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A Arte Musical na Musicoterapia: análise de usos artísticos de Paul Nordoff em Musicoterapia 1

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Academic year: 2021

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A Arte Musical na Musicoterapia:

análise de usos artísticos de Paul Nordoff

em Musicoterapia

1

Gregório Pereira de Queiroz

2

Resumo

Este trabalho ressalta um aspecto específico da contribuição de Paul Nordoff à musicoterapia, enquanto artista e músico: a criação musical do terapeuta como meio de dar expressão aos conteúdos do paciente. O musicoterapeuta carrega de significado suas improvisações com os conteúdos e essências do paciente, valendo-se do conhecimento musical e da capacidade de considerar objetivamente as manifestações deste.

Palavras-chave: música artística, criação musical, carregar de significado,

improvisação clínico-musical.

Abstract

This work show a specific aspect of the contribution of Paul Nordoff to music therapy, while artist and musician: the therapist's musical creation as middle of giving expression to the patient's contents. The music therapist loads of meaning their improvisations with the contents and patient's essences, using your musical knowledge and of the capacity of considering objectively patient's manifestations.

Key-words: artistic music, musical creation, load of meaning, clinical-musical

improvisation.

1 Este artigo tem por base o capítulo 6 da monografia “Alguns aspectos da musicalidade e da música de Paul Nordoff

aplicados em crianças com múltiplas deficiências”, São Paulo, Faculdade Paulista de Artes, 2002.

2 Gregório Pereira de Queiroz – Arquiteto, formado pela FAUUSP; especialista em Educação Musical com área de

concentração em Musicoterapia, pela Faculdade de Música Carlos Gomes; especialista em Musicoterapia, pela Faculdade Paulista de Artes. Autor do livro A Música compõe o Homem, o Homem compõe a Música. E-mail:

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Paul Nordoff era um artista, um músico, tendo sólida e importante carreira há muitos anos, antes de se dedicar à terapêutica de crianças deficientes por meio da música. É fato bastante difundido que este veio a se interessar pela utilização da música no tratamento de crianças, a partir de seu encontro com Clive Robbins na Sunfield Children Home, na Inglaterra.

Não querendo entrar em detalhes sobre sua titulação, como ter estudado na Juilliard School ou com o renomado compositor Goldmark, mas querendo mostrar o interesse de Paul Nordoff na compreensão da natureza essencial da música, considero importante relatar duas linhas de trabalho em que atuou, antes de se tornar musicoterapeuta.

A primeira delas foi ter conhecido e trabalho com o musicólogo Joseph Yasser. Yasser foi um estudioso da evolução da tonalidade, das escalas pentatônicas até a escala diatônica, chegando a propor, como próximo passo da evolução da música, o desenvolvimento de uma escala de dezenove notas. Paul Nordoff foi o pianista escolhido para demonstrar o trabalho com esta escala, pela companhia de pianos Stenway, em um instrumento especialmente afinado nesta escala. Segundo Clive Robbins (1998),

Embora ele estivesse intrigado pelas sutis possibilidades melódicas e harmônicas desta nova escala, foi a pesquisa fundamental de Yasser sobre a música da China antiga e a evolução das escalas o que mais profundamente excitou o interesse de Nordoff. Esta pesquisa explicou claramente o relacionamento entre as escalas pentatônicas (as quais Yasser chamada de “escalas infradiatônicas”) e as escalas diatônicas, e suas propriedades harmônicas distintamente diferentes. Mais tarde, Nordoff combinou esta percepção com o ponto de vista de Steiner sobre a pentatônica – em especial com referência às experiências musicais das crianças – e com o conceito dos intervalos de Steiner, deste modo criando a fundamentação teórica para a aplicação clínica da pentatônica em musicoterapia.3

Este primeiro relato mostra um dos aspectos do artista Paul Nordoff: seu interesse por pesquisar e compreender a natureza essencial da música.

A segunda linha de trabalho é seu trabalho artístico com a canção, em particular, musicando textos e versos pré-existentes à música, como, por exemplo, poemas. Segundo Clive Robbins,

“Ele adorava escrever canções sobre poemas. Pegava um poema e musicava. Nunca fazia o oposto. . . Eu estava neste pequeno balcão, olhando para baixo e lá estava o piano e Paul. Ele primeiro lia os poemas e depois tocava a música feita. Eu nunca tinha visto um homem tão aberto e tão direto com o público. E os poemas eram maravilhosos. Eram sobre a vida, sentimentos, luta, amor, mistério e misticismo, mas lidos de uma maneira especial. E aí ele tocava sua música e eu entendia a liberdade dela: entendia

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porque a tinha feito; como as palavras e a música se juntavam e o pode de expressão que saía delas.” 4

Musicar poemas é considerado, por alguns musicistas, como uma forma de arte das mais requintadas – como exemplo, temos as canções de Schumann e Schubert na literatura musical.

