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A redução fenomenológica e o não-ser

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Academic year: 2021

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André Dias de Andrade1 UFSCar – Doutorado em Filosofia

Resumo

No tratamento que recebem de Husserl as noções de “nada”, “não-ser”, “não-sentido” são correlatas em pelo menos um aspecto: trata-se sempre de rejeitá-las ou de mostrar sua derivação em relação ao sentido positivo do fenômeno, tendo elas uma utilidade limitada para a teoria do conhecimento. Mas, para além da recusa inicial, é possível pensar como o procedimento inaugural da fenomenologia – a epoché – necessita conservar um sentido para a ideia de não-ser ao estabelecer seu escopo de investigação. Para uma tal leitura será preciso pensar a fenomenologia a partir de um escopo crítico que a princípio lhe é exterior, uma vez que a questão do não-ser e do não-sentido se delimita por aquela concernente às estruturas de sentido possíveis; bem entendido, a de uma fenomenologia transcendental. Para tanto, segue- se a leitura de Renaud Barbaras na medida em que aponta como a crítica à ideia de nada – via Bergson – é incorporada por Merleau-Ponty no sentido de reelaborar o campo da fenomenologia para além daquele estabelecido por Husserl. Assim, junto da posição husserliana de que toda experiência tem origem numa intuição que pode ser considerada quanto à sua essência, atua em filigrana a tese de que o sentido se dá sobre o fundo de não- sentido; de que tudo o que “é” se contrapõe a um “nada”. Primeiro observamos a construção do método eidético, através da leitura da noção de “presença” em Husserl. Num segundo momento, vê-se como a possibilidade deste método se dá em vista da conservação da tese do não-ser, como pressuposto não examinado na redução fenomenológica e que lhe permite conferir uma determinação plena ao sentido, ou seja, caracterizá-lo de forma essencial. Em seguida, consideramos a crítica à noção de essência e sua reelaboração em Merleau-Ponty. Se tal questão está na base da fenomenologia como método eidético, contra a “visão de essência”

Merleau-Ponty propõe uma dimensão de “invisibilidade” para o campo fenomenal.

Palavras-chave: Husserl. Redução. Essência. Não-ser. Merleau-Ponty.

1 Contato: andre8ada@gmail.com

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A presença na intuição

Se fazer fenomenologia é, antes de tudo, perguntar-se pela experiência imediata que podemos ter duma série de objetos – do aparecimento do mundo, da coisa, de outrem, da história etc. – isto significa que este estudo realiza uma certa conversão ao sentido. Tal conversão situa a filosofia num território que lhe é próprio, o âmbito da subjetividade transcendental que é a “esfera infinita de ser de um tipo novo, enquanto esfera de uma experiência de tipo novo, a experiência transcendental” (HUSSERL, 2013, §12, p. 65), na qual se torna patente a necessidade de abandonar o paradigma realista ou naturalista do ser2. É contra tal tese que Husserl empreende sua redução fenomenológica, já que não se trata de interrogar um objeto existente na natureza, mas somente quanto a seu sentido. Tal orientação ao sentido se denomina orientação fenomenológica e é conquistada através deste procedimento de redução. Esta virada revela como dado mínimo de sentido um objeto que se mostra, que aparece, à consciência – um objeto intencional. Assim, ao mesmo tempo em que a fenomenologia não é uma investigação da existência real e natural, mas do sentido, ela possui como dado mínimo de sentido – conforme a fenomenologia husserliana – uma intuição. Daí que, ao longo de todas as modalidades intencionais de se relacionar com um objeto, a intuição prefigura como o dado elementar de sentido de um aparecimento3. É necessário partirmos da

