestade cavalga prosperamente, pela causa da verdade e da justiça; e a tua destra te ensinará proezas (Sl 45,4).

Como o teu nome, ó Deus, assim o teu louvor se estende até aos confins da terra; a tua destra está cheia de justiça (Sl 48,10).

Para que os teus amados sejam livres, salva com a tua destra e responde-nos (Sl 60,5).

A minha alma apega-se a ti; a tua destra me ampara (Sl 63,8).

Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita (Sl 73,23).

Por que retrais a mão, sim, a tua destra, e a conservas no teu seio? (Sl 74,11). protege o que a tua mão direita plantou, o sarmento que para ti fortale-ceste (Sl 80,15).

Seja a tua mão sobre o povo da tua destra, sobre o filho do homem que fortaleceste para ti (Sl 80,17).

O teu braço é armado de poder, forte é a tua mão, e elevada, a tua destra (Sl 89,13).

Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele tem feito maravilhas; a sua destra e o seu braço santo lhe alcançaram a vitória (Sl 98,1).

para que os teus amados sejam livres; salva com a tua destra e responde-nos (Sl 108,6).

porque ele se põe à direita do pobre, para o livrar dos que lhe julgam a alma (Sl 109,31).

Nas tendas dos justos há voz de júbilo e de salvação; a destra do Senhor faz proezas. A destra do Senhor se eleva, a destra do Senhor faz proezas (Sl 118,15.16).

Se ando em meio à tribulação, tu me refazes a vida; estendes a mão contra a ira dos meus inimigos; a tua destra me salva (Sl 138,7).

ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá (Sl 139,10). não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a minha destra fiel. Porque eu, o Senhor, teu Deus, te tomo pela tua mão direita e te digo: Não temas, que eu te ajudo (Is 41,10.13).

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Assim diz o Senhor ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações ante a sua face, e para descingir os lombos dos reis, e para abrir diante dele as portas, que não se fecharão (Is 45,1).

Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado (At 2,25). Em tais declarações há pelo menos duas posições a serem consideradas: a

destra do homem (Sl 16,8; Sl 73,23; Sl 109,31; Is 41,13; Is 45,1; At 2,25; a destra do rei: Sl 45,4) e a destra de Deus (Sl 18,35; Sl 80,15). Isso pode nos indicar a forte concepção cultural da prevalência do direito, onde a mera declaração e opção pró-destra, não importando se na perspectiva humana ou divina, já era suficiente para uma con-cepção sagrada. De fato, até o paradoxo é superado: se Deus está à direita do indivíduo, então esse indivíduo está à esquerda de Deus, sem que se tenha dado conta que o anseio é por poder se posicionar à direita de Deus!

Isso é também ratificado quando se dá a ausência da destra de Deus, como sinônimo de ausência da própria pessoa de Deus. A sinédoque é assim expressada em lamento:

No furor da sua ira, cortou toda a força de Israel; retirou a sua destra de diante do inimigo; e ardeu contra Jacó, como labareda de fogo que tudo consome em redor. Entesou o seu arco, qual inimigo; firmou a sua destra, como adversário, e destruiu tudo o que era formoso à vista; derramou o seu furor, como fogo, na tenda da filha de Sião (Lm 2,3.4).

Nesse lamento, o poeta incorpora as concepções sobre a preeminência do direito: o Senhor retirou a sua destra de diante do inimigo de Israel, porque era a sua destra quem impedia o avanço e êxito militar contra Israel; ao retirar o seu braço direito, que impedia do inimigo avançar, duas consequências imediatas emergem contra Israel: os inimigos estão sem impedimento e o próprio Senhor faz uso de sua destra contra Israel. Ou seja, o uso ou não uso da destra do Senhor passa a ter uma consideração fatal para Israel.

Observa-se também o caso de o lado direito ser invocado numa espécie de imprecação. O salmista clamou a Deus a respeito do inimigo: “Suscita contra ele um ímpio, e à sua direita esteja um acusador” (Sl 109,6). O profeta vaticina:

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Serás farto de opróbrio em vez de honra; bebe tu também e exibe a tua incircuncisão; chegará a tua vez de tomares o cálice da mão direita do Senhor, e ignomínia cairá sobre a tua glória (Hab 2,16).

À época dos profetas, as concepções positivas do lado direito parecem estar cristalizadas. O próprio Senhor faz uso do lado direito num parale-lismo. Um uso especial da metáfora fundamenta o juramento divino: Jurou o Senhor pela sua mão direita e pelo seu braço poderoso: Nunca mais darei o teu cereal por sustento aos teus inimigos, nem os estrangeiros beberão o teu vinho, fruto de tuas fadigas (Is 62,8).

