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Paula, Eunice Dias de (2014) A língua dos Apyãwa (Tapirapé) na perspectiva da Etnossintaxe. Campinas: Curt Nimuendajú. Pp. 304. ISBN 978-85-99944-43-1.

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Etnossintaxe. Campinas: Curt Nimuendajú. Pp. 304. ISBN 978-85-99944-43-1.

Resenhado por: Eduardo Alves Vasconcelos;

Sâmela Ramos da Silva (Núcleo de Estudos de Línguas Indígenas/Universidade Federal do Amapá) O livro de Eunice Dias de Paula apresenta uma análise pouco comum de línguas indígenas brasileiras. Nessa análise não encontramos a tradicional descrição gramatical, nem a discussão tipológica. Por isso, é importante situar o leitor em outra perspectiva.

Eunice de Paula analisa a língua dos Apyãwa colocando a comunidade de fala em primeiro plano, seguindo os pressupostos de Dell Hymes (1974, 1986). Nessa proposta, as estruturas linguísticas são resultantes de princípios básicos que norteiam a comunidade de fala, ou seja, identificar esses princípios básicos que regulam ou promovem as interações linguísticas nos permite compreender as estruturas da língua e, principalmente, porque as línguas se diferenciam. No caso dos Apyãwa, já adiantando a conclusão da autora, a cortesia e a gentileza são expressões primordiais desse povo, marcadas intrinsecamente na língua, seja nas saudações cotidianas, seja nas marcas linguísticas presentes nas narrativas míticas, seja nos cantos rituais. Em todos esses eventos, o comum é uma relação de gentileza e cortesia com outro Apyawã, com os espíritos dos antepassados ou com os Axyga, Espíritos que fazem parte da cosmologia dos Apyãwa e os acompanham, por exemplo, na construção e manutenção da Takãra.1

A língua dos Apyãwa (Tapirapé), de Eunice de Paula, é resultado de sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Goiás, mas representa um acúmulo de 30 anos de convivência entre os Apyãwa, desde a sua chegada à aldeia na década de 1970. Como aponta Braggio, na apresentação da obra, essa análise só se torna possível por conta da intimidade que Eunice de Paula tem com a língua. Intimidade essa que permite que a autora perceba e aponte nas estruturas linguísticas os elementos que transparecem o tekateka, o modo de ser dos Apyãwa. Contudo, é importante ressaltar que a voz, ou melhor, as vozes dos Apyãwa estão intensamente presentes no trabalho de Eunice de Paula. Na análise de cada ritual, estão presentes as descrições, os comentários, as análises de professores e alunos Apyãwa, intelectuais que em seus cursos de Ensino Médio ou Educação Superior voltam suas pesquisas e seus trabalhos de conclusão para suas comunidades e para sua cultura. Assim, na tessitura do texto o que temos é um rico diálogo em que a voz de Eunice de Paula oscila entre mediadora e provocadora do debate sobre a realização e a importância da realização de um determinado ato de fala. Em outros momentos, a voz da autora nos aponta as vicissitudes as quais os Apyãwa e os povos indígenas brasileiros lidam cotidianamente.

A narrativa construída contextualiza a situação de um povo indígena, como outros no Brasil, que sofrem com o processo de extinção sumária impetrada pelo estado brasileiro e seus agentes, organizações nacionais e multinacionais. A trajetória desse povo, espoliado de suas terras, é marcada por um intenso projeto de retomada de seus antigos territórios e a

1 Takarã “é a grande casa cerimonial no centro da aldeia” (p. 23).

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luta por sua própria sobrevivência. Assim, é evidente a relação entre território e vitalidade cultural, no qual a conquista de territórios, como o caso da Terra Indígena Urubu Branco, foi fundamental na resistência dos Apyãwa, que em 1947 eram 59 indivíduos e passam a ter uma população de aproximadamente 750 em 2010.

