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MÚSICA, LINGUAGEM E A COMUNICAÇÃO FILOSÓFICA DO ETERNO RETORNO EM ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

LAURICI VAGNER GOMES

MÚSICA, LINGUAGEM E A COMUNICAÇÃO FILOSÓFICA DO ETERNO

RETORNO EM ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

Belo Horizonte

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MÚSICA, LINGUAGEM E A COMUNICAÇÃO FILOSÓFICA DO

ETERNO RETORNO EM

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Linha de Pesquisa: Estética e Filosofia da Arte Orientador: Rogério Antônio Lopes

Belo Horizonte

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100 G633m 2017

Gomes, Laurici Vagner

Música, linguagem e a comunicação filosófica do eterno retorno em Assim falava Zaratustra [manuscrito] / Laurici Vagner Gomes . - 2017.

600 f.

Orientador: Rogério Antônio Lopes.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia

1.Filosofia – Teses. 2.Música - Teses . 3.Nietzsche, Friedrich, 1844-1900. Assim falava Zaratustra. I. Lopes, Rogério Antônio. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.

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Gostaria de agradecer ao meu orientador Rogério Antônio Lopes pela orientação e também por compreender minhas dificuldades em conciliar as atividades do doutorado com a vida profissional como docente. Agradeço também ao professor Rodrigo Antonio de Paiva Duarte pela ajuda na fase inicial do doutorado. Agradeço aos professores Olimpio José Pimenta Neto e Verlaine Freitas por participarem de minha qualificação e também da banca de defesa. Gostaria de agradecer ainda aos professores Ernani Pinheiro Chaves e Rosa Maria Dias por me concederem a honra de aceitar o convite para participar da banca de defesa.

Agradeço a FAPEMIG pela concessão da bolsa de PCRH (Programa de Capacitação de Recursos Humanos) junto à Universidade do Estado de Minas Gerais, durante parte do doutorado. Agradeço aos funcionários da secretaria de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais na pessoa do secretário André Ferreira Carneiro. Gostaria de agradecer também a Maria Auxiliadora, secretária da Escola Estadual Deputado Ilacir Pereira de Lima, pela generosidade e disponibilidade em resolver minhas demandas da vida funcional nesse período.

Agradeço igualmente aos diretores da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais nesse período, Dolores Maria Borges de Amorim, Fátima Silva Risério, bem como os chefes do Departamento de Fundamentos Sócio-Histórico Filosófico da Educação (DFSHFE), Lázaro Eustáquio Silva Simim, Jussara Maria de Pinho Magalhães e Lúcio Alves de Barros, pela concessão de licença parcial para a realização do doutorado. Agradeço a professora Eliana Gomes Silva Machado pela revisão do texto da tese. Agradeço a todos os professores da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, companheiros de luta de tantos anos, pelo convívio amigo e fraterno durante esse período.

Agradeço aos amigos Ricardo José Camelo, David José Gonçalves Ramos, Alexander Martins Castanheira, Felício Ramalho Ribeiro e Rodrigo Cássio Oliveira pelos debates filosóficos infindos. Gostaria de agradecer também aos colegas do grupo Nietzsche da UFMG, cujas discussões me auxiliaram a encontrar um caminho para o desenvolvimento de minha pesquisa.

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RESUMO

Partindo do relato nietzschiano apresentado em Ecce Homo de que uma mudança de gosto musical se encontra na gênese do eterno retorno, como seu signo premonitório, a presente Tese discute os elementos que envolvem a comunicação filosófica desse pensamento na narrativa de Assim Falava Zaratustra, com ênfase especial no sentido assumido pela música e a lírica na caracterização de seu personagem principal como mestre cantor do eterno retorno. Nesse contexto explora a relação de Nietzsche com seus mestres de juventude, Schopenhauer e Wagner, observando como essa relação está implicada na configuração do cenário dramático no interior do qual esse pensamento é comunicado na obra. Por fim, a Tese procura mostrar como a retomada da lírica, do canto e do ditirambo na caracterização de Zaratustra como mestre do eterno retorno deve ser observada à luz da reorientação estética que se assiste no pensamento nietzschiano com o abandono da metafísica de artista e da concepção de filosofia arquitetada por Nietzsche no último período de sua produção.

Palavras-chaves: Nietzsche – Eterno Retorno – Música – Zaratustra – Comunicação.

ABSTRACT

Starting from the Nietzschean account presented in Ecce Homo that a change of a musical taste lies in the genesis of the eternal return, as it's premonitory sign, this thesis discusses the elements that involve philosophical communication of this thought in the narrative of Thus Spoke Zarathustra, with special emphasis in the sense assumed by music and lyric in the characterization of it's main character as master singer of eternal return. In this context he explores the relationship of Nietzsche with his youth masters, Schopenhauer and Wagner, observing how this relationship is implied in the configuration of the dramatic context within which this thought is communicated in the work. Finally, this thesis seeks to show how the resumption of lyric, singing and dithyramb in the characterization of Zaratustra as master of the eternal return must be observed in the light of the aesthetic reorientation seen in Nietzschean thought with the abandonment of the artist's metaphysics and the conception of philosophy that Nietzsche had designed in the last period oh this production.

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SUMÁRIO

Abreviaturas p.10.

Introdução p.12.

Capítulo I: Da emergência do eterno retorno à gênese de Assim Falava Zaratustra p.37.

1.1 O caderno de anotações M III 1 e a emergência do pensamento do eterno retorno p.37. 1.1.1 “Ver as coisas como são” e o problema da teleologia p.37.

1.1.2 Organismo, erro e a emancipação do indivíduo dono de si (selbsteignen) p.46. 1.1.3 A emergência e a elaboração gradual do pensamento do eterno retorno p.52. 1.2 A emergência do eterno retorno e a filosofia nietzschiana do segundo período p.71. 1.2.1. A estilística da existência p.71. 1.2.2 Paixão do conhecimento e a configuração de um novo estatuto da arte p.79. 1.3 Zaratustra e a mudança de gosto musical p.91. 1.3.1 A mudança de gosto musical no ambiente de aparição do eterno retorno p.91. 1.3.2 A composição de Assim Falava Zaratustra p.97.

Capítulo II:O cenário dramático de emergência do eterno retorno em Assim Falava Zaratustra p.107.

2.1 O Prólogo de Zaratustra p.107. 2.1.1 O declínio p.107. 2.1.2 O Além do Homem, o último homem e o fracasso na praça púbica p.113. 2.2. Zaratustra e o caso Wagner: uma possibilidade de leitura p.121. 2.3 A configuração do problema da comunicação a partir do auditório p.146. 2.4. Os discursos do primeiro Zaratustra: o projeto de criação do Além do Homem e a formação dos discípulos p.152. 2.5 O regresso aos discípulos e as ambivalências de Zaratustra p.170. 2.6 Os cânticos da segunda parte p.177. 2.7 A emergência da vontade de poder p.185. 2.8 Vontade de poder e o embate com a filosofia da vontade de Schopenhauer p.216. Capítulo III: A comunicação do eterno retorno na narrativa de Zaratustra p.236.

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3.2 A identidade de Zaratustra p.244. 3.3 O niilismo do Adivinho e a construção do problema do tempo p.250. 3.3.1 O Adivinho p.250. 3.3.2 Vontade e o problema do tempo p.253. 3.4 O eterno retorno, a visão do mais solitário e o enigma p.269. 3.5 Zaratustra, o rio que faz numerosas curvas antes de voltar à fonte p.308. 3.6 A solidão e o despertar do pensamento do eterno retorno p.313. 3.6.1 O regresso à pátria-solidão e os pensamentos do solitário Zaratustra p.313. 3.6.2 O “canto de galo” de Zaratustra e o despertar do eterno retorno p.329.