2 “A verdadeira fonte do naturalismo se encontra nisto: o naturalismo concebe a totalidade do ser sob a imagem da coisa material” (LÉVINAS, 1963, p. 32). Tal paradigma – denominado orientação natural – compreende o mundo, tal como os elementos que nele estão contidos, como objetos reais e existentes em torno dos quais a ciência logra conhecimento e a filosofia se faz enquanto ontologia. Segundo Lévinas “o ser é, primeiramente, objeto das ciências [...]. Contudo as ciências operam com a ajuda de um certo número de noções das quais elas não esclarecem o significado [...] Essas noções determinam a estrutura necessária de diferentes domínios do ser e constituem sua essência. A teoria do ser poderia então se alocar sob um ponto de vista de onde ela estudaria, de certo modo, o ser enquanto ser, considerando-lhe as categorias que são condição de sua própria existência. A teoria do ser se tornaria ontologia” (1963, p. 20).

3 Entende-se por intuição a posição de um conteúdo qualquer na consciência, de modo que por consciência indica-se aqui uma série de modalidades, por exemplo, perceber, desejar, rememorar, imaginar etc nas quais a consciência se direciona a algo. Na genealogia da lógica – o projeto husserliano das Investigações Lógicas –, a qual visa a clareza e distinção das leis e objetos lógicos (1976, §2), é preciso, antes de tudo, mostrar sua “origem na intuição”. Daí que o sentido ideal e lógico, tanto quanto o sentido perceptivo ou sensível, têm uma raiz comum. Eles devem ser compreendidos em seu aspecto fenomenológico, segundo o sentido que apresentam na consciência. Toda a dificuldade será então pensar a lógica, em sua unidade ideal, enquanto vivência concreta, sem para isso advogar o psicologismo e comprometer a objetividade da investigação. É através do esclarecimento dessa origem intuitiva do saber que podemos, conforme Husserl, “retornar às coisas mesmas”

(1976, §2, p. 218). Neste momento basilar da fenomenologia é importante deixar claro que a “coisa mesma” não desponta da tese naturalista, enquanto ente real que possui uma natureza determinada (em-si), tanto quanto não redunda numa imagem ou representação mental individual, seguindo um viés psicologista. Se Husserl entrevê, já na introdução à primeira investigação, que “é falsa a contraposição da percepção externa e interna” (1976, §3, p.221), isto significa que suspende a tese do ser, seja ele percebido ou inteligido (no caso de uma asserção ou de enunciados lógicos), em prol do sentido do próprio perceber e do julgar, de modo a “converter em objetos esses atos mesmos e seu sentido imanente” (1976, §3, p. 221).

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fenomenologia.

Em Ideias I, quando a fenomenologia toma para si a tarefa da constituição transcendental e, por conseguinte, da assumpção de um território próprio, reitera-se a concepção de que toda relação de sentido está calcada numa doação originária dada à consciência na forma da intuição: “tudo o que se nos oferece na ‘intuição’ de forma originária (em sua realidade corporal por assim dizer) deve ser simplesmente recebido como tal, mas sem ultrapassar os limites nos quais se dá” (HUSSERL, 1950, p. 78; cf. p. 20-21). Desse modo, a fenomenologia se estabelece como investigação acerca do sentido partindo deste princípio de intuitividade para, somente então, ser possível lhe atribuir a tarefa da construção de uma teoria da verdade e de uma ontologia. Assim, Husserl tem a preocupação de estabelecer o método fenomenológico como eidético4; e isso se deve ao fato de que na fenomenologia o interesse não é proceder à descrição de fenômenos ou entes isolados. O aspecto intuitivo na apreensão de um determinado objeto – de um objeto individual – deve, a rigor, sempre poder ser tomado do ponto de vista geral. Como diz Husserl a conversão do olhar em intuição de essência independe da consideração de casos empíricos, sendo uma possibilidade atestada por ela mesma: “devendo ser considerada não como uma possibilidade empírica, mas como possibilidade sobre o plano das essências” (HUSSERL, 1950, p. 19-20).

