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O que é que a música tem?... que o som e o ruído não têm 1

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Academic year: 2021

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... que o som e o ruído não têm

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Gregório Pereira de Queiroz2

A noção da qual o Phaedo dá expressão é aquela do homo musicus, do homem como músico, como ser que requer música para se realizar plenamente. Esta dimensão de nossa humanidade tem se mantido largamente à sombra no curso do pensamento ocidental. Este é o tempo de trazê-la à luz.

Zuckerkandl, Man the Musician

PALAVRAS–CHAVE:música em musicoterapia, musicalidade, aqui e agora

Este trabalho procura mostrar as características essenciais da música para o processo musicoterapêutico e comenta alguns dos possíveis papéis da música em Musicoterapia.

A música deverá ter algo de único, ou a Musicoterapia não precisaria existir como área de conhecimento separada da Psicologia e da Arte-terapia. Se a música fosse um meio como outro qualquer para a comunicação, a interação e a percepção humana, a Musicoterapia bem poderia ser uma especialização particular de uma destas áreas mencionadas.

Além de olhar em detalhe a música, a fim de compreender o que esta confere de particular ao campo da Musicoterapia, queremos ainda comparar a música com os outros fenômenos audíveis, o som e o ruído, a ver qual diferença existe entre utilizar sons e ruídos, ou música, no processo musicoterapêutico.

1 Palestra apresentada na 12ª Semana de Musicoterapia de Ribeirão Preto, Unaerp, novembro de 2005. 2 Gregório Pereira de Queiroz – Arquiteto, formado pela FAUUSP; especialista em Educação Musical

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A conclusão deste trabalho é que a música tem características que conferem ao trabalho musicoterapêutico uma natureza peculiar; que a música se destaca de sons e ruídos, permitindo uma atuação terapêutica a qual não é possível quando da utilização apenas de sons e ruídos; e, principalmente, que a música abre campos e modos de percepção que a diferenciam radicalmente de qualquer outro meio de percepção ou cognição humana, em especial com relação à dimensão “tempo”.

Música, sons e ruídos

Música é uma forma audível dada em uma sucessão temporal. Contudo, nem tudo o que é audível é considerado música. O que diferencia um “algo audível” que não é considerado música de outro “algo audível” a que denominamos música?

Uma primeira diferenciação pode ser encontrada na diferença entre os tons musicais e os demais sons. Os dois são vibrações que se propagam pelo ar ou por outro meio de propagação. No entanto, os tons (ou notas) musicais diferem dos demais sons, conforme a clássica definição de Helmholtz no século XIX, por serem formados por vibrações periódicas; os demais sons e ruídos são formados por vibrações aperiódicas. Um fator temporal, a periodicidade das vibrações, concede ao tom musical não apenas sua afinação definida, mas sua característica fundamental.

Esta diferença entre tons e sons, entretanto, não é suficiente para concluirmos sobre o “algo audível” que se considera ser música, pois muita música é feita de sons e ruídos. Isto é particularmente válido para a música ocidental erudita do século XX, mas não somente para esta. A maior parte dos instrumentos de percussão produz ruídos e não tons, e, não obstante, há muita música feita somente de percussão, sobre a qual não há dúvida sobre se é música realmente ou não.

Agora, os tons têm uma segunda característica inerente. O modo de vibrar de um tom fornece, em si mesmo, um sistema de relações entre vários tons. Este sistema de proporção entre vibrações existe de maneira natural em cada tom que soa, são seus

harmônicos, e é a base das escalas musicais no Ocidente, no Oriente e em todas as

civilizações – pois que não há registro de civilização ou mesmo povo que não tenha música feita a partir de tons e escalas.

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culturas. A forma audível que chamamos música é algo audível formado por um sistema

de sons; os tons são sons que contêm um sistema de relações inerente em si próprios.

Os tons são, por assim dizer, a maneira natural dos sons formarem um sistema, o qual se caracteriza por uma qualidade dada pelo tempo, a periodicidade da vibração de um corpo. (Temos já aqui, embora embutidamente, que o tempo fornece o sistema intrínseco ao que é musical.)

Uma segunda maneira do sistema de sons se estabelecer é aquela da música puramente percussiva, na qual o ritmo, ou os ritmos, forma o sistema de relações entre os ruídos da percussão. Quase sempre este tipo de música logo se associa a cantos e cânticos, nos quais estão presentes os tons. (Mais uma vez o tempo, agora o ritmo, é o fator a gerar um sistema de relações.)

Uma terceira maneira é aquela praticada por compositores da música erudita ocidental: atribuir arbitrariamente a um dado conjunto de sons ou tons uma significação, segundo algum critério conceitual da escolha do compositor; e, deste modo, a partir de algum conceito externo à natureza do próprio som, forma-se com os sons um sistema. Enquadram-se aqui, correntes musicais tais como o dodecafonismo, o serialismo, a música concreta e eletrônica etc..

Para se “ouvir” esta música, para conhecer seu significado, é preciso ter conhecimento do critério utilizado pelo compositor para o sistema que resolveu utilizar. Sem este critério em mãos, podemos ouvir a música resultante, mas dificilmente seremos capazes de extrair diretamente dela o significado existente, pretendido pelo compositor. Ouvir música e saber de antemão o critério que criou esse sistema de sons é como podemos chegar a conhecer seu significado.

Este é um caso bastante particular. No mais, a música em todos os tempos e civilizações conhecidos, e mesmo hoje em dia, é feita com base no sistema de relações naturais dos tons, as proporções inerentes às vibrações periódicas.

O homem não criou essas forças; ele as descobriu. Os sistemas tonais são descobertos no reino do audível; eles não são invenções. (Zuckerkandl, 1973, p.249T)

Em resumo, temos um sistema inerente aos tons musicais, que é percebido

diretamente pela audição, sem a necessidade de qualquer acréscimo exterior de

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mais diversas culturas prescinde de explicação para ser compreendida). E existe uma segunda possibilidade: um sistema de referências ser aplicado sobre um dado conjunto de sons ou ruídos, dando-lhes a característica necessária para se tornar o que se denomina “música”.

Naturalmente, todos estes tipos de música podem ser e são utilizados em Musicoterapia; nos dois casos, a música é formada por um sistema de sons.

Neste trabalho estamos considerando o potencial musicoterapêutico da música feita por tons, feita pelo sistema de relações percebido diretamente pela audição, sem a necessidade do concurso do intelecto ou de referências externas ao som da música. Este o sistema de referência é universal, reconhecido por todos os humanos e pode ser aplicado igualmente – embora não identicamente – para as pessoas de diferentes culturas e características humanas e psicológicas.

(De modo algum, pretendo que a Musicoterapia se reduza à experiência com música; ela abarca também a experiência com sons e ruídos. Inclusive algumas definições de Musicoterapia a definem a partir da relação do ser humano com sons, e não com música. O que pretendo explorar neste trabalho é o que temos em mãos quando trabalhamos especificamente com música em Musicoterapia, e para isso estamos, como primeiro passo, procurando entender o que caracteriza a música.)

Ouvir música é ouvir movimento

Não importa se eu produzo música ou se escuto música que outro alguém produz: nos dois casos, estou ouvindo música. Isto vale também para uma sessão musicoterapêutica: os participantes sempre ouvem música, não importa se fazem música por sua conta ou se escutam música gravada ou feita pelo musicoterapeuta: é por meio da audição que percebem a música.