3.7 Os ditirambos de Zaratustra, o cantor solitário do eterno retorno p.353. Capítulo IV: O mestre cantor do eterno retorno e a busca de uma nova lira p.366.

4. 1 A reorientação estética nietzschiana e o retorno a O nascimento da tragédia. p.366. 4.1.1 A revisão crítica de O nascimento da tragédia. p.366.

4.1.2 Da estética da criação à fisiologia da arte: a reorientação estética nietzschiana e seu sentido filosófico . p.375.

4.2 A estética schopenhaueriana e a recepção wagneriana p.405. 4.3 Música, linguagem e a interpretação da poesia lírica do jovem Nietzsche p.428. 4.4 Música e comunicação p.462. 4.5 O canto de Zaratustra e a retórica teatral wagneriana p.474. 4.5.1 O canto de Zaratustra e o canto do Feiticeiro p.474. 4.5.2 A retórica teatral wagneriana e a posição nietzschiana p.485. 4.6 A lírica e a arte do estilo nietzschiano p.511. 4.7 O mestre cantor do eterno retorno e a “experiência de inspiração” p.533.

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ABREVIATURAS

Obras de Nietzsche:

KSA = Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (Edição critica em 15 volumes das obras de Nietzsche por Colli e Montinari)

1)Textos publicados por Nietzsche:

GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)

DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)

HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)

SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador)

WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth)

MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1))

MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2))

VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)

WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)

M/A - Morgenröte (Aurora)

IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)

FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)

Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)

JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além do bem e do mal)

GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)

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GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)

NW/NW – Nietzsche contra Wagner

2) Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)

EH/EH - Ecce homo

DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

3) Siglas dos escritos inéditos inacabados

GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)

ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)

DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)

GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)

BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino)

CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos)

PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos)

WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)

Acerca das traduções e citações:

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INTRODUÇÃO

Nietzsche em uma carta enviada a Deussen em novembro de 1888 diz que Ecce Homo

elucidará pela primeira vez Assim Falava Zaratustra1. O filósofo inicia a seção dedicada a essa obra em sua autobiografia discorrendo sobre sua gênese:

Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi lançado em uma página com subescrito: “seis mil pés acima do homem e do tempo”. Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me este pensamento. - Retrocedendo alguns meses a partir desse dia, encontro, como signo premonitório, uma súbita e profundamente decisiva mudança em meu gosto, sobretudo na música. Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; - certamente um renascimento da arte de ouvir era uma precondição para ele. Em uma pequena estação de águas próxima a Vicenza, Recoara, onde passei a Primavera de 1881, descobri, juntamente com o meu maestro e amigo Peter Gast, também ele um “renascido”, que a fênix Música por nós passava em vôo, com plumagem mais leve e luminosa do que jamais exibira. (EH/EH, “Assim Falava Zaratustra”, 1)

Nietzsche afirma que o pensamento do eterno retorno é a concepção fundamental

[Grundconception] de Assim Falava Zaratustra, qualificando-o como a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar” (diese höchste Formel der Bejahung, die überhaupt

erreicht werden kann) e indicando que sua data de nascimento é agosto de 1881, em uma página

com o subescrito “seis mil pés acima do homem e do tempo”. O filósofo faz referência ao primeiro esboço do eterno retorno que se encontra em um caderno de anotações que o acompanhava nessa época e que permaneceu inédito até 1973, quando foi publicado na íntegra e

de forma cronologicamente confiável. Segundo Paolo D’iorio, sem este caderno e a identificação das leituras que Nietzsche realizou antes e depois da emergência do eterno retorno, seria quase

impossível, mesmo ao pesquisador mais perspicaz, reconstruir sua gênese e “compreender

exatamente a formulação teórica e as ligações orgânicas que uniam este “pensamento póstumo”

com o resto da obra nietzschiana” (D’IORIO, 2007, p.227), o que só foi possível com a adoção do

critério de ordenação cronológica adotado pela edição crítica de Colli e Montinari2. No entanto, cumpre destacar que célebres interpretações desse enigmático pensamento nietzschiano, como as

apresentadas por Martin Heidegger, Gilles Deleuze, Karl Löwith e Eugen Fink, foram realizadas

1Ecce Homo elucidará, pela primeira vez, o meu Zaratustra, o primeiro livro de todos os milênios, a Bíblia do futuro, a

manifestação suprema do gênio humano, no qual o destino da humanidade está contido” (Carta a Deussen de 26 de Novembro de

1888).

2 Este caderno in-octavo com a sigla M III 1 é conservado nos arquivos Goethe-Schiller de Weimar, composto por 160 páginas, com

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antes que essa edição crítica, que se inicia no final dos anos 60, viesse à luz e com ela o caderno que acompanhava Nietzsche no contexto de emergência do eterno retorno. Nesse material, até então menos conhecido dos pesquisadores, se encontram anotações que não foram utilizadas na obra publicada, o que se justificaria pelo fato de que o filósofo pretendia usá-las numa futura publicação na qual constaria a fundamentação científica desse pensamento, o que de fato não viria a ocorrer até o fim de sua vida lúcida.

O caráter enigmático do eterno retorno nietzschiano se apresenta a todos os leitores que tomam como referência os raros momentos em que esse pensamento é, de maneira mais explícita, comunicado na obra publicada: o aforismo 341 de Gaia Ciência, o aforismo 56 de Além do Bem e do Mal e três seções de Assim Falava Zaratustra, “Da visão e enigma”, “O convalescente” e o

“Canto ébrio”. Diante disso, recorrer ao material não publicado se tornou necessário e de crucial

importância para os intérpretes desse obscuro pensamento, o que mostra, mais uma vez, a importância da edição crítica de Colli e Montinari. A pesquisa de Paolo D’Iorio reacendeu, mais

recentemente, o interesse dos pesquisadores pelo pensamento nietzschiano do eterno retorno. Seguindo o caderno de anotações e os livros que acompanharam Nietzsche no contexto de emergência do eterno retorno, a pesquisa de D’Iorio nos mostra como este pensamento foi se

formando gradativamente no interior de um debate no qual o filósofo conhecia muito bem os temas e os protagonistas: o debate acerca da dissipação de energia e da morte térmica do universo, no interior do qual se renovou o quadro teórico de onde, na época moderna, o conflito entre a concepção circular e a linear do tempo foi recolocado. Este amplo debate mobilizou homens de ciência como Thomson, Helmholtz, Clausius, Boltzmann, e filósofos como Dühring, Hartmann, Engels e Wundt. Estes se dividiam entre os que acreditavam num estado final do universo, na morte térmica, apoiando seus argumentos na segunda lei da termodinâmica ou na demonstração da primeira antinomia cosmológica kantiana, e aqueles que negavam o finitismo, apoiando-se no argumento schopenhaueriano da infinitude a parte ante, para afirmar que se um estado final fosse

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Problematizando a primeira antinomia cosmológica kantiana, Schopenhauer defende que é possível e não-contraditório desenvolver a tese da infinitude do passado a partir do presente. Segundo Kant, é necessário postular que o mundo tem um início no tempo, porque sem isso

teríamos que admitir que “até cada instante dado decorreu uma eternidade e, por conseguinte,

transcorreu uma série infinita de estados sucessivos das coisas no mundo” (KANT, 1999, p.285). No entanto, ocorre que esta série infinita jamais pode ser “acabada mediante uma síntese sucessiva” (idem) e, sendo assim, a partir do presente não seria possível postular a infinitude do passado, pois, na medida em que cada instante é o fim do passado, seria contraditório pensar numa série cósmica infinita sem início que apontasse para essa completude. Schopenhauer afirma que

Kant passa do exame da “falta de começo na série de estados” e, abandonando-o abruptamente,

passa a analisar a “falta de fim (infinitude) da mesma”, o que faz com que Kant demonstre algo

que ninguém duvida: que uma série cósmica infinita está em “contradição lógica com a completude, e que, apesar disso, todo presente é o fim do passado” (SCHOPENHAUER, 2005, p.616). Mas, Schopenhauer objetará a Kant que “o término de uma série sem começo pode sempre

ser PENSADO sem prejuízo de sua falta de começo, bem como, inversamente, é possível o

começo de uma série sem fim” (idem). A contradição existente entre a ideia de infinitude e a de completude não implica que é necessário postular um início no tempo, ou seja, pode-se tomar o presente como fim do passado sem postular um ponto inicial.