TENSÕES ENTRE O DIREITO E O ESQUERDO

A questão escatológica decretada em Mt 25,34 é precedida por uma metáfora animal ilustrativa: “e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda” (Mt 25,33). O que se segue é que os cabritos são condena-dos. O sábio do Antigo Testamento já avisara: “o coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o da esquerda” (Ec 10,2). Talvez por isso a menção positiva em relação ao lado esquerdo apareça como aposto: “Então, os filhos de Israel clamaram ao Senhor, e o Senhor lhes suscitou libertador: Eúde, homem canhoto, filho de Gera, benjamita” (Jz 3,15). O entendimento do texto pode ser con-cessivo: embora fosse canhoto, Eúde foi o escolhido! De igual forma, por terem habilidades especiais com a mão esquerda, alguns homens foram escolhidos para a guerra (Jz 20,16).

A tensão entre ovelha (lado direito) e cabrito (lado esquerdo) se manifesta em sacrifícios presentes em muitas religiões, onde a presença do bode é vista majoritariamente sob a perspectiva ritual do sangue derramado. Assim também entre os judeus. Desde o Levítico o bode é a oferta pelo pecado. Poderíamos afirmar que o bode é o ícone do pecado (cf. Nm, especial-mente cap. 7 e cap. 29). A leitura que Hertz (1980, p. 118) faz dessa visível e repetida ação do lado esquerdo em situações de rito é porque O homem gostaria de esquecer os poderes sinistros que enxameiam à sua esquerda, mas não pode, pois eles se impõem à sua atenção por meio dos seus golpes mortíferos, por meio de ameaças que precisam ser arquivadas e por exigências que precisam ser satisfeitas. Parte considerável do culto religioso, e não a parte menos importante, é devotada a conter ou

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apazi-guar os seres malevolentes e raivosos, a banir ou a destruir más influências. Neste reino é a mão esquerda que prevalece: ela está diretamente ocupada com tudo que é demoníaco.

Talvez essa antiga tensão entre o direito e esquerdo justifique a prática no Brasil rural de punição às crianças que demonstravam maiores habilidades para a escrita com a mão esquerda. Essas tinham o braço esquerdo preso, a fim de se estimular o uso do direito, pois os canhotos eram associados aos demônios.

Há uma tensão de gênero entre o direito e o esquerdo.

Para alguns comentários rabínicos, o primeiro ser humano, andrógino, era masculino do lado direito e feminino do esquerdo. Os romanos acreditavam que a formação de um feto masculino ocorria quando o esperma saído do testículo direito do pai se instalava no lado direito do útero materno (FRANCO JÚNIOR, 1997, p. 13-4).

Essa tensão de gênero se manifesta na expressão cultual nas três religiões monoteístas (Judaísmo, Islamismo e Cristianismo), onde em diferen-tes ocasiões as mulheres são separadas dos homens em momentos de adoração. Do lado cristão, ainda persistem algumas comunidades de fé com separação entre homens e mulheres no momento do culto ou do rito religioso. A arquitetura islã das mesquitas separa as mulheres dos homens, e algumas sequer preveem o ingresso de mulheres. No judaís-mo, desde o segundo templo, incluindo as sinagogas, as mulheres são separadas dos homens no ambiente de culto. Sobre tal separação, uma justificativa mais conciliatória para a presença da mechitzá (divisória) na sinagoga é que esta existe mais em função do homem do que da mulher. Ou seja, que a separação é para propiciar ao homem melhor concentração para a adoração, algo já nato na mulher. Contudo, é no cristianismo que se vê uma expressão mais acentuada concernente ao tema aqui proposto: em algumas comunidades cristãs as mulheres devem ocupar o lado direito de quem entra no recinto de culto, a fim de ficarem à esquerda de quem dirige o culto. Quem estiver dirigindo ou presidindo o encontro religioso vai se referir às mulheres como os membros que são e estão do lado esquerdo.

Um polêmico aspecto médico dessa tensão foi apresentado por pesquisadores da Universidade da Califórnia, que sugeriram que os canhotos vivem

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cerca de nove anos a menos que os destros, em virtude de maior pro-babilidade de distúrbios imunológicos e neurológicos. Na hipótese de haver uma questão biológica nesse nível envolvendo os canhotos, ela se oporia à tese de Hertz, que considera o assunto sob a perspectiva eminentemente cultural. Contudo, outras pesquisas afirmam que a longevidade não está de modo algum relacionada com a opção pela esquerda ou pela direita (UM ALÍVIO..., 1991).