Pois bem, Merleau-Ponty admite que o procedimento da dúvida cética cartesiana só funciona ao “recalcar” aquilo sobre o qual incide e converter tudo o que é negado em

“aparência” – tratando-se, para tanto, de o reafirmar –, de modo que se nota a necessidade da filosofia prestar contas a isto que é recalcado (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 143). Tal seria o papel da fenomenologia, a qual rompe com a ingenuidade do “em si”, aquilo que, justamente por não se encontrar na diversidade dos fenômenos, era falsificado pela dúvida, e passa a considerar, ao invés da questão pelo an sit, a do quid sit (1964, p. 144), o “quê” daquilo que aparece, independente de qualquer tese quanto à sua validade no mundo objetivo. Do fenomenismo passamos à fenomenologia e esta “lógica” ou logos do fenômeno se volta às essências. Husserl coloca a questão nestes termos: “primeiramente, a palavra ‘essência’

designou o que no ser mais íntimo de um indivíduo se apresenta como ‘quid’. Ora, este quid pode sempre ser ‘posto em ideia’” (HUSSERL, 1950, p. 19).

4 Já no artigo de 1911, A filosofia como ciência de rigor, temos que “todos os enunciados que descrevem os fenômenos por meio de conceitos diretos só podem fazê-lo, enquanto são válidos, por meio de conceitos de essência, ou seja, graças às significações conceituais que devem necessariamente poder ser creditadas em uma visão de essência” (HUSSERL, 1989, p. 48).

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Em suma, esta posição em ideia que prescinde de qualquer relação com o empírico, como dissemos, é o que delineia o território daquilo que é essencial em si mesmo (não

“essencial” de um ponto de vista limitado ou regional, como axiomas de uma ciências em particular). Isto é possível na medida em que o sentido ou ser da essência do fenômeno está sobremaneira presente no apresentado ou na apresentação deste mesmo fenômeno; se ele se faz presente enquanto tal. Ora, evidentemente isto demanda trabalho, de modo que seja preciso, para apreender a essência de algo, proceder a uma variação eidética que é, sob determinados aspectos (tome-se por exemplo o objeto sensível), extensível ao infinito. Mas, a fim de não contaminar este plano eidético é preciso, com a redução fenomenológica, abdicar de pressupostos quanto à natureza do que se mostra; noutras palavras, ao reduzir a tese do ser em prol do aparecer, é preciso que a constituição dos dados que aí se mostram possua nela mesma uma dimensão essencial ou, o que aqui é o mesmo, a possibilidade de se apreender seu aspecto essencial – sem o que seria sempre possível reintroduzir teses sobre se isto que aparece, o objeto do ponto de vista de sua essência, é um dado psico-fisiológico, um conjunto de qualia etc5. Assim, quando Husserl compreende que há uma apresentação total do objeto nisto pelo quê ele se apresenta, o fenômeno, não é preciso fundar tal apresentação numa outra natureza – ela não é re-presentação – para lhe outorgar o aspecto, em suas palavras,

“científico” e “eidético”. No âmbito fenomenal o sentido de algo está completamente apresentado nisto que o apresenta ou na própria experiência de sua apreensão, que é uma intuição6. O imediato poder ser compreendido, desde já, como essência.

Daí que se há um múltiplo este sempre se apresenta na forma de uma unidade sintética, de uma síntese e de um objeto. É a forma da visão e da intuição, após a “conversão do olhar” (HUSSERL, 1950, p. 21), que concebe o sentido como presença, apresentação, auto-apresentação – já que nada há além deste apresentar-se – ou, como diz diversas vezes Husserl, auto-doação, que permite que a essência seja o correlato, de direito, de toda experiência de fato.

