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IRMÃOS DE FÉ E DE ARMAS: DEVOÇÕES E RITOS FÚNEBRES DA IRMANDADE DE SANTA CRUZ DOS MILITARES

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IRMÃOS DE FÉ E DE ARMAS: DEVOÇÕES E RITOS FÚNEBRES DA IRMANDADE DE SANTA CRUZ DOS MILITARES

Adriane Piovezan (FIES) Resumo

Uma das grandes preocupações entre os homens envolvidos em guerras e conflitos armados é com o destino de seus corpos. Entre os militares do século XVIII garantir um local de sepultura era essencial. A Irmandade de Santa Cruz dos Militares tem sua origem ligada à essa angústia por parte dessa categoria. A construção da primeira igreja no Rio de Janeiro remonta ao ano de 1780. Diversas disputas de poder entre os religiosos nesse período são extintas com a proteção da Irmandade por parte da Família Real Portuguesa. Mas é no Império que a Irmandade atinge seu prestígio máximo, tendo como protetor e frequentador de seus ofícios o próprio Imperador. A dinâmica das práticas devocionais e dos rituais fúnebres demonstram, entre outros aspectos, características dessa instituição privada que permanece até os dias de hoje. Em diversos momentos da documentação, a questão de possuir um cemitério próprio aparece como um dos objetivos entre os irmãos. Entretanto, isso jamais se realizou. As transformações provocadas pelas mudanças nas práticas de enterramento ao longo do século XIX aparecem nos compromissos da instituição. Em diversos momentos era dever dar sepultura ao irmão que não tivesse estabelecido em seu testamento destino exato para seus restos mortais. Embora essa atribuição não tenha permanecido nos compromissos da Irmandade, a garantia de pompa nos funerais e de sufrágios pelas almas foi algo respeitado pela mesma. Essa é ainda uma característica marcante da Irmandade. Enquanto os sufrágios pelas almas continuam presentes, as devoções ligadas à Irmandade desapareceram. Tais aspectos problematizam a questão da religiosidade entre esse grupo específico, no caso os militares, indicando que as cerimônias pela alma dos irmãos de arma mortos ainda é um elemento de afirmação identitária e um dos alicerces da permanência dessa Irmandade no século XXI.

Palavras-chave: Irmandade; morte; militares.

A chamada empresa colonial era motivada por diversos aspectos econômicos. Além destes, a ideia de evangelização do novo mundo também era um estímulo para a colonização das Américas.

A presença da Igreja Católica se fazia presente em todas as iniciativas da Coroa Portuguesa na América. Na forma do Padroado, em que cabia ao Reino de Portugal diversos deveres como o pagamento e indicação de sacerdotes, a

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instituição do Padroado criaria em 1532 a chamada Mesa de Consciência e Ordens. Uma das principais funções dessa organização era a administração dos Defuntos e Ausentes daqueles que morriam em além-mar.

As associações de leigos foram pesquisadas em diversos trabalhos acadêmicos, principalmente no final do século XX e início do XXI. Essas redes de solidariedade eram comuns em Portugal e foram disseminadas nas colônias portuguesas a partir do século XVI. Esse apoio espiritual e material que remonta ao período medieval consolidou-se na época moderna e mais especificamente na ocupação dos espaços coloniais por Portugal.

A preocupação do destino final do corpo morto era constante nesse período da história e a criação da Irmandade de Santa Cruz dos Militares está diretamente ligada à necessidade de local para o morto na colônia. Sérgio Buarque de Holanda ao escrever sobre a organização do Exército Brasileiro indica sua origem nas primeiras tropas que vieram com Tomé de Souza para defender o Rio de Janeiro dos ataques dos franceses1.

Esses militares estavam longe de casa, arriscando suas vidas e sem garantias de suporte caso a viagem ou a batalha não tivesse êxito. Criar laços de sociabilidades era essencial para esses estrangeiros na Colônia.