Estes dois breves exemplos poderiam se somar a muitos outros na demonstração da sensibilidade artística de Paul Nordoff – sendo demonstração mais direta desta, a audição de suas obras musicais e suas improvisações clínico-musicais. Haveria muito mais o que mostrar e comentar enquanto contribuição do artista Paul Nordoff à musicoterapia. Contudo, considero que há um ponto fundamental, base de todas as suas demais contribuições, e é a esse ponto que quero me ater neste texto.

Para compreender sua contribuição, é preciso primeiramente verificar que diferença há entre música e música artística. Que característica tem a música artística que a diferencia de outras espécies de música? Ou ainda, o que torna uma música artística?

Nosso ponto de partida a essa questão, é uma definição nascida na literatura. Diz o poeta, crítico e pensador Ezra Pound: “Literatura é linguagem carregada de significado. Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.” 5

Como comentado anteriormente6, o significado da música está nas qualidades dinâmicas e, portanto, “carregar de significado” a música, tornar a música artística, é trabalhar criativamente as qualidades dinâmicas para que elas expressem os muitos arranjos e proporções possíveis entre as forças e fluxos dinâmicos. A música artística é aquela que melhor se aproveita da estrutura musical para expressar um significado – sendo este significado, o próprio trabalho das qualidades dinâmicas.

Segundo esta definição de “música artística”, a obra de um Beethoven ou de um Bach, é altamente artística, pois apresenta algumas das mas plenas utilizações do código, do sistema musical. Compreender o código que se tem em mãos e valer-se dele extraindo o máximo de expressividade é o que estes compositores fizeram. Em outras palavras, carregaram de significado as qualidades dinâmicas presentes na música.

É deste tipo de procedimento que estaremos falando a respeito de Paul Nordoff enquanto artista: alguém que aprendeu a “carregar de significado” suas composições musicais e, posteriormente, suas improvisações clínico-musicais.

Na música artística, o compositor almeja dar expressão à própria música. Deixemos de lado as interpretações infantis do artista que tenta dar expressão às suas dores e alegrias, pois que a

4

Entrevista com Clive Robbins. Revista Brasileira de Musicoterapia, Número 6, Ano V, 2002.

5 Pound, E., ABC da Literatura, cap. 2.

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análise da obra dos grandes compositores não corrobora isso. Eles descobrem as leis e a natureza das notas e dos sistemas musicais e as revelam por meio de suas obras.

“. . . A maioria dos gênios, quanto menos ele fala dele mesmo, mais se presta a dar voz às notas, às palavras, às cores e às formas. Neste sentido, então, a música escreve-se a si mesma – nem mais nem menos, a propósito, do que o físico o faz. A lei da queda dos corpos não é invenção do gênio de Galileu. O trabalho do gênio consiste em levar sua mente, através de anos de prática, à harmonia com as coisas, para que as coisas possam expressar suas leis através dele. . . Isto é verdade para o cientista como para o gênio artístico. Todo grande pensamento musical é, deste modo, mais propriamente uma descoberta do que uma invenção.” 7

O grande compositor, e mesmo o grande executante, dá expressão à música em si, à essência da própria música, assim como todo artista busca na arte a expressão da verdade. Não de uma verdade pessoal e subjetiva, mas da verdade. É deste tipo de arte, de qualidade artística, que devemos partir, se queremos compreender a arte musicoterápica de Paul Nordoff.

Na arte musical, carregar de significado é dar expressão aos conteúdos da própria arte – e assim fazendo, o artista dará expressão aos conteúdos da vida, do humano e do mundo. Beethoven, em seus cadernos de esboços musicais, mostra o quanto lidava com o material “música”, não com o material sentimento. A inserção de um tema, uma mudança de tonalidade, uma pequena variação na re-exposição, o caminho para se voltar à tonalidade inicial da peça, tudo isso era pensado não pelo efeito emocional que causaria sobre o público ou sobre si mesmo, mas pelo quão significativo musicalmente, pelo quanto desenvolveria a própria linguagem musical, pelo quanto seria expressivo salientar aquele e não outro dado do sistema musical.

Se o sistema tonal é a referência do artista musical, aquilo a ser dado á expressão, a “carregá-la de significado”, o que em musicoterapia deve ser dado à expressão? O que é “carregar de significado” a música na prática musicoterápica, em particular na improvisação clínica?