Os Apyãwa estão, atualmente, no nordeste do Estado do Mato Grosso. A Terra Indígena Urubu Branco está localizada à margem direita do rio Tapirapé, enquanto a Área Indígena Tapirapé/Karajá está localizada na foz do Tapirapé no Araguaia. Desde a década de 1940, há uma relação de contato constante com os Karajá, com a realização de casamentos interétnicos e a presença da língua Karajá entre os Apyãwa. É importante destacar que a relação dos Apyãwa com povos Jê não é recente, na organização espacial da aldeia dos Apyãwa há influência do contato com esses povos e, como aponta a autora em diversas passagens, há marcas na língua que atestam um contato anterior com os Javaé.

Esse contato é evidenciado inclusive em narrativas mitológicas comuns aos dois povos e na divisão dos Apyãwa em duas metades, as Associações Wyrã.

O primeiro capítulo desse livro é dedicado à contextualização histórica, sociocultural e linguística dos Apyãwa. A discussão inicial envolve informações sobre o território original, decréscimo e recente aumento da população e os impactos da depopulação na constituição desse povo. A autora explica como a nomeação das aldeias explicita a relação com o território (nome de aves, peixes, árvores abundantes no local onde se construiu a aldeia), mas também a relação com fatos históricos (a aldeia Maakotãwa recebe esse nome porque nessa aldeia vivia um Karajá chamado Maako). As seções seguintes detalham a constituição e a organização social (família extensa, associações Wyrã, Takãra, ciclo ritual). Ao final, a autora dedica ainda uma seção à implantação da escola entre os Apyãwa.

Ao apresentar cada um desses tópicos, Eunice de Paula evidencia a presença da sociedade majoritária e de que forma ela modifica essas relações. Por exemplo, a substituição das casas comunais, que reuniam todos os membros da família extensa, dá lugar à casa de alvenaria, em que reside somente a família nuclear, porém, a relação, o convívio, entre diferentes faixas etárias, mantida na casa comunal, ocorre, atualmente, na “casinha/

cozinha” mantida atrás das casas. A disposição das casas de alvenaria busca manter os laços da casa comunal, pois as casas de alvenaria, em que residem famílias nucleares são construídas nas proximidades da casa dos mais velhos.

Neste primeiro capítulo é preciso destacar a relação que os Apyãwa construíram com a escrita, com a língua portuguesa e com a escola. Como explica a autora, a aprendizagem da língua portuguesa foi uma iniciativa dos Apyãwa, por perceberem a necessidade de dominar a língua da sociedade envolvente para dirimirem as questões relacionadas à demarcação de suas terras. Assim, a escola e o ensino de português entram no espaço Apyãwa como instrumento de resistência e de reivindicação de seus direitos. A instituição da escola também se relaciona com o desenvolvimento da escrita da língua Tapirapé.

A autora explica que se optou primeiro pela alfabetização na língua dos Apyãwa, para posterior aprendizagem da língua portuguesa. O processo de alfabetização seguiu os pressupostos de Paulo Freire “que levou os alunos a tomarem parte ativa no desenrolar dos trabalhos em sala de aula” (p. 61). Eunice de Paula finaliza o capítulo discutindo como se deu a passagem do monolinguismo em Tapirapé para a atual situação de bilinguismo, Tapirapé e Português, e quais as estratégias utilizadas pelos Apyãwa para manutenção de sua língua frente ao avanço da língua majoritária.

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O propósito da pesquisa empreendida por Eunice de Paula é «investigar os eventos de fala [...] que ocorrem entre os Apyãwa, a partir de traços relevantes que os singularizam»

(p. 14). No segundo capítulo, dedicado a explicitar o arcabouço teórico de sua análise, ela acrescenta que um dos objetivos é «verificar a relação dos eventos de fala com a escrita produzida na escola» (p. 97). Para alcançar os objetivos propostos a autora lança mão do Paradigma Indiciário (Ginzburg 1991), da Etnossintaxe ou Semântica da Gramática (Enfield 2002), da Etnografia da Fala (Hymes 1974, 1986) e do debate sobre a inserção da escrita em comunidades indígenas (Gnerre 1998, Braggio 1999, 2001). O uso desses pressupostos teóricos pela autora é o ponto essencial e diferencial de sua análise. Como apontamos anteriormente, é uma análise linguística de uma língua que prioriza a comunidade de fala e não a estrutura da língua, nessa perspectiva depreende-se como marcas linguísticas relacionam-se diretamente com a organização sociocultural dos Apyãwa, revelando, ou desvelando, a sua cosmovisão, o seu tekateka, o modo de ser desse povo.