Quando ouvimos música ouvimos o sistema de relações entre tons, ouvimos as mudanças de estado das diferentes condições dinâmicas dos tons. Mais do que apenas ouvir uma seqüência temporal de diferentes afinações, ouvimos principalmente o

movimento em um campo dinâmico.

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música significa ouvir uma ação de forças. (Zuckerkandl, 1973 p. 26T)

Que música e movimento têm íntima ligação, é colocado por pensadores das mais diversas linhas, nos mais diversos momentos históricos. As definições de movimento e de música podem divergir, conforme o autor e as bases do pensamento de cada época, mas a conexão entre os dois permanece.

Estruturas musicais são estruturas de movimento, estruturas cinéticas. Os tons são elementos de uma estrutura musical porque e na medida em que eles são condutores de movimento que passa através deles e além deles. Quando ouvimos música, o que ouvimos é, acima de tudo, movimento. (Zuckerkandl, 1973 p. 52T)

Assim, colocado resumidamente, ouvir música é ouvir movimento. Quando estamos envolvidos com música, produzindo-a ou apenas escutando, estamos ouvindo movimento. Ouvir movimento é, então, uma característica do processo musicoterapêutico. Poderíamos dizer que o processo musicoterapêutico é aquele que acontece quando estamos ouvindo movimento. E como, ao ouvir movimento eu me movo junto com ele, poderíamos definir o processo musicoterapêutico como sendo aquele no qual cliente e terapeuta se movem com o movimento contido em determinada música que soa ou em determinado fazer musical.

No ato da audição, realidades viventes vêm em contato direto; ouvindo tons, eu me movo com eles; eu experimento seu movimento como meu próprio movimento. Ouvir tons em movimento é mover-se junto com eles. (Zuckerkandl, 1976 p. 110T)

Mover-se junto com os tons é ter o corpo e a interioridade mobilizados pela música. Corpo e interioridade humana movem-se junto com a música. Entrementes, o movimento que a música apresenta à percepção humana tem uma característica bastante única. Ele difere do movimento das mudanças de estado de nossa psique e daquele dos corpos em trajetórias no espaço físico; é aquele presente nas mudanças de estado dinâmico, o movimento das tensões e contra-tensões das forças presentes nos tons musicais.

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primordial forma de movimento que conhecemos. (Zuckerkandl, 1973 p. )

Temos então que na música ouvimos um movimento que não é o de objetos nem de uma psique, mas o movimento puro de forças fluindo em mudanças de estado e dinâmica. Esta seria uma tentativa de descrição do que acontece quando ouvimos música. Há que se reconhecer que as palavras aqui falham em apresentar concretamente o que se percebe na audição musical. Mas isto acontece porque não temos palavras nem conceitos para descrever a dimensão que se abre à nossa percepção diante da audição musical.

A dimensão na qual se dá o movimento puro é chamada por Zuckerkandl de “terceiro palco”, nem o mundo físico nem o mundo da psique, mas um palco outro, o qual, embora não esteja “fora” do mundo que conhecemos, não é localizada na dicotomia com a qual abordamos o mundo: o exterior e o interior, o físico e o psíquico.

Assim, a música tem um duplo papel no processo musicoterapêutico: primeiro, descortina um “terceiro palco”, o das dinâmicas puras; como um solvente abre a dimensão na qual nossa percepção se inteira do “mundo em fluxo”, da interação entre sujeito e objeto, do movimento fluente em que tudo vive; segundo, como um agente do movimento, a música insere na relação entre cliente e terapeuta seus próprios movimentos, sua dinâmica, que vem a ser atuante no próprio processo.

Assim, ao mesmo tempo em que descortina uma outra dimensão para a relação entre cliente e terapeuta, a música é uma terceira entidade atuante no processo; ela é tanto o “meio” no qual se dá o processo, quanto é também um “agente” do processo. Enquanto “meio”, a música altera nossa percepção e relação com o espaço e o tempo; enquanto “agente”, a música nos move de diferentes maneiras em meio ao espaço e ao tempo fluentes,

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Espaço e tempo em Musicoterapia

Podemos concluir que no estrato e realidade de onde vêm os tons musicais e para a qual eles levam, não somente a antítese de “eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são transcendidas. Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então os tons podem, por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos às raízes das coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”, implicando não em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte comum que nutre cada coisa particular. Esta fonte é também o domínio dos tons. . . . A verdadeira existência dos tons é a evidência de um estrato da realidade no qual a unidade brilha através da diversidade. (Zuckerkandl, 1976, p. 31T)

O palco do movimento puro colocado em primeiro plano no fazer musical nos redimensiona quanto à percepção do mundo e de nossa relação com ele, em dois aspectos fundamentais: a percepção do espaço e a percepção do tempo.

A música não nos transporta para "outro" plano da existência. Ela nos faz perceber este mesmo plano em que vivemos, a partir de uma outra dimensão deste. A percepção do espaço e do tempo se altera quando estamos envolvidos com música. A outra dimensão que a música descortina é aquela na qual o espaço não é feito de lugares, mas de forças e fluxos; e o tempo não é feito de seqüência de instantes isolados, mas de um entrelaçamento dos instantes vividos.

Esta idéia foi desenvolvida por Zuckerkandl, em Sound and Symbol: Music and

the External World e em Man the Musician. Vocês poderão encontrar, nas duas obras,

ampla explanação filosófica, psicológica e musical a respeito do que é movimento, e da fluência do tempo e do espaço. Pretendo aqui abordar este redimensionamento apenas no que tange o processo musicoterapêutico.

Espaço

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a mim e “no qual distinguimos algum lugar de outro lugar, medimos intervalos, delineamos fronteiras, dividimos e colocamos junto” (Zuckerkandl, 1973, p. 224T), mas vem a ser também o espaço no qual percebemos

aquilo que vem desde o exterior, aquilo que é dirigido para mim, flui para mim e para dentro de mim, como aquilo que é dado de nenhum outro modo que não uma unidade indivisível sem limites, na qual nada pode ser dividido e mensurado – um espaço fluido sem lugaridades.” (Zuckerkandl, 1973, p. 224T):

Espaço como lugar

Eu espaço Outro

Este é um espaço no qual eu e o outro, terapeuta e cliente, mantêm claro e definido quem sou eu e quem é o outro. O espaço, como o percebemos, mantém separado terapeuta e paciente, como sendo entidades distintas e diferentes.

Este é, por exemplo, o espaço dentro do qual trabalham as terapias verbais, nas quais o terapeuta trabalha, por meio das palavras, para que o outro entenda intelectualmente seu comportamento e psique; pretende-se que o entendimento leve a modificações. Uma separação entre eu e o outro, tácita ou explícita, é necessária para que este tipo de trabalho se processe. Se eu e o outro perdemos nossas fronteiras e nos mesclamos, não é mais possível o trabalho terapêutico. Daí a necessidade imperiosa do conhecimento a respeito e do trabalho com os processos de transferência e contra-transferência entre cliente e terapeuta.

Espaço como fluência

Eu espaço Outro

musical

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é vivida com uma presença que não ocorre quando a percepção é a do “espaço como lugar”.

Este é o espaço dentro do qual trabalha a musicoterapia, quando trabalha a partir da música como o meio no qual se dá o processo terapêutico, quando a musicoterapia não se utiliza apenas de um ou outro elemento periférico da música, e sim de sua natureza essencial.

