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A obra Lute, de Carlos Zilio, como imperativo de uma geração: uma introdução à proposição de vanguarda brasileira em tempos de Regime Militar

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A obra Lute, de Carlos Zilio, como imperativo de uma geração: uma introdução à proposição de vanguarda brasileira em tempos de Regime Militar

Jessica Alessio Venceslau1

Resumo: O presente ensaio pretendeu desenvolver uma análise cruzando duas produções de

tipos distintos de Carlos Zilio - um personagem riquíssimo de oposição ao Regime Militar por ter fincado seus pés tão concretamente na arte e na política e testado os seus limites, atuando na arte engajada do período, na militância estudantil e também na armada, enquanto membro da Dissidência Comunista de Guanabara (que comporia mais tarde o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8) - a obra plástica visual Lute (Marmita) e a Declaração de princípios

básicos da nova vanguarda, ambas de 1967, entendendo-as como partes constituintes de um

ideal de vanguarda artística do período. Lute não será tomada como reflexo da Declaração..., obra textual assinada por Zilio e muitos outros, mas como parte constitutiva do universo de pensamento do artista militante, bastante comum à década de 60, onde a arte se via com importante função de participação sócio-política. Pretendeu-se articula-la a partir de dois níveis para uma interpretação histórica: o formal e o social; tomando o formal como a competência que abrange a esteticidade do visual e o social como o retraçado da história material da imagem, me atendo, especialmente, a uma releitura de suas condições de produção, pensando quais conceitos e visões de mundo desse sujeito - alocado em sua própria conjuntura - possibilitaram aquele tipo de escolha estética. Sobre a Declaração..., recebeu um olhar conectado ao seu contexto de produção, no caso como tendo sido pensada para ser o texto que acompanharia a importante exposição Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, assinada por um coletivo de artistas expoentes como propositores de uma maior liberdade de criação artística, o emprego de uma linguagem nova e uma análise crítica da realidade (como Zilio, Hélio Oiticica, Antonio Dias, Mário Pedrosa, entre outros). A

Declaração... permite a este trabalho um embasamento concreto das novas vanguardas artísticas

do período, e, evidentemente, da própria obra aqui em questão, Lute.

Palavras-chave: arte e política; vanguarda; história da arte no Brasil.

Uma marmita de alumínio é destampada. Dentro dela, um rosto moldado em resina na cor amarela. Na altura da boca, impressa a palavra Lute (anexo 1) em tinta vermelha. Seu artista plástico, Carlos Zilio.

Nascido no Rio de Janeiro em 1944, em 1962 Zilio inicia no Instituto de Belas Artes da Guanabara e, no ano seguinte, começa estudos de pintura com Iberê Camargo, que se tornará importante referência em sua produção artística. Já pós Golpe Militar, em 1965, entra em contato com a chamada Nova Figuração e assiste à histórica exposição Opinião 65, que irão influir fortemente sobre seu trabalho posterior. No ano seguinte, em 1966, ainda no início de sua carreira, participa da importante exposição carioca Opinião 66 que, em paralelo

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e bolsista CAPES.

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à paulista Propostas 66, estabeleceriam as bases estético-ideológicas para a ideia de uma possível vanguarda artística brasileira, verbalizada no manifesto de 1967 que acompanhou a célebre mostra Nova Objetividade Brasileira no MAM-Rio, a Declaração dos princípios

básicos da vanguarda, que Zilio participa na qualidade de coautor. Simultaneamente a todo

o seu envolvimento com as artes plásticas, Zilio se imbricava pela militância estudantil, tornando-se membro do Diretório Acadêmico do Instituto de Psicologia da UFRJ, no mesmo ano de 1967. Este ano foi ainda um outro marco para Zilio: começou a expor seus trabalhos artísticos com caráter político, culminando no projeto de Lute (Marmita), obra em questão neste ensaio como sendo seu esforço último em integrar arte e política e sintomática das preocupações vividas pelas artes visuais brasileiras diante do contexto que se impunha.