O Paradigma Indiciário, diferentemente dos modelos galileanos, “vai se preocupar em observar os detalhes, sinais, pistas que fornecerão indícios para a análise do que se está procurando analisar” (p. 99). Observa-se, em toda a investigação, esse olhar para os detalhes, como as saudações proferidas entre eles demonstram características primordiais da cultura Apyãwa. Essa relação língua e cultura é o pressuposto da Etnossintaxe que “constitui uma área de estudo que retoma a perspectiva teórica que aborda os estudos dos fenômenos linguísticos intrinsecamente articulados aos aspectos socioculturais das diversas sociedades” (p. 106). Os estudos que se inserem nessa área (Lucy 1999; Gomez-Imbert 1996; Enfield 2002; Wierzbicka 1997) “propõem uma revisita aos postulados de Sapir e Whorf, cujas abordagens são consideradas seminais na perspectiva da linha teórica denominada Linguística Antropológica” (p. 107). Nessa perspectiva estão inscritos nas línguas os valores, a história, os conhecimentos, a organização social, a visão de mundo de uma determinada sociedade. Essas informações são codificadas por palavras-chave, indícios que permitem compreender os “ideais que organizam uma dada sociedade” (p. 133).

O quadro teórico da autora, como já pontuamos, se completa com a Etnografia da Fala (Hymes 1974, 1986). Nessa perspectiva, “quando se estuda um evento de fala é preciso levar em consideração o contexto em que o evento ocorre” (p. 115), assim, “quem fala, o que fala, para quem fala, em que condições fala, com que intenções fala” (p. 115) é colocado no primeiro plano de análise, ou seja, “não são só as estruturas linguísticas que contam, mas todas as circunstâncias que acompanham um enunciado são importantes para a compreensão do significado de um evento de fala [...] inserido em uma sociedade culturalmente distinta” (p. 155).

Apresentada a organização social dos Apyãwa e os pressupostos teóricos que norteiam sua investigação, Eunice de Paula nos apresenta no terceiro capítulo, Saudações Tapirapé: expressões do tekateka, o sistema de saudações apyãwa, que “permanece bastante vivo, embora a língua esteja sofrendo muitas pressões por parte da língua portuguesa” (p. 143). Seguindo Hymes (1986), as saudações são tratadas como atos de fala que fazem parte de um evento de fala, inseridos na comunidade de fala da aldeia Tapi’itãwa, acrescenta-se ainda que esses atos de fala são domínios de todos os Apyãwa, ou seja, não fazem parte de uma comunidade de fala especializada. Essas saudações são expressões com formas fixas proferidas pelos falantes em determinadas situações

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socioculturais. A autora as classifica em saudações (i) para quem chega a casa, (ii) para se despedir da família da casa, (iii) para alguém que viaja para longe, (iv) saudações de cortesia e (v) saudações para alguém que se encontra pelo caminho. Essas saudações

“revelam uma profunda articulação entre a língua, a cultura e a organização social do povo Apyãwa” (p. 154), essa articulação está presente na forma gentil que o anfitrião precisa receber seu visitante, que ao notar sua presença precisa perguntar Ane ta’ẽ pareka

‘você está aqui?’, e o visitante ao se despedir precisa dizer Ãã ka penowi ‘eu me vou agora de você’. As saudações de despedida e de cortesia evidenciam, além da gentileza própria desse povo, o sentimento de coletividade, ou seja, “não se diz simplesmente ‘eu me vou embora’, mas ‘eu me vou de vocês’” (p. 156).