Talvez agora podemos entender um pouco melhor porque Merleau-Ponty sempre relaciona as expressões “visão pura” e “objeto”. De modo que só há experiência de objetos – e

5 “O charme do naturalismo espontâneo consiste [...] em que nos torna a todos muito difícil a visão das

‘essências’ e das ‘ideias’ ou, antes, já que nós vemos isto constantemente, de reconhece-las em sua especificidade em vez de cometer o contrassenso que nos conduz à trata-las como fatos da natureza. A visão das essências não possui mais esoterismo ‘místico’ do que a percepção” (HUSSERL, 1989, p. 48).

6 Granel (1989, p. 144-145) comenta este “curioso” estatuto da coisa mesma, na medida em que seu Selbst está sempre relacionado à sua doação, ao Selbstgegeben. Assim, “ser” e “ser dado” são a mesma coisa.

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vale dizer, para uma consciência. Consciência e objeto não se relacionam então, na teoria de Husserl, como dois termos com naturezas distintas aos quais seria preciso reconstruir metafisicamente sua relação, mas como correlatos na experiência transcendental dos fenômenos; a consciência de algo é intuitiva e a verdade deste algo é garantida precisamente pelo princípio de intuitividade que tem como contraparte seu aspecto essencial. No limite, dirá Merleau-Ponty, trata-se de coadunar o atual ao possível, o real àquilo que lhe transcende, o fato à essência. Mas, verdade seja dita, não de maneira heterônoma como se o sentido de ser da experiência, a essência, estivesse para além dela, já que se há “ideia-reguladora” tal pode ser depreendido a partir do estrito exame daquilo que se mostra, não havendo aí compromisso metafísico. Será que não há mesmo?

O não-ser da redução

Seguindo excertos da última obra de Merleau-Ponty, alguns dos quais somente fornecem hipóteses de leitura, sendo preciso um estudo cruzado entre trechos e notas de trabalho do mesmo período, Renaud Barbaras encontra uma interessante chave de leitura.

Como sabemos, o que está na base da recusa merleau-pontiana da fenomenologia como estudo das essências é uma fidelidade à experiência imediata, à sua raiz sensível, e que resiste a se coadunar ao possível e ao inteligível – mesmo que numa perspectiva “formal” ou, melhor dizendo, “diretiva” que parece ter sido a de Husserl. O que Barbaras elabora é o ferramental teórico que poderia estar no horizonte do pensamento de Merleau-Ponty quando realiza tal recusa. Segundo o comentador, a insuficiência da questão eidética pode ser posta à prova através da assumpção de que há no bojo da noção de sentido como essência a conservação da tese do “não-ser” ou de que o sentido se dá sobre o fundo dessa tese. Para Barbaras, trata-se de submeter Husserl e a redução fenomenológica à crítica que Bergson endereçou à ideia de nada, na conclusão de A Evolução Criadora. Além da motivação de Barbaras para tanto8, esta

7 Em Husserl compreendemos que “tudo que é bem conhecido remete para um ato originário de tomar conhecimento; aquilo a que chamamos desconhecido tem, assim, uma forma estrutural de cognoscibilidade, a forma objeto e, mais detalhadamente, a forma coisa espacial, objeto cultural, utensílio etc” (HUSSERL, 2013,

§38, p. 118).

8 E do cotejo de notas de trabalho inéditas tais como esta: “Quanto ao Ser eminente, ele supõe sempre pensamento essencialista segundo o qual há alguma coisa que faz em última instância que o Ser surja, um fundamento necessário i.e. essencial do há [il y a], uma agulha que fixa e funda o Ser como absolutamente oposto ao nada. Atrás do Ser eminente há, no fundo, a ontologia negativa, como se diz teologia negativa:

definição do Ser como isto que superou, negou o nada. Este não nada apenas dá o Ser eminente se (Bergson) se pensa a partir do nada” (nota inédita de janeiro de 1960). De fato, já podemos ler no texto publicado Bergson se

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já poderia ser encontrada no próprio texto de Bergson, uma vez que ali o autor acusa toda a metafísica tradicional, consciente ou não disso, de partir da ideia de não-ser em direção ao ser:

