• Nenhum resultado encontrado

O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO BRASIL E A PROPOSTA DECOLONIAL: uma via para a educação antirracista

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO BRASIL E A PROPOSTA DECOLONIAL: uma via para a educação antirracista"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO BRASIL E A PROPOSTA DECOLONIAL:

uma via para a educação antirracista* Fernanda Miranda de Carvalho Torres1 RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar parcialmente o debate desenvolvido no Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Ensino de História da África do Colégio Pedro II acerca das dificuldades relativas à importância da afirmação da Lei nº 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras. Recuperamos os principais marcos para essa conquista no contexto educacional dos anos 2000, no âmbito da luta antirracista, e os obstáculos e reações a implementação dessa Lei nas salas de aula após a sua promulgação, que são presentes até os dias atuais. Para tanto, buscamos compreender a problemática levantada, através da perspectiva teórica da crítica decolonial, que aponta a existência de um estatuto de “colonialidade do saber” presente na formação e produção intelectual brasileira e latino-americana, enquanto um legado epistemológico do período colonial e do eurocentrismo. O que corroborou com a afirmação de um tipo de conhecimento, eurocentrado, que se impôs como único, legítimo e autorizado diante de outras formas de conhecimento presentes no mundo, resultando na exclusão dos saberes africanos e indígenas no caso do Brasil.

Palavras-Chaves: Ensino de História; História da África; Lei nº 10.639/03; Decolonialidade; educação antirracista.

Abstract: This article has as its aims to partially present the debate done in the dissertation of a course on expertise on teaching of history of Africa of the school Pedro II about the difficulties linked to the importance of the Brazilian law n°10.639/03, which claimed the teaching of Afro-Brazilian and African history and culture mandatory in the Brazilian schools. We reclaimed the main parts of this victory in the educational context of the 2000s, in the ambit of anti-racist struggle, and the obstacles and reactions against the implementation of this law in the classes, after its promulgation, which are current so far. Thus, we tried to comprehend the problematic raised through the theoretical approach of the decolonial evaluation which shows the existence of a statute of 'coloniality of the knowledge' present in the Latin American and Brazilian foundation and intelectual production as an epistemological legacy of the colonial period and of the eurocentrism. That sparked the affirmation of a certain kind of knowledge, an eurocentric one, which rose as the only one possible, legal and allowed upon the

* Este artigo é uma adaptação de parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Cultura no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da África do Colégio Pedro II (PROPGPEC-CPII), em abril de 2019.

1 Professora da escola básica na rede privada de ensino do Rio de Janeiro; Especialista em Ensino

de História da África pelo PROPGPEC do Colégio Pedro II; Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ), graduada (bacharel e licenciatura) pela mesma Universidade.

(2)

other forms of knowledge present in the world, causing the exclusion of indigenous and African knowledge in the Brazilian case.

Key words: teaching of history; history of Africa; law n°10.639/03; decolonization; anti-racist education

Uma única história cria estereótipos. O problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.

Chimamanda Adichie.

Sancionada em 09 de janeiro de 2003, a Lei nº 10.639 teve como um efeito imediato a sua publicação a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDB/96) para inclusão do artigo 26-A que determina a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas das redes de ensino pública e privada do país. No mesmo artigo, destacam-se as matérias de Educação Artística, Literatura e História do Brasil como campo privilegiado de abordagem da “cultura negra brasileira e [d]o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2003). No ano seguinte, o parecer nº. 03/2004 do Conselho Nacional de Educação (CNE), instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) nas escolas. Ao longo de fundamentação teórica, o parecer explicita a importância e a necessidade de tornar o continente africano um assunto presente em nossas salas de aula, como forma de combate ao preconceito e discriminação racial vigente no Brasil.

Em 2006, um conjunto de Orientações e ações para Educação da Relações Étnico-Raciais foram publicadas e dois anos depois, mesmo ano em que a Lei

(3)

11.645/08 foi sancionada e incluída a obrigatoriedade do ensino de História indígena -, publicou-se o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ainda na introdução, define-se como o objetivo principal do documento colaborar para que a Lei nº 10.639/03 seja cumprida, auxiliando no enfrentamento do racismo com vistas a garantir um contexto sociocultural de equidade educacional (BRASIL, 2008, p. 27).