O cenário sócio-político vivenciado em 1967 não espanta pelo imperativo da Marmita. Nem pela escolha de um objeto tão cotidiano e popular. Não espanta, tampouco, pelo projeto do qual a obra era parte: foi pensada para ser produzida em série a ser levada à porta de fábrica, tal qual um panfleto, num ideal de comunicação com aqueles tantos que lá dentro estavam e, como Zilio, andavam assistindo a tudo o que se passava no Brasil. E muita coisa, de fato, se passava.

Agravantes políticos de 1967

Em março de 1967 entrou em vigor a sexta Constituição brasileira, que substituiu a de 1946, buscando institucionalizar e legalizar o regime militar, aumentando a influência do Poder Executivo sobre o Legislativo e Judiciário e criando uma hierarquia constitucional centralizadora. Tal constituição, aprovada por Castelo Branco em poucas semanas – o que evidencia que seu compromisso nada teve a ver com uma busca por uma Constituição democrática que privilegiasse as maiorias - incorporou boa parte das medidas arbitrárias estabelecidas pelos atos institucionais, decretos e leis que já vinham sido baixados desde 1964. De um ponto de vista jurídico, a Constituição de 1967 legalizou o regime de exceção que avançava pelo país; os militares, agora, deixavam de impor as mudanças de uma “revolução” para então apenas “cumprir normas instituídas”.

Segundo Carlos Fico (2001, p. 55), tal Constituição estendeu o foro militar aos civis nos casos de crimes contra a segurança nacional, significando que qualquer cidadão, a partir dela, teria o mesmo dever de assegurá-la, o que justificou a aprovação, logo em seguida (em

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13 de março de 1967), de uma Lei de Segurança Nacional para tipificar os crimes previstos na Constituição. “Munindo” o Estado contra o “inimigo interno” comunista ou, como se veio a saber, contra qualquer tipo de entrave à sua manutenção, a lei transformava em legislação a Doutrina de Segurança Nacional, fundamento do Estado após o golpe militar em 1964.

Coube a Castelo Branco tornar legal a noção de “guerra interna” e permitir que brasileiros civis fossem indiscriminadamente acusados de “subversivos” – segundo Fico, a “guerra interna” é base jurídica e conceitual indispensável para que a linha dura passasse da simples condição de grupo de pressão para um “sistema de segurança” com permissão para investigar, prender e interrogar, erigindo-se em polícia política. Ainda no mesmo mês, em março, sob a vigência desta nova Constituição de 1967, foi instituída também uma nova Lei de Imprensa, que atualizava a última redação feita na era Vargas, em 1934, incorporando novos elementos como a televisão e ampliando2 as restrições à liberdade de expressão aos

demais meios de comunicação.

A marmita de Zilio foi filha de uma gestação turbulenta, de um momento político onde o governo militar já se encontrava instalado e buscava construir meios para permanecer e se institucionalizar, corporificando-se através de uma nova Constituição e armando este novo “corpo” com munições mais poderosas. Acompanhando o estabelecimento do poderio do regime militar, Zilio acreditou que era hora de agir. E não estava sozinho.

O caso das artes plásticas

Segundo Artur Freitas (2013, p. 37), ainda nos anos 50 o ideário de “vanguardas” dos anos 1910 e 20 - tomadas posteriormente como “vanguardas históricas”3 - foi sendo aos poucos recuperado. Marcel Duchamp, um dos expoentes das chamadas “vanguardas

2 “Ampliando” porque a Lei de Imprensa na era Vargas já exigia das gráficas e jornais que tivessem uma matrícula no

Estado e que todos os profissionais da área preenchessem um cadastro com informações pessoais, incluindo endereço residencial.

