Faculdade De Direito
ANTÔNIO VITOR REIS GONÇALVES MELLO
DA SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO DO DEVER DE PAGAR TRIBUTOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
DA SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO DO DEVER DE PAGAR TRIBUTOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito.
Área de concentração: Direito Tributário
Orientador: Professor Dr. Hugo de Brito Machado Segundo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito
M527d Mello, Antônio Vitor Reis Gonçalves.
Da solidariedade social como fundamento do dever de pagar tributos no Estado Democrático de Direito / Antônio Vitor Reis Gonçalves Mello. – 2014.
77 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Direito Tributário.
Orientação: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo.
1. Direito tributário - Brasil. 2. Estado de direito. 3. Obrigações naturais - Brasil. 4. Tributos. I. Machado Segundo, Hugo de Brito (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.
DA SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO DO DEVER DE PAGAR TRIBUTOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Área de concentração: Direito Tributário.
Aprovada em __/__/__
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________ Professor Dr. Hugo de Brito Machado Segundo (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________________________ Mestrando Francisco Tarcísio Rocha Gomes Júnior
Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________________________ Mestrando Vitor Sousa Bizerril
Dedico este trabalho ao maior amor que levo
Ao meu orientador, Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo, uma de minhas
maiores inspirações acadêmicas durante os cincos anos de graduação, pelo brilhantismo das
lições, pela simplicidade da didática, pela acessibilidade do contato, pela nobreza do caráter e,
especialmente, pela compreensão na realização deste trabalho.
Ao Vitor Bizerril e ao Tarcísio Rocha, os quais somente não ficaram mais felizes
pelo ingresso no Mestrado da UFC do que seus amigos que tanto torciam, por aceitarem,
prontamente, o meu convite para compor a Banca Examinadora e por, antes disso,
contribuírem, sem hora marcada ou qualquer cerimônia, com a elaboração deste estudo.
Aos meus pais, Manoel e Reângela, por acreditarem incansavelmente – mais do
que até eu mesmo – em meu potencial, e por formarem, com o amor incondicional no peito
que carregam, não apenas o bacharel, mas principalmente o homem que escreve. E à minha
irmã, Alice, pela amizade estendida, faça chuva ou faça sol, e por cativar em nossa família a
alegria que nos move todos os dias.
Ao restante de minha família, meus tios, meus primos, minha avó, e a todos os
amigos que tenho o orgulho de chamar de meus, pelo apoio e incentivo não somente à minha
carreira como, em qualquer circunstância, à minha pessoa.
À minha namorada, Luana Coelho, pelo suporte nos momentos mais cansativos
deste final de graduação, pelo auxílio na realização de meus projetos pessoais e profissionais,
pela compreensão de minhas dificuldades e limitações, pelo carinho sincero em todos os
momentos e, neste trabalho, por apresentar-me ao tema do último capítulo, minha maior
motivação para a elaboração desta monografia.
Aos amigos Yorran Lirio e Yuri Mesquita, sem os quais entrei na graduação, mas
sem os quais não poderia sair para a vida, pela fraternidade, disponibilidade, pelos
ensinamentos e, por, felizmente, fazerem da Faculdade de Direito, da sua tradição e dos seus
juristas bem, bem menores do que a nossa amizade.
Aos meus outros amigos da Faculdade de Direito, especialmente, aqueles do
grupo Markim & Amigos, por fazerem das aulas, das provas, das conversas de corredor, dos
telefonemas ou de qualquer outra ocasião em que se encontrassem, séria ou não, as maiores
gargalhadas do dia inteiro e o motivo de alegria pelo restante da semana – durante cinco anos.
Aos amigos Célio Belém, Roncalli Barreto e Arthur Feijó, pelo aprendizado
integrantes desse projeto, brilhantes cada um a sua maneira, por terem tornado esses cincos
anos o período de contatos mais enriquecedores da minha vida, por haverem me
proporcionado experiências insubstituíveis e por terem feito da argumentação, mais do que
uma ferramenta, o meu modo de viver.
Por fim, porém não menos importante, a todos aqueles que contribuíram, de
alguma forma, com minha formação, aos quais registro meus agradecimentos nas figuras dos
“Me encantaría que cada mañana, cuando un estudiante se levanta para ir a clase, comprendiera que allí, en su colegio o universidad, que cada maestro al dar la clase, o un papá al revisar la tarea por las noches, son los escenarios donde se juega la soberanía del país, la diferencia de poder futuro”.
O presente trabalho pretende investigar o fundamento do dever jurídico de pagar tributos no Estado Democrático de Direito. Nos últimos séculos, o distanciamento da doutrina e da ciência do direito positivo constitucional em relação ao estudo do instituto jurídico autônomo dos deveres fundamentais prejudicou não apenas o desenvolvimento teórico a respeito de suas características e seus fundamentos como a compreensão de sua autonomia relativamente a outras figuras jurídicas, principalmente, os direitos fundamentais. Nesse sentido, primeiramente, realiza-se o estudo a respeito dos deveres fundamentais, do tratamento que historicamente recebeu a matéria, de suas relações com outros institutos jurídicos e de suas características. Em seguida, trata-se, especificamente, do dever fundamental de pagar tributos. A partir da consolidação do Estado Liberal e da separação entre Estado e economia, o dever de contribuir adquiriu diversas configurações ao longo da história, principalmente, no que diz respeito a sua fundamentação jurídica. Portanto, analisa-se as transformações sofridas por esta do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito, quando a justificativa da solidariedade social, desenvolvida durante o Estado Social, relacionou-se ao contexto da cidadania fiscal. Por fim, realiza-se o estudo de caso da política tributária de Bogotá durante os mandatos de Antanas Mockus, momento em que o fundamento democrático do dever de pagar tributos materializou-se na forma dos programas de Cultura cidadã.
Palavras-chave: Direito Tributário. Deveres fundamentais. Solidariedade social. Cidadania.
The present research intends to investigate the basis of the juridical obligation to pay taxes in a Democratic State under the Rule of Law. In the last centuries, the juridical doctrine and the science of the positive constitutional law have taken distance from the study of the autonomous juridical institute of fundamental obligations, jeopardizing not only the theoretical development of its characteristics and fundamentals as well as the comprehension of its autonomy towards other juridical institutes, specially, fundamental rights. Accordingly, the study first analyzes fundamental obligations, the historical treatment given to the matter, its relations towards other juridical institutes and its characteristics. Furthermore, the research focuses specifically on the fundamental duty to pay taxes. From the consolidation of the Liberal State and the separation of State and economy, the duty to contribute has taken different configurations alongside history, mainly regarding its juridical grounding. Therefore the analysis approaches the transformations suffered by such juridical grounding from the Liberal State to the Democratic State under Rule of Law, when the justification of social solidarity, developed during the Social State, related to the context of fiscal citizenship. At last, it presents a case study about the tax policies of Bogotá during the mandates of Antanas Mockus, moment when the democratic grounding of the duty to pay taxes has taken shape in the form of civic culture programs.