Parte dos significados continuam sendo os da própria estrutura musical. Não há como deixá-los de fora, ou a música perde sua força. As qualidades dinâmicas continuam carregando de significado a música, para esta ser um agente poderoso, uma música significativa, ou seja, artisticamente rica. Mas não basta ficar nisso, ou não damos o passo em direção à música na prática musicoterápica.

Ao assistir aos vídeos de Paul Nordoff atuando, salta aos olhos como ele toca piano e canta olhando para as crianças; é como se aquilo que a criança transmite, enquanto movimento e som, fosse transmutado em sons do piano e da voz de Paul. A música clínica de Paul não era improvisada e criada para a criança, mas pela criança; é, em essência, uma interpretação musical da criança. Por

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mais subjetiva que pareça ser esta análise da atuação de Paul, creio que ela é visível a qualquer olhar atento a esses registros em vídeo. Paul carregava a música de significados da criança, significados que ele apanhava na movimentação e de todo e qualquer gesto sonoro e musical da criança. Ao ver as mãos de Paul ao piano e seus olhos atentos à criança, ao ouvir os sons que saiam de seu piano ao mesmo tempo em que vemos as manifestações da criança, torna-se evidente que sua música era a criança – mais especificamente, a musicalidade da criança, a “music child” – transmutada em som musical.8

Este é um gesto parcialmente diferente daquele do artista da música, ocupado em abrir espaço em sua mente para que se manifeste criativamente a estrutura da música. Contudo, é um gesto de mesma natureza do gesto do artista: dar expressão a algo que não é apenas uma particularidade pessoal, mas a um conteúdo que o artista intenciona expressar fielmente. Este conteúdo é a estrutura da música, no caso do compositor, e é algo da criança ou do paciente, no caso do musicoterapeuta.

Esta é, a meu ver, a contribuição principal do artista Paul Nordoff à musicoterapia, uma contribuição originada em sua formação como artista: o gesto de dar expressão a um determinado conteúdo subjetivo sendo utilizado com finalidades terapêuticas. Com “dar expressão” quero dizer: criar uma forma, uma forma artística, musical, que seja não um símbolo apenas, mas a forma realmente de um determinado conteúdo da pessoa.9

Em Paul Nordoff encontramos o musicoterapeuta que abre o espaço em sua mente para que as essências da criança ganhem corpo musical, tornem-se música. Aquelas essências que, bloqueadas pelas múltiplas deficiências e déficits, não se manifestam na criança, são assim manifestadas na música de Paul Nordoff e por meio desta retornam sobre a criança e a revivificam: a criança vive fora de si mesma aqueles conteúdos que não consegue expressar. A natureza integradora da música – causadora de unicidade e fluidez – é o solvente que faz com que a criança, ao viver fora de si certo conteúdo, viva-o também dentro de si mesma. A natureza integradora da música é o solvente que faz os conteúdos da criança serem transmitidas ao musicoterapeuta, é como se ele experimentasse o interior da criança em sua própria música.

Uma parada se faz necessária neste ponto. Como pode alguém afirmar que um pianista experimenta o interior da criança na música que ele próprio cria e executa? Não seria esta uma projeção, uma transferência do terapeuta para seu paciente, para a música?

8 “O musicoterapeuta cria a música inspirado pela criança.” Clive Robbins em entrevista à revista da UBAM, nº 6, p.

74.

9 Utilizo aqui a mesma diferenciação de Susanne Langer, quando esta diz no capítulo 8 de Sentimento e Forma, que “a

música não é símbolo dos sentimentos, mas a forma do próprio sentimento”. Somente modifico a palavra “sentimento”

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De fato, podem ocorrer dois processos completamente diferentes dentro do mesmo gesto num improviso musicoterápico. É preciso admitir que muito de projeção dos conteúdos do musicoterapeuta poderá povoar a música e carregá-la de significado que só dizem respeito ao terapeuta e não ao seu paciente. E, deste modo, é natural que não se crie o vínculo terapêutico, ou se for criado, o será do modo mais equivocado: descentrado dos interesses e necessidades do paciente.

Admitindo por hipótese que possa existir a outra opção, a do musicoterapeuta experimentar o interior da criança em sua própria música – dar voz aos conteúdos da criança em sua criação musical –, como esta se diferencia da projeção transferencial?

De maneira bastante simples, na verdade. Tomemos um exemplo de atuação musicoterápicta de Nordoff: a primeira sessão com Edward, que consta como primeira faixa da fita cassete que acompanha o livro Creative Music Therapy. Edward, criança autista com cinco anos e meio, entra no setting chorando, berrando. Ao chorar, Edward emite sons cuja altura correspondem à nota Fá#, com variações que correspondem a Lá e Si – Edward chora em Fá#,Lá e Si. Paul responde tocando em uma escala contendo Fá#, Lá e Si – e estas notas geram uma escala no modo dórico –, primeiro algumas notas, depois notas no registro grave, imitando o choro do menino.