Entretanto, decorrido o espaço de tempo entre a homologação da Lei e os dias atuais, verificamos que a 10.639/03 permanece como um “vir a ser,” no futuro, sendo severamente negligenciada e por vezes até negada por docentes que não reconhecem essa demanda social como legitima. Assim, a importância do ensino de História de África, dos saberes e práticas culturais dos povos africanos e o destaque para as suas contribuições para a cultura afro-brasileira, continuam sendo uma questão não resolvida para muitos. De acordo com Giovana Xavier, acerca do tratamento dispensado à história da população afro-brasileira nas escolas:

Engana-se quem pensa que antes da promulgação da Lei n.º 10.639/03 nada se falava a respeito da população negra nas instituições de ensino. Havia e há muito sendo feito. Entretanto, observa-se que, do ponto de vista do “currículo em ação”, existe uma tradição enraizada na cultura escolar de tratar a “história negra” como conteúdo “aditivo”. Assim, em vez de oportunidade de reconfiguração das matrizes curriculares eurocêntricas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história da África e cultura afro-brasileira e africana, não poucas vezes, são vistas com grande rejeição. A recusa de quem entende esta medida legal como impositora de “novos” conteúdos, resistindo à sua entrada nas instituições educacionais. Tal resistência é esboçada por argumentos vários. Calendário escolar “apertado”, despreparo para lidar com o assunto, falta de afinidades com os temas. Tratados em conjunto, as justificativas apontam para uma ideia distorcida da autonomia docente, que também guarda relações com a força do ideário da democracia racial em nosso país. No caso da Lei n.º 10.639/03, o predicativo “dever de todos” que acompanha as leis é reconfigurado como “direito de escolha” do professor, que – ao fechar as portas de sua sala – detém o “poder”

(4)

de decidir o que é melhor para seus alunos e alunas. E no Brasil do “encontro” das três raças [parece] não faz[er] sentido tratar a história da África e dos afro-brasileiros como campo de estudos obrigatório.

É uma questão muito delicada de ser pautada. Primeiro porque

durante várias gerações, aprendemos e ensinamos,

especialmente nas lições de história, sem maiores

questionamentos, que somos um povo mestiço. (...) Por tudo isso, friso que, para além do racismo, da folclorização e da lógica do “souvenir”, os entraves para o trabalho com reeducação das relações étnico-raciais também se relacionam à hegemonia de concepções e práticas pedagógicas conservadoras, nas quais as exigências curriculares formais são construídas negligenciando quem são e quais são as realidades em que se inserem nossas crianças e adolescentes. (XAVIER, 2016, pp. 327-28) (Grifos da autora).

Segundo os apontamentos da autora, a inserção dos conhecimentos sobre África e sua relação com o Brasil e a brasilidade perpassam um campo de disputas e tensões, os quais dizem respeito ao espelho europeu no qual nossos currículos e concepção de ensino e de história, podemos dizer, foram formulados. Há também a questão da dinâmica do espaço escolar enquanto território de diálogo e, de mesmo modo, de enfrentamentos políticos acerca daquilo que vem a ser a visão de mundo que se quer passar e quais são os referenciais socioculturais presentes na vida da maioria dos educandos.

Dessa maneira, os esforços para tornar matéria prática os saberes de e sobre África, e até mesmo acerca da cultura indígena, na maior parte das vezes, estará condicionado ao empenho dos docente envolvidos com a empreitada de uma educação antirracista e suas preocupações com a criação de metodologias de ensino para o desenvolvimento de práticas de ensino-aprendizagem que permitam educar para as relações étnico-raciais. Para Lorene Santos, isso só é alcançável em uma perspectiva de positivação da identidade negra, onde o ensino desses conteúdos, envolva além das dimensões ética e política, a dimensão epistemológica.