“os filósofos não se ocuparam muito com a ideia do nada. E, no entanto, ela é frequentemente a mola secreta, o motor invisível do pensamento filosófico” (BERGSON, 2005, p. 298). No limite, considerar algo sobre o fundo do nada é dar-lhe o estatuto de plenamente determinado ou determinável, de modo que a própria existência e sentido disto – que seu ser – seja uma

“conquista sobre o nada” (BERGSON, 2005, p. 299). Tal se verificaria no procedimento fenomenológico de apreensão de essências, uma vez que isso só é possível a partir do momento em que se considera o fenômeno como dado a uma visão pura, intuição, e, enquanto tal, passível de desdobrar suas estruturas constitutivas. É a noção de presença que permite ascender à intuição de uma essência; do mesmo modo, é a noção de nada, presente em filigrana no método da redução fenomenológica, que permite aquela de presença, como ser determinável em sua própria apresentação9. A questão é que uma tese conservada sub- repticiamente na redução lhe retira sua radicalidade, ao tratar dos fenômenos, e por isso compromete toda a fenomenalidade como uma experiência de casos-tipo passíveis de serem levados à potência eidética – vide o ideal husserliano da constituição transcendental. Seria preciso, a fim de retornar à radicalidade e saber o que, de fato, há no imediato, reformular os termos da própria redução. “A redução não é neutralização da tese da existência, mas neutralização do próprio nada como anterior à tese da existência” (BARBARAS, 1998, p. 50).

A posição da essência, portanto, revela o quanto a fenomenologia husserliana é tributária de uma noção de nada, a partir da qual o sentido se dá de maneira completamente determinável, além de comprometer a própria descrição fenomenológica. Quanto a este segundo ponto, Barbaras comenta como a suposição da essência como “forma-limite”, vale

faisant, que “o ser percebido é este ser espontâneo ou natural que os cartesianos não viram, porque eles buscavam o ser sobre fundo de nada e que, diz Bergson, para vencer a inexistência lhes era preciso o necessário”

(MERLEAU-PONTY, 1968, p. 235).

9 Barbaras leva ao limite esta dialética numa de suas melhores passagens: “Assim, a posição prévia do nada, ou seja, a submissão do que pode ser ao princípio de razão suficiente, está na origem de um positivismo ontológico que se apresenta sob três formas: positivismo da essência, positivismo da localização ou da atualidade, positivismo da subjetividade enfim. O importante é compreender que esses três momentos se articulam ou antes se encadeiam segundo um jogo de compensações alternadas: cada momento vem compensar o excesso, de positividade ou de negatividade, daquele com que se articula. Assim, o caráter absoluto do nada inicial tem por contrapartida a plenitude de determinação da essência, a qual se vê inevitavelmente negada na existência atual e que deve, por sua vez, ser negada na positividade da consciência onde se reúne a essência. Mas este encadeamento é apenas o efeito de um desequilíbrio inicial; pela posição implícita do nada o conhecimento se encontra como que expulso em relação à fenomenalidade e o conjunto das categorias da fenomenologia são, portanto, apenas os elementos por meio dos quais ele tenta compensar esta negação inicial, para encontrar a figura verdadeira da fenomenalidade. Mas, uma vez que em cada compensação o tributo inicial é reconduzido, estes momentos permanecem na realidade momentos abstratos” (1998, p. 75-76).

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sempre antevista como inadequada. Se “o ser deve ser tão plenamente quanto o nada não é”

(BARBARAS, 2003, p. 121), e se ele é compreendido por Husserl numa intuição reportada a um eidos, então “a orientação eidética [...] compreende a fenomenalidade do fenômeno a partir da presença positiva do que ali se fenomenaliza” (BARBARAS, 1998, p. 69). Vemos que é na compreensão da fenomenologia como ciência eidética e de seu território, aquele da consciência transcendental, como um âmbito em que o sentido é apresentado numa intuição de essência, que se revela a que ponto o pensamento de Husserl se vê tributário de uma concepção de ser ainda clássica – aquela que necessita do auxílio sub-reptício da ideia de nada – e passível de entrar na crítica de Bergson elaborada no fim de A Evolução Criadora. Assim, como aponta Barbaras, “o limite da fenomenologia consiste na decisão de determinar o ser como essência” (1998, p. 46), sendo que tal determinação, como vemos, torna-se possível a partir da tese de que o sentido se apresenta como uma conquista em relação ao nada.