1 INTRODUÇÃO ... 12
2 DOS DEVERES FUNDAMENTAIS ... 15
2.1 Deveres fundamentais e figuras aproximadas ... 18
2.1.1 Da relação entre deveres jurídicos, deveres morais e obrigações jurídicas ... 19
2.1.2 Da relação entre deveres e direitos fundamentais ... 23
2.2 Conceito e características dos deveres fundamentais ... 28
3 DA SOLIDARIEDADE SOCIAL E SUA RELAÇÃO COM O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS ... 31
3.1 O Estado Fiscal e a separação fundamental entre Estado e economia ... 31
3.2 Os fundamentos do dever de pagar tributos no Estado Fiscal de Direito ... 35
3.2.1 Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado de Direito Liberal ... 36
3.2.2 Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado de Direito Social ... 41
3.2.3 Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado Democrático de Direito ... 48
4 DA CULTURA CIDADÃ DE ANTANAS MOCKUS: O ESTUDO DE CASO DE BOGOTÁ ... 58
4.1 Da teoria e prática da Cultura cidadã ... 62
4.2 Da Cultura cidadã e suas relações com o dever fundamental de pagar tributos no Estado Democrático de Direito ... 66
5 CONCLUSÃO ... 72
1 INTRODUÇÃO
Ainda hoje, o estudo dos deveres fundamentais é prejudicado pela produção
teórica escassa a respeito da temática. Por muitos anos, tanto doutrinadores da teoria do
Direito Constitucional como estudiosos da ciência do direito positivo relegaram a
investigação a respeito dos deveres fundamentais ao segundo plano.
As experiências da construção do Estado de Direito sob a exigência de superação
do ideário do Antigo Regime, a consolidação do liberalismo político e econômico, os
conflitos armados mundiais que assolaram diversas nações no século XX, o engrandecimento
do Estado do Bem-Estar Social, acompanhado do incremento de cargas tributárias e da
ineficiência na prestação de serviços públicos pelo ente estatal, e a ascensão de ditaduras
militares ou de partidos políticos que violaram constantemente os direitos fundamentais dos
indivíduos na América do Sul e na Europa são exemplos de contextos históricos e sociais em
que o estudo dos deveres fundamentais não encontrou condições propícias de
desenvolvimento. Na realidade, tais contextos deram causa, com justiça, ao estudo prioritário
dos direitos fundamentais.
Embora se justifique a primazia, nas produções teóricas e nos ordenamentos
jurídicos, dos direitos fundamentais, a parca pesquisa doutrinária – chegando, inclusive, ao
esgotamento teórico da matéria no estudo dos direitos fundamentais, como se destes fossem
dependentes ou, mesmo, nada mais que reflexos – e a expressão discreta em textos
constitucionais dos deveres fundamentais não são razoáveis.
Tais mazelas assolaram o instituto jurídico em questão da construção de seu
conceito e definição de suas características à análise de seus fundamentos jurídicos ou,
inclusive, morais. Nesse sentido, a pesquisa sobre o dever fundamental de pagar tributos e
sua(s) justificativa(s) não foi exceção.
O fundamento do dever jurídico e constitucional de pagar tributos transformou-se
ao longo dos séculos. Se, no Estado Liberal, a fundamentação do dever de contribuir
limitava-se às decorrências desagradáveis, porém imprescindíveis, do contrato social do Estado de
Direito, no Estado Social, concebê-la como solidariedade social somente foi bastante
enquanto o assistencialismo do Bem-Estar Social foi capaz de evitar conflitos de classes e
fundamental de pagar tributos a partir da solidariedade social continuou acertado, mas não foi
o suficiente para afastar as críticas neoliberais, principalmente, da classe média a respeito da
tributação.
Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito apresentou-se como solução
para a crise institucional entre Estado e sociedade civil. A democracia participativa e o
exercício da cidadania constituíram-se como os mecanismos mais produtivos para o
desenvolvimento social e econômico das sociedades contemporâneas, dentre elas, inclusive, a
da cidade de Bogotá, capital da Colômbia. Qual seria, entretanto, a nova transformação
sofrida pelo fundamento do dever de pagar tributos?
O presente trabalho tem por objetivo geral investigar a solução adequada
oferecida pelo Estado Democrático de Direito à crise institucional da solidariedade social
como fundamento da tributação. Para tanto, seus objetivos específicos constituem o estudo da
categoria jurídica dos deveres fundamentais, traçando-lhe tanto conceito como características
e limites; a análise dos diferentes fundamentos do dever de contribuir nas transformações
sofridas pelo Estado de Direito, principalmente, nos séculos XIX, XX e XXI; a elucidação das
diferenças entre a justificativa solidária no Estado Social e no Estado Democrático de Direito;
e o estabelecimento da relação do fundamento da solidariedade social com o direito
fundamental à democracia e o exercício da cidadania.
No que tange aos aspectos metodológicos, valer-se-á da pesquisa eminentemente
bibliográfica, e a abordagem da pesquisa será qualitativa. A metodologia de pesquisa será
essencialmente descritiva, visto que descreverá precipuamente as nuances abordadas e
também explicará, elucidará e interpretará o fenômeno a ser observado. Assim como será
exploratória, pois visa a buscar, coletar e recolher informações sobre o tema pesquisado para
que, posteriormente, possa auxiliar no embasamento teórico de novas pesquisas.
Portanto, no primeiro capítulo, realizar-se-á o estudo dos deveres fundamentais,
perquirindo o desenvolvimento da doutrina constitucional e dos ordenamentos jurídicos a
respeito da temática ao longo da história ocidental, estabelecendo-lhe as diferenças para
outras categorias jurídicas semelhantes, especialmente, a dos direitos fundamentais, e
apresentando-lhe o conceito e as características mais relevantes.
No segundo capítulo, abordar-se-ão as transformações sofridas pelo fundamento
Social e a Democrática. Nesta, verificar-se-á a releitura da justificativa da solidariedade
social, estabelecendo-lhe as conexões com o princípio e direito fundamental da democracia
participativa, o exercício da cidadania e a compreensão da cidadania fiscal.
Por fim, no terceiro capítulo, realizar-se-á o estudo do caso da política tributária
de Bogotá durante os mandatos de Antanas Mockus. As considerações deste a respeito do
divórcio entre lei, moral e cultura e do papel dos educadores nas sociedades contemporâneas
serão tomadas em conta para justificar-se, por um lado, os programas e projetos de seu
governo, sob o título de Cultura cidadã, por outro, a imprescindibilidade da promoção do
exercício da cidadania, especialmente, a fiscal, para a adesão dos cidadãos ao fundamento da
2 DOS DEVERES FUNDAMENTAIS
A temática dos deveres fundamentais, no âmbito da doutrina constitucional
contemporânea, seja nacional,1 seja estrangeira,2 padece notoriamente da escassez de
produção teórica a respeito. A deficiência em questão faz-se ainda mais evidente quando da
comparação com a rica atenção que recebe, quantitativa e qualitativamente, no mesmo
contexto, o tema dos direitos fundamentais.