(5)

Isso exige dos professores uma revisão de conhecimentos anteriormente apreendidos, obrigando-os a desconstruir antigas concepções e práticas sociais e ressignificar conhecimentos e lacunas em seu processo de formação, ao mesmo tempo em que se deparam com a tarefa (…) de ensinar um novo conhecimento sobre a temática (SANTOS, 2016, p. 79).

Há, sem dúvidas, grandes barreiras no processo de desconstrução e (re)construção de temas já há muito estabelecidos. As exigências colocas pela lei de 2003 se esbarram em um conjunto de questões que perpassam desde a falta de formação até a escolha do material didático usado no estabelecimento de ensino. Ao lado disso, consideramos fundamental o empenho pessoal de cada docente em repensar os sentidos das abordagens de determinados temas e, sobretudo, ultrapassar os limites impostos pelo racismo estrutural e a negação de que os conhecimentos das populações negras, africanas ou não, tenham qualquer validade epistemológica. Um caminho para viabilizar novos sentidos ao ensino nas escolas brasileiras, segundo Lorene Santos, é “a formação continuada em cursos de pós-graduação [que] pode se tornar um momento privilegiado para ressignificar conteúdos aprendidos e mudar a postura diante da temática” (SANTOS, 2016, p. 80).

Resultado de um longo processo de lutas, a legislação atual é fruto do que Amauri Pereira denominou de “guerrilhas na educação” (PEREIRA, 2003) e das intensas mobilizações nacionais no campo da educação e nos espaços acadêmicos [que] constituíram uma verdadeira onda negra nos debates nacionais” (OLIVEIRA e LINS, 2014, p. 368). Assim, a Lei 10.639/03 acompanha um histórico de lutas que se encaminharam pelo século XX e perpassa pelo surgimento da Imprensa Negra, com os jornais A voz da raça (1933-37) e O Clarim D’Alvorada (1924-1940), da Frente Negra (FNB/1931-37), do Teatro Experimental do Negro (TEM/1944-61),

(6)

pelo Movimento Negro Unificado (MNU – fundado em 1978) e pela Conferência contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação e a Intolerância, promovida pela ONU, em Durban, na África do Sul em 2001.

Nesse contexto, ressaltamos, ainda, o Seminário “O Negro e a Educação” realizado na cidade de São Paulo no ano de 1986, do qual resultou a publicação dos Cadernos de Pesquisa nº 63, de novembro de 1987, considerado um momento marcante dessa articulação entre a ação do movimento negro com os docentes do meio acadêmico. Entre as discussões sobre livros didáticos, ensino de História da África, reflexões sobre as formas de participação do negro no Estado, trocas de experiências em torno da educação popular e discussões sobre os efeitos do racismo nas crianças negras em processo de escolarização, é simbólico desse momento a participação de importantes figuras do movimento negro no cenário nacional como Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, Joel Rufino dos Santos, Henrique Cunha Jr., Carlos Hasenbalg e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. (OLIVEIRA e LINS, 2014, p.369)

Alvo de polêmicas e oposições, a obrigatoriedade do ensino de História de África representa um avanço significativo em direção às iniciativas educacionais, voltadas para o combate ao racismo estrutural no país. Lugar, onde “as vicissitudes de ter a pele preta” fazem com que não apenas “os três séculos e meio de escravidão, mas, principalmente o processo de pós-abolição, marcado pela produção de uma cidadania de segunda classe à população negra, reafirme a importância de estudar História hoje” (XAVIER, 2016, p. 329), corroborando ainda com a importância dos estudos que visam dar conta dessa realidade, apontando problemas e enunciando estratégias de ação.

(7)

I. Racialização e poder, o histórico colonial da América

Acompanhando o processo histórico e social que levou a elaboração e decretação da Lei nº 10639/03 e, depois disso, os entraves a sua aplicação no ambiente escolar, percebemos que grande parte da dificuldade de lecionar sobre História da África, Cultura Afro-Brasileira e Africana em nossas salas de aula tem relação com as tradições intelectuais que formam nossos docentes. Mesmo com recomendações expressas quanto a necessidade de promover e estimular formação complementar para os docentes estarem aptos ao ensino desses conteúdos, o pensamento intelectual brasileiro continua, quase duas décadas depois de decretada a 10639/03, profundamente pautado em pressupostos epistemológicos europeus – interferindo e delimitando padrões acadêmicos, políticos, filosóficos e estéticos em nossa sociedade.