A tensão pode ainda ser exemplificada na versão da Bíblia-PC (Bíblia Politica-mente Correta), onde os canhotos foram contemplados e resgatados de sua posição subalterna no texto sagrado. Desta forma, onde se lia com frequência “mão direita de Deus”, passa-se a ler “mão poderosa d’Ele-d’Ela”. CONCLUSÃO

Os profusos exemplos da prevalência da mão direita na Bíblia não nos permitem concluir a respeito da origem de tal supremacia. A destra de Deus já é usada desde os primórdios como um fato positivo. Essa prevalência é transferida para o Novo Testamento e, conseqUentemen-te, incorporada no cotidiano cristão. No universo popular, as tensões entre direito e esquerdo podem ser contemporaneamente vistas na política ocidental, com ideologias partidárias supostamente de direita e de esquerda. Também, pululam histórias e expressões antigas e mo-dernas sobre as dificuldades sociais dos canhotos. Ademais, a palavra “esquerdo”, em muitos idiomas é associada com o mal, com dificulda-des ou com o diabo. Em latim, esquerdo é sinister. O mesmo padrão negativo para esquerdo se repete em várias culturas. Por outro lado, o vocábulo “destro”, da raiz grega dexter, significa hábil, próspero, e sua antonímia significa desastrado, tolo (no italiano significa também desonesto, duvidoso). O mesmo acontece entre indo-iranianos, celtas, lituanos, eslavos, albaneses, germânicos. O left do inglês tem diferentes significados como fraco, inútil, e o right é o correto, o certo (como o recht em alemão). O universalmente conhecido “copyright” ganhou uma irônica antítese dos defensores do software livre, que lançaram o copyleft (softwares que podem ser livremente usados e copiados). Hertz (1980, p. 106) afirma que “o princípio pelo qual se atribui aos

ho-mens posição e função permanece o mesmo: a polaridade social é ainda um reflexo e uma consequência da polaridade religiosa”. Na Bíblia a separação entre o social e o religioso é quase que inexistente,

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teocráticos que são o Israel bíblico e a noviça igreja cristã. E a opção pela prevalência da “mão direita” é explícita. Pela supremacia política milenar da Igreja, é possível que esse “direitismo” tenha adquirido contornos mais intensos e profundos.

A Bíblia registra pelo menos uma declaração onde os canhotos estão em condição favorável ao lado dos destros. Em relação às mãos divinas afirmou o sábio: “em sua mão direita, longos anos; em sua mão es-querda, riquezas e glória!” (Pr 3,16).

THE PREMINENCE OF THE RIGHT HAND ON THE BIBLE Abstract: the history of humanity has shown a prevalence or preeminence of

right-hand side on the left side. To the right side were given the positive connotations and to the left the negative connotations. The preeminence of right side can be seen in popular language, literature, religion, politics. Especially in the Judeo-Christian religion this preeminence is profuse: is the right hand of God who gives the victory; Jesus is at the right hand of God; the saved will be on his right at the last judgement.

Keywords: Right. Left. Cultural. Religious. Bible.

Nota

1 Para uma análise distinta das concepções políticas que levam em consideração esse quadro

clássico entre direita e esquerda: Guzzo ( 2009, p. 142).

Referências

A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Al-meida, 2. ed. revista e atualizada, 2. reimp. São Paulo: Vida, 1999.

BIBEL IN GERECHTER SPRACHE. 3. ed. Gütersloher Verlagshaus, 2006. BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. 9. ed. Brasília: Edições CNBB, 2008. BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. 2. ed. São Paulo: Edunesp, 2001.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A iconografia de Adão: autobiografia do homem me-dieval. Revista de História (FFLCH-USP), n. 136, p. 9-24, 1º. sem. 1997.

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HERTZ, Robert. A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa. Religião e Sociedade, v.6, p. 99-128, 1980.

OSÓRIO, Andréa. A geografia corporal dos espaços abertos: reflexões sobre o corpo carioca. Os Urbanitas – Revista de Antropologia Urbana, ano 2, v.2, n.1, fev.2005. Disponível em: http://www.aguaforte.com/osurbanitas2/andreaosorio2005-a.html. Acesso em: 23 jul.2008.

UM ALÍVIO para os canhotos. Veja, São Paulo, n. 1.182, p. 51, 15 maio 1991.

* Recebido: 22.09.2010.

Aprovado: 13.10.2010.

Referências

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