Não que se esteja a afirmar que a dominância dos estudos acerca dos direitos
fundamentais não encontre justificativa. A própria concepção originalmente desenvolvida do
Estado de Direito, como modelo de solução de conflitos entre o poder – e a essência deste de
dominação desenfreada – e o direito – em sua função abalizadora do exercício daquele –,
arrazoou, de início e a seguir, a prevalência da investigação das posições jurídicas ativas dos
indivíduos ante o Estado sobre as situações jurídicas passivas em que estes incorreriam
(categoria da qual fazem parte os deveres fundamentais). A luta pelo direito, garantidora da
liberdade e autonomia do cidadão, nunca desocupou, nesses termos, o patamar de “ordem do
dia”, especialmente quando outrora compreendidos os direitos como, meramente, efeitos
reflexos do direito objetivo e os deveres como expressão, tão-somente, da supremacia do
Estado.3
Ademais, é inegável que as experiências extremamente negativas dos regimes
autoritários ou totalitários europeus (com a predominância inconteste dos deveres dos
cidadãos na realidade constitucional), as atrocidades assistidas nas ocorrências e
intermitências dos conflitos das grandes guerras mundiais (a partir do flagrante desrespeito
aos direitos humanos) e os prejuízos advindos dos próprios governos antidemocráticos
erigidos nos países sul-americanos (a exemplo, no Brasil, do regime militar de 1964)
contribuíram para a escassez do tratamento do tema dos deveres fundamentais, em
comparação com o recebido pelos direitos fundamentais, nas constituições ocidentais
adotadas, em seguida, pelas nações injuriadas.
Nesse sentido, é a lição de Casalta Nabais:
1
CARDOSO, Alessandro Mendes. O dever fundamental de recolher tributos no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 15.
2
CHULVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 10.
3
Pois bem, como reacção a tais regimes e procurando evitar que regimes desse tipo viessem a instalar-se de futuro com o beneplácito de alguma (ainda que pretensa) abertura ou pretexto constitucional susceptível de interpretação nesse sentido, tanto as constituições aprovadas logo a seguir à segunda guerra mundial, de que são paradigma a Constituição Italiana (de 1947) e a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (de 1949), como, mais recentemente, as constituições da década de setenta, em que sobressaem a Constituição Portuguesa (de 1976) e a Constituição Espanhola (de 1978), preocuparam-se de uma maneira dominante, ou mesmo praticamente exclusiva, com os direitos fundamentais ou com os limites ao(s) poder(es) em que estes se traduzem, deixando por conseguinte, ao menos aparentemente, na sombra os deveres fundamentais, esquecendo assim a responsabilidade comunitária que faz dos indivíduos seres simultaneamente livres e responsáveis, ou seja, pessoas.4
É certo, entretanto, que, consoante o magistério do autor português acima exposto
e nos termos do que, adequada e pormenorizadamente, se desenvolverá no decorrer deste
trabalho, a liberdade do cidadão, quando assim entendido, pressupõe a noção de
responsabilidade perante a comunidade da qual faz parte, sendo-lhe atribuídos,
consequentemente, deveres de condutas (grosso modo) dos quais deve estar ciente e cujo fundamento deve, para justos considerá-los, compreender, sob pena de avaliar o ordenamento
jurídico ao qual se submete como injusto.5
Portanto, se a abastada investigação da teoria e da ciência do direito positivo6
acerca do(s) instituto(s) dos direitos fundamentais aufere respaldo no desenvolvimento da
realidade constitucional ocidental, nem por isso deve ser remetido ao ostracismo o estudo do
tema dos deveres fundamentais, uma vez que estes são tão caros ao mencionado
desenvolvimento quanto aqueles.
Ocorre que, geralmente, a própria previsão constitucional – explícita – do tema é
exígua. Na Constituição Brasileira de 1988, v. g., o capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (Capítulo I, Título II – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), em seu art. 5º, I, aduz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição” e, no inciso seguinte, que “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, estabelecendo a cláusula genérica de dever constitucional explícita, não restando, em nenhum dos outros 76 incisos do mesmo
4
NABAIS, 1998, p. 17-18.
5
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas. 2010, p. 193.
6 Embora se reconheça a recorrência do termo “dogmática jurídica”, no vocabulário jurídico
artigo, outra alusão a qualquer dever fundamental dos cidadãos.7
A discrição da Constituição Federal de 1988 ao prever, de maneira expressa,
deveres fundamentais dos cidadãos brasileiros não deve ser, por óbvio, interpretada como
inexistência de qualquer previsão além dos deveres explicitados ao longo do texto
constitucional. Para além destes (como o dever dos pais de educarem os filhos menores e o
dever de serviço militar), o próprio dever fundamental que constitui o objeto deste trabalho é
decorrência evidente das disposições do Capítulo I (“Do Sistema Tributário Nacional”) do
Título VI da Constituição.
O que se deve ressaltar, todavia, é que a previsão de determinados deveres
fundamentais implicitamente não deve superar a crítica ao eufemismo do constituinte, mas,
sim, corroborar o entendimento acerca de seu afastamento da temática em questão, ainda que
em se tratando de deveres fundamentais clássicos como o de pagar tributos.
Como se não bastasse a precária disposição dos deveres fundamentais nas cartas
constitucionais a que se vem fazendo menção neste trabalho, restando desprovidos,
geralmente, de enumeração e sistematização semelhantes às recebidas pelos direitos
fundamentais no bojo das leis fundamentais, trata-se, até aqui, somente de outro lado do
desenvolvimento desigual conferido à temática.
A desatenção da doutrina ao tema é, com mais afinco, criticada por Casalta
Nabais. O autor lusitano censura a parca investigação do assunto pelos doutrinadores, a qual,
em nenhum momento, foi capaz de estabelecer uma teoria geral a respeito dos deveres
fundamentais semelhante à que respalda, solidamente, os direitos fundamentais.8
Na esteira do raciocínio, como motivo determinante para a atenção deficitária
dedicada ao tema, Nabais assevera:
É de acrescentar que, por detrás deste tratamento dos deveres fundamentais por parte da dogmática constitucional, está, em geral, a concepção, mais apropriada ao século passado do que aos tempos do estado social, que insere e esgota os deveres fundamentais na temática dos limites (limites e restrições) aos direitos fundamentais, o que dispensaria o seu tratamento autónomo. Ora, sem negar que os deveres
7
A Grundgesetz da República Federal da Alemanha pode ser mencionada como outro exemplo da tendência contemporânea de desconsideração constitucional – em termos de previsão explícita – dos deveres fundamentais,
uma vez que a Lei Fundamental Alemã não emprega, nenhuma vez, ao longo de seu texto, o termo “dever fundamental”. Ademais, a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem (de 1948) dispensa tratamento desproporcional aos deveres e direitos constantes no seu bojo, enumerando sistematicamente estes e referindo-se genericamente àqueles em seu art. 29º, nº 1. NABAIS, 1998, p. 18-23.
8
fundamentais ainda se inserem na “(sub)constituição do indivíduo”, ou fazem parte
da matéria lato sensu dos direitos fundamentais, o que explica designadamente as diversificadas e intensas relações que mantêm com os direitos fundamentais, o certo é que o seu tratamento se revela manifestamente insuficiente quando diluído na temática que tem por objecto a categoria ou a figura dos direitos fundamentais.9 Destarte, antes de prosseguir-se à configuração jurídica dos deveres fundamentais
e à apresentação de seu conceito, imprescindível investigar-se sua relação – e distinção – com
determinadas figuras próximas, inclusive, os direitos fundamentais.
2.1 Deveres fundamentais e figuras aproximadas
Qualquer investigação acerca da configuração dos deveres fundamentais deve,
propedeuticamente, em virtude do tratamento doutrinário e normativo que recebeu a temática
ao longo dos anos, perquirir a proximidade entre o instituto e determinadas figuras ou
categorias jurídicas (ou mesmo morais).