No “espaço como fluência”, se eu e o outro não nos encontramos, não nos percebemos em nossa unicidade, não há realidade a partir da qual se operar e, portanto, não há músico-terapia. O terapeuta trabalha para trazer o paciente para o encontro com a música e na música, para a experiência do encontro, não para uma experiência de entendimento. Pretende-se que o encontro promova modificações no comportamento e na psique. Obviamente, não se trata de uma fé ingênua no poder de um “encontro”, mas no acionamento terapêutico que se torna possível entre as 3 entidades (o terapeuta, o cliente e a música), a partir desse encontro.

(O efeito deste encontro pode bem ser o motivo do estranhamento tão recorrente, por parte dos alunos quando começam seus estágios em Musicoterapia, e não estão devidamente preparados para o “outro mundo” que encontrarão na relação na música com seus clientes.)

No “espaço como fluência”, no qual a unicidade entre eu e o outro é o aspecto que percebemos e vivemos, qual será o sentido de nos separarmos do outro, demarcando as fronteiras que nos mantêm apartados e diferentes? Não será um procedimento contraditório em relação ao meio escolhido, a música, para o processo terapêutico? Não que deixem de ocorrer projeções transferenciais e contra-transferenciais, mas serão estas as ferramentas adequadas? Esta técnica, inteiramente coerente com o uso da linguagem verbal em terapia, parece inadequada ou inapta quando se utiliza essencialmente a música.

No espaço com fronteiras delimitadas, onde objeto e sujeito se percebem separados, a principal ferramenta é a palavra, que reforça as distinções e diferenças, pelo meio da qual procuramos o entendimento e o controle das experiências.

Agora, o que é trabalhar a partir do encontro?

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inter-acionamos. E não haverá nenhum acionamento que seja somente de um lado para o outro; todas as ações serão inter-ações.

No espaço fluente, o processo musicoterapêutico se dá por processos que utilizam a ressonância às colocações do outro, isto é, da empatia. As várias formas de responder empaticamente aos gestos musicais (e não musicais) do outro formam a relação entre paciente e terapeuta: a imitação, o espelhamento, entretecer canto e contracanto, a base musical para o vôo melódico, o abraço vocal (vocal holding, técnica desenvolvida por Diane Austin), são maneiras de ressoar e interagir com o outro.

O caminho terapêutico no espaço fluente não é o do entendimento, como nas palavras. Como estamos acostumados com a estruturação promovida pelo entendimento das palavras, o caminho da interação parece não funcionar muito bem, parece ser terreno por demais cediço e perigoso, no qual não encontramos os mesmos pontos de apoio que encontramos quando elaborando com palavras e discurso lógico.

A qualidade da relação terapêutica a partir da empatia não pode ser medida pela firmeza de sua estrutura, pelo controle da situação ou pelo entendimento dos pontos significativos. A qualidade da relação pela empatia deverá ser medida pela organicidade de sua estrutura, pela fluência na situação e pela ativação dos pontos significativos da relação.

Aqui, o potencial de transformação é muito mais vivo, por assim dizer. Este potencial está contido tanto na música como “meio” quanto nela como “agente”, conforme estes termos foram colocados anteriormente. O trabalho do musicoterapeuta é manter o caráter orgânico da relação e conduzir o potencial transformador presente no fazer musical, para que este favoreça o desenvolvimento do cliente.

Tempo

Agora, trazendo para a relação musicoterapêutica, cliente e musicoterapeuta, a dinâmica do tempo no qual este não é apenas a transição de um agora que se esvai entre o passado e o futuro, “entre os dois abismos do „não mais‟ e do „não ainda‟” (Zuckerkandl, 1973, p. 157T), mas é também o entrelaçamento e a interpenetração de passado, presente e futuro, pois que

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– aquela armazenagem contínua de si próprio e a antecipação contínua de si próprio, a qual nunca é repetida, que é nova a cada instante. (Zuckerkandl, 1973, p. 157T).

Este aspecto do tempo, que nos revela a interpenetração de passado, presente e futuro, é demonstrado em Sound and Symbol como estando presente na experiência musical, ao se ouvir mesmo a mais simples das melodias. Não se trata da atribuição humana de representar (re-apresentar, re-presente, trazer novamente ao presente) o passado e o futuro, uma recordação ou presciência, mas de um atributo do próprio tempo, sem o qual seria impossível o processo de audição de melodias, a audição de um todo dado enquanto uma sucessão temporal.

O presente do tempo musical, então, contém dentro de si um passado que não é lembrado e um futuro que não é pré-conhecido – e não como algo provido pelo pensamento mas como uma coisa dada diretamente pela própria experiência. . . . Este é um tempo presente no qual não eu, graças a meus poderes particulares, mas no qual ele próprio olha para trás e para adiante. . . . O passado não é extinto, não porque a memória o armazena; ele não é extinto porque o próprio tempo o armazena, ou dizendo melhor, porque o ser do tempo é um armazenamento em si próprio; o futuro não é uma parede impenetrável, não porque um pressentimento ou presciência antecipa o tempo; ele não é impenetrável porque o tempo sempre antecipa a si mesmo, porque o ser do tempo é uma antecipação de si mesmo. Uma grande parte dos problemas confundidos pelo antigo conceito de tempo nasce do fato de que ele distingue três elementos mutuamente exclusivos, quando somente o quadro de uma constante interpenetração e entrelaçamento destes elementos é adequado para descrever o processo verdadeiro. (Zuckerkandl, 1973, p. 153T)

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Tempo como transição

Futuro (expectativas)

Presente

Passado (modelos, condicionamentos)

Este é um tempo no qual o passado e o futuro estão apartados do momento presente, no processo terapêutico. O que existe de passado e futuro em um dado presente é acessado somente por meio da representação intelectual. O passado e o futuro do cliente, isto é, seus modelos, condicionamentos e expectativas, são trabalhados por meio de uma re-elaboração intelectual. O momento presente não é propriamente um tempo vivido com o passado e o futuro entrelaçados e presentes, é o tempo no qual se

elabora o entendimento do passado e do futuro.

Este é, por exemplo, o tempo dentro do qual trabalham as terapias verbais, nas quais a representação do passado e do futuro é trazida por meio da memória, da palavra, da recordação, do pressentimento e da presciência. O terapeuta trabalha, a partir de um momento presente, sobre as representações provenientes do que o cliente viveu no passado e permanece nos modelos que condicionam seu comportamento e psique, assim como sobre as expectativas que forçam e impulsionam-no para o futuro. Neste modo de trabalho, não há um acesso direto ao passado e ao futuro, somente às suas representações por meio da intelecção e da linguagem verbal.

Tempo como fluência

Futuro (expectativas)

Presente

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Experimentamos uma outra dimensão do mesmo tempo quando envolvidos pelo fazer musical. O momento presente não é vivido como se apartado do passado e do presente: estes se interpenetram, formando um todo único, tal como quando ouvimos uma melodia e percebemos sua totalidade temporal, a cada tempo presente em que ela soa.

Novamente, a experiência é de encontro. Agora, um encontro temporal, no qual passado e futuro interpenetram o momento presente. O passado e o futuro (os condicionamentos e as expectativas) estão abertos para serem acionados de modo direto pelos acontecimentos durante o fazer musical. Não se trata, agora das representações destes serem entendidas e organizadas, mas sim o próprio passado do condicionamento estar acessível a ser acionado, o próprio futuro da expectativa estar acessível a ser acionado.

Soa um tanto mais absurdo falar da interpenetração do tempo do que do espaço, falar de passado e futuro entrelaçados ao presente e ao acesso por meio deste. Não por ser realmente mais absurdo, mas pela menor intimidade que temos com a verdadeira natureza do tempo. Não obstante, este é o tempo no qual pode operar a musicoterapia, quando centrada no fazer musical e na essência da música.