D’Iorio destaca a singular recepção por Hartmann desse debate entre Schopenhauer e Kant. O

autor de Philosophie des Unbewussten afirma que a infinitude, que para o pensamento permanece um postulado ideal em seu movimento regressivo, deve, para o mundo, cujo movimento é, ao contrário, progressivo, conduzir a um resultado determinado, sendo que a partir disso nos deparamos com uma contradição. Hartmann identifica a contradição entre o caráter regressivo do

pensamento e o caráter progressivo do processo do mundo. Para compreendermos o movimento

progressivo e teleológico do processo do mundo, é necessário então, para não cairmos no conceito contraditório de infinitude concluída, limitarmos o passado e, dispensando a ideia de infinitude regressiva ou infinitude do passado, postularmos o começo absoluto do mundo. Como argumenta

D’Iorio, Hartmann comete aqui uma petição de princípio: “Com efeito, no conceito de processo do

mundo está contido, analiticamente, aquele de início do mundo. Eles não podem, pois, ser

demonstrados um a partir do outro.” (D’IORIO, 2007, p.234). Se a aceitação da tese de uma

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movimento progressivo, como Hartmann concebe, requer pensar num início do tempo. Ele rejeita a tese da idealidade do tempo em Schopenhauer, em nome do real desdobrar temporal do processo do mundo com um início e um fim absoluto.

Na base do conceito hartmaniano de processo do mundo se encontra o problema do sofrimento. Hartmann descreve um processo destrutivo do mundo cuja origem remonta ao momento no qual o querer vazio conseguiu se unir à ideia, um ato ilógico da vontade de se ligar a um princípio lógico, raiz de todo o sofrimento. O inconsciente, substância metafísica formada pela combinação entre ideia e vontade, é o produto desse ato ilógico. Desde que o processo do mundo teve início, a ideia procura corrigi-lo, sendo que, na medida em que a consciência se desenvolve torna-se cada vez mais compreensível para os seres vivos este ato cego da vontade e o caráter ilusório da felicidade alcançado através do pleno desenvolvimento da vontade de vida. Isso conduzirá, enfim, a uma aniquilação da vontade de vida e, consequentemente, ao fim do processo do mundo com o retorno da vontade ao que foi antes de todo querer, ao seio da “pura potência em si”. Hartmann postula, então, a existência de um estado final do mundo, onde assistiríamos à

liberação de todo sofrimento.O problema que então se apresenta ao filósofo é a probabilidade de que, depois de atingido esse estado final, o processo do mundo recomece. A possibilidade de que o processo do mundo dure infinitamente ou a probabilidade de que, depois de um estado final, recomece, conduziria ao desespero diante da impossibilidade de liberação do sofrimento. Hartmann tentou livrar-se desse problema desenvolvendo uma teoria da probabilidade que postula que a cada nova volição diminui o grau de probabilidade de um redespertar do processo do mundo, defendendo que, assim, não cairíamos num eterno retorno do mesmo que impediria a liberação definitiva do sofrimento.

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Guardemo-nos (Hüten wir uns), em todo caso, de fúteis desatinos; porque a existência do universo, sendo dada de uma vez por todas, não é um episódio indiferente entre dois estados de noite, mas o único fundamento sólido e luminoso a partir do qual podemos realizar nossas deduções e previsões.3

Otto Caspari mobiliza o argumento da infinitude a parteante para defender que o processo do mundo não evolui em direção a um alvo determinado e sim em círculo. Uma vez estipulado que um dado processo tem início é necessário também dizer que tem um fim. Mas, na infinitude do tempo já passado este estado final já deveria ter sido atingido, no entanto o movimento do mundo ainda não cessou. Sendo assim, o processo do mundo não conduziria a nenhum nirvana, ao nada, o engano que o gerou voltaria a se repetir eternamente, o que demonstra, segundo Caspari, que esta

teoria sobre o mal no mundo conforme apresentada por Hartmann “é a mais absurda, pois para tudo ter (através da eliminação de todo sofrimento, mesmo o menor), ela rejeita o universo inteiro e não ganha absolutamente nada” 4.

Como observa D’Iorio, tanto Dühring como Caspari compreendem este eterno retorno do idêntico como “a consequência ética indesejável que torna falsa, fútil e absurda a filosofia de Hartmann” (D’IORIO, 2007, p. 240), o que valerá por si mesmo como uma refutação dessa filosofia. Podemos observar que essa refutação traz consigo uma transposição do problema da repetição do âmbito dos debates envolvendo questões cosmológicas para as discussões acerca da ética. Da refutação ao caráter teleológico do processo do mundo passa-se a um debate acerca de quais seriam os efeitos éticos de uma cosmologia alicerçada na tese da eterna repetição do idêntico. A compreensão de como Nietzsche se insere nesse debate nos fornece chaves de leitura para a análise da tradição de comentários sobre o eterno retorno que tomaram como fio condutor da interpretação desse pensamento a pergunta acerca de sua configuração como uma tese cosmológica ou então como uma doutrina ético-existencial.

Nietzsche encontrou em Der Zusammenhang der Dinge uma apresentação do estado atual das

controvérsias cosmológicas e, na carta de 20-21 de Agosto de 1881 endereçada a Overbeck, pede ao amigo o envio de volumes que se encontram citados nessa obra5. Entre estes se encontra outro livro de Caspari, Die Thomson’sche Hypothese (A hipótese de Thomson). Nietzsche se associa a Caspari na crítica à teleologia que sustenta que o mundo teria um estado final, como a que se apresenta no conceito hartmaniano de processo do mundo, mas o refuta em sua tese organicista da

3 DÜHRING, Cursus der Philosophie, 1875, p.85 apudD’IORIO, 2007, p. 240

4 CASPARI, Der Zusammenhang der Dinge, 1881 p. 444-445, apudD’IORIO, 2007, p. 237- 238

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existência de átomos biológicos que intencionalmente evitariam este estado, apresentada em A hipótese de Thomson.

Em Die Thomson’sche Hypothese, Caspari procura esclarecer de um ponto de vista filosófico a hipótese de um estado de equilíbrio final apresentada por Thomson, criticando as cosmologias mecanicistas e materialistas de sua época e defendendo uma visão organicista a partir da qual, ao invés de ser entendido como um mecanismo físico, o universo seria visto como um grande

organismo vivo, uma “comunidade de partes éticas”. Em 1852, Thomson publica On a Universal Tendency in Nature to the Dissipation of Mechanical Energy (Sobre uma Tendência Universal na Natureza para a Dissipação da Energia Mecânica), onde desenvolve as primeiras noções da segunda lei da termodinâmica e, a partir disso, apresenta a hipótese de que assistiríamos na natureza a uma tendência à dissipação de energia que levaria o movimento mecânico do universo a decair naturalmente. Enquanto a primeira lei da termodinâmica estabelece a conservação de energia em qualquer transformação, a segunda lei estabelece o que é necessário para que ocorram as transformações termodinâmicas: a diferença de temperatura entre os corpos. Na medida em que o calor passa dos corpos mais quentes para os mais frios, a temperatura entre estes tenderia a se igualar, fazendo com que se produzisse um estado de equilíbrio no qual se deflagraria a morte térmica do universo. Na refutação dessa tese, além de mobilizar o argumento da infinitude a parte ante para defender que este equilíbrio final, caso possível, já teria se processado, Caspari constrói a noção de átomos biológicos que intencionalmente evitariam este estado, como uma forma de explicar porque esta morte térmica do universo não se consuma. Esses átomos seriam como as

mônadas de Leibniz, que “de uma parte são certamente submetidas a interações físicas reais, mas que, ao lado disso, obedecem à lei de uma autoconservação atômica interna”6. Esses átomos

biológicos são partes do universo que não obedeceriam ao movimento mecânico, mas a um imperativo ético de participar da conservação do organismo em geral, impedindo as partes que se orientam por este movimento de produzirem um estado de equilíbrio que condenaria o universo por toda a eternidade. Com a tese dos átomos biológicos, Caspari além de refutar o processo do mundo de Hartmann, alinha-se a uma posição contrária à de Dühring, apesar de concordar com ele no que se refere à perversão ética que envolve o sistema hartmanniano.