É preciso lembrar que a discriminação racial enquanto um determinante das relações entre brancos e negros no Brasil contemporâneo remonta ao processo histórico de hierarquização social produzida a partir de uma hierarquia racial construída sobre a afirmação da existência de supostas desigualdades biológicas entre brancos (superiores) e não-brancos (negros, pardos, indígenas – ditos inferiores). Dessa retórica racista, originou-se na modernidade, acompanhada de outros processos próprios a essa temporalidade, como a escravidão negra, a construção de um “novo mundo”, a América.

A sociedade que surgiu em um novo espaço/tempo inaugurado pelo ímpeto colonizador do europeu, resultou, portanto, de um complexo mecanismo de classificação social das gentes envolvidas na elaboração do “novo mundo”. Ao lado do velho continente europeu e em perspectiva global, o continente americano fora

(8)

a chave mestre para a inauguração de uma nova forma de poder mundial que se seguiu no tempo, através de constantes adaptações até chegar aos dias atuais sob a forma do capitalismo contemporâneo.

De acordo com Aníbal Quijano, “na América, no capitalismo mundial, colonial/moderno, os indivíduos classificam-se e são classificados segundo três linhas diferentes, embora articuladas numa estrutura global comum pela colonialidade do poder: trabalho, raça, gênero” (QUIJANO, 2009, p. 101). A articulação entre esses elementos na constituição de classes e grupos sociais, resultou em relações de poder heterogêneas, descontínuas e conflituosas onde “essas três instâncias se associam ou se dissociam em relação ao complexo exploração/dominação/conflito” (QUIJANO, 2009, p. 104), contidas na relação capital-trabalho, em torno da qual os três eixos se organizam, postulando níveis de desigualdades entre os sujeitos.

Para Quijano, a categoria gênero/sexo é possivelmente a mais antiga da história das sociedades. Contudo, a produção da categoria social “raça” teria surgido na América - a partir das diferenças fenotípicas dos indivíduos. Relativamente recente, “a sua incorporação na classificação dos indivíduos e nas relações de poder tem apenas 500 anos, começando com a América e a mundialização do padrão de poder capitalista” (2009, p. 106). Nas dinâmicas do encontro-confronto, que inauguram a América, as diferenças fenotípicas entre “vencedores” e “vencidos” foram usadas para a justificação e produção da categoria raça, atribuindo novas identidades sociais e geoculturais para os diferentes sujeitos envolvidos nas relações de poder mundial capitalista.

Nessa perspectiva a racialização das relações de poder deu legitimidade ao caráter eurocentrado, desse padrão de poder, material e intersubjetivo, onde

(9)

adjudicou-se aos dominadores/superiores ‘europeus’ o atributo de ‘raça branca’ e a todos os dominados/inferiores ‘não-europeus’, o atributo de ‘raças de cor’. A escala de gradação entre o ‘branco’ da ‘raça banca’ e cada uma das outras ‘cores’ de pele, foi assumida como uma gradação entre o superior e o inferior na classificação social ‘racial’ (QUIJANO, 2009, p. 107-08).

Ao longo do tempo e, sobretudo, no pós-abolição o racismo, decorrente do tratamento desigual, destinado aos “inferiores”, afirmou-se como um determinante das relações de poder social, o qual é quase sempre pela condição racial, considerando-se o passado escravista que conformou o surgimento da sociedade brasileira, assentada na exploração da mão de obra e do capital simbólico da população negra-africana.

No presente, a desigualdade entre brancos e negros, constitui-se como uma barreira estrutural na sociedade e tem servido para a manutenção do privilégio branco em detrimento da população negra condicionada - de maneira sistemática - a realidades de vulnerabilidade e exclusão social, política, econômica e cultural.