Paul cria um tema melódico, faz glissandos pelo piano, toca acordes acompanhando melodias, e, naturalmente, nada disso está presente no choro do menino. Tudo isso é invenção, é criação musical de Paul. Mas o centro da criação musical não foi inventado por Paul. O centro da criação musical é o choro de Edward, sua manifestação sonora mais evidente. Os acréscimos de Paul, que transmutam o choro em música, são acréscimos musicais advindos da estrutura musical – o modo dórico, estabelecido pela relação das alturas (notas) do choro do menino – que tem suas próprias qualidades internas. Certas notas dentro do modo dórico pedem outras notas, tensionam em uma direção, relaxam em outra, e todo esse material é próprio da música, das qualidades dinâmicas presentes na música, não é invenção de Paul, não é projeção de Paul, a própria música pede suas resoluções, seus tensionamentos, seus movimentos.

(Um musicoterapeuta sem conhecimento musical, particularmente de harmonia, não saberia tão profundamente sobre as relações musicais presentes nessa vocalização, nessa relação entre notas – lhe faltaria o conhecimento necessário para dar um tratamento musical, como a música requer, como as leis da música impõem. Tal terapeuta fatalmente criaria música conforme suas idéias, seu gosto, sua sensibilidade – enfim, de acordo com um fator extra-musical. Seria o caso de considerarmos tal intervenção clínico-musical uma particularidade do terapeuta – aí sim, um gesto projetivo! – e não uma necessidade da música do paciente.)

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seja acrescentado enquanto projeção ou transferência do musicoterapeuta, na medida em que sejam preservadas as duas primeiras condições, pois elas garantem à criança, ao paciente, que a música criada/improvisada está sendo carregada de significado com os conteúdos relativos a ela (criança, ou paciente) e com os conteúdos da própria música.

Em musicoterapia sobrepõem-se dois conteúdos a carregar de significado a música: um deles igual ao que carrega de significado a música artística, a saber, as leis das qualidades dinâmicas musicais; o outro conteúdo é provido pelas manifestações comportamentais e sonoras do paciente, transmutadas em música.

Devidamente carregada de significado com essas duas linhas de conteúdo, a música será suficientemente terapêutica. Mas o que possa ser colocado a mais, por gosto pessoal, injunção, projeção ou boa vontade do musicoterapeuta, então, não carregaria tanto assim de significado a música, a ponto desta deixar de ser um agente competente para o processo musicoterápico?

Pelo contrário, este terceiro componente não é apenas um estorvo ou acréscimo apenas tolerável dentro da improvisação terapêutica. O Triângulo de Carpente e Brandalise10, postula serem três os componentes, em uma sessão de musicoterapia, a buscar contato: a música em si (as leis, as qualidades dinâmicas desejando se expressar), a música do paciente (as formas de expressão da criança colocadas em música) e a música do terapeuta, o terceiro componente a ser agora melhor detalhado.

A música que vem do terapeuta – contendo seu gosto pessoal, suas afinidades estéticas – é ingrediente indispensável, na medida em que esta é a presença do terapeuta no fazer musical, sua busca de contato.

A atitude requerida para uma atuação verdadeira dentro deste método, é a de considerar objetivamente a manifestação corporal, comportamental, sonora e musical da criança (ou paciente). Considerar externamente o que a realidade da criança traz ao musicoterapeuta, ao invés de considerar internamente o que seu gosto pessoal, tendências e questões possam lhe sugerir colocar em música. O exemplo de Edward descrito anteriormente é bastante expressivo do que seja considerar externamente a criança e suas manifestações.

Esta atitude é o que torna o musicoterapeuta capaz de considerar a manifestação da criança como o centro da criação musical. Sem desenvolver esta atitude, sem treinar musicalmente esta atitude, não se tem a capacidade real de trazer os conteúdos da criança para o centro do fazer musical; sem esta atitude, os conteúdos transmitidos pela criança não podem ser transmutados em conteúdo musical pelo musicoterapeuta. Sem esta atitude, não é possível ao terapeuta experimentar o interior da criança em sua própria música. Este milagre lhe é negado.

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(O exemplo escolhido retrata a relação mais simples de consideração do musicoterapeuta para com a expressão da criança: a imitação direta. Há, sem dúvida, outros modos de considerar a expressão da criança, trazê-la ao centro da música. Esses outros modos, mais complexos, são menos didáticos para serem usados como exemplo neste contexto; mas são igualmente legítimos, isto é, preservam o conteúdo da criança ou paciente ao trazê-lo para o cerne musical.)