Tempo e Psique

As decorrências da alteração da percepção do tempo têm um impacto decisivo sobre certos aspectos da psique e da psicologia humana. Vamos explorar um pouco mais este ponto.

A música é ouvida em um dado momento presente. Esta é uma condição da música: os tons nos são dados em uma sucessão temporal. Um quadro, uma escultura, um poema permanecem. Uma música existe realmente enquanto soa. Restam, antes ou depois, os elementos que fazem a música: o instrumento, o músico, a partitura, mas não a música. Assim, o processo de fazer a música se iguala à obra musical: enquanto se dá o processo de fazer música, esta existe; cessado o processo, cessa a obra. A música vive a finitude temporal das entidades viventes.

Ouvimos os tons de uma música em seguidos momentos presentes e, deste modo, a música engaja nossa atenção focalizando-a no presente. Mesmo que nossa atenção flutue em torno de diversos instantes do presente, a música engaja nossa

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modo, aguçando nossa atenção para a dimensão tempo, nos tornamos mais aptos a perceber nossa relação com o tempo.

Por outro lado, constatamos antes que o tempo, a dimensão tempo, está na raiz da música. Não apenas no ritmo e na sucessão temporal na qual a música nos é dada. A própria definição de tom musical tem o tempo como fator que dá ao som sua característica musical, a vibração periódica. É a qualidade temporal presente no tom que gera, de modo direto e único, o sistema de relações e, por conseguinte, o movimento na música, sua mais íntima essência. Deste modo, a música engaja as forças do tempo tornando-as atuantes. Esta dimensão que teima em se apresentar quase impalpável ao tato e invisível à visão, abre-se na música direta e plenamente à audição humana.

Música é arte temporal, primeiro, no sentido banal de que suas notas são dadas em uma sucessão temporal. Pareceu que, neste caso, a sucessão temporal nunca é dada como uma simples seqüência, como um simples fluxo, mas como uma combinação de fluxo e ciclo, como uma onda . . . uma segunda formulação se segue: música é arte temporal no mais exato sentido de que, para sua finalidade, ela engaja o tempo como uma força. . . Uma terceira formulação se segue: música é arte temporal no especial sentido de que nela o tempo se revela à experiência. (Zuckerkandl, 1973, p. 134T)

A atenção colocada no movimento da música traz o fluxo da psique para o momento presente, ancora a psique no agora. Este fato é bastante especial. Nossa psique e atenção estão quase sempre deslocadas em relação ao agora do momento presente. Ou estão envolvidas com algum movimento gerado no passado ou com algum movimento que nos arremete ao futuro.

Em um exemplo simples: quando enchemos um copo com água e a bebemos, estará a nossa atenção em sua maior parte presente no gesto desse momento? Naturalmente, um mínimo de atenção é necessário para acertar a água dentro do copo e depois até nossa boca. Mas esta é uma atenção mecânica e superficial; longe está de ser a atenção que conecta a porção mais significativa de nossos movimentos psíquicos com o momento presente. Mesmas considerações são válidas para a maior parte de nossas experiências de vida.

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quanto tempo conseguirá você manter sua atenção e sensação de presença nesse gesto? Quantas interferências das memórias e das ansiedades levarão a atenção a se deslocar para coisas desconectadas com esse momento presente? O quanto de seus movimentos psíquicos estará envolvido com esse gesto no agora, e quanto desses movimentos estará envolvido com dinâmicas do passado e do futuro?

Quando nossa atenção é colocada no transcurso da música, o tempo presente na música – vale dizer, quando a atenção e a psique são mobilizadas pelos movimentos

presentes na música – atrai a atenção e a psique para o presente fluindo, e estas

proporcionalmente se afastam dos condicionamentos do passado e das ansiedades pelo futuro. Não extingue os condicionamentos e as ansiedades, mas o fluxo da atenção e da psique passa a ser “regido” (em uma certa medida, variável de pessoa a pessoa) pelo movimento da música, e não pelos movimentos das tensões passadas e futuras. Isto permite uma “liberdade” momentânea à psique, liberdade esta proveitosa para rearticular nossa relação com o mundo interior e exterior.

Enquanto estamos fazendo ou ouvindo música – engajados em ouvir o movimento presente na música, e nos movendo junto com ele – estamos como que em um “campo de liberdade psicológica” (em relação às tensões provenientes do passado e do futuro).

Lembremos ainda que o movimento na música abre à percepção a interpenetração entre passado, presente e futuro. Então, este engajamento no presente, não é um engajamento qualquer: é aquele no qual nos aproximamos de um momento presente que tem a particular característica de revelar também os fios condutores que o unem ao passado e ao futuro, seja na música com a qual estamos envolvidos, seja em

nossa própria psique.

Digressão: Psique, Cérebro e Tempo

Uma das questões da psicologia humana e, em especial, da emoção é o fato de estarmos tão mergulhados nos modelos-passado que deixamos de perceber, discernir e lidar a contento com a realidade presente. O passado tem um peso maior do que o futuro na definição de nossos estados e movimentos psíquicos.

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relação com o presente – e que, no entanto, continuam a controlar seu comportamento. (Servan-Schreiber, 2004, p. 18)

A neurologia atual, em seus estudos a respeito da relação entre cérebro e estados emocionais e cognitivos, demonstrou a importância do cérebro límbico, o assim chamado “cérebro emocional”, como a base fisiológica para o aspecto emocional dos movimentos da psique humana.

O cérebro emocional controla tudo o que governa o nosso bem-estar psicológico, assim como grande parte da fisiologia física: o bom funcionamento do coração, a pressão sangüínea, os hormônios, o sistema digestivo e até o sistema imunológico. (Servan-Schreiber, 2004, p. 18)

O cérebro emocional ou límbico é uma parte primordial do cérebro, mais primitiva que o córtex, vinculada ao acionamento físico direto a partir dos estados de sensação com relação ao meio ambiente e ao próprio organismo. Ele é responsável por uma série de funções fisiológicas e está diretamente conectado à formação e ao acionamento dos estados emocionais, mas não tem conexão direta com os processos cognitivos.

Devido a essa estrutura mais rudimentar, o cérebro emocional processa informações de modo muito mais primitivo do que o cérebro cognitivo, mas ele é muito mais rápido e mais ágil para garantir nossa sobrevivência. (Servan-Schreiber, 2004, p. 32)

O cérebro límbico registra todas as reações a situações de perigo e risco à nossa integridade física e emocional, e a partir delas gera certos condicionamentos de ação, define certas reações. E mantém funcionando estas mesmas reações, mesmo quando já estamos diante de situações completamente diferentes, mas com algum traço ou fator em comum (interno ou externo) com a situação original na qual foi gerada a reação, a primeira vez.

Assim, em resumo, formaram-se, no passado, nossos condicionamentos psíquicos. Estes permanecem registrados no cérebro límbico e respondem por nosso comportamento emocional e instintivo. O cérebro límbico é a contraparte física dos condicionamentos oriundos do passado que constroem nosso comportamento.

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conhecimento. O cérebro emocional (sistema límbico) e o cérebro cognitivo (córtex) têm seus funcionamentos distintos preservados, por uma questão de sobrevivência fundamental do organismo: as situações de risco à integridade do organismo exigem respostas instantâneas de acionamento, para as quais o cérebro límbico está capacitado, e o córtex não: as etapas de acionamento das funções cognitivas são mais lentas pois que elaboradas seqüencialmente, não têm a marca da imediatez do gesto instintivo, tão necessária quando a questão é sobrevivência.