II. O ponto de virada, a teoria decolonial

No campo do ensino, para Luiz Fernandes Oliveira e Vera Candau, o quadro de relações historicamente desiguais e racializadas em que vivemos não compreende apenas a “problemática das relações entre educação e diferenças culturais” (2010, p. 16) - em torno do qual uma série de reflexões, estudos e pesquisas focadas nas relações étnico-raciais tem sido feitas no Brasil e na América Latina, através de pesquisadores comprometido com as lutas estabelecidas pelos movimentos diversos sociais – mas sim a conformação de uma nova sociedade.

(10)

Bem-sucedidas, essas produções tentam dar conta da construção de novas propostas pedagógicas, referenciadas culturalmente e visando “interferir de forma concreta em políticas públicas e ações governamentais” (OLIVEIRA e CAUDAU, 2010, p. 16). Ultrapassando o campo do simbólico, muitas dessas propostas alcançaram a forma de leis (como a 10639/03 e a 11.645/08), tendo significado importantes conquistas políticas e sociais dos grupos “excluídos” - expressando reconhecimento formal de suas contribuições para a formação da sociedade brasileira.

No campo intelectual, “o debate atual sobre o ensino de História coloca em evidência as demandas políticas e epistemológicas que interpelam as escolas em nossa contemporaneidade”, impondo questionamentos a professores e pesquisadores sobre os aspectos constitutivos da disciplina História e de seu fazer docente (GABRIEL, 2016, p. 21). Desse modo, não basta que nossas discussões se concentrem no direito à escola, mas sim que nos concentremos em rever o nosso fazer docente, criando propostas que visem à transformação do espaço educativo-escolar no tocante ao currículo e as relações étnico-raciais existentes no mesmo (PEREIRA, 2016, p. 54).

A proposta de uma nova escola deve ser precedida de uma virada epistêmica, orientada por epistemologias de conhecimento plurais e práticas pedagógicas interculturais, que atuem no combate às desigualdades e as formas de discriminação racial - comuns em sociedades de histórico colonial, como no caso brasileiro. Não se pode abrir mão do exercício reflexivo de revisão crítica sobre a constituição dos dispositivos de poder e controle social na modernidade, nem se deve deixar de questionar e explicitar os motivos do silenciamento e da

(11)

invisibilidade de determinados povos e determinadas culturas, tidos por periféricos e marginais em relação ao que é considerado centro, a Europa.

Nessa perspectiva, é caro a essa reflexão o trabalho do grupo Modernidade/Colonialidade e seus estudos sobre a relação entre a modernidade, a experiência colonial e o seu legado, a colonialidade, no mundo moderno e contemporâneo, uma vez que, conforme Oliveira e Candau, suas produções apresentam “potencial instigante para a reflexão sobre interculturalidade, relações étnico-raciais e educação, no contexto atual do continente latino-americano e, especificamente, no nosso país” (2010, p.16). Nessa perspectiva, salientamos que Modernidade/Colonialidade não é apenas o nome do grupo de estudos dos pesquisadores que abordam esse tema, é também um importante par conceitual que orienta os estudos e proposições das chamadas teorias decoloniais.

Apontando a realidade ainda des-colonial das sociedades latino-americanas, através do conceito de decolonialidade, os intelectuais desse grupo buscam transcender a colonialidade ativa, no presente, como um padrão mundial de poder que se manifesta em diferentes níveis da existência social. Assim, a novidade do campo de pesquisas formado por esses pesquisadores, a nosso ver, corresponde à proposição de uma nova compreensão do presente da América Latina, através da crítica à colonialidade da modernidade (MIGNOLO, 2016).

Em linhas gerais podemos afirmar que a crítica dos autores do grupo Modernidade/Colonialidade ao estatuto de colonialidade, circunscrito na modernidade, corresponde a uma série de objeções ao eurocentrismo, originado na conquista do Atlântico e no dramático e violento processo de colonização da América nos séculos XV/XVI. Diante disso, uma nova ordem social de proporções mundiais surgiu, sob o controle hegemônico do branco-europeu sobre outros povos

(12)

e culturas, inaugurando um novo tempo histórico, a partir de novos espaços terrestres e grupos sociais, com uma modernidade profundamente eurocêntrica e colonial. Como afirma Aníbal Quijano “a América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade” (2005, p.107). Para tanto, a convergência de dois processos históricos distintos, mas que se associaram naquele campo de relações determinadas foi fundamental à configuração desse novo padrão de poder. Em primeiro, a ideia de raça e o procedimento classificatório da população:

a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder (QUIJANO, 2005, p.107).