Uma investigação atenta do caderno de anotações M III 1 nos permite não somente acompanhar como a emergência do eterno retorno está vinculada a esse debate cosmológico, mas também entender o cenário no qual esse pensamento encontra sua gênese. Vários intérpretes de

Assim Falava Zaratustra tomaram como fio condutor de sua interpretação a afirmação de

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Nietzsche em Ecce Homo de que o eterno retorno é a concepção básica dessa obra7. No entanto, essa afirmação, apresentada no último ano de sua vida lúcida, é acompanhada de um relato onde o filósofo diz que uma súbita, decisiva e profunda mudança de gosto, sobretudo musical, é o signo premonitório (Vorzeichen) desse pensamento, sem fazer referência ao debate cosmológico.

Segundo Paolo D’Iorio, a reconstrução dessa gênese que o filósofo nos propõe em Ecce Homo “parece colocar, definitivamente, o pensamento do eterno retorno no lugar das alucinações extáticas, do conhecimento inspirado, do mito” (D’IORIO, 2007, p.225). A referência à musica, à

mudança de gosto musical, seria mais uma mistificação? Qual seria o sentido dessa menção à arte dos sons nesse relato da gênese do eterno retorno? Qual seria a relação entre o pensamento abissal nietzschiano e a música? Em nosso trabalho procuraremos mostrar que, além da presença significativa da música, a narrativa de Zaratustra apresenta uma explícita relação entre o tornar-se

mestre do eterno retorno e o canto, a lírica e o ditirambo, que nos leva a examinar com mais cuidado a gênese desse pensamento conforme descrita em Ecce Homo. Com isso, através do itinerário de seu querido personagem, Nietzsche não estaria oferecendo justamente uma chave de leitura para a compreensão da profunda relação que envolveria o eterno retorno e a forma escolhida para comunicá-lo, já que são recorrentes nos escritos nietzschianos as associações entre

Assim Falava Zaratustra e a arte dos sons?

Abordar a comunicação do eterno retorno em Assim Falava Zaratustra, no entanto, nos coloca diante de algumas questões cruciais acerca do próprio sentido assumido por esse pensamento no interior da obra. Deparamo-nos com dois dados textuais que à primeira vista poderiam problematizar a alegada importância fundamental desse pensamento nesse célebre livro, reivindicada pelo próprio filósofo. O primeiro é a tímida aparição explícita do eterno retorno

como um conteúdo formulado, o que somenteocorre em duas seções da terceira parte da obra, “Da

7 Uma grande parte destes intérpretes se divide entre aqueles que tradicionalmente procuram no texto de Zaratustra uma explicação

explícita para o pensamento do eterno retorno e aqueles que, partindo de um viés literário, compreendem essa narrativa como uma espécie de Bildungsroman na qual o personagem aprende a despertar, confrontar, ensinar e afirmar esse pensamento. Nessa segunda vertente encontramos intérpretes como Lampert (1986), Higgins (1987), Gadamer (1988), Schacht (1995) e Gooding-Wilians (2001). Segundo Paul Loeb (2010), esses autores que tomaram o pensamento do eterno retorno como fio condutor da interpretação de Zaratustra foram frustrados em suas abordagens porque são poucos os momentos na narrativa onde esse pensamento aparece explicitamente, deixando dessa forma em aberto a questão sobre em que sentido deve ser tomado como a concepção fundamental da obra. Além disso, enfatiza que estes intérpretes reclamam que o personagem principal nunca expressa plenamente, explica, endossa, ensina, ou definitivamente afirma o pensamento do eterno retorno. O resultado disso, segundo o autor de The Death of Nietzsche’s

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visão e enigma” (Vom Gesicht und Räthsel) e “O convalescente” (Der Genesende), o que é

comumente defendido pelos intérpretes, e na seção “O canto ébrio” (Das Nachtwandler-Lied) da quarta parte, que envolve uma discussão que divide os comentadores acerca do estatuto desse derradeiro livro para o conjunto da obra. Poderíamos então destacar essas seções do desenvolvimento da narrativa e tratá-las de maneira independente, procurando em outros textos nietzschianos que abordam o eterno retorno, que se encontram principalmente entre os fragmentos póstumos, um modo de elucidar essa forma de comunicação? Se por um lado, com isso poderíamos driblar a árdua tarefa de vincular esse enigmático pensamento com o desenvolvimento da narrativa de Zaratustra, por outro é necessário questionarmos se com esse procedimento conseguiríamos adentrar na peculiaridade de sua forma de enunciação na obra, e assim investigar os elementos que envolvem essa estratégia de comunicação, entendendo-a como um aspecto importante na compreensão do próprio significado assumido pelo eterno retorno no interior da filosofia nietzschiana. Esse procedimento, no entanto, é muitas vezes recorrente na tradição de intérpretes de Nietzsche, não somente entre aqueles que se dedicam ao estudo desse pensamento. Muitas vezes passagens de Assim Falava Zaratustra são utilizadas para ornamentar teses, ideias e conceitos que o filósofo desenvolve em outros escritos, tratando-as de maneira descontextualizada e independente do desenvolvimento narrativo da obra8. Em linha oposta, Paul Loeb defende que é justamente o desenvolvimento da narrativa de Assim Falava Zaratustra, e não seus aspectos doutrinários, na medida em que diz respeito à cronologia dos acontecimentos na vida de seu personagem, o que nos possibilita compreender porque o eterno retorno é sua concepção básica9.

Como já observara Heidegger, o que é difícil compreender em Assim Falava Zaratustra não é

somente o seu “conteúdo”, mas sua própria caracterização enquanto obra10. Apesar disso, encontram-se no interior de sua narrativa aqueles que ficaram conhecidos como os grandes temas da filosofia nietzschiana: transvaloração, niilismo, Além do homem, vontade de poder, eterno retorno e morte de Deus. No entanto, podemos observar a relutância de grande parte dos intérpretes em tomar a obra como fonte primária de pensamentos e conceitos que aparecem pela primeira vez na obra publicada por Nietzsche no interior de sua narrativa dramática, como é o caso da vontade de poder e do Além do homem, ou que pela primeira vez nesse material que o filósofo

8 Em seu estudo Nietzsche’s Zarathustra realizado na década de 80, Kathleen Marie Higgins polemiza afirmando ser este

procedimento uma prova da estratégia de desconsideração de Assim Falava Zaratustra no interior da obra de Nietzsche, o que, segundo ela, ocorre devido a duas razões fundamentais: 1) a aproximação dos estudiosos da obra de Nietzsche como sendo

composta de textos filosóficos, no qual esse termo “filosófico” é entendido num sentido estrito como termo de categorização,

centrando o foco sobre argumentos e proposições que podem ser abstraídas do texto, o que tende a subestimar qualquer significado inerente à forma literária da obra; 2) por abordar Assim Falava Zaratustra como um meio ficcional de apresentação de ideias que são elaboradas em outras obras, estratégia que cresce a partir da primeira razão e ignora o fato de que os mais provocativos e infames conceitos do filósofo são encontrados pela primeira vez em Zaratustra e raramente aparecem em outras obras publicadas.