Na medida em que a psicologia convencional não veja outra possibilidade no gesto artístico que não a projeção dos conteúdos do próprio artista, suas considerações sobre a arte serão superficiais, dizendo de como o artista projeta na obra seus próprios conteúdos – “dores, alegrias, medos e esperanças” – quando a arte verdadeira nunca teve ligação com essas coisas. O gesto criativo em arte é uma incógnita para a psicologia, incógnita da qual a psicologia se elude por meio dos conceitos de “projeção” e “associação”, como se somente isso fosse possível ao ser humano enquanto gesto psicológico. Não é de estranhar, então, que essa visão da psicologia não consiga enxergar na arte, na musicoterapia de Paul Nordoff e no músico-centramento nada mais que não gesto projetivo.

Zuckerkandl discute este ponto:

“É claro que qualquer teoria que tente referir a possibilidade da experiência artística ao condicionamento, à repetição, ao hábito, ao aprendizado, a seqüências que se tornaram mecânicas, não podem senão deixar de considerar o elemento da criatividade. Desde que todo trabalho de arte é essencialmente criação – mais acuradamente, descoberta criativa – nenhuma teoria associacionista ou comportamental [behaviorista] pode alguma vez dar uma interpretação adequada ao fenômeno artístico.” 11

Torna-se claro porque Nordoff e Robbins enfatizaram o aspecto “criatividade” de sua abordagem, inclusive denominando-a “Musicoterapia Criativa”: todo o processo e o tratamento terapêutico centra-se no gesto criativo do musicoterapeuta, gesto este idêntico ao do verdadeiro artista só que aplicado aos conteúdos do paciente. O centro desta atuação terapêutica é não somente a música, mas o gesto artístico de criação musical.

O gesto verdadeiramente artístico e criativo de Paul Nordoff não estava, a meu ver, no modo belo e cativante como produzia sua música – ou, mais acuradamente, a música pelas crianças – mas seu verdadeiro gesto criativo, capaz de transformar as crianças com que trabalhou, era considerar a expressão da criança como causadora de sua música, tornando-a o centro de sua música, ao invés de considerar suas próprias intenções como geradoras da música.

Dentro de tal enfoque, as intervenções clínico-musicais de Paul, ou de qualquer outro musicoterapeuta, mesmo as mais diretivas, são, assim, feitas legitimamente em nome do paciente,

11 Zuckerkandl, V., Som e Símbolo: Música e o Mundo Exterior, cap. 4. Nordoff e Robbins citam este mesmo trecho no

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tal como um artista pode legitimamente expressar em sua obra de arte um conteúdo, essência ou valor em nome da raça humana – e isso corresponder a uma verdade.

No exemplo que utilizamos, ainda mais se ouvimos as gravações da sessão de improvisação clínico-musical, podemos perceber o que Paul faz: assume musicalmente o dado objetivo, concreto exposto pela criança. Não há considerações subjetivas em jogo, não há análises do choro ou da entonação do menino, não há outro gesto por parte de Paul que não a exata e total assunção do que Edward traz à expressão, assunção esta transmutada em música pelas leis e inerências da própria música. Isto é carregar a música de significado musicoterápico; um gesto a princípio puramente artístico, transformado em gesto musicoterápico.

Esta é a contribuição capital de Paul Nordoff, enquanto artista, ao campo da musicoterapia. Todas as demais contribuições artísticas de Nordoff – tais como o modo como utiliza a harmonia, a canção, a improvisação e a composição – são decorrência desta primordial: a criação artístico-terapêutica em função dos conteúdos do paciente.

Referências Bibliográficas

Aigen, K. Paths of Development in Nordoff-Robbins Music Therapy. Gilsum, EUA: Barcelona Publisher, 1998

Brandalise, A. Musicoterapia Músico-Centrada: Linda 120 Sessões. São Paulo: Apontamentos, 2001.

Langer, S. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva, 1980. Cap. 8.

Nordoff, P. & Clive, R. Creative Music Therapy. New York: The John Day Company, 1977. Pound, E. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1977, 3ª Ed.

Robbins, C. & Robbins, C. Healing Heritage: Paul Nordoff Exploring the Tonal Language of Music. Gilsum, EUA: Barcelona Publisher, 1998.

Robbins, C. Entrevista com Clive Robbins. Revista Brasileira de Musicoterapia. Rio de Janeiro: UBAM, nº 6 ano V, 2002.

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