Nossos estados emocionais têm a mesma marca de resposta imediata, sem tempo para elaboração alguma: a urgência de reação é sua própria natureza. Assim se impõem nossos condicionamentos registrados no sistema límbico: sem tempo à elaboração. As situações do passado que geraram os condicionamentos já passaram há tempos. Os condicionamentos permanecem intactos atuando e determinando o aspecto emocional do comportamento.

O acesso por meio da intelecção e da palavra é pouco eficiente para modificar os condicionamentos registrados no límbico. O tempo longo necessário para se obter sucesso em um processo psicanalítico – o exemplo mais eloqüente de caminho verbal e intelectivo para modificar condições emocionais – comprova não apenas a dificuldade da cognição atuar sobre os registros límbicos, mas também as limitações, ou mesmo a incapacidade, dos processos cognitivos em atuar sobre os condicionamentos, devido a um fator: o tempo.

E “tempo”, aqui, significa dois aspectos diferentes do tempo: primeiro, o cérebro límbico aciona comportamentos em um tempo muito mais veloz do que o córtex cerebral é capaz de acionar os processos cognitivos (registramos esta diferença, por exemplo, quando nos damos conta, em algum momento depois, de algo que fizemos, de um comportamento acionado emocionalmente, contrário e à revelia de nossos saberes e valores cognitivos); e, segundo, a inacessibilidade dos registros límbicos e dos condicionamentos comportamentais resultantes, pois que, no momento presente, podemos atuar sobre o condicionamento, forçando-o a se modificar (no mais das vezes reprimindo-o apenas), mas não podemos atuar sobre o registro límbico – este ocorreu em um passado e, em condições comuns, não temos acesso direto ao passado; exceção

feita a quando estamos envolvidos com o movimento na música.

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preservação de si próprio acima de tudo; por outro, a capacidade e a busca de conhecimento e de uma visão abrangente da vida e de si mesmo; são duas motivações nas quais há muito de antagônico em nosso funcionamento cerebral, psicológico e comportamental.

Não é obrigatório que estas funções sejam antagônicas, mas a prática mostra que boa parte do tempo elas respondem a necessidades que não se coadunam de modo natural e espontâneo. Os ajustes e a harmonia entre cérebro límbico e córtex, entre duas estruturas de funcionamento e função díspares, são processos complexos e longos. Mas talvez seja uma das necessidades mais fundamentais para nosso bem-estar ou felicidade.

Os dois cérebros – o emocional e o cognitivo – recebem informações do mundo exterior mais ou menos simultaneamente. Desse momento em diante, eles podem cooperar ou competir entre si sobre o controle do pensamento, das emoções ou do comportamento. O resultado dessa interação – cooperação ou competição – determina o que sentimos, nossas relações com o mundo e nossos relacionamentos com os outros. A competição entre os dois, pouco importa a forma que tome, nos torna infelizes. Quando os cérebros emocional e cognitivo trabalham em conjunto, sentimos o oposto – uma harmonia interna. (Servan-Schreiber, 2004, p. 35)

Com a música, temos a oportunidade de promover a harmonia entre estes dois mundos internos. A música parece ser um meio adequado para este trabalho, na medida em que, trabalhando com ela, operamos diretamente a dimensão tempo – dimensão na qual se define um aspecto significativo, acima apontado, da psique humana. A cooperação entre os diferentes sistemas cerebrais pode ser facilitada por meio da devida utilização do fazer musical. Os resultados disto são bastante mais amplos do que simplesmente desenvolver capacidades cognitivas (que é o que se costuma abordar, quando se comenta a respeito do efeito positivo da música no desenvolvimento neurológico). Capacidades, aliás, que podem ser desenvolvidas por outros meios, não necessitando da música para isso.

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precisemos prestar atenção neles. A cada momento sabemos que escolha fazer. . . . Esse estado de bem-estar é aquilo a que aspiramos continuamente. É o sinal de harmonia perfeita entre o cérebro emocional, suprindo energia e diretrizes, e o cérebro cognitivo, levando-o à fruição. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi . . . chamou de „fluxo‟ a essa condição de estado. (Servan-Schreiber, 2004, p. 41)

Fluxo! O termo com o qual resumimos a natureza mais essencial da música, ressurge dentro de outro contexto, aparentemente muito diferente. O fluxo entre diferentes processamentos cerebrais é colocado, por um psicólogo e por um neurologista, como sendo o fator primordial para o bem-estar emocional. O bem-estar sentido, espontaneamente, no contato com a música, bem pode ser decorrência da música ativar o fluxo, a fluência, a unicidade, entre os diversos aspectos do funcionamento cerebral.

Ou, como coloca outro neurologista, Antônio Damásio, de uma maneira mais poética, mas não menos precisa:

O poder da grande música é proveniente de uma coincidência prodigiosa: esta música serve como uma luva nos códigos secretos através dos quais o corpo transmite os seus sinais ao cérebro e, dado que os códigos do corpo e da música são os mesmos, o cérebro trata as mensagens desta música como se fossem do coração e não do ouvido. (Antônio Damásio, sítio na Internet, da Faculdade de Terapias Integradas, Portugal.)

Há alguns estudos, dentro das neurociências, demonstrando que tanto o córtex quanto o sistema límbico são acionados para a decodificação da música. A simples audição musical engaja os sistemas límbico e para-límbico (que atuam em conjunto), conforme demonstrado em experimentos (Brown, 2004).

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Voltando ao tempo presente

Vislumbra-se mais completamente agora a importância do fator tempo na remodelação neurológica e psicológica.

Estar com “um pé” no momento presente é, então, um fator capaz de modificar a situação na qual funciona a psique humana. Este fator permite a reorganização da psique, inclusive pela facilitação da reorganização neurológica.

Não é somente com a utilização da música que podemos chegar a tal resultado. Por outros meios, esta movimentação do passado para o presente, por meio da atenção, é feita em algumas técnicas psicoterapêuticas. O EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing) é um dos exemplos conhecidos:

Minha convicção pessoal é de que os movimentos oculares – ou outras formas de estímulo que prendam a atenção – ajudam os pacientes a ficar concentrados no presente enquanto experimentam emoções passadas. Talvez seja esse estado dual de atenção – um pé no passado e outro no presente – que aciona a reorganização da memória traumática no cérebro. (Servan-Schreiber, 2004, p. 107)

O trabalho musicoterapêutico de Diane Austin, com clientes que sofreram traumas, no qual cliente e terapeuta juntos cantam as questões em torno ou diretamente ligadas ao momento do trauma (localizado, muitas vezes, em um passado mais ou menos distante), criam uma situação semelhante quanto ao fator tempo: parte da atenção está colocada no momento presente, parte da atenção vincula-se à questão psicológica, enraizada no passado, que está sendo trabalhada.

O trabalho musicoterapêutico no GIM (Guided Imagery and Music) pode ser visto sob uma perspectiva semelhante: parte da atenção é colocada nas imagens e associações surgidas da interioridade do cliente (oriundas do passado), enquanto parte da atenção é colocada na música que soa no presente. É especificamente nesta divisão da atenção entre passado e presente que está fundamentando este método; a maneira como são interpretadas as imagens pode mudar, o critério pelo qual são escolhidas as músicas pode diferir, mas o entrelaçamento entre música e imagem – vale dizer, entre dois tempos diferentes – permanece como o fulcro desta atuação.