Conforme argumentado anteriormente, sem a mencionada aferição, a temática
dos deveres fundamentais corre risco ou de ser projetada e esgotada no estudo dos direitos
fundamentais, adquirindo, a depender da teoria defendida, status de apêndice ou mero reflexo da matéria, ou, no sentido oposto, de ser desenvolvida como, exclusivamente, decorrência da
soberania estatal, relegando, por sua vez, os direitos fundamentais, que seriam convertidos,
conteudisticamente, em virtude de sua funcionalização, em deveres fundamentais.
É a advertência a que não se furta Casalta Nabais:
Podemos afirmar que o tratamento dos deveres fundamentais é susceptível de cair, e efectivamente tem caído, em dois excessos opostos: o que os integra e esgota na temática dos direitos fundamentais, como geral é próprio das teorias liberais relativas ao homem, à sociedade e ao estado, e o que os concebe como mera expressão da soberania do estado, frequentemente erguidos em pólo aglutinador e absorvente dos próprios direitos fundamentais, como tem acontecido com as teorias funcionalizantes dos direitos fundamentais, configurem-se estas como teorias totais, à maneira da teoria marxista-leninista, ou como teorias parciais, à maneira do que vem acontecendo com as teorias democrática, institucionalista e dos valores. Pois bem, nenhuma destas perspectivas é de aceitar.10
Por outro lado, a caracterização do instituto em perspectiva requer, igualmente, o
zelo quando da comparação com outras figuras ou categorias jurídicas e morais a fim de se
definirem o seu plano de eficácia, a necessidade de concretização no ordenamento
infraconstitucional e os sujeitos da relação jurídica da qual é objeto.
9
Ibid., p. 24-27.
10
Assim, consoante os fins deste estudo e com base no grau de aproximação das
figuras, adiante se trabalhará, na medida da objetividade que requer a investigação, com as
relações entre os deveres fundamentais e as figuras dos deveres morais, das obrigações
jurídicas e, especialmente, dos direitos fundamentais.
2.1.1 Da relação entre deveres jurídicos, deveres morais e obrigações jurídicas
A configuração jurídica dos deveres fundamentais requer a avaliação do próprio
elemento jurídico caracterizador do instituto. Em outras palavras, imprescindível, antes de
apresentar-se o conceito de dever fundamental, analisar a sua relação com o plano jurídico e,
havendo uma, com o próprio plano moral.
Há quem sustente que não há razão para falar em dever como elemento do campo
jurídico. É o caso de Rafael de Asís Roig, o qual sustenta a inadequação do conceito de dever
ao plano jurídico, uma vez que estaria vinculado, exclusivamente, à realidade moral.
Conforme o entendimento do autor espanhol, o dever estaria relacionado, no âmbito
individual ou intersubjetivo, àquilo que é bom (a partir de seu valor intrínseco), concepção
que deriva, como manifesta o próprio jurista, da argumentação sobre imperativos categóricos
do filósofo Immanuel Kant.
O dever, que seria a atuação conforme a boa vontade, bastando esta para
determinar a sua obrigatoriedade conforme a razão, independentemente, portanto, da
consecução de determinado fim por meio do exercício da ação em questão, seria espécie de
antípoda da obrigação, que, não prestando contas a priori a qualquer valor que carregaria consigo, seria determinada por uma força externa, estabelecendo-se uma sujeição heterônoma,
não pela vontade consoante a razão.
Nesse sentido, o dever, já que caracterizado nos termos da boa vontade, estaria,
por causa desta, vinculado ao plano moral, não podendo ser determinado como “jurídico”,
pois não poderia ser entendido sem o seu significado de valor (intrínseco). Já a obrigação,
determinada pela ordem impositiva – que aqui, sim, pode ser entendida como a jurídica –, não
dependeria do seu significado de valor, uma vez que sua obrigatoriedade não derivaria do
exercício segundo a razão (na filosofia kantiana, estar-se-ia mais próximo da concepção de
imperativo hipotético).
Basándonos en las consideraciones precedentes, puede entenderse el deber como algo incondicional, mientras que la obligación es condicional. En este punto se relaciona el deber no sólo con el valor sino también con la virtud. Por decirlo com Hegel, "el deber debe ser cumplido por el deber". El deber existe por su valor intrínseco (ya sea individual o intersubjetivo, incluso trascendente) y no creo que sea posible hablar de un deber jurídico definible por éste valor. Puede que sea posible en algunos casos y para algunas personas, pero no en todos los casos, y además no es un dato necesario para la existência de éste. La obligación jurídica se basa exclusivamente en la norma jurídica, con lo que si se denomina como deber desvirtuaría ya la propia concepción de éste. Por decirlo empleando una distinción clásica, el deber se refiere al fuero interno y la obligación al externo.11
Em resumo, o dever daria origem a enunciados primordialmente valorativos,
significando sempre bons comportamentos a serem realizados, enquanto a obrigação (jurídica)
daria vazão a enunciados predominantemente prescritivos, significando a obrigação imposta
de se realizar determinada ação, sem importar – para o objetivo da diferenciação dos
conceitos – o valor que carregue consigo.
A argumentação de Asís Roig é compreensível, especialmente, levando-se em
consideração a influência da terminologia kelseniana na determinação da obrigação jurídica,
ainda que outra seja a conclusão de Kelsen.
O jusfilósofo vinculou a obrigação jurídica ao comando da norma jurídica,
opondo-lhe, expressamente, ao domínio particular dos valores, uma vez que, para ele, o
“conceito de dever jurídico refere-se exclusivamente a uma ordem jurídica positiva e não tem
qualquer espécie de implicação moral”.12 Não importa, para o positivismo kelseniano, a diferença entre a obrigação e o dever no ordenamento jurídico. Ambos seriam, de fato,
decorrências da norma jurídica, não havendo oposição entre os conceitos. Portanto, restaria
válida a concepção de dever jurídico, sendo relevante apenas a sua distinção para o dever
moral. Conforme o jusfilósofo:
O conceito de dever jurídico refere-se exclusivamente a uma ordem jurídica positiva e não tem qualquer espécie de implicação moral. Um dever jurídico pode - embora isso se não verifique necessariamente - ter como conteúdo a mesma conduta que é prescrita em qualquer sistema moral, mas também pode ter por conteúdo a conduta oposta, por forma a existir - como costuma admitir-se em tal hipótese - um conflito entre dever jurídico e dever moral.13
11
ROIG, Rafael de Asís. Deberes y obligaciones em la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 265-266.
12
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 82.
13
Neste trabalho, inicialmente, afasta-se da ideia de dever como instituto exclusivo
do plano moral. Embora se aceitem as premissas do pensamento kantiano pertinentes aos
imperativos categórico e hipotético e se compreendam suas decorrências na argumentação de
Asís Roig, acredita-se ser viável a distinção entre dever moral e jurídico por meio da
atribuição de características próprias ao segundo (como se fez, acima, em relação ao
primeiro). Assim, para a devida caracterização da figura dos deveres fundamentais, com a
complexidade do tratamento analítico que exige o tema, destoar-se-á do jurista espanhol ao
compreender-se, na esteira de Kelsen e de Casalta Nabais,14 o dever como possível,
outrossim, em sua categoria jurídica.