A invisibilidade da visão

Desde então, Merleau-Ponty ao tentar pensar o fenômeno mais aquém da dicotomia entre ser e nada, tal como ela se mostra derivada e secundária através das análises de Bergson, romperia a um só tempo com tal noção de presença husserliana. Haveria de pensar então uma dimensão de ausência, distância e ocultação inerentes ao imediato; um sentido mais originário de ser que envolve, além da presença do visível, um invisível. Quando se concebia o dado imediato como uma presença, como algo abarcável pela intuição doadora originária, de modo que é num “ver” que a consciência e a própria filosofia se abrem ao sentido, tornava-se lícito afirmar que tal descrição se fazia sob o pressuposto tácito da tese do nada ou do vazio. Pois, para além de tal tese, se ela o fosse realmente criticada, tal sentido mais originário e livre de pressupostos que estaria na base da descrição fenomenológica, não seria plenamente intuitivo ou positivo – uma presença tal qual –, já que encerraria algo de invisível em si mesma. Assim, o “visível” nos últimos escritos de Merleau-Ponty representa uma ruptura com a intuição husserliana, já que não há como pensa-lo senão sob uma dimensão de invisibilidade; visível que faz par inextrincável com o invisível.

Numa nota intitulada “cegueira (punctum caecum) da consciência” Merleau-Ponty escreve que

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isto que ela não vê, é por razões de princípio que ela não o vê; é porque ela é consciência que ela não o vê. Isto que ela não vê é o que prepara nela a visão do resto (como a retina é cega no ponto em que nela se espalham as fibras que permitirão as visão). Isto que ela não vê é o que faz com que ela veja, é sua amarra ao ser, é sua corporeidade, são os existenciais pelos quais o mundo se torna visível, é a carne onde nasce o objeto (1964, p. 31-302).

A não visibilidade total do sentido, na medida em que ele não é objeto e, portanto, não é dado puramente à intuição, não pode ser compreendida como uma mediação ou separação entre a visão e o visível. Antes do que uma insuficiência de ser, é preciso pensar a não visibilidade ou, melhor, a invisibilidade, como dimensão ontológica do mundo e não como etapa a ser subsumida em uma consciência cada vez mais próxima da “totalidade” – é o próprio método eidético que caracteriza a fenomenologia que deve ser questionado então. Na medida em que tal totalidade não é também aquela de uma infinidade positivada, vale dizer, de uma série infinita compreendida sob o ponto de vista da adequação, pode-se afirmar também que tal invisível não é o mesmo que o eidos husserliano – inclusive representa uma alternativa para além dele –, pois o fenômeno já não apresenta, em seu estado mais puro ou imediato, um essencialidade objetiva completamente determinável. Não é, doravante, um misto de intuição e essência – a Wesenchauung – já que o invisível não é um visível

“possível” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 305). Ele é a apresentação de um inapresentável, uma visibilidade circunscrita de invisibilidade – o que, como notamos, é a condição mesma para que se possa falar doravante em visibilidade, visão ou fenômeno. Uma invisibilidade constitutiva (e não privativa) da visão – seu “ponto cego”.

Para reduzir verdadeiramente uma experiência em sua essência, seria preciso tomar em relação à ela uma distância que a colocasse inteiramente sob nosso olhar com todos os seus subentendidos de sensorialidade e de pensamento que agem nela, fazê-la passar e nos fazer passar inteiramente à transparência da imaginação, pensa-la sem o apoio de nenhum solo, em suma, recuar ao fundo do nada. Então somente seria dado saber quais momentos fazem positivamente o ser dessa experiência (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 150).