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diferentes momentos do tempo, encontram-se no presente do fazer musical – aqui por intermédio de uma audição musical que enfatiza o movimento na música.

A abordagem Nordoff-Robbins tem a produção musical do paciente e do musicoterapeuta, em conjunto, como o centro de seu trabalho, com a plena utilização do movimento na música. O passado da criança, nesta abordagem denominado condition

child, e seu presente vivo atuante, denominado music child e identificado com a

musicalidade expressa do cliente, estabelecem relação e produzem a transformação da pessoa do cliente.

O momento presente do fazer musical é onde tudo se passa (ao menos, no tratamento dado pelos fundadores desta abordagem). Os condicionantes físicos e psicológicos, enraizados no passado, são acessados e modificados por meio do momento presente na música.

Colocar-nos no presente, esta parece ser uma função principal da música,

enquanto arte e enquanto instrumento terapêutico, revelando a dimensão tempo à percepção humana, a partir de uma relação estabelecida a partir da natureza do próprio tempo: dando-nos a oportunidade de experimentar o tempo presente como fluência, e não como um dado isolado e separado de sua dinâmica.

Palavra e Música: Estrutura e fluxo

A música, contudo, certamente provê o meio mais curto, o menos árduo, talvez ainda o solvente mais natural das fronteiras artificiais entre o ser e os outros, assim como a linguagem é mais apta e útil para expressar todo tipo de distinção e diferença entre eles. (Zuckerkandl, 1976, p. 36T)

As três linhas de musicoterapia citadas no final do capítulo anterior têm ao menos mais um elemento em comum, além da maneira como se valem da música: todas utilizam não apenas música, mas muitas vezes e, especialmente, nos momentos críticos utilizam a conjunção entre palavra e música.

Por que esses musicoterapeutas tiveram a necessidade de utilizar palavra e música em íntima colaboração? Há alguma insuficiência na música que exige o ingresso da palavra em seus processos para se acessar o ser humano?

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interna nada teria de diferente em relação a esta. Esperamos ter mostrado que, com a música, passamos a experimentar a vida e a ter acesso a um tipo de processo terapêutico que só é possível na música. Mas será que, ao final, os musicoterapeutas retornam rendidos à palavra para somente por meio dela poderem lidar com seus clientes?

O que se tem aqui é que música e palavra cumprem diferentes funções perceptivas e cognitivas. Mais do que a supremacia de uma sobre a outra, temos a possibilidade de com ambas chegar a uma percepção mais completa da realidade. Assim como os dois olhos em conjunto, nem um mais do que o outro, nos dão uma percepção em profundidade do espaço, música e palavra juntas são capazes de atingir uma profundidade de percepção e compreensão que nenhuma delas em separado é capaz.

Se a música tem o poder de nos colocar na condição perceptiva adequada para participarmos do campo das dinâmicas puras, “o solvente mais natural das fronteiras”, a palavra tem o poder de “expressar todo tipo de distinção e diferença”, de estruturar um campo de referências estáveis e definidas, no qual podemos nos localizar de modo estático e seguro.

A estrutura concedida pela palavra é aquela da distinção entre diferentes seres, entre seres e coisas, entre sujeito e objeto, entre o que ele é e o que eu sou, entre aquele que fala e o que ouve, a distinção entre os meus sentimentos e os seus sentimentos, entre o sofrimento e aquele que sofre, entre o gozo e aquele que goza. Enquanto fronteiras a separar em definitivo estas coisas, elas são artificiais. O caráter definitivo de tais fronteiras é enfatizado pelo uso da palavra. Não obstante, a palavra nos ajuda a compreender que há um aspecto separado e diferenciado entre eu e o outro, entre sujeito e objeto, entre o sofrimento e aquele que sofre. Esta distinção e diferenciação é o que tornou possível, por exemplo, a existência de um conhecimento como o das ciências naturais. Só que este aspecto diferenciado não é tudo. Há entre cada um desses pólos distintos também uma ligação, uma unicidade, e esta nos é revelada pela música. Ver a realidade pelos olhos da palavra e pelos olhos da música talvez possa fornecer a profundidade necessária para uma compreensão verdadeiramente abrangente, seja do mundo exterior, seja da interioridade humana.

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parece que a palavra tem uma função a cumprir no re-ingresso da música nos mundos mais conhecidos por nossa percepção: a palavra conecta o fluxo da música, que não tem objetos nem sujeitos definidos, a entidades definidas.

Quando o musicoterapeuta ou o cliente, durante o fazer musical, dá nome a uma situação, sentimento ou pessoa, ou ainda estabelece relações entre pessoas, situações e sentimentos nomeados, o fluxo da música torna-se referido a algo do mundo físico ou psíquico. Como quando diante da força do fluxo d‟água de um rio, colocamos um objeto, e vemos o fluxo d‟água mover esse objeto, assim o nome da pessoa cantado ou uma situação cantada em meio a uma melodia, faz com que a situação ou a pessoa embarque nesse fluxo.

A simples experiência de termos nosso nome cantado em uma melodia provoca uma movimentação interna muito mais definida (e eficiente, em termos terapêuticos), do que se estamos entoando vocalizações sem palavras ou simples tons em instrumentos musicais. A palavra estrutura os limites daquilo que acontece, enquanto a música faz acontecer, durante uma sessão musicoterapêutica. O que equivale a dizer que o acionamento do processo está na música, a música move o processo musicoterapêutico, estando a palavra a serviço de estruturar o processo; uma estruturação necessária pois que conecta o mundo imaterial dos tons musicais com a percepção dos mundos físico e psíquico, isto é, das situações existenciais como as conhecemos comumente.

A fluência da música e a estruturação da palavra, ao final, são dois elementos a colaborarem juntas no trabalho terapêutico e de re-educação do ser humano.

Espaço e Tempo: Aqui e Agora

Reunindo os esquemas gráficos apresentados em separado, referentes a espaço e tempo, temos a multi-articulação de fatores espaciais e temporais, da seguinte maneira:

1. Espaço e tempo como lugar e transição Futuro

Eu Aqui-e-Agora Outro

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O espaço e o tempo são experimentados como elementos separados e centrífugos; eu e o outro somos entidades distintas, e nossa ligação é circunstancial e provisória; meu passado e do outro são distintos, e não têm conexão, assim como nossos futuros. O aqui-e-agora da relação terapêutica não tem a capacidade de acionar nossas vidas. É apenas o lugar e o momento no qual se estabelece a relação, como uma “mera formalidade” de lugar e horário do encontro. Isto não é uma deficiência; o processo terapêutico que não é centrado na música, se vale de outros meios para atingir suas finalidades.

2. Espaço e tempo como fluência Futuro

Eu Aqui-e-Agora Outro

Passado

O espaço e o tempo são experimentados como sendo entrelaçados e centrípetos; eu e o outro experimentamos a dimensão na qual estamos unidos; o passado e o futuro estão vivamente presentes, e em conexão com o que se passa naquele momento. O aqui-e-agora da relação musicoterapêutica se dá na música e aciona o entrelaçamento formado pelo cliente e pelo musicoterapeuta. A ação terapêutica se dá nos movimentos da música que acontecem no aqui-e-agora.

Este é um ambiente terapêutico no qual a identificação entre terapeuta, cliente e música é o meio no qual se processa o trabalho musicoterapêutico. Os sentimentos, as emoções, os movimentos físicos e internos, assim como os pensamentos de ambos formam um corpo único, enquanto perdura o fazer musical, permitindo uma proximidade, uma intimidade e um alto grau de integração entre ambos. Quando a música é utilizada do modo aqui descrito, o processo musicoterapêutico acontece exclusiva e plenamente no aqui-e-agora do fazer musical.