3 Segundo Artur, no início do século 19, a arte moderna, autônoma e fechada sobre si mesma, acabou por isolar-se numa

preocupação formal que a levou para a busca de uma arte “pura”, “essencial” e “abstrata”. O radicalismo desta postura, gerou uma forma histórica de reação que veio a se tomar como vanguarda, embora o termo tenha sido de origem militar. Entendida aqui como a negação da autonomia da arte, pela recusa dos mecanismos de autoridade da instituição-arte e, acima de tudo, pela tentativa de recondução da produção artística a uma nova compreensão de sua prática, a vanguarda, exemplificada no dadaísmo, no primeiro surrealismo e na vanguarda russa posterior à Revolução de Outubro, se deixou definir, como o ataque direto às instituições culturais e a consequente proposta de uma arte dispersa na vida.

Para esse trecho e mais sobre as chamadas “vanguardas históricas”, bem como de sua retomada pelas neovanguardas brasileiras em 60, ver tópico “Vanguarda e conceitualismo”. (Freitas, 2013, p. 30)

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históricas”, foi sendo retomado por uma nova geração de artistas, ativa em meados dos anos 50.

A polarização entre esteticismo e vanguarda, evidente nos anos de 1910 e 1920, foi recolocada nos anos de 1950 e 1960. O movimento concretista, expressivo na década de 50, teve atuação marcada pela utopia do desenvolvimentismo; para ele, a arte deveria falar de seu tempo – e numa sociedade que se industrializava a passos largos, significava falar do urbano e do industrial – formando um ambiente cultural adequado à realidade de um país que acreditava na aposta da superação de “50 anos de subdesenvolvimento em 5”, no famoso plano de metas de Juscelino Kubitschek.

Se nos anos 50, com a bossa-nova, o concretismo e Brasília, havia uma cumplicidade e mesmo um otimismo na relação entre a arte e o desenvolvimento do país, já nos anos 60, por outro lado, com o agravamento progressivo do quadro brasileiro de instabilidade político-social, há uma fratura evidente nessa relação – um rompimento que leva à politização generalizada do campo da arte. Depois do golpe militar de 1964, claro, a situação se agrava ainda mais. (FREITAS, 2005, p. 1)

Em 60 o ideal da superação do desenvolvimento não havia se provado. Não só o país continuava subdesenvolvido, como a isso somou-se o novo contexto político autoritário pós-golpe, gerando um descontentamento e posicionamento crítico que se refletiu nos ideários das artes plásticas do período. Em 60, a figuração é tomada de maneira crítica, como uma alternativa possível à abstração e como aposta potente de comunicação entre o artista e o público, uma vez que possibilitaria uma compreensão mais “imediata” de seu conteúdo. É significativo, portanto, que uma arte que se pretendia atuante politicamente, entendendo-se como parte de um coro maior de oposição ao autoritarismo político dos anos 60, apostasse em uma linguagem artística que permitisse a veiculação de críticas políticas “compreensíveis” pelo público ao qual seriam entregues como convites à ação e reflexão.

A “vanguarda nacional”

Entre 1965 e 1967, a noção de uma “vanguarda nacional”, preocupada em manifestar-se publicamente sobre os problemas da “nação”, é um projeto efetivo que se manifesta numa série de exposições coletivas ocorridas no Rio de Janeiro e em São Paulo. A mostra Opinião 65, segundo Artur Freitas (2004, p. 79), foi a primeira grande manifestação coletiva brasileira com intenções declaradas de “vanguarda”, reunindo artistas de São Paulo, Rio de Janeiro e Paris.

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Integrando as comemorações do IV Centenário da cidade do Rio de Janeiro, a mostra

Opinião 65 ocupa o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, entre 12 de

agosto e 12 de setembro de 1965, e reúne vinte e nove artistas - treze europeus e dezesseis brasileiros. A ideia central dos organizadores era estabelecer um contraponto entre a produção nacional e estrangeira - de modo a avaliar o grau de atualização da arte brasileira - a partir das pesquisas recentes em torno das novas figurações. O retorno à figuração se cristaliza na mostra a partir da chamada Nova Figuração que, segundo Carlos Zilio (2008, p. 17), antecede alguns movimentos culturais que procederiam de maneira semelhante, como a música popular brasileira, e tinha três características principais: primeiro, buscava compreender que a presença da cultura de massa era extremamente importante na visualidade contemporânea, sendo uma equivalência brasileira da pop art; segundo, tentava mediar a cultura de massa e a erudita e, em terceiro, inseria nisso a preocupação política. Zilio, como muitos artistas do período, se marcaria profundamente a partir desse contato com as obras da Nova Figuração na mostra, embora não tenha nela exposto nenhum trabalho:

(...) em 65 já começava a ocorrer uma ruptura com o ensino do Iberê, que foi ditada por duas coisas: primeiro a exposição Nova Figuração dos argentinos no Museu de Arte Moderna. Isso foi determinante. Eu comecei a fazer um trabalho muito baseado no trabalho deles, que não tinha mais nada a ver com o Iberê, e não tinha mais contato com ninguém. (...) Acontece então a Opinião em 65, eu juntei as coisas. A Opinião foi realmente uma revelação para mim. Eu estava aquém da Opinião. (ZILIO; SEVERO; 1996, p. 15).

É na Opinião 65, de acordo com Paulo Sérgio Duarte (apud FREITAS, 2004, p. 80), “que pela primeira vez, nas artes plásticas, a questão política e crítica social apareciam integradas às novas linguagens e não associados aos ‘realismos’, como eram frequentemente tratadas pelos artistas ‘oficiais’ da esquerda”. Nela, dividiam espaço distintos temas políticos, figurações e proposições de vanguarda, “numa interessante síntese do período” (Ibidem, idem).

A Opinião 65 pode ser medida pela recepção crítica da época (como por exemplo nos textos de Ferreira Gullar e Mário Pedrosa) e por exposições subsequentes, consideradas seus desdobramentos diretos, como são os casos de Propostas 65, que ocorre em São Paulo, e no ano seguinte, em 1966, com Opinião 66, no Rio de Janeiro, e Proposta 66, em São Paulo - ambas continuações das edições anteriores. A Opinião 66, no MAM/RJ, introduziu novos nomes como o do próprio Zílio e de Anna Maria Maiolino e contou com a participação de Lygia Clark.

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Propostas 66, na FAAP, se tornaria um importante fórum de discussões sobre o novo

realismo nas artes, com a intervenção de críticos e artistas. Através da análise de temas como “Conceituação da arte nas condições históricas atuais do país”, “Arte de vanguarda e organização da cultura no Brasil” e “Situação da vanguarda no Brasil”, buscou-se, em

Propostas 66, forjar a noção de uma vanguarda “tipicamente brasileira”, politicamente

engajada e atuante, relacionada à realidade do país (COUTO, 2007, p. 6). A partir deste contexto e das discussões nele surgidas, estabelecem-se as bases estético-ideológicas para a ideia de uma possível vanguarda brasileira.

Essa intenção de traçar o perfil da jovem vanguarda brasileira é reafirmada no texto de Hélio Oiticica para a mostra Nova Objetividade Brasileira, o Esquema Geral da Nova

Objetividade Brasileira - mostra e texto de 1967 - cujas formulações são, segundo o próprio

autor, “do estado típico da arte brasileira de vanguarda atual”4:

1-vontade construtiva geral; 2-tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete; 3-participação do espectador (corporal, tátil, visual, semântica, etc.), 4-abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5-tendência para proposições coletivas e consequente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século na arte de hoje (tendência esta que pode ser englobada no conceito de “arte pós-moderna” de Mário Pedrosa); 6-ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte.5

O radicalismo de certas tendências e os ideários de comunicabilidade e participação do público, tão caros ao período, aparece sintetizado de maneira programática no manifesto

Declaração dos princípios básicos da vanguarda, também de 1967. Segundo Artur Freitas

(2004, p. 83) o manifesto trazia em seus signatários a confluência entre a geração neoconcreta (Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape) e os jovens artistas e críticos das novas vanguardas (Zilio, Carlos Vergara, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Frederico Morais e outros). O manifesto defendia a liberdade de criação, o emprego de uma linguagem nova, a análise crítica da realidade e em suas próprias palavras "utilização de meios capazes de reduzir à máxima objetividade o subjetivismo", privilegiando o objeto enquanto expressão artística, numa superação da obra de cavalete, contemplativa. Junto ao manifesto, surgiu a

4 Manifesto, na íntegra, disponível digitalizado em:

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=136&tipo=2 Acessado a última vez no dia 19/05/2014.