O alinhamento ao pensamento austríaco, entretanto, não é completo. É que,
conquanto se afirme que os deveres fundamentais não constituem o somatório dos
pressupostos éticos da vigência das cartas constitucionais nem mesmo simplesmente deveres
morais desvinculados das normas positivadas pelos ordenamentos, ou seja, que a figura em
questão seja incontestavelmente uma categoria jurídica, ainda é preciso diferenciar deveres
jurídicos de obrigações jurídicas, pois essas não são figuras, por inteiro, equivalentes.
Alessandro Mendes Cardoso defende ser possível diferenciar os dois institutos a
partir da titularidade do interesse protegido por cada um e do grau de concretude que
carregam.15
Para o jurista brasileiro, no que diz respeito aos interesses protegidos, as
obrigações jurídicas garantem a exigência de determinado comportamento de um sujeito por
outro, garantia essa que se constitui na prerrogativa concedida pelo ordenamento jurídico ao
titular do interesse em questão. Assim, a relação jurídica específica constituída pela obrigação
concede o direito subjetivo a, determinadamente, um dos sujeitos em face do outro.
Quando não se faz possível, todavia, determinar a titularidade do interesse da
relação ou ela é genérica, trata-se não mais de uma obrigação jurídica, mas de um dever
jurídico. É o caso, por exemplo, da titularidade de determinado direito atribuída,
constitucionalmente, a um órgão público. Enquanto juridicamente assegurada ao ente estatal,
14
NABAIS, 1998, p. 35.
15
apresenta-se como dever. Quando, enfim, por ele exercida, transforma-se em obrigação
jurídica.16
O pensamento mais preciso, entretanto, para a distinção das figuras, é o de
Cristina Pauner Chulvi.
A autora espanhola argumenta que, embora, ainda hoje, não se haja consenso na
doutrina a respeito da questão, é possível entender que os deveres jurídicos possuem caráter
genérico no sentido de que as relações decorrentes dos deveres não determinam o sujeito
titular do direito correlato exigível e não prescindem de concretude.
Desse modo, no que se refere ao grau de concretude aplicável à distinção, o dever
jurídico, somente quando desencadeia o processo que ocorre por meio da edição da norma
específica e finalmente viabiliza a aplicação do comando ao caso concreto, dá origem à
obrigação jurídica, consistindo, nesse ponto, a diferença entre as duas figuras.
Nas palavras do magistério de Pauner Chulvi:
Em otras palabras, al mantenerse la diferenciación entre deber y obligación se afirma que ambas figuras pertenecen al género común de los deberes en sentido amplio. La diferencia entre estas dos categorías reside em que la obligación surge siempre en el seno de una relación jurídica dada em estricta correspondencia com un derecho subjetivo de otro sujeto que es parte en la misma relación mientras que el deber se imponde en una dirección sin que se tenga enfrente otro sujeto que sea titular de un derecho correlativo a exigirlo. Este deber en sentido amplio, como situación de
sujeción, necesitará de un proceso de concreción, que algún autor califica de “actos de accertamento”, que ajusta ese deber genérico a las circunstancias concurrentes em cada caso.17
Na verdade, não é mesmo preciso distanciar-se da doutrina constitucional
brasileira para o desenvolvimento complementar da nota do grau de concretude que separa
obrigações jurídicas e deveres fundamentais.
Os deveres fundamentais, em regra, necessitam da atuação do legislador, a nível
infraconstitucional, para a aquisição da eficácia (material). A concretização dos deveres
fundamentais em outro texto exige ora a especificação dos termos do conteúdo constitucional,
ora a regulamentação dos elementos normativos que orientarão a conduta, ora a própria
edição da norma que irá sancionar o comportamento contrário às exigências do dever
previsto. Nesse sentido, com as obrigações jurídicas, assim como usualmente comenta a
16
Ibid., p. 21.
17
doutrina ao referir-se especificamente sobre o tema dos direitos fundamentais, dá-se o oposto,
uma vez que são diretamente aplicáveis e, por regra, não mais exigem a atividade do
legislador, criando, desde o seu surgimento, um direito subjetivo correlativo ao patrimônio
jurídico do indivíduo.
Portanto, valendo-se da argumentação de José Afonso da Silva, é o que se
denomina norma de eficácia limitada:
(...) as normas de eficácia limitada são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não essenciais, ou melhor, não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valores-meios e condicionantes (...).18
Utilizando-se do exemplo do dever que se apresenta como fim deste trabalho, é
plausível compreender o dever constitucional de pagar tributos como um dever jurídico
fundamental previsto em uma norma de eficácia limitada e, por consequência, carente de
maior concretude. A norma presente no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal de
1988, delegando aos entes políticos a competência para a instituição de tributos, por si apenas,
não estabelece o surgimento de obrigações tributárias concretas, ou seja, obrigações jurídicas.
Somente a ação do Legislativo (ou a quem mais for atribuída a função de editar a norma)
daria origem a estas.
Dessa forma, conclui-se que os deveres fundamentais, diferentemente dos deveres
morais, constituem não apenas uma categoria jurídica como uma figura distinta das
obrigações jurídicas, apesar de inegável a existência de semelhanças entres os dois institutos e
do escasso desenvolvimento da matéria dos deveres fundamentais, nacional e
internacionalmente, não haver dado condições da unificação – e até do adequado
desenvolvimento – do entendimento na doutrina.
2.1.2 Da relação entre deveres e direitos fundamentais
Conforme demonstrado, a percepção dos deveres fundamentais como integrantes
também do plano jurídico é acertada, uma vez que, embora continuem pertencendo, sob
determinada ótica, ao plano que já constituíam anteriormente à integração no direito, qual seja
o plano moral, é inegável a sua vinculação – assim como no caso das obrigações – ao
ordenamento jurídico. É preciso investigar-se, contudo, se os deveres fundamentais
18
constituiriam uma categoria jurídica autônoma ou, como já se defendeu em outras obras e
outros tempos, dependente dos direitos fundamentais.
No que diz respeito ao tratamento próprio das teorias liberais (relativas ao
homem, à sociedade e ao Estado), pode-se afirmar que a manifestação de projeção e
esgotamento dos deveres fundamentais no plano dos direitos fundamentais é consequência do
tratamento superlativo – logo, equivocado – conferido ao “princípio da repartição” ou
“princípio da distribuição”, considerado por Carl Schmitt quando da investigação sobre o Estado de Direito Liberal.