9 Cf. LOEB, 2010 p. 2

10 HEIDEGGER, 2007, p. 222-223. Heidegger problematiza a ideia comum de que em Zaratustra ideias filosóficas são apresentadas

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trouxe a público oferece margem a uma melhor compreensão do seu sentido, como é o caso do próprio eterno retorno. No caso específico desse último, entre as obras publicadas pelo filósofo, é sem dúvida Assim Falava Zaratustra a que mais oferece elementos para a sua discussão. O tratamento narrativo e dramático dispensado aos temas e ideias expostas na obra, assim como a escolha de um personagem como porta-voz, são elementos que contribuem para essa dificuldade de leitura filosófica dos pensamentos ali apresentados. Como diz Stegmaier, Zaratustra enuncia os pensamentos que tornaram Nietzsche famoso, no entanto é fundamental observar o grau de distanciamento e proximidade do filósofo em relação ao seu personagem11. Segundo Lampert, os aspectos dramáticos de Zaratustra equilibram o excesso de seus discursos e, sendo assim, a obra

apresenta uma “mistura surpreendente de fervor e contenção” (LAMPERT, 1986, p. 9). Nietzsche coloca na boca de um personagem ensinamentos que se apresentados diretamente seriam ofensivos aos seus leitores12 .

Consideramos que o tratamento dispensado a qualquer tema ou ideia no interior de Assim Falava Zaratustra deve levar em consideração a peculiaridade da obra, que se encontra justamente na forma como são apresentados, desenvolvidos e articulados no interior de uma narrativa dramática que tem como centro um personagem que não permanece o mesmo em todos os momentos, mas que é atravessado pela temporalidade na qual vai se desdobrando o significado de suas vivências. Soma-se a essa atenção com a dimensão temporal também a necessidade de se observar o auditório para o qual o personagem se volta nos distintos momentos de sua trajetória. É necessário realizar um cruzamento entre o que o personagem fala, como fala e para quem endereça

suas mensagens. Segundo D’Iorio, o que demarca a originalidade de Assim Falava Zaratustra em relação ao ensaio ou o tratado filosófico tradicional é justamente a tentativa levada a cabo por

Nietzsche de encenar ao mesmo tempo o “processo de maturação de Zaratustra na assimilação do

Eterno Retorno e os efeitos que esta doutrina produz sobre os diferentes tipos humanos aos quais

ela é destinada” (D’IORIO, 2007, p. 202-203), por isso é necessário reter o contexto narrativo, não somente destacando a progressão retórica de enunciação desse pensamento, mas também o papel que cada personagem ocupa nessa progressão, procurando delinear quem fala e quem ouve, como uma análise fundamental para a compreensão de seu sentido na obra. Como argumenta Laurence Lampert, fingir que o livro é um tratado, não reconhecendo sua estrutura dramática, desconsiderando as falas e interpretando-as como se não fossem essenciais, assim como ignorar a temporalidade, seu desenvolvimento narrativo, é obliterar um dos principais aspectos da obra: a

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transformação de Zaratustra em um novo filósofo, um filósofo no sentido nietzschiano13.Apesar de defendermos uma interpretação coerente com o estilo da obra, não consideramos, porém, que a utilização de outros textos do filósofo não seja importante para a compreensão de Assim Falava Zaratustra, mas que essa articulação deve ser feita respeitando suas peculiaridades.

O segundo dado textual importante, além da tímida aparição explícita do eterno retorno como um conteúdo formulado, se encontra no fato de que, mesmo nas seções onde esse pensamento é explicitamente enunciado em Assim Falava Zaratustra essa comunicação possui elementos singulares. Nas duas seções da terceira parte o pensamento abissal não é enunciado pelo

personagem principal. Em “Da visão e enigma” ele é enunciado pelo Anão, o espírito de gravidade, o mortal inimigo de Zaratustra, e em “O convalescente” ele é enunciado pelos animais.

Em “O canto ébrio” é o próprio Zaratustra que enuncia o eterno retorno, no entanto o faz cantando e incitando seu auditório para que cante junto. Se através do desdobrar da narrativa Nietzsche objetiva mostrar como seu estimado personagem se torna o mestre do eterno retorno, porque não é ele quem enuncia explícitamente esse pensamento e, quando assim o faz, diz acerca desse pensamento cantando? Consideramos que uma resposta adequada a essa questão também só pode ser dada na medida em que se respeite o estilo da obra, levando em consideração o desenvolvimento da narrativa, pois esta nos remete a um tema central e de crucial importância abordado por Nietzsche durante toda a trama: o problema da comunicação. No desdobrar da narrativa esse problema se radicaliza cada vez mais, evoluindo de uma discussão acerca do auditório a uma tematização das insuficiências da própria linguagem. Essa evolução pode ser observada na medida em que nos aproximamos gradualmente da aparição do eterno retorno na obra, num cenário no qual o personagem atinge sua mais solitária solidão. Essa progressiva imersão em uma solidão cada vez mais radical é parte constituinte da autoformação do personagem que se torna o mestre desse pensamento. Para isso, é necessário cada vez mais desprender-se dos vínculos gregários, superar a necessidade que sente dos homens. É no interior desse movimento que, do problema da recepção dos discursos e ensinamentos de Zaratustra, passa-se a uma tematização da própria linguagem. É possível criar uma linguagem que seja livre da pressão gregária exercida pela necessidade de comunicação?14 No início de sua narrativa, Nietzsche nos apresenta Zaratustra como aquele que, apesar de viver por dez anos na solidão de sua montanha, não superou o desejo de comunicar sua sabedoria aos homens. Se por um lado encontramos na narrativa elementos que tornam compreensível a não enunciação do eterno

13 Cf. Idem, p. 4-7

14 Em Sobre Verdade e Mentira num sentido extra-moral, Nietzsche já identifica nessa necessidade gregária de comunicação a

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retorno por Zaratustra nas duas seções da terceira parte, por outro somos levados a nos questionar como é possível que, desse modo, o personagem seja apresentado como aquele que ensina esse pensamento. O itinerário desenvolvido pelo personagem é condizente com o apresentado por Nietzsche em seu esboço para uma obra em quatro partes presente no caderno de anotações que o acompanhava em 188115, na medida em que sugere o encontro do indivíduo que se liberta da vida gregária com a tese cosmológica do eterno retorno. Nesse sentido, seria para aquele que conquistou sua mais profunda solidão que esse pensamento produziria seus efeitos mais viscerais. É na mais solitária solidão que a própria hipótese demoníaca da repetição nos é apresentada no aforismo 341 de Gaia Ciência. Em Zaratustra assistimos a um chamamento à solidão que, no entanto, aparece inicialmente articulado no interior de uma pedagogia que se destina ao projeto de criação do Além do homem, doutrina que, assim como a da vontade de poder, não se afigura no

momento em que assistimos às primeiras aparições do pensamento do eterno retorno na obra de

Nietzsche.