A forte presença do aqui-e-agora gerada pelo fazer musical, em si, não é boa nem ruim, não é terapêutica nem curativa. Tem seus benefícios e perigos, assim como tem determinados potenciais terapêuticos.

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efeito benéfico, por levar a pessoa a instantes de intimidade e identificação positiva com outro ser humano e com a música. Mas isto não poderia legitimamente ser chamado de trabalho terapêutico; este requer uma ação dirigida que apóie ou estimule a transformação do cliente.

Por outro lado, tal proximidade pode ser perturbadora, tanto para o paciente quanto para o musicoterapeuta, movendo muito mais profundamente a interioridade de cada um do que movem as condições habituais do viver.

O trabalho terapêutico no campo dinâmico da música é uma tarefa bastante distinta de se trabalhar no campo das palavras ou das demais artes que não a música. A diferença fundamental está aqui colocada, em termos amplos e infra-estruturais: a empatia ao invés da distinção, mover-se no fluxo musical ao invés do entendimento, a experiência vivida no presente ao invés da representação de questões passadas e futuras. A diferença entre trabalhar no campo da música e trabalhar com sons e ruídos também deverá ser clara: estes não produzem um campo dinâmico como o da música, não se abre dimensão alguma, não somos conduzidos a uma outra espécie de percepção cognitiva, não se abre um campo de trabalho com as características de encontro e unicidade.

O primeiro passo deste trabalho é mobilizar a atenção do cliente (obviamente a atenção do musicoterapeuta já deverá estar mobilizada) pelo movimento na música.

O segundo passo é trazer as questões do cliente à tona do fazer musical, para serem trabalhadas e transformadas. Estas surgem por meio dos temais musicais e são trabalhadas por meio da musicalidade do musicoterapeuta e do próprio cliente.

O terceiro passo é a elaboração dos temas trazidos pelo cliente, por meio de formas musicais estruturadas. A aplicação das mais variadas escalas, diatônicas, modais etc., assim como de estruturas harmônicas e rítmicas, para desenvolver o tema, estruturando-o de maneira orgânica (isto é, de acordo com o padrão musical interno, do plano-semente que este contém) formam o processo de transformação e desenvolvimento do cliente.

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Para ser mobilizado pela música

Certas condições são necessárias para sermos mobilizados pela música a entrar em contato com a dimensão da fluência.

Se a música é conhecida, muito conhecida, inundamo-la com associações e passamos a prestar atenção às nossas imagens associadas à música (que são expressão dos modelos-passado) e não à música. Esta é uma situação na qual não nos movemos junto com os movimentos da música, mas nos movemos junto com as nossas associações e projeções sobre a música. Por exemplo, uma velha canção conhecida trará muito mais associações do que um tema musical desconhecido, improvisado na hora ou composto para aquela situação.

Quando a música não nos causa muitas reações associativas definidas, mais facilmente a atenção é colocada no presente do fluir musical.

Este nunca é um processo puro: atenção exclusiva às associações ou, então, atenção exclusiva ao fluir do momento presente na música; há sempre uma proporção entre ambas as atenções.

(Certas linhas de musicoterapia trabalham a partir das associações para com a música, e não verdadeiramente com a música; para estas linhas, os processos de alteração de movimento, tempo e espaço, aqui descritos, não fazem sentido, não são participantes do processo musicoterapêutico. Considero que o GIM trabalha com a música, na medida em que as imagens associadas à música não são tomadas apenas em si mesmas, nunca estão dissociadas do movimento da própria música.)

Mas, mais do que ouvir música, produzir música nos pressiona a estar no fluir do momento presente da música, mais do que simplesmente estar a ouvir música; pois fazer música nos engaja corpórea e ativamente nela. Com a atenção colocada proporcionalmente mais no fluir do momento presente da música, e participando desse campo de liberdade, estabelece-se o processo musicoterapêutico centrado na música e em sua essência.

Então, temos assim, uma definição para o termo fazer musical, que foi utilizado ao longo deste trabalho: é estar envolvido com o movimento presente na música, enquanto ouvimos ou produzimos música.

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finalidades diferentes no uso da música, mas porque o musicoterapeuta (ao menos na linha que estamos aqui procurando esclarecer) necessariamente está presente no movimento inerente à música, e não necessariamente está centrado nas questões técnicas da música, enquanto está fazendo ou ouvindo música em uma sessão.

Nem todos os musicistas estão envolvidos com o movimento enquanto lidam com a música. Em muitos momentos, estão mais atentos a questões técnicas, tais como a leitura da partitura em seus diversos aspectos de notas, tempo, fraseado etc.; ou estão mais envolvidos com seus próprios sentimentos em relação à música ou a qualquer outra coisa naquele momento, como a relação com a platéia, com os outros músicos, com questões conceituais da música, ou ainda com o sanduíche que o espera, como janta, após aquela performance. Nestas condições, não se abre à percepção a dimensão fluente da vida.

Se o musicista está muito atento a questões técnicas de uma execução musical mais ou menos complexa, naturalmente há menos condição da atenção ser mobilizada pelo movimento da música. Este movimento é criado por todos os quesitos técnicos da música, mas não é idêntico a estes, tal como os elementos físicos de uma construção arquitetônica não são iguais ao espaço (o espaço “vazio”) que estes criam.

A atenção no movimento da música é alcançada quando, em uma performance musical, a atenção do executante está se movendo juntamente com o movimento da música – o que costuma ser reconhecido nas performances artisticamente mais vivas, e, por vezes, mas não necessariamente, na movimentação física do executante.

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Musicalidade

Musicalidade é a capacidade humana de perceber e estabelecer relação com a

dimensão das dinâmicas puras, na qual o tempo e o espaço se apresentam em sua face fluente e contínua. Este é um modo de percepção cognitiva, na medida em que nos dá a conhecer um certo aspecto do mundo e de nós mesmos.

A musicalidade se desenvolve exercitando as qualidades dinâmicas dos tons musicais, do metro e do ritmo, de maneira a tornar a pessoa apta a perceber e atuar com a dinâmica de estados, as forças em movimento e a fluência sem se definirem necessariamente os objetos que fluem. Naturalmente, a musicalidade é desenvolvida no fazer musical, mas pode ser desenvolvida na lida com esta face da realidade em outras situações e atividades que não a puramente musical.

Desenvolver a musicalidade, e especificamente a musicalidade clínica, aquela aplicada ao processo musicoterapêutico, é condição para se trabalhar no campo dinâmico da música.

O cliente apresenta as questões de sua interioridade na expressão musical, no fazer musical. Estas questões estão presentes, principalmente, nos temas musicais surgidos na expressão musical do cliente. Estes temas devem ser considerados em um contexto mais amplo, do que em seu sentido musical: seu conteúdo não é apenas “música” ou “movimento”, mas o tipo específico de movimento presente na interioridade do cliente.

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A relação entre o tema trazido pelo cliente ao fazer musical e a musicalidade do musicoterapeuta é onde se dá a relação terapêutica, no modo de atuação que estamos analisando aqui, centrado na música.

É na relação entre tema e musicalidade que o passado dos condicionamentos torna-se acessível ao presente do fazer musical, podendo ser transformados pelo processo terapêutico; é nela que o futuro vislumbrado ou ansiado torna-se moldável ao fazer musical; é nela que eu e o outro nos inteiramos ao momento dos processos comportamentais, gestuais, físicos, sociais e psicológicos nos quais estamos envolvidos, podendo assim intervir musicalmente sobre eles, transformando e estruturando a música do cliente e, assim, o próprio cliente; é nela que se opera a músico-terapia.