5 Embora tais princípios sejam citados para falar do que ocorria nas artes do período, Couto chama a atenção para o fato

de que o texto de Oiticica diz mais respeito à vanguarda carioca (e em parte à paulista) do que à arte brasileira em âmbito nacional, a se notar, por exemplo, pelos artistas citados pelo autor em seu manifesto, em sua maioria cariocas e alguns poucos paulistas (Couto, 2007, p. 7).

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ideia de uma exposição nacional de vanguarda, que ocorreu no mesmo ano, a Nova

Objetividade Brasileira.

Realizada em abril de 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Zilio dela participou com duas obras produzidas no mesmo ano: Reina Tranquilidade e

Visão Total. Segundo ele, a mostra trazia importantes novidades, como o fato de terem sido

os próprios artistas que organizaram a exposição e os textos de seu catálogo, mostrando que haviam tomado para si a direção organizacional, conceitual e política do evento (ZILIO, 2008, p. 17)6. Nova Objetividade Brasileira foi a última grande manifestação coletiva propositora da década, tendo sido impulsionada tanto pela vontade de demarcar um território de expressão radical das linguagens, quanto pela aspiração de rebeldia e crítica ao regime militar, criando as bases do desenvolvimento plural do gesto transgressor.

Lute: o imperativo de uma geração

A vontade de combate e comunicabilidade, prevista pela Declaração dos princípios

básicos da vanguarda e pelo Esquema geral da Nova Objetividade Brasileira e posta em

prática pela mostra Nova Objetividade Brasileira pode ser condensada num olhar para a obra

Lute, de Zilio, também de 1967. O artista, participante da construção das ideias que

fundamentaram a mostra e da produção dos textos-manifestos que objetivaram tais proposições artísticas, evidencia no projeto de Lute o quão submerso se encontrava nos debates do universo artístico do período.

Manifesto sintomático das novas proposições de vanguarda do período, afirmava a

Declaração... em seu 1º item: “(...) [Uma arte de vanguarda ocorre] com a intenção de alterar

ou contribuir para que se alterem as condições de passividade ou estagnação”7 (ZILIO; SEVERO; 1996, p. 39). A obra, embora tenha ficado restrita a alguns exemplares, foi projetada para ser reproduzida aos milhares e distribuída em portas de fábrica. Em consonância com os ideais da nova vanguarda brasileira, o projeto e a obra confluíam com

6 Interessante notar nesta entrevista de Zilio, como as artes estavam imbricadas neste momento. Zilio lembra, a certa

altura, que a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, montada na mostra Nova Objetividade Brasileira, repercutiria no conhecido movimento musical chamado Tropicalismo, surgido posteriormente. Não à toa, existem fotos divulgadas de Caetano Veloso vestindo os Parangolés de Oiticica, em 1967 (anexo 2).

7 A Declaração dos princípios básicos da vanguarda encontra-se disponível na íntegra no catálogo de Carlos Zilio (ZILIO;

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diversas formulações do Esquema... e da Declaração... . A 1ª formulação do Esquema..., que dizia respeito à “Vontade construtiva geral”, se propunha a:

(...) procurar pelas características nossas, latentes e de certo modo em desenvolvimento, objetivar um estado criador geral, a que se chamaria de vanguarda brasileira, numa solidificação cultural (mesmo que para isto sejam usados métodos especificamente anticulturais); erguer objetivamente dos esforços criadores individuais, os itens principais desses mesmos esforços, numa tentativa de agrupá-las culturalmente.