A tímida aparição do eterno retorno como um conteúdo explicitamente formulado e a não enunciação desse pensamento por seu personagem principal exceto na forma de canto são dois dados textuais extremamente importantes que apontam para o caráter peculiar assumido pela comunicação desse pensamento em Assim Falava Zaratustra, o que, por sua vez, nos conduz à necessidade de abordá-la levando em consideração o desenvolvimento da narrativa. Diante disso nos deparamos com duas questões cruciais: em que momento da narrativa deve-se iniciar essa abordagem? Em qual momento encerrá-la? Quanto à primeira pergunta, deve-se levar em consideração o fato de que o primeiro Zaratustra foi publicado como um texto independente no qual o eterno retorno não aparece, o que, para alguns intérpretes, como Marco Brusotti, coloca em questão a ideia de que Nietzsche desde o início tinha a intenção de comunicar esse pensamento em

Assim Falava Zaratustra16. Deveríamos então descartar a primeira parte na abordagem da comunicação desse pensamento na obra? Nossa posição é a de que, assim como ocorre no aforismo 341 de Gaia Ciência, a comunicação do eterno retorno em Zaratustra se inscreve no interior de um cenário dramático para o qual a primeira parte da obra contribui substancialmente. Nesse aforismo podemos observar que esse cenário dramático ecoa o itinerário desenvolvido pelo pensamento de Nietzsche no esboço Meio dia e eternidade17 apresentado no caderno de anotações de 1881 , ou seja, o encontro do selbsteignen com a tese cosmológica do eterno retorno . Esse cenário dramático continua sendo significativo em Assim Falava Zaratustra para pensarmos a

15 Cf. KSA 9 11[197]

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comunicação desse enigmático pensamento. Porém, para entendermos sua configuração no interior da narrativa é necessário considerarmos também o aparecimento das doutrinas do Além do homem e da vontade de poder, bem como o desenvolvimento da temática do niilismo, com as quais o eterno retorno nietzschiano se articula a partir de então, embora não estejam presentes no momento inicial de sua aparição entre os escritos do filósofo.

Na configuração desse cenário dramático no qual o eterno retorno é comunicado em Assim

Falava Zaratustra, assistimos à articulação entre o próprio problema da comunicação e o que poderíamos denominar de diagnóstico nietzschiano da cultura moderna. O subtítulo do livro, “Um

livro para todos e para ninguém” (Ein Buch für Alle und Keinen), presente desde a publicação da primeira parte, já revela que os dilemas envolvidos na comunicação perpassam a obra. Dessa forma, consideramos que tratar a comunicação do eterno retorno em Assim Falava Zaratustra

desconsiderando esses dilemas seria prejudicial à análise. No primeiro Zaratustra já podemos observar também a presença de um diagnóstico da cultura moderna que será desenvolvido nos escritos posteriores de Nietzsche, mas cujos traços já podem ser observados na peculiaridade de sua narrativa, marcando a forma como os principais temas presentes na obra são apresentados, abordados e articulados. Esse diagnóstico é caracterizado pela emergência daquilo que Nietzsche descreve como budismo moderno ou europeu, através do qual a moral cristã encontra uma forma de sobrevivência depois da morte de Deus, e que é compreendido pelo filósofo como a manifestação mais recente do niilismo que, com essa derrocada, entra em sua fase mais radical. Podemos observar como esse diagnóstico se encontra presente na primeira parte, na caracterização

de Zaratustra como mestre do Além do homem, entendido como uma resposta afirmativa à morte

de Deus, como um contramovimento em relação à ascensão do último homem, assim como também se encontra entre os elementos que explicam o fracasso de seu discurso na praça do mercado e, consequentemente, na descoberta de que necessita de discípulos. No entanto, devemos nos questionar se a análise da configuração desse cenário dramático do eterno retorno, tendo como fio condutor o problema da comunicação e o diagnóstico da cultura moderna, deve levar em consideração a forma como estes dois aspectos se apresentam no primeiro Zaratustra, tendo em vista que esse pensamento não é mencionado nesse primeiro livro, publicado de maneira independente. Consideramos que a abordagem da primeira parte por esse viés nos oferece

elementos não só para pensarmos nessa ausência, mas também na própria problemática do eterno

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levaram Nietzsche a se decidirpor comunicar seu pensamento no estilo de escrita de Zaratustra, dando continuidade à sua narrativa dramática.

Como observa Müller-Lauter, encontram-se nos escritos póstumos de Nietzsche indicações de que só se pode entender o eterno retorno satisfatoriamente ao contemplar a doutrina do Além do homem em suas possibilidades, posicionando-se contra a ideia de que essas duas doutrinas possuem somente vínculos exteriores18. Apesar desse vínculo não aparecer no primeiro Zaratustra

de maneira explícita, a primeira ocorrência do Ubermensch entre os escritos nietzschianos no fragmento 4[81] de novembro 1882- fevereiro de 188319, ou seja, em pleno período de elaboração do texto dessa primeira parte, enfatiza sua profunda ligação com o eterno retorno, o que conduz os intérpretes a se questionarem porque esse pensamento não aparece no primeiro livro. Primeiramente, é necessário dizer que a compreensão acerca do porque dessa ausência é sensivelmente prejudicada pelo fato de que o caderno com as notas preparatórias para a primeira parte não se conservou. No entanto, apesar disso, acreditamos que a própria observância do significado do Além do homem nesse primeiro livro pode nos oferecer pistas para pensarmos nessa ausência. Na primeira parte, a criação do Além do homem aparece como um projeto, fio condutor de toda pedagogia de Zaratustra, que tem como etapa prévia a formação de espíritos livres. São estes espíritos que, como companheiros de criação de Zaratustra, constituirão um novo povo, que, por sua vez, dará a luz ao Além do homem. Esse projeto de criação pressupõe um processo de mudança radical nos valores, que mais tarde será denominado por Nietzsche de transvaloração. No caderno de anotações onde o eterno retorno faz sua primeira aparição nos escritos de Nietzsche, a mudança nos valores bem como a desumanização da natureza e a naturalização do homem aparecem afirmadas pelo filósofo como suas tarefas20.O eterno retorno nasce marcado pelo dilema envolvido na compatibilização entre estes dois programas. Isso explicaria porque o primeiro Zaratustra não faz menção a esse pensamento em seu projeto de criação do Além do homem, o que, por sua vez, já manifestaria precocemente as próprias dúvidas do filósofo acerca da efetividade do eterno retorno para o que viria a ser conhecido como transvaloração dos valores. No entanto, poderíamos pensar essa ausência do eterno retorno no primeiro Zaratustra sob outra perspectiva, na medida em que essa mudança nos valores apresentada na primeira parte é

entendida como uma etapa prévia à própria criação do Além do homem, contida numa pedagogia

que se volta à formação de espíritos livres. Nesse sentido, poderíamos dizer que a primeira parte

18 Cf. MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 225. Como exemplos de sua posição, Müller-Lauter cita os fragmentos KSA 10 10 [47] de

junho-julho de 1883 e 16[86] do outono de 1883

19 É necessário distinguir entre os termos Ubermensch e übermenschlicher, pois esse segundo termo já aparece na obra nietzschiana

desde a juventude.

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manifestaria a ideia de que o pensamento do retorno somente encontraria sua significação numa época futura. Ou seja, seria para os espíritos livres, fortes e heroicos, e não para os homens atuais, que esse pensamento produziria o efeito desejado por Nietzsche, o que seria coerente com o itinerário previsto nos escritos de 188121. Apesar do eterno retorno não aparecer no primeiro

Zaratustra esse itinerário é sugerido simbolicamente na travessia representada pelas três metamorfoses do espírito que culmina na transmutação do espírito em criança, uma roda que gira por si mesma.