De la idea fundamental de la libertad burguesa se deducen dos consecuencias, que integran los dos principios del elemento típico del Estado de Derecho, presente en toda Constitución moderna. Primero, un principio de distribución: la esfera de libertad del individuo se supone como un dato anterior al Estado, quedando la libertad del individuo ilimitada en principio, mientras que la facultad del Estado para invadirla es limitada en principio. Segundo, un principio de organización, que sirve para poner en práctica ese principio de distribución: el poder del Estado (limitado en principio) se divide y se encierra en un sistema de competencias circunscritas. El principio de distribución – libertad del individuo, ilimitada en principio; facultad del poder del Estado, limitada en principio – encuentra su expresión en una serie de derechos llamados fundamentales o de libertad; el principio de organización está contenido en la doctrina de la llamada división de poderes, es decir, distinción de diversas ramas para ejercer el Poder público, con lo que viene al caso la distinción entre Legislación, Gobierno (Administración) y Administración de Justicia – Legislativo, Ejecutivo y Judicial. Esta división y distinción tiene por finalidad lograr frenos y controles recíprocos de esos «poderes». Derechos fundamentales y división de poderes designan, pues, el contenido esencial del elemento típico del Estado de Derecho, presente en la Constitución moderna.19
É verdade que a repartição constitucional entre a liberdade do indivíduo e os
poderes do Estado dá margem não apenas à argumentação liberal em favor dos direitos
fundamentais como também à distinção, com tons de oposição, entre a sociedade civil e o
Estado. Tais implicações, por sua vez, foram tomadas como razão pela doutrina superlativa –
em espécie de comportamento anacrônico, compatível somente com os pensamentos do
século passado (em paráfrase dos dizeres já colacionados de Casalta Nabais) – para a redução
da temática dos deveres fundamentais à categoria dos direitos fundamentais, fazendo daqueles
nada mais que reflexos destes.
Malgrado seja o princípio formulado pelo autor alemão próprio do Estado de
Direito, Liberal ou não, a repartição comporta, para além do entendimento liberal dos direitos
fundamentais, a concepção moderada sobre eles inerente ao Estado de Direito Social.
Portanto, o certo é que os direitos fundamentais estão limitados e são limitáveis não apenas na
19
medida das liberdades de outrem (teoria liberal clássica dos direitos fundamentais) como
também segundo as exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar social dos cidadãos
de sociedade democrática.20
Tais exigências são, na generalidade dos casos, suportes dos deveres
fundamentais, os quais, embora passíveis de serem relacionados à temática dos limites aos
direitos fundamentais, assumem autonomia (e, assim, naquela temática não se esgotam) e
afastam a compreensão de que seriam decorrências das liberdades individuais, porquanto que
o princípio da repartição, no Estado de Direito Social, dialoga com as liberdades sendo
limitadas, ao mesmo tempo, pelas liberdades de outrem (direitos fundamentais) e pelas
responsabilidades de todos (deveres fundamentais), realidades, a priori, distintas. Corroborando o entendimento, Alessandro Mendes Cardoso:
O indivíduo não deve ser compreendido isoladamente, mas, sim, como ser inserido socialmente, ao qual incumbem deveres decorrentes da solidariedade social que lhe é imposta. Ou seja, os direitos fundamentais não são limitados tão somente em uma perspectiva subjetiva pela órbita de liberdade do outro, mas também, e em muitos casos principalmente, pelas exigências sociais e de ordem pública decorrentes do fato de se estar inserido numa sociedade democrática. Essas exigências não se exaurem na problemática dos limites aos direitos do indivíduo, mas dão suporte e autonomia aos direitos fundamentais.21
Já no que se refere à perspectiva excessiva oposta, a qual dilui materialmente os
direitos fundamentais na figura jurídica dos deveres fundamentais, inquestionável o equívoco
na composição da tese.
A concepção em questão da relação – ou, no caso, aparente relação – entre
deveres e direitos fundamentais ergue-se sob a contradição do princípio da funcionalização
dos direitos. Convertendo o instituto dos direitos em deveres perante o Estado, conversão que
se dá sob o eufemismo dos “direitos funcionalizados”, eleva-se, ao primeiro plano, o poder político da autoridade estatal ao invés do, como sempre há de ser, indivíduo enquanto pessoa
humana. Os poderes públicos adquirem primazia, relegando-se, de fato, a perspectiva de
sujeição ativa ou passiva do cidadão.
Nesse sentido, os deveres fundamentais tornar-se-iam consequências da
organização política e econômica do Estado e decorrências de sua soberania, anulando-se a
concepção que os desenvolve como implicações do dever geral de solidariedade do homem
20
NABAIS, 1998, p. 28-30.
21
em relação à comunidade em que vive ou, em outras palavras, como resultados da
organização do indivíduo em sociedade.
À sua vez, os direitos fundamentais seriam, praticamente, em razão do seu real
aspecto material, nada mais que espécies de deveres disfarçados, porquanto que restaria a
“determinação” de exercê-los em nome da comunidade (leia-se “Estado”). Direitos de fato existiriam apenas às margens dos comandos de tais deveres, nas lacunas dessas
determinações.
Assim concebidos, os direitos fundamentais perderam a nota caracterizadora
inafastável da possibilidade de não serem exercidos pelos seus titulares ativos, em sua faceta
de verdadeiros direitos negativos, o que se demonstrou uma experiência desastrosa nos
estados totalitários (além de uma aberração jurídica), porque estes se utilizaram da equivocada
compreensão dos direitos como ferramentas para a consecução de seus fins econômicos e,
especialmente, políticos, fenômeno que, felizmente, veio a ser combatido pela ciência do
Direito Constitucional do Estado Democrático e de Direito posteriormente.22
Destarte, é forçoso concluir que, se por um lado, os deveres fundamentais não
podem ser resumidos ao aspecto dos limites dos direitos fundamentais, entendimento
resultante do tratamento exacerbado do princípio da repartição elaborado por Carl Schmitt e
inerente ao Estado de Direito, Liberal ou não, por outro, também não podem ser exagerados
como reflexos da soberania estatal, decorrências, exclusivamente da organização política e
econômica do Estado, o que, na prática, por unificar direitos e deveres, acaba por deturpar o
conteúdo daqueles, eliminando suas notas características. A verdade é que os deveres
fundamentais constituem uma categoria jurídica autônoma, tanto quanto a dos direitos
fundamentais.
A autonomia jurídica da figura dos deveres fundamentais não deve ser entendida,
conforme demonstrado anteriormente, como a inexistência de relações com as figuras
constitucionais dos direitos fundamentais. No Estado de Direito, no qual deve, naturalmente,
predominar a liberdade da pessoa humana (garantida pelo direito) ante a autoridade do Estado
(expressão do poder constitucional e legítimo), os deveres fundamentais dão significado à
intensa relação com o instituto dos direitos, a começar, na composição necessária do que se
pode chamar de subconstituição do indivíduo.
22
Numa perspectiva que leve em consideração o indivíduo e suas atribuições
conforme o ordenamento, o estatuto constitucional de posições jurídicas ativas e passivas do
indivíduo é um instrumento que, além de relacionar direitos e deveres fundamentais como
integrantes da mesma realidade, difere das subconstituições política e econômica da
organização em sociedade, as quais determinam, respectivamente, os valores e comandos de
organização política e econômica do Estado. Tais subconstituições, em um Estado que ponha
a pessoa humana em posição fundamental, estão sempre abaixo da subconstituição do
indivíduo, decorrência, por óbvio, da primazia concedida a este e à sua liberdade, nota
caracterizadora de qualquer Estado de Direito.23 Portanto, em qualquer perspectiva que
investigue a posição do indivíduo no ordenamento, direitos e deveres fundamentais devem
estar intrinsicamente relacionados.