O segundo ponto desse movimento consistiu na dominação dos conquistados, por meio da articulação de “todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial” (QUIJANO, 2005, p. 107).

A construção dessa forma de controle tem seu início no contexto colonial, mas permaneceu após o fim do colonialismo sob as formas da colonialidade. Esse conceito criado por Aníbal Quijano, serve para nomear e enunciar o tipo de estrutura política, social, cultural e mental, firmada na dinâmica modernidade/colonialidade, e que, desde a mundialização europeia, engendra e atualiza relações de poder de caráter colonialista.

(13)

Tais relações se expressam e atuam através de hierarquias racializadas (colonialidade do poder), sobre os corpos (colonialidade do ser) e no conhecimento/imaginário (colonialidade do saber). Ao lado dessas três formas, Catherine Walsh acrescenta uma quarta dimensão da colonialidade que a autora intitula como “colonialidade cosmogônica”. Segundo essa autora: “tiene que ver con la fuerza vital-mágico-espiritual de la existencia de las comunidades afrodescendientes e indígenas, cada una con sus particularidades históricas” (WALSH, 2012?, p.3).

Fixada na distinção binária homem/natureza Walsh categoriza como “modernas”, “primitivas” ou “pagãs”, as relações espirituais e sagradas, numa evidente relação de hierarquização que contribui para minar as formas de dar continuidade civilizacional das comunidades indígenas e dos povos africanos em diáspora.

Es esta dimensión que permite profundizar el problema existencial ontológico, particularmente de los descendentes africanos, um problema enraizado no solo en la deshumanización del ser, sino también en la negació y destrucción de su colectividad diásporico-civilizatoria y la filosofía que es de ella, como razón y práctica de existência (WALSH, 201?, p.3).

Em sentido prático, podemos afirmar que a negação dos princípios civilizatórios dos povos africanos em diáspora e de seus descendentes, no caso brasileiro, conflui na negação de sua história anterior a escravidão e no período pós-abolição no silenciamento de suas contribuições culturais e materiais para a construção da sociedade brasileira. O que contribuiu para a manutenção do privilégio branco em nossa sociedade.

Para efeito de elucidar uma proposta de intervenção pedagógica, destacaremos acerca da colonialidade do saber e do eurocentrismo, o seguinte:

(14)

A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para além do legado de desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias. Como nos disse Walter Mignolo, o fato de os gregos terem inventado o pensamento filosófico, não quer dizer que tenham inventado O Pensamento. O pensamento está em todos os lugares onde os diferentes povos e suas culturas se desenvolveram e, assim, são múltiplas as epistemes com seus muitos mundos de vida. Há, assim, uma diversidade epistêmica que comporta todo o patrimônio da humanidade acerca da vida, das águas, da terra, do fogo, do ar, dos homens. (…) a crítica ao eurocentrismo é uma crítica à sua episteme e à sua lógica que opera por separações sucessivas e reducionismos vários. Espaço e Tempo, Natureza e Sociedade entre tantas. (…). É essa visão eurocêntrica que nos impedirá de ver que não há um lugar ativo, a Europa, e lugares passivos, a América, por exemplo. (…). O eurocentrismo tem-nos impedido de ver que, aqui, na América, continente sem-nome próprio, ao contrário da Ásia e da África que se deram seus próprios nomes, é que se desenvolveram as primeiras manufaturas modernas (sic) com seus engenhos para produzir açúcar. Esses engenhos modernos (sic) eram movidos a chibata. (PORTO-GONÇALVES, 2005, pp. 3-4).