Como apontado, a autora lança mão em toda sua obra do Paradigma Indiciário, assim, características socioculturais e mudanças dentro dessa sociedade a partir dos detalhes. Por exemplo, as regras de quem pode proferir a saudação para quem chega em casa apontam para a própria organização social dos Apyãwa e como eles têm se adaptado às pressões das sociedades majoritárias. As rodas de conversa antes realizadas no meio da casa comunal são transferidas para as cozinhas das anciãs e dos anciãos, como estratégia de manutenção do contato entre as gerações. Nesses espaços, formas seculares de cortesia são repetidas, não como “meras expressões ditas ao acaso, já que estão profundamente enraizadas no modo de ser dos Apyãwa, no tekateka próprio desse povo, manifestando suas regras sociais de polidez, de gentileza e de cortesia” (p. 157). Eunice de Paula finaliza o capítulo discutindo as estratégias que os Apyãwa adotam para manter essas marcar no contexto escolar. Como a escola não tem dono, o cumprimento para quem chega perde suas marcas de pessoalidade, assim se diz Parexat ta’ẽ ‘você chegou?’ Na escrita, tais estratégias são necessárias a partir da aquisição, por parte dos Apyãwa, de um canal diferente de interação e de contextos (ou cenários) de interação social.

No quarto capítulo, Marcas singulares nas narrativas mitológicas em Tapirapé, a autora trata dos mitos Apyãwa enquanto eventos de fala, constituídos de índices dêiticos e traços de intensa “vivacidade”, no qual “passado, presente e futuro se entrelaçam de maneira dinâmica” (p. 171). Para compreender as narrativas mitológicas, é preciso entender o papel do enunciador, os recursos utilizados durante o evento de fala, os espaços sociais nos quais elas são contadas e, ainda, os novos espaços e meios de circulação desses conhecimentos que surgem com a presença da escola e da escrita. A análise feita pela autora sobre a perspectiva do enunciador situa-o dentro de um papel social de prestígio ocupado por pessoas idosas, que apesar de estarem em uma posição de autoridade diante de seus interlocutores, não se localizam dentro de uma estrutura de superioridade. As partículas ro’õ e raka’ẽ2 constituem um dado que comprova a relação entre enunciador e a prática de narrar os mitos do povo, no qual o conhecimento é tomado como um bem coletivo, acessado por meio da tradição oral e que resgata a voz dos antepassados. A partir da Etnossintaxe não se trata de deslocar apenas a responsabilidade do enunciador ou marcar temporalidade, as marcas ro’õ e raka’ẽ evidenciam atitudes igualitárias destes diante de sua audiência.

2 A primeira partícula retira a responsabilidade da informação do enunciador; a segunda refere-se à anterioridade do acontecimento, o qual o enunciador não presenciou.

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Outro aspecto levantado é a relação não dicotômica entre narrativas mitológicas e textos históricos. As narrativas Apyãwa relatam fatos históricos mesmo que não se enquadrem numa ciência histórica ocidental. Para tanto, a autora resgata concepções desenvolvidas por Ginzburg (2007), Levi Strauss (1978) e Benveniste (1991): “as contribuições de Ginzburg e Levi Strauss [...] apresenta traços de vividez que a aproxima do que era considerado um bom texto histórico [...] articulado ao que hoje se considera História”. Quanto à perspectiva de Benveniste (1991), há contradições que se referem ao fato das narrativas mitológicas pertencerem a um povo de tradição oral, e também a referência à pessoa do narrador (ro’õ), o que seria impossível dentro de uma narrativa histórica. É fundamental o questionamento de que o registro histórico está relacionado estritamente à expressão escrita, e só pode ser pensado dentro deste viés ocidental/eurocêntrico. Ao mesmo tempo, há por parte de alguns professores e alunos a preocupação em registrar as narrativas mitológicas do povo com o intuito de conservá-las, principalmente por conta da fragilização das condições para que esses eventos de fala continuem acontecendo entre os Apyãwa, pelo menos por duas razões: pequeno número de pessoas idosas e a entrada da televisão.