Ademais, para além da ideia de composição da mesma subconstituição (a do
indivíduo), necessário é ressaltar outro entendimento, este de viés prático, acerca da relação
entre direitos e deveres fundamentais: o de que, na realidade, sequer seriam possíveis direitos
sem deveres nem deveres sem direitos em qualquer organização em sociedade. Tal
entendimento foi consagrado, no constitucionalismo ocidental, a partir das revoluções liberais,
quando tão patente o lema “no taxation without representation”, mormente na americana.24
Consoante, apropriadamente, será desenvolvido por este trabalho infra, sem a existência de deveres, não seria possível a garantia, jurídica ou fática, dos direitos
fundamentais consagrados pelo ordenamento jurídico, uma vez que seria inviável o
funcionamento da própria comunidade estatal, que seria responsável pela referida garantia na
medida dos limites estabelecidos pelo ordenamento. Por sua vez, sem os direitos a integrarem
o estatuto individual do cidadão, restaria apenas o regime unilateral de deveres e a supremacia
da autoridade, composição impensável no Estado Democrático de Direito e que geraria
somente contestações e revoluções, haja vista as exigências de justiça e respeito pelos direitos
humanos.
Novamente, aponte-se que, embora sejam diversos os pontos de contato entre
direitos e deveres fundamentais, a gravitação conjunta das duas figuras, seja quando
consideradas sob o ponto de visto do indivíduo, seja quando tomadas na realidade societária,
não deve ser confundida, como já o foi, com a supressão de um instituto por outro. É
23
Ibid.,p. 37.
24
justamente esse o magistério de José Gomes Canotilho:
Os deveres fundamentais reconduzem-se a normas jurídico-constitucionais autônomas que podem até relacionar-se com o âmbito normativo de vários direitos. Mesmo quando alguns deveres fundamentais estão conexos com direitos – dever de defesa do ambiente, dever de educação dos filhos – não se pode dizer que estes
deveres constituem “restrições” ou “limites imanentes” dos direitos com eles conexos. O dever de defesa do ambiente não é uma “restrição do direito ao ambiente”, o dever de educação dos filhos não é um “limite imanente” do direito de
educação dos pais. Se isso assim fosse, os deveres fundamentais deixariam de ser uma categoria constitucional autônoma.25
Em suma, os deveres fundamentais constituem, sim, uma categoria jurídica
autônoma. Com os direitos fundamentais, contudo, estabelecem inegavelmente o que chama
José Casalta Nabais de “conexão funcional”. Essa relação deve ser devidamente
compreendida para impedirem-se a exclusividade dos direitos fundamentais – a exemplo do
que ocorreu em larga escala nos regimes liberais clássicos – ou a supressão das garantias
individuais pela autoridade do ente estatal, uma vez que os próprios deveres fundamentais
servem, ainda que indiretamente, ao valor constitucional de preservação da liberdade do
indivíduo.26
2.2 Conceito e características dos deveres fundamentais
Entendidos como categoria jurídica autônoma, independentemente de suas
estreitas relações com os direitos fundamentais e outras figuras jurídicas ou morais, os
deveres fundamentais podem ser enfim conceituados como:
(...) deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição fundamental do indivíduo, têm especial significado para a comunidade e podem por esta ser exigidos. Uma noção que, decomposta com base num certo paralelismo com os direitos fundamentais, nos apresenta os deveres fundamentais como posições jurídicas passivas, autónomas, subjectivas, individuais, universais e permanentes e essenciais.27
Para além da determinação da posição fundamental do indivíduo, ideia
anteriormente desenvolvida a partir da análise de sua subconstituição ou estatuto
constitucional, e da noção de comunidade e responsabilidade em sua formulação, argumento
adequada e pormenorizadamente trabalhado no segundo capítulo deste estudo, necessário
25
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 529.
26
NABAIS, 1998, p. 120.
27
discorrer sobre as precisas características dos deveres fundamentais apresentadas por José
Casalta Nabais.
Em primeiro lugar, os deveres fundamentais constituem posições jurídicas
passivas, uma vez que, na relação jurídica entre os indivíduos e o Estado ou a comunidade da
qual fazem parte, representam os interesses que determinam ao indivíduo o polo passivo. A
sujeição passiva dos deveres fundamentais é evidente oposição à determinação dos direitos
fundamentais, que, na relação em questão, remetem os indivíduos à situação de prevalência
quanto aos interesses, caracterizando a posição jurídica ativa.
Além de autônomos em relação às demais figuras jurídicas, como demonstrado
supra, os deveres fundamentais constituem posições jurídicas subjetivas, ou, a dizer de outra forma, imputadas imediatamente ao indivíduo pelo próprio ordenamento jurídico
(precisamente, pela Constituição). Não se pode dizer que esses deveres derivam dos poderes e
das competências do Estado, a partir de suas subconstituições políticas e econômica, como se
resultados fossem das determinações de organização do Estado, pois eles compõem, de fato, a
subconstituição do indivíduo. Ressalte-se, contudo, que não se nega que essas determinações
tenham consequências nas relações intersubjetivas do indivíduo (por exemplo, o “dever” de
tolerar as justas atividades de expropriação do Estado por utilidade pública é, na verdade, uma
consequência da competência expropriatória do Estado, que nada tem a ver com os
verdadeiros deveres fundamentais como o de pagar tributos ou preservar o patrimônio
cultural, embora afete também as suas relações intersubjetivas).
No que diz respeito à característica da individualidade, os deveres fundamentais
referem-se aos indivíduos ou pessoas humanas. A possibilidade de pessoas jurídicas serem
destinatárias desses deveres não é exceção, porquanto elas nada mais são que instrumentos da
realização da personalidade jurídica humana, e, por isso, estão por detrás delas os próprios
indivíduos.
Os deveres fundamentais também são posições jurídicas universais e permanentes.
Por um lado, são extensíveis a todos os indivíduos, pois fundamentados na sua condição de
integrantes da comunidade, e todos os indivíduos integram-na. Tal elemento de generalidade
não é refutado pela existência de indivíduos que não se submetem, em certas condições, a
determinados deveres, como é o caso dos menores que não estão sujeitos ao serviço militar ou
constituem privilégios aos mencionados indivíduos, mas, na realidade, condicionantes –
necessárias – à aplicação das normas dos deveres fundamentais, as quais são estabelecidas,
justamente, em virtude dos critérios de justiça (especialmente, o princípio da igualdade) que
os determinam. Por outro lado, os deveres fundamentais são posições jurídicas permanentes,
pois protraídos no tempo. Decorrência lógica da durabilidade é a irrenunciabilidade que limita
a atuação do legislador.
Por último, configuram-se os deveres fundamentais como essenciais. Apesar da
dificuldade de delimitação do conceito, o certo é afirmar que, para a caracterização do
instituto que é imprescindível a este estudo, a essencialidade, como a pertinente aos direitos
fundamentais, consiste na carga de valores consagrados (ou essenciais) pela comunidade que
carregam os deveres fundamentais consigo e dão origem à sua existência. Ou como assevera
Casalta Nabais com maior propriedade:
(...) podemos dizer que tais posições hão-de ser do mais elevado significado para a comunidade ou, o que é a mesma coisa, hão-de revelar-se importantíssimas para a existência, subsistência e funcionamento da comunidade organizada num determinado tipo constitucional de estado ou para a realização de outros valores comunitários com forte sedimentação na consciência jurídica geral da comunidade, sedimentação esta que, por certo, não será de todo alheia a própria graduação ou categorização tradicional (histórica) de que têm sido alvo certos deveres.28
Destarte, a definição oferecida pelo autor português a respeito da nota de
essencialidade introduz finalmente, ao referir-se às ideias de comunidade organizada, tipo
constitucional de estado e consciência jurídica comunitária, a questão da fundamentação dos
deveres fundamentais, ou, como especificamente será tratado neste estudo, do dever
fundamental de pagar tributos, uma vez que, compondo a subconstituição do indivíduo ou o
estatuto constitucional do cidadão, o pagamento de impostos e demais tributos não é mais do
que decorrência do dever de solidariedade social e colaboração do indivíduo integrado em
uma comunidade organizada como Estado Democrático de Direito.