A escolha do suporte de Lute, uma marmita, é indicativa da busca por um objeto bastante característico e comum na cultura brasileira, erguido “objetivamente dos esforços criadores individuais” de Zilio numa tentativa de reincorpora-lo na sociedade. Um objeto, obedecendo à “tendência à obra” apontada pela 2ª formulação do Esquema..., encontra a seguinte justificativa na Declaração... :

Quando ocorre uma manifestação da vanguarda, surge uma relação entre a realidade do artista e o ambiente em que vive: seu projeto se fundamenta na liberdade de ser, e em sua execução busca superar as condições paralisantes dessa liberdade. Esse exercício necessita uma linguagem nova capaz de entrar em consonância com o desenvolvimento dos acontecimentos (...) (ZILIO; SEVERO; 1996, p. 39).

O suporte escolhido, a marmita, apesar de comum aos brasileiros, é bastante incomum enquanto “obra artística” e refletia o apelo do artista pelo uso das “novas linguagens” capazes de alcançar o “novo” público. Se o artista pretendia chegar às massas para a transformação social almejada, deveria fazer através de símbolos que fossem comuns e compreensíveis a essas pessoas, e nada poderia ser mais familiar a um operário como uma marmita. Os “operários” não foram escolhidos em vão: somados, representam nada menos que a massa de trabalhadores deste país. São aqueles que superadas suas fragmentações, compõem, no limite, a nação brasileira.

A ideia de reproduzir a obra aos milhares faz parte da pretensão do artista em superar a limitação de sua própria individualidade – e de qualquer indivíduo - apelando para o convite à coletividade. Conforme a 3ª formulação do Esquema... e, abaixo dele, o 5º princípio da Declaração... :

Tanto as experiências individualizadas como as de caráter coletivo tendem a proposições cada vez mais abertas no sentido dessa participação, inclusive as que tendem a dar ao indivíduo a oportunidade de “criar” a sua obra. A preocupação é também da produção em série de obras (seria o sentido lúdico elevado ao máximo). Nosso projeto – suficientemente diversificado para que cada integrante do movimento use toda a experiência acumulada – caminha no sentido de integrar a atividade criadora na coletividade, opondo-se inequivocamente a todo isolacionismo dúbio e misterioso, ao naturalismo ingênuo e às insinuações da alienação cultural. (Zilio, p. 39)

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A 4ª formulação do Esquema... também se refletiu no imperativo de Lute, bem como o 8º princípio da Declaração..., respectivamente:

Não compete ao artista tratar de modificações no campo estético como se fora este uma segunda natureza, um objeto em si, mas sim de procurar, pela participação total, erguer os alicerces de uma totalidade cultural, operando transformações profundas na consciência do homem, que de espectador passivo dos acontecimentos passaria a agir sobre eles usando os meios que lhe coubessem: a revolta, o protesto, o trabalho construtivo para atingir a essa transformação, etc. Nosso movimento, além de dar um sentido cultural ao trabalho criador, adotará todos os métodos de comunicação com o público, do jornal ao debate, da rua ao parque, do salão à fábrica, do panfleto ao cinema, do transistor à televisão.

Zilio buscava a “participação total” com o projeto, não a participação contemplativa ou apenas de manuseio: Lute era um chamado ao ato. Pretendia retirar o trabalhador de sua passividade rotineira e sugado pela alienação do trabalho, apostando na alteração de sua consciência. No entanto, as limitações práticas – e contraditórias - destas proposições artísticas também são apontadas pela 6º formulação do Esquema...:

No Brasil o papel toma a seguinte configuração: como, num país subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justifica-la, não como uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Coma situar aí a atividade do artista? O problema poderia ser enfrentado com uma outra pergunta: para quem faz o artista sua obra? Vê-se, pois, que sente esse artista uma necessidade maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar algo que para ele é fundamental, mas essa comunicação teria que se dar em grande escala, não numa elite reduzida a “experts” mas até contra essa elite, com a proposição de obras não acabadas, “abertas”.