Para muitos intérpretes do filósofo essas dúvidas quanto à efetividade do eterno retorno para o programa de transvaloração dos valores explicaria a tímida aparição desse pensamento depois de

Assim Falava Zaratustra e o privilégio concedido a partir de então à doutrina da vontade de poder. Segundo Nuno Nabais, essa modesta aparição significa o abandono progressivo desse pensamento que sucumbe diante de doutrinas que seriam mais condizentes com esse programa, como a da própria vontade de poder e do niilismo22.Essa posição se distingue da assumida por Heidegger, para quem o privilégio concedido à vontade de poder não significa de forma alguma o abandono desse pensamento, que se mantém irredutível em seus projetos, indicando que a transvaloração dos valores ocorreria com o advento de uma época trágica, à qual o eterno retorno

se encontra intimamente associado23.No célebre fragmento de Lenzer Heide de junho de 188724, que para Nabais é um marco do abandono nietzschiano do eterno retorno, o filósofo caracteriza

esse pensamento como “a forma mais extrema de niilismo” (die extremste Form des Nihilismus), finalizando o texto, no entanto, com uma pergunta acerca de como uma nova classe de homens fortes, possuidores de uma grande saúde, que emergem no contexto de uma profunda crise, que

toleram em certo grau uma diminuição do valor do homem, que estão “seguros de seu poder (Macht)” e “amam uma boa porção de acaso (Zufall), de sem-sentido (Unsinn)”, pensariam acerca do eterno retorno, sugerindo que para estes esse pensamento seria avaliado de uma maneira distinta. Segundo Nietzsche, esse caráter niilista do eterno retorno está diretamente ligado ao problema do sentido da existência depois da morte de Deus, que se apresenta como o efeito da derrocada de uma interpretação que era tomada como única, a interpretação moral cristã. Segundo o filósofo, o niilismo se apresenta agora não porque o desprazer com a existência é maior do que

21 Como reivindica Nietzsche nos escritos de 1881, o eterno retornoé um pensamento de milênios que somente “alcança por último seus melhores representantes” (KSA 9 11[147]), sendo que seus primeiros adeptos são os mais débeis, vazios, necessitados.

22 Segundo Nabais, as doutrinas da vontade de poder e do niilismorepresentam “o resultado da tentativa de responder aos mais importantes problemas de natureza ética e metafísica colocados ao pensamento de Nietzsche pela própria ideia de repetição”

(NABAIS, 1997, p. 185.), e não mais a doutrina do eterno retorno, sendo consideradas mais significativas na organização do programa de transvaloração de todos os valores.

23 Cf. HEIDEGGER, 2007, p. 197-367. Para Heidegger, o eterno retorno é a doutrina fundamental do filósofo de Zaratustra, sem ela “a filosofia de Nietzsche é como uma árvore sem as raízes” (HEIDEGGER, 2007, p.198). Para o filósofo de Ser e Tempo, o

eterno retorno nietzschiano contém um “enunciado sobre o ente na totalidade” (idem), que possui com a vontade de poder um vínculo intrínseco, afirmando que as duas doutrinas falam o mesmo e se completam, dando expressão a um pensamento único.

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antes, e sim porque se desconfia de seu sentido. Se a vida aparenta ser sem sentido, afirmar seu

eterno retorno é a forma mais extrema de niilismo. A duração sem meta nem fim acompanhada de

um “em vão” é o pensamento mais paralizante. Afirmar a eterna repetição de tudo nesse contexto

se apresenta como a manifestação desse pensamento na sua forma mais terrível, o que pode conduzir ao que Nietzsche qualifica como niilismo passivo. Podemos dizer que o que o filósofo apresenta em sua própria voz nesse fragmento é o que comunica de maneira cifrada em

Zaratustra: o problema do eterno retorno no contexto da escalada do niilismo, do ingresso em sua fase mais radical.

É nesse contexto que podemos observar as ambivalências de Nietzsche em relação ao pensamento do eterno retorno e compreender porque o Além do homem se apresenta como aquilo que o torna suportável. O Além do homem, já no primeiro Zaratustra, aparece justamente como aquilo que dá sentido à existência depois da morte de Deus. O eterno retorno somente começa a ser dito na narrativa depois que o personagem descobre uma profunda semelhança entre sua sabedoria e a vida, e esta se autodefine como vontade de poder, o que somente ocorre na segunda parte da obra. Essa outra controversa doutrina nietzschiana é formulada pela primeira vez no material publicado pelo filósofo em Assim Falava Zaratustra num claro embate com a filosofia da vontade schopenhaueriana, deflagrando o itinerário que conduz o personagem central ao eterno retorno. Nietzsche comunica o eterno retorno em Zaratustra através do dramático sofrimento de seu personagem diante da incorporação desse pensamento, no contexto de emergência da forma mais recente de niilismo que ganha voz, na segunda parte da obra, na figura do Adivinho (Wahrsager), personagem baseado em Schopenhauer. Nesse caminho, o personagem nietzschiano não se afigura mais como um mestre seguro de seus ensinamentos, como podemos observar no primeiro livro, e passa a ser apresentado como um mestre ambivalente, perpassado por tensões. A narrativa deixa de estar centrada quase exclusivamente em discursos, pautada na relação do mestre com seus discípulos. Seu fio condutor passa a ser o processo dramático de autoformação de seu personagem central. As três partes tomadas em conjunto mudam o caráter da obra, pois agora ela

se aproxima de um Bildungsroman, centrado nas dramáticas descobertas do personagem que por

fim se tornará mestre do eterno retorno. Se por um lado a decisão de comunicar o eterno retorno

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um crítico das tentativas de escapar desse mais incômodo dos hóspedes sem transvalorar os valores25.

Iniciaremos nossa abordagem da comunicação do eterno retorno a partir do primeiro livro de

Assim Falava Zaratustra porque acreditamos que assim nos aproximamos mais dos elementos que envolvem o cenário dramático no interior do qual essa comunicação é realizada e de sua articulação com a própria problemática que envolve esse pensamento na obra de Nietzsche. Quanto à segunda pergunta, sobre até que ponto da narrativa de Zaratustra a abordagem do eterno retorno deve se estender, devemos acentuar que este também é um assunto permeado por uma série de controvérsias. Geralmente os intérpretes que tomam esse enigmático pensamento nietzschiano como a concepção básica da obra tendem a assumir a posição de que Zaratustra

acaba na terceira parte, diminuindo o valor do quarto livro para a totalidade da narrativa. Porém, quando Assim Falava Zaratustra efetivamente acaba? Esse debate é marcado pela discussão acerca do estatuto que a quarta parte possui no interior da obra. Grande parte da tradição de intérpretes se divide entre os que consideram que Zaratustra acaba na terceira parte, na canção do sim e do amém (das Ja- und Amen-Lied), e aqueles que defendem que se deve levar em consideração a totalidade do texto que veio a público pela primeira vez em 1892, publicado por Gast, ou seja, que devemos considerar que a narrativa acaba na quarta parte.

Entre as interpretações que se encontram no primeiro grupo, encontramos o denso e detalhado estudo de Laurence Lampert26, para o qual a quarta parte se configura como um mero apêndice (appendix). Os intérpretes do segundo grupo, que defendem o encaixe da quarta parte no todo da obra e reivindicam que esta deve ser levada em consideração, são desafiados, em função dos elementos estilísticos claramente destoantes, a encontrar uma explicação que justifique esse encaixe. Deste modo, eles se veem forçados a apresentar interpretações da obra que indicam de que modo este derradeiro livro deve ser lido para que faça sentido para a obra como um todo.

25 Cf. KSA 12 10[42], KSA 12 9[43]

26 LAMPERT, 1986. O intérprete vai mais além da defesa de que a quarta parte deve ser vista como um mero apêndice, afirmando

que a sua existência viola o final da terceira parte, onde Nietzsche sela o seu livro com sete selos que caracterizam a condenação da velha ordem e o emergir da nova(Cf.Idem, p.287). Dessa forma, a quarta parte causa estranheza pois além de não ser propriamente um fim, aparece depois que o livro propriamente já terminou.. Segundo Lampert, caracterizar a quarta parte como um interlúdio, um entreato, seria mais adequado. Em carta a Brandes de 8 janeiro de 1888, Nietzsche se refere a quarta parte justamente como um

entreato “Ein Zwischenspiel”. Nessa mesma carta, Nietzsche dá um título à quarta parte, “A tentação de Zaratustra: um interlúdio”,

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Entre estas interpretações se encontra, por exemplo, a apresentada por Kathleen Marie-Higgins, que defende que a quarta parte deve ser vista como uma sátira menipéia, contendo uma intrigante alusão ao Asno de Ouro de Apuleius, uma rica satirização à pretensão de sabedoria27. Jörg Salaquarda também se refere à quarta parte como uma sátira, porém defende que a “conclusão do

desenvolvimento conceitual do livro” ocorre na terceira parte com a aceitação do eterno retorno

pelo personagem. O derradeiro livro se afigura para o intérprete apenas como uma sátira representando a compaixão de Zaratustra pelos “homens superiores” de seu tempo28, que podem ser identificados nos traços dos personagens que aparecem nesse momento da narrativa29.