28
3 DA SOLIDARIEDADE SOCIAL E SUA RELAÇÃO COM O
DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS
A compreensão do dever fundamental de recolher tributos como decurso do dever
geral de solidariedade social assume, no Estado Democrático de Direito, a sua mais precisa
configuração. Se, por um lado, é admissível afirmar a conexão entre o mencionado dever
jurídico e o fundamento solidário já nos moldes exclusivos do Estado Social – o que não é
possível no Estado Liberal, haja vista, conforme se argumentará posteriormente, o
fundamento inteiramente distinto para o mesmo dever –, a verdade é que, apenas no
constitucionalismo democrático moderno, a relação em questão atinge toda sua
potencialidade.
Em outras palavras, no Estado Democrático de Direito, a atividade da tributação
pelo ente estatal adquire condições de atingir todos os seus devidos fins, uma vez que, além
da função financiadora das atividades básicas do Estado já presente nos Estados Liberais
clássicos e da função de patrocinar a garantia dos direitos sociais e o intervencionismo
econômico nos Estados do Bem-Estar Social, possui a tarefa de promover o elemento
democrático na condição de cidadania fiscal.
Antes, contudo, de investigar-se, com maiores detalhes, a superação dos formatos
do Estado Liberal e de sua antítese,29 o Estado Social, pelo Estado Democrático de Direito (ou
Estado Social e Democrático de Direito) – o que viabilizará, em seguida, finalmente a análise
da relação completa entre o dever geral de solidariedade social e o dever fundamental de
pagar tributos –, é preciso dissertar-se sobre as características de um elemento comum a todos
os três formatos de Estado e, sem o qual, incontestavelmente, nenhuma comunidade
organizada em formato de Estado de Direito e que consagre a liberdade (sem opressão)30 de
seus cidadãos poderia existir: o do Estado Fiscal.
3.1 O Estado Fiscal e a separação fundamental entre Estado e economia
A República Federativa do Brasil, assim como outros Estados que assumem os
valores do constitucionalismo democrático e as premissas do Estado de Direito, adota a ordem
econômica do sistema capitalista. Malgrado não o faça expressamente, é certo que o Título
29
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 188.
30
VII da Constituição Federal de 1988, ao determinar a ordem econômica e financeira do País,
consagra, em seu art. 170 do Capítulo I (“Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”), os princípios da propriedade privada dos meios de produção, da livre iniciativa e concorrência e
outros inequivocamente vinculados às diretrizes do que se pode chamar, grosso modo, de economia de mercado.
A adoção, a nível constitucional, da ordem econômica capitalista pelo Brasil e
outros países não é refutada pela possibilidade de intervenção do Estado na economia ou de
exploração direta por parte deste da própria atividade econômica. Tais competências estatais,
institutos tão caros aos Estados do Bem-Estar Social (ou, em moldes exagerados, aos Estados
Socialistas), são plenamente compatíveis com o sistema econômico em tela desde que
limitadas, por meio do estabelecimento do critério da imprescindibilidade, à condição de
exceção, não de regra, pelo ordenamento jurídico vigente.
Essa limitação, entretanto, que constitui, em outros e abrangentes termos, o
afastamento do Estado da atividade econômica e garante, sem opressão, a liberdade de
atuação na economia dos indivíduos, requer o pagamento de um preço: o da tributação.
A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização da economia.31 Embora se vá demonstrar adiante, pormenorizadamente, por que o tributo, para
além de sua concepção basilar como decorrência da autolimitação da liberdade,32 não deve ser
entendido como fruto de uma relação de poder do Estado ou exclusivamente como mero
sacrifício para os cidadãos,33 compreendê-lo, inicialmente, como preço que se paga pela
liberdade de iniciativa e concorrência, pela apropriação privada dos meios de produção e por
outras notas características do sistema capitalista é acertado. Com o pagamento, o valor do
tributo é transferido do indivíduo para o Estado para que este possa, primeiramente, atender à
grande parte de suas necessidades financeiras – sendo o resultado da tributação a sua principal
fonte de receita – e, dessa forma, condicionar sua atividade econômica à excepcionalidade.
31
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 24.
32
TORRES, 1991, p. 3.
33
Nesse caso, quando se fala de um Estado cujo perfil da receita pública consiste,
principalmente, nos ingressos derivados do trabalho e do patrimônio do contribuinte, está-se
diante de um Estado Fiscal.34
Pode-se afirmar, com segurança, que o modelo do Estado Fiscal consagrou-se
como regra no Estado moderno.35 Após a superação dos formatos do Estado Patrimonialista,
em que a principal fonte de renda do Estado consistiu nos derivados do próprio patrimônio do
príncipe (confundindo-se a fazenda deste com a pública), e o qual que perdurou do colapso do
Feudalismo até o advento do Absolutismo Esclarecido, e do Estado de Polícia, em que
imperou o sistema de economia mercantilista (impregnado de seus elementos
intervencionistas), e o qual se desenvolveu até a consagração, de fato, da estrutura econômica
capitalista e do liberalismo político e financeiro, o modelo de Estado Fiscal, com a tributação
como principal fonte da receita pública, foi adotado, paulatinamente, pela maioria das
nações.36
É verdade que há exceções. Os Estados Socialistas subsistentes, por exemplo,
podem ser considerados predominantemente produtores, porquanto suas bases financeiras de
rendimentos são constituídas, em maior parte, pelas atividades econômicas produtivas por eles
monopolizadas ou hegemonizadas, limitando inclusive a incidência de tributos sobre
atividades econômicas dos particulares devido à raridade do pressuposto. Outros Estados,
como alguns árabes, Mônaco ou Macau, caracterizam-se como empresários, em virtude das
volumosas receitas provenientes da exploração matérias-primas (petróleo, ouro, gás natural
etc.) ou da concessão das atividades de jogos de azar, assim desobrigando, parcialmente, seus
cidadãos do suporte financeiro da tributação.37
Como, entretanto, já ressaltado, a predominância do modelo do Estado Fiscal não
é abalada pela existência de modelos produtores ou empresários e, na verdade, está
relacionada tanto a Estados Liberais como a Sociais.
Não obstante se reserve maior atenção, quanto ao estudo das duas vertentes, à
investigação sobre o Estado Democrático de Direito infra, é pertinente assegurar que o Estado Fiscal manteve-se uma realidade do advento do Estado Liberal (já configurado o Estado de
34
TORRES, 1991, p. 97.
35
NABAIS, 1998, p. 192.
36
TORRES, 1991, p. 13-14, 51-52 e 97.
37