No capítulo 5, Falas Rituais, Eunice de Paula se dedica a descrever e investigar os rituais realizados pelos Apyãwa. A autora explica que os ritos constituem “situação de fala”, em que ocorrem diversos eventos de fala, “mas que não é exclusivamente governada por atos de fala” (p. 191). Na realização de um ritual entre os Apyãwa estão presentes também eventos não verbais, como pinturas corporais, adornos, coreografias, vestimentas e máscaras. Todos esses elementos compõem uma linguagem simbólica com múltiplos significados. Os rituais têm uma estreita relação com as narrativas míticas, pois é justamente nelas que são encontrados os seus motivos e as suas regras, ditando a sua organização e a sua ordenação temporal. Os ciclos rituais ocorrem segundo um calendário sazonal, a maior parte dele no período chuvoso e somente um no período de seca.3

Os elementos comuns ao ciclo ritual dos Apyãwa é a presença dos cantos rituais, das comidas e da interação com os espíritos dos antepassados e com os Axyga. Essas situações de fala estão permeadas por elementos constitutivos da sociedade Apyãwa:

alegria, cortesia, gentileza, coletividade. Elementos expressos na denominação das festas, Tarywa, em que se depreende uma raiz -aryp ‘alegria’, na preparação da acolhida dos espíritos e dos Axyga, nos cantos convocatórios e nos de despedidas, no choro ritual dos antepassados e dos Axyga quando precisam deixar a aldeia. Como explica a autora “os rituais são realizados com o intuito de deixar alegres os espíritos das pessoas falecidas e dos Axyga” (p. 31). Nessa busca pela manutenção desse sentimento de alegria, exige-se “a participação de todas as pessoas nos rituais, a oferta de comida em abundância e a decoração dos corpos com elaboradas pinturas corporais” (p. 231). Entre esses aspectos, os cantos são os “canais privilegiados” de comunicação entre os Apyãwa, seus antepassados e os Axyga. Os cantos remontam à cosmologia dos Apyãwa e, por exemplo, no rito do ka’o reconstrói-se a aquisição dos cantos com as aves, apontando para a organização social dos Apyãwa, uma vez que eles estão divididos em duas metades, as Associações Wyrã (pássaros).

3 Nessa região do Mato Grosso, tal como as demais regiões da Amazônia, há somente duas estações:

chuvosa e seca.

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No contexto de contato com a sociedade majoritária, no entanto, observa-se uma crescente perda dos rituais entre os Apyãwa. A presença dos professores nos cursos de formação superior tem prejudicado a realização do Awara’i, realizado no mês fevereiro, justamente no período em que há módulo presencial da licenciatura intercultural, e de outros rituais, em que se exige a presença de todos os Apyãwa. A preocupação com a possível perda ou desaparecimento dos rituais transfere para escola a função de registrá-los e ensiná-los, contudo, como explica a autora, “a escrita pode cumprir uma função de apoio aos rituais, mas não substitui algo fundamental: a participação efetiva nos rituais” (p. 237).

O último evento de fala analisado trata-se do ritual de nominação, desenvolvido no capítulo O ritual de nominação entre os Apyãwa. Na sociedade Apyãwa, cada família possui um repertório de nomes que lhes são peculiares e se relacionam com nomes de antepassados, e apresenta duas características fundamentais: são alienáveis e transitórios.

A primeira seção deste capítulo nos mostra como a nominação está entrelaçada aos rituais de iniciação. Ao nascer, a criança recebe o seu primeiro nome (dado por um dos avôs ou avós) que impactará também no nome dos pais, dependendo do sexo, por exemplo:

konomĩrop ‘pai do menino’ e konomĩy ‘mãe do menino’. Em seguida, tem-se uma sequência de nominações que lhes serão conferidas a cada fase da vida. Os meninos passam por três iniciações, aos 10, 12 e 15 anos. Nessa iniciação o jovem recebe um nome adequado à fase adulta, em meio a uma cerimônia celebrada por toda comunidade. A primeira menstruação marca a segunda nominação das meninas, acompanhado de um conjunto de atividades que culmina na apresentação da moça à comunidade. Assim, “o novo nome marca [...]

a mudança de faixa etária e, concomitantemente, a nova posição da pessoa” (p. 245), identificam faixas etárias, gênero, grupo familiar, posição da pessoa na organização social.