Justamente por conter uma “teoria do homem superior”, Gilles Deleuze ostenta uma posição

polêmica quanto a Zaratustra ao defender que o quarto livro contém aquilo que lhe é essencial30.

Nesse debate, cabe mencionar a posição defendida por Paul Loeb em seu estudo The Death of

Nietzsche’s Zarathustra, pois reivindica que a quarta parte da obra deve ser levada em consideração, sem, no entanto, renunciar à tese de que Zaratustra finaliza na terceira parte. Loeb argumenta que a quarta parte não pode ser vista como sucedendo linearmente o terceiro livro, pois narra eventos que teriam ocorrido no interior deste. Dessa forma, a história de Zaratustra se conclui duas vezes, uma em ordem cronológica com o clímax do terceiro livro, outra estruturalmente com a peça satírica da quarta parte31. O intérprete defende que a influência do

27 HIGGINS, 1987. A figura do Asno representaria nesse viés interpretativo apresentado pela autora americana, as limitações dos

insights de Zaratustra e, assim, a quarta parte apresentaria uma autoirônica sátira na forma de um gênero antigo particular. Dessa forma, lançaria novas e importantes luzes sobre as outras partes, revelando com inequívoca clareza os esforços de seu autor em modificar a mensagem doutrinal de Zaratustra com reflexões sobre sua natureza limitada.A forma de apresentação dos homens superiores na quarta parte da obra é caricatural e guardaria as caracteristicas desse gênero de sátira. Dessa forma, ao mesmo tempo em que produz uma ridicularização daqueles que dizem buscar Zaratustra, daqueles que foram de alguma forma influenciados por seus ensinamentos, a quarta parte coloca em questão a recepção das doutrinas de Zaratustra pelos homens atuais. Além disso, segundo Higgins, há recorrentemente no quarto Zaratustra um distanciamento entre a voz do narrador e as impressões do personagem, sugerindo algo que nem sequer é insinuado nas partes anteriores, que Zaratustra pode estar errado sobre as coisas (Cf. idem, p. 210). Com isso, Nietzsche estaria apresentando um distanciamento crítico de seu personagem, fazendo uma paródia de seus próprios ensinamentos, o que é entendido, no entanto, como um sinal de elevação pelo próprio personagem, queconvoca todos a rirem de si mesmos. A escolha do Asno como objeto de adoração parece se apresentar como o clímax dessa auto-ironia, que, no entanto, segundo a intérprete, não prejudica o significado dos ensinamentos de Zaratustra, todo o processo formativo anterior pela qual passa o personagem. Segundo Higgins, a adoração do Asno pelos homens superiores indica que a absorção deles da doutrina de Zaratustra é realizada sem a genuína compreensão espiritual. O Asno emite um som que evoca a expressão afirmativa da vida que o mestre advoga mas esta expressão é acatada sem a vitalidade que a torna significativa. Deste modo, o sim e o amém do Asno se diferenciam do sim e do amém da canção zaratustriana do sétimo selo e, portanto, da disposição afirmativa do eterno retorno.

28 Cf. SALAQUARDA, 1997, p. 32-33. 29 Cf. SALAQUARDA,1997, p. 168. 30 Cf. DELEUZE, 1976, p. 137

31 Cf. LOEB, 2010, p. 7. Paul Loeb distingue a interpretação de Lampert, queafirma que a quarta parte é um mero apêndice,

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drama satírico ateniense no quarto Zaratustra é mais aguda do que a apontada por Higgins em sua

comparação com o modelo da sátira menipéia.Na juventude, Nietzsche já destaca o costume de

que, nos festivais principais, o poeta trágico apresente quatro dramas: três tragédias e um drama satírico. Nietzsche comenta que na época das Grandes Dionisíacas essa era uma característica que distinguia os poetas trágicos dos cômicos. Ao contrário de Eurípides, em que não havia nenhuma conexão entre as obras teatrais, em Ésquilo esse vínculo se apresentava. Ésquilo elegia um tema mitológico e dividia-o em quatro partes, três atos com o “colorido trágico e sério” e um drama

satírico, uma “imagem serena” do mesmo enredo, que se apresenta como uma exigência do culto

dionisíaco32. Segundo Loeb, Nietzsche fornece pistas de que Zaratustra foi modelado desde o início a partir de um tipo particular de Tetralogia de Ésquilo, sendo a quarta parte trabalhada como uma peça satírica ao fim dessa tetralogia, parodiando tematicamente a trilogia anterior33. Essa estrutura de Zaratustra seria ainda incrementada pela tese de que a quarta parte contém uma paródia a Parsifal34. Dessa forma a narrativa se apresentaria não somente como uma inversão do

Anel dos Nibelungos, como também se encerraria de forma satírica, do modo como o filósofo gostaria que Wagner tivesse se despedido com seu último drama musical. Isso reforça a tese do íntimo vínculo que une a escrita de Zaratustra e a interpretação nietzschiana do caso Wagner, que defenderemos ao longo de nosso estudo35.

Concordamos com os intérpretes que não minimizam a importância do quarto Zaratustra, com a defesa de Loeb que esse escrito esclarece, complementa e expande acontecimentos filosóficos e dramáticos que tiveram lugar nas partes anteriores. Consideramos também ser relevante a ideia apresentada pelo intérprete da relação entre Zaratustra e a Tetralogia de Ésquilo. No entanto, não seguimos Loeb em sua tese de que a quarta parte remete a eventos cronologicamente anteriores ao fim da terceira parte. Lida linearmente como sucedendo aos eventos apresentados ao fim da terceira parte, o quarto livro mostra que aquele que passa por um processo autoformativo com a experiência do eterno retorno, que o credencia a se tornar mestre desse pensamento, por fim retoma a sua tarefa, a transvaloração dos valores representado pela

Nietzsche escreveu os três livros de Zaratustra e publicou-os de forma que pudessem ser lidos de maneira única e autossuficiente, mas depois acrescentou a quarta parte para complementar, esclarecer e expandir determinados acontecimentos filosóficos e dramáticos que já tinham tido lugar nas partes anteriores, no material já publicado. Segundo Loeb, Zaratustra possui dois finais diferentes, um que seria trágico e outro analéptico, que tem o significado de um flashback, uma narrativa que remete a eventos cronologicamente anteriores.

32 Cf. KSA 7 1[109])

33 Cf. LOEB, 2010,p. 90-91 Segundo o intérprete as partes I e II se encerram com uma nota trágica, o personagem se despedindo de

seus discípulos, a parte III termina com o desfecho da trágica desavença entre Zaratustra e a vida, e a parte IV, por fim, encerra-se com o personagem feliz superando sua última tentação e, assim, pronto para voltar aos discípulos.

34Essa tese é defendida por Hollinrake. Segundo o intérprete, com seu tema da tentação da compaixão, predomina no texto da quarta

parte a paródia ao Parsifal de Wagner. Se o tema de Parsifal é a redenção através da compaixão, o sucesso da obra de Zaratustra somente se efetivará se ele resistir à compaixão pelo homem superior, por aquilo que é grande no homem. Entre estes homens, resistir ao Feiticeiro, que personifica a figura de Wagner.

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