É ainda nesse sentido, que musicistas, musicoterapeutas e leigos, são levados a afirmar muitas vezes que música é vida, (“A música não representa a vida; ela é vida”, Ives, compositor norte-americano, citado por Ansdell, 1995) que a música tem algo do vivo da própria vida, mas que é de difícil acesso na vida como a vivemos comumente. É como se pudéssemos dizer, que música é vida em seu aspecto mais vivo, é a experiência mais direta de nossa percepção com a dimensão fluente e viva da vida.

Em conclusão, observamos que no caso do “espaço”, com no caso do “tempo” ou “movimento”, as experiências musicais iluminam um lado do problema que, do ponto de vista e no pensamento do homem moderno, está normalmente obscurecido . . . Somente assim torna-se aparente que, na música,

experimentamos o mundo. Caso contrário, a música seria uma

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Não proponho, neste ponto, que os musicoterapeutas façam “novas experiências” a partir destas idéias; em vez disso, proponho que olhem para o que já experimentaram em sua atuação musicoterapêutica, a ver se este ponto de vista poderá servir de embasamento para sua prática, para os caminhos percorridos no processo musicoterapêutico em direção aos resultados obtidos com seus clientes.

Encontro, sexualidade e religiosidade

Um último ponto será abordado neste trabalho. O encontro suscitado pelo fazer musical, no sentido em que foi considerado, estimula, no ser humano que dele participa, duas outras experiências de encontro.

Dois outros atributos inerentes ao ser humano encontram terreno fértil para serem despertos durante o fazer musical: o anseio pelo encontro promovido por nossa instintividade, um encontro voltado para nossas satisfações imediatas com as outras pessoas, e o anseio pelo encontro promovido por nossa capacidade cognitiva, um encontro com algo superior, com o que esteja além de nós e nossas satisfações imediatas. Estes atributos podem ser chamados, respectivamente, de afetividade, ou, mais cruamente, de sexualidade, e de religiosidade.

Estes atributos da natureza humana tendem a se manifestar mais intensamente quando da prática musical. Não que musicistas, em geral, sejam mais religiosos ou mais afetivos e sexuados, embora uma tendência nessa direção possa ser reconhecida (a questão do envolvimento dos musicistas com o movimento na música foi discutida anteriormente). Mas quando trabalhamos estritamente com o movimento na música, por ressonância ou similaridade, a religiosidade inata e a afetividade inata são mobilizadas e encontram no próprio fazer musical que as mobilizou um meio propício para expressão.

Na prática, isto significa que muitos dos sentimentos e das sensações que surgem no cliente – e também no musicoterapeuta – durante o fazer musical terapêutico têm proximidade ou similitude com os sentimentos que normalmente consideramos como sendo afetivos e religiosos.

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afetiva” que envolve o momento da prática musicoterapêutica, e tudo o mais que seja experimentado durante esta prática.

Naturalmente, as decorrências da “aura afetiva” entre cliente e terapeuta exigem um tratamento discriminatório rigoroso, no sentido de não se confundir este “efeito colateral” do fazer musical com um legítimo “gostar”, com uma afeição que faça sentido ser desenvolvida em toda a sua extensão e com todas as suas conseqüências.

Músicas são tocadas quando se quer que os casais se enlacem em um baile, em uma festa ou em uma situação mais íntima. Músicas são tocadas quando se quer que as pessoas sintam afinidade com um determinado produto e adquiram-no, inapelavelmente. Agora podemos entender melhor a que se deve este efeito espontâneo de uma simples melodia agradável que soa entre pessoas, fazendo-as unirem-se a seja lá o que esteja ao alcance delas.

O estudante de Musicoterapia deveria ser convenientemente preparado para lidar com este impacto que irá sofrer durante os atendimentos clínicos. O desenvolvimento pleno e saudável da sexualidade e da afetividade – pois estas serão mobilizadas de todo

modo durante o fazer musical – torna-se uma necessidade para o musicoterapeuta que

pretende lidar diretamente com a música.

A falta deste preparo tende a levar à exacerbação e ao descontrole das afeições e da sexualidade, ou ainda levar a uma forte e característica inibição diante do fazer musical: nasce o receio de fazer música junto com outra pessoa, mesmo que o musicoterapeuta tenha todas as habilidades necessárias para fazer música numa dada situação; sua expressão musical, quando surge, é algo incolor e sem vida.

(Naturalmente, todo terapeuta deveria ter a sexualidade e a afetividade desenvolvidas de maneira plena e saudável. Aliás, todo ser humano. A questão é que um musicoterapeuta sofrerá maior desequilíbrio pessoal pelo impacto de seu trabalho, caso não tenha este desenvolvimento.)

A identificação emocional do terapeuta e do cliente com “algo maior”, com o sentimento de uma “presença maior” tende também a ser mais forte do que em outras formas de relação humana, sejam elas terapêuticas ou não.

Não à toa, a música sempre foi e é utilizada em ritos religiosos, quase como um elemento necessário para a abertura da interioridade humana para os estratos mais elevados que possam existir.

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por meio da música, nasçam sentimentos devocionais nas pessoas e que estas percebam a vida como “algo maior” que flui com uma vitalidade própria, com a consistência de algo que não pertence somente a esta dimensão por nós conhecida.

Aqui, o termo religiosidade é usado para significar a natural tendência humana para buscar sua ligação com a totalidade do cosmos e com algo que esteja acima de sua própria dimensão; religiosidade enquanto re-ligação; não é usado para significar as diversas formas de organização religiosa ou os caminhos propostos por estas para a satisfação de nossa natureza religiosa.

A religiosidade inata do ser humano floresce quando a musicalidade floresce. Assim, a questão da religiosidade e da transcendência, suas possibilidades, verdades e superstições, deveria também ser desenvolvida para com os alunos de Musicoterapia. Um devido preparo para lidar com a religiosidade deveria fazer parte dos currículos de Musicoterapia.

Assim como afirmações sobre o tempo podem ter soado absurdas, afirmações sobre a ligação entre música e religiosidade podem soar igualmente absurdas. Afinal, a dimensão tempo tem algo intimamente vinculado à religiosidade.

Pode-se postular um natural desenvolvimento da afetividade e da religiosidade, por meio do fazer musical. Talvez ele ocorra, realmente. Embora isto não tenha ainda sido comprovado de modo organizado, muitos dados da realidade parecem apontar nessa direção.

Contudo, é necessário que o musicoterapeuta esteja preparado para lidar com estes dois aspectos da natureza humana, em si e nos outros. E esta preparação não deveria ficar ao acaso de um desenvolvimento ocasional, e sim ser construída de modo racional e organizado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BROWN, S., MARTINEZ, M.J., PARSONS, L.M.. Passive music listening spontaneously engages limbic and paralimbic systems. In: Neuroreport. London, nº 15, ano XIII, set. 2004.

PEREIRA DE QUEIROZ, Gregório. Aspectos da Musicalidade e da Música de Paul

Nordoff e suas implicações na prática clínica musicoterapêutica. São Paulo:

Apontamentos, 2003.

SERVAN-SCHREIBER, David. The instinct to heal. New York: Rodale Inc., 2004. ZUCKERKANDL, Victor. Sound and Symbol: Music and the External World. Princeton, EUA: Princeton University Press, 1973.

Referências

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