Como exposto acima, o ritual de nominação situa-se em um “contexto situacional”, o indivíduo indígena recebe seu nome por meio de um evento que envolve os rituais de passagem de uma faixa etária a outra, o que lhe atribui também uma nova posição social.

O chefe de cerimônia que conduz o ritual entoa um canto que é ouvido atentamente, pois causa mudanças sociais para toda a comunidade. A autora ressalta que “os Apyãwa não admitem significados referenciais ou metafóricos nos nomes e nem traduções ao pé da letra”. O inventário organizado possibilitou relacionar os nomes à diversidade ambiental (fauna e flora) da região, o que permite o questionamento feito pela autora: até que ponto a devastação do ecossistema das terras indígenas, conduzida por muitos anos de ocupação não-indígena, afetará o “sistema nominativo” dos Apyãwa?

Ainda a respeito da análise dos ritos de nominação, Eunice de Paula destaca, em primeiro lugar, a preocupação dos Apyãwa com a socialização das crianças e jovens, inseridos em uma atividade que envolve toda a comunidade, pois “assumir uma outra fase da vida é algo que não é feito individualmente, há todo um empenho coletivo que apoia os jovens para que essa passagem seja bem transposta” (p. 256). Em segundo lugar, a prática de nominação nos mostra quão íntima é a relação com os antepassados, pois quando se recebe um nome que já pertenceu a outros parentes, mantêm-se viva a sua memória. Um fato interessante é a conservação de alguns morfemas que não são mais usados na língua atualmente, mas que perduram pela utilização rotativa daquele nome. Sobre a presença desses nomes, a autora recorre ao registro feito pelo antropólogo Herbert Baldus em 1935 e 1947, para demonstrar que os nomes registrados continuam amplamente utilizados em Tapi’itawa. O exemplo tomado por ela é “Waporã”, no qual o morfema -porã ‘bom’,

‘bonito’ permanece apenas em nomes próprios.

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A prática de nominação desenvolvida pelo povo tem sofrido interferência da sociedade não-indígena que não consegue dialogar com as culturas indígenas no país. Ao nascer, é imputada à criança Apyãwa a escolha de um nome que não leva em consideração a complexidade dos nomes que ela terá ao longo de sua vida, o primeiro “constrangimento”

é a escolha do nome que lhe será dado futuramente, e que deve constar na certidão de nascimento.4 A reflexão levantada por Eunice de Paula nesse último capítulo é uma discussão política imprescindível que nos permite compreender as relações de poder que oprimem os povos indígenas e suas práticas culturais. No entanto, mesmo com a investida da sociedade majoritária, os Apyãwa têm resistido à extinção de suas práticas e de seus corpos indígenas.

Assim como outros povos indígenas no Brasil, os Apyãwa quase foram dizimados e por muito tempo expropriados de suas terras. No entanto, mesmo diante de um quadro adverso, eles retomaram seus territórios, aumentaram sua população e resistem, mantendo sua língua e seu modo de vida próprio. Diante disso, a autora se propôs a investigar os eventos de fala dos Apyãwa a luz de um aporte teórico incomum no campo de estudo de línguas indígenas, no qual percebe a relação intrínseca entre língua e cultura Apyãwa, bem como propõe uma discussão que evidencia os sujeitos indígenas e sua língua e culturas como resultado de suas práticas de luta e resistência.

Como já ressaltamos anteriormente, a grandeza deste livro reside no espaço dado por Eunice de Paula à voz dos Apyãwa. Há uma relação recíproca de construção deste material que nos evidencia uma relação intercultural simétrica entre pesquisadora/autora e participantes.

Por fim, informamos ainda que esta obra se insere nas produções do Projeto LIBA (Línguas Indígenas Brasileiras Ameaçadas: Documentação – análise e descrição – e tipologias sociolinguísticas) e do Grupo de Educação e Línguas Indígenas (Parceria UFG e UnB).

Referências

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4 Tramita em caráter conclusivo, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n. 5855/2013 que assegura o registro público de nomes tradicionais indígenas.

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Recebido: 24/11/2015 Versão corrigida: 2/12/2015 Aceito: 4/12/2015.

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