Assumindo sua posição de “antiarte”, como apontada acima na 6ª e última formulação do Esquema..., é que Lute encontrou seu próprio limite. Pensar num objeto que pudesse ser “familiar” a este “povo” brasileiro, não fazia, contudo, com que ele fosse compreendido. A comunicação com o público que não fosse uma “elite reduzida a experts” não era garantida pela mera escolha de um tipo de suporte reconhecido nacionalmente. Será que um operário, na saída de seu trabalho, compreenderia a intenção do artista? Mais do que disto: será que este operário, ainda que compreendesse a intenção e o convite, se sentiria tocado? Qual o significado de um “Lute” estampado dentro de uma marmita para este homem ou esta mulher? Ainda que o “povo brasileiro” fosse o destinatário desta obra, será que a obra, de fato, se comunicaria com essas pessoas ou era uma comunicação entre Zilio e os outros artistas, seus pares?

Lute estava em dia com as proposições do universo artístico de seu tempo mas não conseguiu superar seu conflito: sequer teve seu projeto executado, ficando restrita a realização de alguns exemplares:

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Sim, fiz essa marmita para servir como uma espécie de panfleto nas portas de fábrica. Acontece que quando fiz isso, pensei: bom... É melhor ir para a porta de fábrica e fazer comício. Senti que estava em um momento em que as fronteiras entre arte e política haviam sido rompidas. Logo depois, começa 1968 e cresce a mobilização no meio cultural e no meio estudantil. Nesse ano, achei que a arte estava intermediando alguma coisa minha que não precisava mais de intermediários. O meu problema passou a ser fazer política e não estetizá-la. (ZILIO; SEVERO; 1996, p. 15).

E neste trecho aponta o desenvolvimento de seu conflito:

Na ocasião da Nova Objetividade e da Opinião, essas questões do público, da arte estetizar a vida – o velho projeto construtivo – eles estavam levando adiante. Eu achava que isso era irrisório. Era impotente. Quer dizer, lembro-me claramente de uma reunião para tratar do boicote da Bienal de São Paulo onde havia uma proposta da Lygia Clark que era a de fazer um happening, como se dizia, em frente à Bienal etc. Eu dizia: ‘Não, isso não leva a nada...’ Então, me perguntaram: ‘O quê que você quer? Fazer guerrilha? ’ Eu parei e disse: ‘É! Fazer guerrilha’. (Ibidem, Idem).

Zilio, apesar de paradigmático dessa geração artística de 60, o foi apenas no universo artístico. A obra Lute marca o início de uma experiência que o coloca entre um dos únicos artistas plásticos brasileiros a se envolver também com a militância armada8. Duplamente envolvido com a política – em 1967, ano de Lute, torna-se membro do Diretório Acadêmico de Psicologia da UFRJ. Curiosamente, quando alcança o máximo de politização em sua produção artística, a arte lhe parece irrisória quanto ao seu eventual potencial transformador e político. Os pés, antes tão bem cravados e divididos entre o universo da arte e da política, agora pareciam não ter dúvidas de que era hora de escolher um lado. E Zilio resolveu seu impasse, segundo ele, pulando com os dois pés do lado da política.

Depois da Marmita, Zilio interrompeu sua produção artística e, por volta de 1968 passou a militar mais ativamente na Dissidência Comunista da Guanabara, grupo de esquerda armada que comporia mais tarde o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8. Zílio só voltaria a ter contato com o universo artístico no hospital, em 1970, já preso, depois de ter sido ferido em ação. Mas isso é papo para outra hora.

8 Segundo Ridenti, a presença de artistas nas organizações de esquerda era ínfima, 24 em 3.698 denunciados com

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Referências bibliográficas

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ZÍLIO, Carlos. Uma pulsante alma de artista. Jornal da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, ano 3, n. 34, p. 15-18, maio de 2008.

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Anexos

Anexo 1

Carlos Zilio Lute (marmita), 1967

Serigrafia sobre filme plástico e resina plástica acondicionados em marmita de alumínio [apropriação] 5,8 x 10,5 x 17,5 cm

Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo (SP) Reprodução Fotográfica Romulo Fialdini

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Anexo 2

Hélio Oiticica Parangolé P1, Capa 1, 1964

plástico e tecido 150 x 110 x 20 cm

Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ) Reprodução fotográfica autoria desconhecida

Referências

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