Um misto de portugueses, mercenários e locais formava o exército nesse período. Os recursos para pagamento de tais serviços não era prioridade, por isso por muito tempo tais tropas eram irregulares e mesmo seu fardamento era improvisado.

É nesse contexto que a Irmandade de Santa Cruz dos Militares é criada. Desde a primeira leva de militares para a colônia com Tomé de Sousa a preocupação de dar uma sepultura digna ao militar a serviço da Coroa nas colônias era constante entre os soldados. Outros fatores como ajuda financeira em certas ocasiões e compartilhamento de devoções religiosas também contribuíam para a organização dessas confrarias no século XVI.2

1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A organização do Exército Brasileiro In: História Geral da Civilização

Brasileira II – O Brasil Monárquico. São Paulo: Difel, 1985, p. 255.

2 NASCIMENTO, Mara. Irmandades Leigas em Porto Alegre: Práticas funerárias e experiência urbana

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Na história oficial da Irmandade de Santa Cruz dos Militares consta que sua fundação ocorreu no dia 31 de julho de 1802. Entretanto a existência da Igreja é bem posterior. Já em 1611 onde se localizava a Igreja era um Forte de Santa Cruz, construído por Martim de Sá, o então governador da cidade do Rio de Janeiro. A geografia da cidade era outra nesse período. A fortificação ficava muito próxima do mar, mas já em 1623 as ruínas da edificação, afastadas das águas, foram solicitadas pelos soldados para o ainda governador do Rio para a edificação de uma capela que teria como principal função o sepultamento desses homens.

Somente em 1628 tal intento chegou de fato a ser alcançado. A Irmandade Religiosa então é fundada com a invocação de Santa Vera Cruz e com a divisão das despesas entre oficiais superiores, oficiais subalternos e soldados.

Com poucos recursos a Irmandade de Santa Cruz dos Militares dividia algumas despesas com os comerciantes e navegantes do Rio de Janeiro. Devotos de São Pedro Gonçalves, estes necessitavam de uma capela para festejar o Santo e assim “alugavam” o espaço na capela da Irmandade.

Diversos conflitos transcorreram até a consolidação da Irmandade. De um lado a falta de uma tropa regular, que pudesse de fato fornecer irmãos para a organização e de outro lado disputas no âmbito religioso na cidade.

Exemplo disso é a utilização da capela enquanto matriz, quando da ruína que tomou conta da Igreja de São Sebastião situada no Morro do Castelo. O padroeiro da cidade estaria sem local de culto, os irmãos de Santa Cruz acolheram a imagem nesse momento. No entanto, essa concessão da igreja para tais padres foi motivo de arrependimento dos irmãos militares conforme relato nos seus compromissos3.

O primeiro compromisso da Irmandade aparece com a data de 2 de julho de 1700. Como juiz da Irmandade o governador do Rio de Janeiro o general Arthur de Sá Menezes. Já em 1723 foi concedida à Irmandade por Dom João V toda a extensão de terra do local da capela até onde o mar “abandonasse”.

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Dessa forma, a Irmandade conseguiu diversos terrenos que foram essenciais para sua consolidação enquanto instituição durante o século XIX.

Novamente em 1733 ela é requisitada como sede para Sé da Cidade, tendo inclusive seu nome substituído e inserido um painel com a Imagem de São Sebastião em seu altar. Essa atitude gerou muita polêmica, tendo inclusive, a imagem sido trazida na madrugada do dia 23 de fevereiro de 1734, ou seja, ato que não tinha o respaldo necessário e feito às escuras.

Novamente uma das questões fundamentais para a instalação da Irmandade estava ameaçada. Os padres começaram a tomar conta das sepulturas destinadas aos militares na capela4. Nesse conflito que durou 3 anos,

recorreu-se novamente ao Rei para que a Capela fosse devolvida aos militares. Em 1737 a transferência da catedral do Rio de Janeiro é feita para a Igreja do Rosário, mas os padres teriam deixado a Capela de Santa Cruz destruída.