E, desde então, pode-se afastar a presença como estrutura própria ao fenomenal e procurar por seu sentido mais originário. O problema do sentido ainda é um problema de fenomenologia, para Merleau-Ponty, sob pena de nada admitir de extrínseco à descrição imediata; mas agora tal descrição não se dá – tal como promulgava Husserl desde o advento

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factual enquanto intuição de essência, já que não parte de um sentido sobreposto a um fundo de nada. A crítica bergsoniana presta este favor à fenomenologia francesa, na visão de barbaras, na medida em que permite pensar o dado mais originário como um devir que abarca indeterminação, como algo não abarcável à consciência e visão fenomenológicas no sentido de uma presença. Se ela envolve sempre uma latência – uma ausência que jamais vem à presença, como afirma Merleau-Ponty (1964, p. 201) –, isto não significa uma queda na metafísica, porquanto não se trata de admitir um princípio para além de toda experiência, para além de toda visibilidade, mas constatar que é esta experiência mesma que se dá como distância, em intervalos e latências; e que se a visão não é total – se ela não contempla essências –, é porque ela não tem diante de si um ser e, atrás de si, um nada.

É salutar compreender o quanto estas inflexões na noção de sentido levam a reelaborar a fenomenologia como um todo e a fenomenologia merleau-pontiana em particular. Se

“interrogamos a experiência precisamente para saber como ela nos abre para o que não é nós”, este movimento de interrogação do fenômeno não exclui a possibilidade de algo jamais

“presente no original e do qual a ausência irremediável contaria assim dentre nossas experiências originárias” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 211). É preciso re-pensar a fenomenologia como aquilo que discerne e interroga tais referências, partindo do que é aparentemente dado para, enfim, dar conta destas “margens da presença” (1964, p. 211).

Assim, segundo o Merleau-Ponty do final dos anos cinquenta, a essência não pode ser o objeto da fenomenologia, porquanto esta vise a compreender decisivamente o que é o aparecer de um fenômeno, nem a intuição a marca distintiva do aparecimento, uma vez que este é dotado duma profundidade. A reelaboração dessas noções, no limiar dos anos 1960, motiva a passagem à ontologia do ser sensível, de modo que é neste ajuste de contas da fenomenologia consigo mesma – possibilitado de maneira salutar pela crítica bergsoniana à metafísica tradicional – que se pode compreender propriamente o sentido de real aí contido.

Com o exame do sentido sensível, o qual não se dá de modo a procurar suprir uma insuficiência de ser, de modo a preencher um vazio, poder-se-ia medir o alcance das últimas teses de Merleau-Ponty.

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Referências

BARBARAS, Renaud. Vie et Intentionalité. Recherches phénoménologiques. París: Vrin, 2003.

__________________. Le tournant de l’expérience, Paris: Vrin, 1998.

GRANEL, Gérard. Le sens du Temps et de la Perception chez E. Husserl. Paris: Gallimard, 1968.

HUSSERL, Edmund. La philosophie comme science rigoureuse. Trad. Marc B. de Launay.

Paris: PUF, 1989.

_________________. Idées Directrices pour une Phénoménologie et une Philosophie Phénoménologique Pures. Tome premier: Introduction générale a la phénoménologie pure.

Trad. Paul Ricoeur. Paris: Galimard, 1950.

__________________. Meditações Cartesianas. Trad. Pedro S. Alves. SP Forense, 2013.

_________________. Investigaciones Lógicas. Madrid: Revista de Occidente, 1976

LÉVINAS, Emmanuel. La théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl. Paris:

Vrin, 1984.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Visible et le Invisible. Paris: Gallimard, 1964 _________________________. Signes, Paris: Gallimard, 1968

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