Nesse sentido, a consciência da colonialidade do saber, nos permite recuperar a pluralidade e simultaneidade dos diferentes lugares na constituição do mundo (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 4) e, conforme defende Walsh (201?), também nos ajuda a provocar o diálogo entre as diversas epistemes presentes no mundo, por meio de uma interculturalidade crítica. O que compreende a proposta de uma prática pedagógica que é ao mesmo tempo um projeto político, social, epistemológico e ético. Um modo de pensar, sentir e agir que retome as diferenças, entre os indivíduos, em termos relacionais com seus vínculos históricos, sociais e políticos de poder. Uma pedagogia que resulte em processos e práticas sociopolíticas produtoras e transformadores, baseadas nas realidades, subjetividades, histórias e lutas, pessoais e de grupo, próprias a um mundo regido pela estrutura colonial.

(15)

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Secretária Especial de Politicas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, 2004.

Brasil. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, 2008.

GABRIEL, Carmen Teresa. Demandas, memórias e hegemonia em textos curriculares de história: uma análise sobre as estratégias discursivas de combate ao racismo na educação básica. In: XAVIER, Giovana (org). Histórias da escravidão e do pós-abolição para as

escolas. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, p. 21-34.

MIGNOLO, Walter. Colonialidade, o lado mais escuro da modernidade. In: Revista

Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, nº94, junho de 2017, p. 1-18.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes de.; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. In: Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 26, º 01, abr. 2010, p. 15-40.

___________________________; LINS, Mônica Regina Ferreira. Por uma desobediência epistêmica: sobre lutas e diretrizes curriculares antirracistas. In: Revista da ABPN, v. 6, nº 13, mar-jun 2014, pp. 356-386.

PEREIRA, Amílcar Araujo. Histórias do Movimento Negro e as lutas por educação no Brasil republicano. In: XAVIER, Gionava (org.). História da escravidão e do pós-abolição para as

escolas. Crus das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, p. 51-66.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:

PORTO-GONÇALVES, Carlos. Apresentação da edição em português. In: LANDER, Edgardo (org). Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección SurSur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005, p. 107-130.

_______________. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, pp. 73-117.

SANTOS, Lorene dos. Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e educação das Relações Étnico-Raciais: um olhar para os saberes e práticas escolares e docentes. In: XAVIER, Gionava (org.). História da escravidão e do pós-abolição para as escolas. Crus das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, p. 67-87.

TORRES, Fernanda. Iluminismo em África: (re)pensando os saberes da sala de aula. 2019. 60 f. Monografia Especialização em Ensino de História da África). Colégio Pedro II Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Cultura. Rio de Janeiro, 2019.

WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y pedagogía de-colonial: apuestas (des)de el

in-surgir, re-existir y re-vivir. (200?). Disponível em:

https://www.academia.edu/8913842/interculturalidad_crítica_y_pedagogía_de-colonial_apuestas_des_de_el_in-surgir_re-existir_y_re-vivir_leer. acessado em 2018. XAVIER, Giovana. Sobre sonhos, fronteiras e belezas da liberdade. In: XAVIER, Giovana (org). Histórias da escravidão e do pós-abolição para as escolas. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, p. 325-333.

Referências

Documentos relacionados

São por demais conhecidas as dificuldades de se incorporar a Amazônia à dinâmica de desenvolvimento nacional, ora por culpa do modelo estabelecido, ora pela falta de tecnologia ou

- Entrega direto nos câmpus (11 cidades diferentes: Bento Gonçalves, Canoas, Caxias do Sul, Erechim, Farroupilha, Feliz, Ibirubá, Osório, Porto Alegre, Rio

Segundos os dados analisados, os artigos sobre Contabilidade e Mercado de Capital, Educação e Pesquisa Contábil, Contabilidade Gerencial e Contabilidade Socioambiental

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Este estudo teve como objetivo examinar como se comportam estrategicamente as empresas da cidade de Getúlio Vargas/RS, frente ao problema empreendedor (mercado) e

Apesar do glicerol ter, também, efeito tóxico sobre a célula, ele tem sido o crioprotetor mais utilizado em protocolos de congelação do sêmen suíno (TONIOLLI

Το αν αυτό είναι αποτέλεσμα περσικής χοντροκεφαλιάς και της έπαρσης του Μιθραδάτη, που επεχείρησε να το πράξει με ένα γεωγραφικό εμπόδιο (γέφυρα σε φαράγγι) πίσω