A tentativa de reconstrução era inviável. Nova edificação foi então realizada, com a tentativa frustrada de divisão das despesas com os devotos de S. Pedro Gonçalves. A partir de outras doações e da negociação de alguns terrenos são arrecadados recursos para a construção de uma nova Igreja.

Uma nova organização das chamadas Irmandades é imposta pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Obra iniciada em 1707, apenas em 1719 é de fato impressa em Lisboa.

Entre 1763 e 1767 a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro trouxe também maior organização das tropas militares. Ainda que mal armadas e mal pagas, com as determinações do Marquês de Pombal inicia-se uma tentativa de profissionalização das tropas.

Provavelmente esse fato deve ter contribuído para que em 1780 se iniciasse a construção de uma nova igreja. São Pedro Gonçalves foi acolhido como santo de devoção pela irmandade. Sua inauguração, entretanto, só ocorreria com a mudança da Família Real para o Brasil e a Igreja hoje existente foi concluída em 1811.

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Nesse nova período a Irmandade de Santa Cruz dos Militares encontra um novo patamar de influência e prosperidade. Com a vinda da Família Real em 1808, a colônia passa a ser Reino de Portugal. Com essa nova condição há uma reorganização das forças militares, com novos regimentos e profissionalização das tropas existentes.

De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, o recrutamento das praças abrangia recrutas alistados à força5. Entretanto, com o retorno de D João VI para

Portugal, Dom Pedro procura mais uma vez profissionalizar as forças militares. Tais aspectos influenciam diretamente no número de irmãos que ingressam na Irmandade de Santa Cruz dos Militares. Com a Independência essa relação fica mais evidente. A criação de uma Guarda Cívica para o patrulhamento das costas e a preferência por nascidos no Brasil para os cargos de oficiais das forças armadas, permite um maior prestígio aos militares residentes na Corte.

No período regencial, a reestruturação do Exército torna-se prioridade novamente. Inúmeras unidades foram excluídas. Assistiu-se assim, a episódios bizarros como a existência de algumas unidades de oficiais-soldados. Ou seja, eliminaram os soldados, mas os oficiais permaneciam ligados à força. Tal aspecto pode ser comprovado na existência de um maior número de oficiais entre os irmãos de Santa Cruz dos Militares.

A jóia exigida para ingresso estava ligada na grande maioria das vezes ao valor do soldo do militar. A entrada na Irmandade, além do critério essencial que era ser católico, se fazia pelo pagamento da jóia. Ao longo dos anos algumas modificações são realizadas, como o parcelamento da mesma. A idade de ingresso na Irmandade aumentava a jóia, isso porque a procura pela acolhida na associação muitas vezes ocorria pela oferta de pensão à viúvas e órfãos. Além é claro, dos rituais fúnebres, jamais negligenciados.

No quesito local para sepultamento encontramos transformações ao longo da documentação da Irmandade. Se em sua instalação já existiam disputas pelos locais de sepultura, com as políticas de laicização dos cemitérios do Rio de Janeiro ao longo do século XIX essa pendência é posta em novo patamar.

5 HOLANDA, Sérgio Buarque, Op. Cit. p 270

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Nos compromissos da metade do século XIX aparece o amparo ao irmão morto a partir de missas, de corpo presente, de sétimo dia, de um mês, no geral pelas almas, a encomendação do corpo e algo representativo que é a observação que enquanto a Irmandade não possuir um cemitério próprio, os sacerdotes contratados farão os rituais fúnebres na sepultura familiar do defunto.

Essas passagens demonstram a intenção, jamais concluída de possuir um cemitério próprio, ou um mausoléu personalizado em um cemitério existente. Essa questão sempre foi dramática para a Irmandade, pois por exemplo, um de seus grandes provedores e figura emblemática como o Duque de Caxias foi enterrado numa sepultura familiar.

A Irmandade em seus compromissos6 define que os aptos ao ingresso na

confraria sejam residentes no Rio de Janeiro. Mesmo que eles mudem de cidade, prática comum entre militares em serviço, podem permanecer na Irmandande, contanto que efetuem os pagamentos.

A partir de 1821 alguns jornais publicam notícias da Irmandade e mesmo seus compromissos. Tal evidência comprova a tendência no período de conferência das receitas das Irmandades como um todo. Segundo Antonia Aparecida Quintão tal documentação ajudaria a entender o nível de controle eclesiástico de cada Irmandade7.Mesmo com a distinção das categorias de

confrarias eclesiásticas e seculares, as irmandades deviam submissão às autoridades do clero. Mesmo que em 1754 a Mesa de Consciência e Ordens tenha eliminado tais obrigações, já que foi adotado o princípio que eram associações de leigos, esse costume permaneceu.

A ideia de prestigio do pertencimento à Irmandade de Santa Cruz dos Militares aparece principalmente em seus anúncios nos periódicos da época. A presença do Imperador agregava valor aos festejos da Irmandade. Tal notícia merecia destaque nos anúncios feitos pela confraria.

6 No arquivo existente na própria Irmandade de Santa Cruz dos Militares os primeiros livros de

compromissos datam do ano de 1823. A documentação anterior é inexistente. Um dos fatores que pode explicar essa ausência é o incêndio que destruiu parte do edifício no início do século XX.

7 QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades In: POEL, Francisco van der. Dicionário de Religiosidade

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Com um catolicismo secular, nas palavras de Riolando Azzi8, as

irmandades no período colonial tiveram enorme destaque na sociedade. O caso específico da Irmandade de Santa Cruz dos Militares reforça esse panorama em que os compromissos e sua atuação é garantida pelo poder real que em alguns momentos conflitam com o poder eclesiástico. Dependentes do padroado régio, tais confrarias eram subordinadas ao governo da metrópole. Com a presença da Corte Portuguesa no Brasil, a Irmandade de Santa Cruz dos Militares prospera imensamente e consolida sua identidade religiosa. A salvação da alma e a ajuda mútua entre os irmãos nesse contexto está aliada ao prestígio de pertencimento dessa associação leiga.

Inúmeros conflitos podem ser salientados nessa temática. Uma Irmandade leiga e suas disputas com as normas eclesiásticas, o prestígio imperial que usufruía e a flutuação de seu público alvo, já que os militares eram transferidos ou em combate se distanciavam da instituição, etc. Tais aspectos enfatizam a riqueza existente a partir da exploração das fontes disponíveis da Irmandade e a problemática de sua permanência nos dias atuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÉS, Phillippe. Sobre a história da morte no Ocidente: desde a Idade Média. Portugal: Teorema, 1989.

AZZI, Riolando. O episcopado do Brasil frente ao catolicismo popular. São Paulo: Vozes, 1977.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. 3. ed. trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.vol 1.

COUTO, Edilece Souza. Viver e morrer entre irmãos: as irmandades e ordens terceiras de Salvador/BA. In: Revista Brasileira de História das Religiões.

ANPUHM n. XVI, n.18, v.6, Jan 2014. Disponível em:

http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/22831/12832

Acesso 27/06/2016.

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MARTINS, William de Souza. Membros do Corpo Místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (1700-1822). São Paulo: EDUSP, 2009.

MORAES, Juliana de Melo. Viver em Penitência: os irmãos terceiros franciscanos e suas associações, Braga e São Paulo (1672-1822) (Tese de Doutorado) Universidade do Minho, 2009.

NASCIMENTO, Mara. Irmandades Leigas em Porto Alegre: Práticas funerárias e experiência urbana séculos XVIII e XIX. (Tese de doutorado) Porto Alegre, UFRGS, 2006

POEL, Francisco Van Der. Dicionário de Religiosidade Popular. Curitiba: Nova Cultura, 2013.

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