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Autodeterminação de gênero enquanto direito fundamental da personalidade: a visão pós da e o projeto de lei nº 50022013

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO

GABRIELA DE OLIVEIRA MOURA E SOUZA

AUTODETERMINAÇÃO DE GÊNERO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL DA

PERSONALIDADE: A VISÃO PÓS-ESTRUTURALISTA DA TRANSEXUALIDADE E

O PROJETO DE LEI Nº5002/2013

FORTALEZA

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GABRIELA DE OLIVEIRA MOURA E SOUZA

AUTODETERMINAÇÃO DE GÊNERO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL DA PERSONALIDADE: A VISÃO PÓS-ESTRUTURALISTA DA TRANSEXUALIDADE E O

PROJETO DE LEI Nº5002/2013

Monografia apresentada ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR

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S238a Souza, Gabriela de Oliveira Moura e.

Autodeterminação de Gênero Enquanto Direito Fundamental da Personalidade: A Visão

Pós-estruturalista da Transexualidade e o Projeto de Lei Nº 5002/2013 / Gabriela de Oliveira Moura e Souza. – 2016.

72 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2016.

Orientação: Prof. Dr. WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR.

1. Identidade de Gênero. 2. Direitos da Personalidade. 3. Transexualidade. 4. Projeto de Lei 5002/2013. I. Título.

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GABRIELA DE OLIVEIRA MOURA E SOUZA

AUTODETERMINAÇÃO DE GÊNERO ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL DA PERSONALIDADE: A VISÃO PÓS-ESTRUTURALISTA DA TRANSEXUALIDADE E O

PROJETO DE LEI Nº5002/2013

Monografia apresentada ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior (Orientador)

Universidade Federal do Ceará

_________________________________________ Profª. Meª. Gabriela Gomes Costa

Universidade Federal do Ceará

_________________________________________ Luana Adriano Araújo

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AGRADECIMENTOS

A menor distância entre dois pontos nem sempre é uma reta.

Deixar a família em Brasília para me graduar na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará poderia parecer um grande desvio de rota, não fosse esse o único percurso possível no sentido da minha verdadeira realização pessoal e amadurecimento.

Os cinco anos e meio de graduação me ensinaram que tenho em minhas mãos a responsabilidade de abrir terrenos e criar meu próprio caminho, dia após dia, e que meus horizontes não são fixos e imutáveis, sendo necessário firmeza na hora de substituí-los, ainda que uma firmeza forjada sobre muitas angústias e incertezas.

Essa trajetória não teria sequer iniciado, não fossem as pessoas que por tantos anos pavimentaram e sinalizaram minhas estradas, me doando com tanto amor uma sólida estrutura sem a qual eu jamais haveria ganhado a segurança para seguir sozinha.

Por esse oceano de cuidados e afetos, ao qual sempre é maravilhoso retornar, agradeço profundamente à minha família, pessoas que amo infinita e incondicionalmente e que me mostraram que estar perto não tem nada a ver com distâncias materiais, pois ainda que fisicamente separados, somos sempre unidade.

Desta forma, agradeço primeiramente à minha mãe, Rossana e ao meu pai, Zezé, por sempre terem prezado pela minha educação e a de meu irmão em primeiro lugar, ainda que muitas vezes em detrimento de nosso próprio conforto. Os anos de endividamento com o Galois, escola brasiliense que tanto me moldou, são lembrados constantemente em meus esforços pessoais. Recompensá-los por tudo isso é objetivo do qual hoje me aproximo um pouco mais.

Ao meu irmão Pedro e primo André, obrigada por fornecerem a melhor energia que uma casa poderia ter! Obrigada por serem tão carinhosos e atenciosos comigo e saibam que sempre terão a mim para lhes apoiar em tudo. Da mesma forma, meu imenso reconhecimento e gratidão ao Heliomar, que com a paciência de um verdadeiro Buddha, complementou a casa brasiliense com muita harmonia e bom humor.

Da parcela cearense agradeço à Eliane, Eliete e Dona Odete, as três mulheres que hoje cuidam tão bem do meu pai, e que sempre me receberam com muito carinho nos mais diversos almoços e comemorações. Meu agradecimento também à minha prima Priscila, a tranquilidade que faltava na minha casa!

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dedicação me acolheram em Fortaleza quando eu, ainda tão nova, buscava compreender os desafios de se morar longe dos cuidados dos pais. Márcia, Pedro, Lana e Diego, vocês me ensinaram um mundo e têm meu eterno respeito e carinho.

Tão importantes quanto a terra firme e fértil de onde parti, foram os ventos que me possibilitaram voar! Agradeço ao CAJU/UFC, núcleo de extensão que me fez enxergar o Direito de forma crítica e humanizada, bem como às várias amizades que ali fortaleci, pessoas que, de fato, estarão comigo não só em meu coração, mas na minha própria visão de mundo e convicções. Aos demais amigos da faculdade, do circo, das Lilas, Trevas e DPU: o convívio com vocês foi o que me manteve inteira durante todos esses anos! Obrigada por todo o carinho.

Ao meu psicólogo Ricardo Ribeiro, quem tanto me ajudou a confiar no meu próprio potencial e a reconhecer minhas conquistas: a leveza com que foi escrita essa monografia é também fruto de seu competente trabalho!

Agradeço à Lais Brasileiro, minha doce companheira, por todos os ventos de calmaria quando eu era tempestade. Nosso amor e companheirismo se fortalecem nos altos e baixos e espero que para cada pedalada difícil e cansativa haja sempre um bom banho de mar no final. Conta comigo sempre.

A toda a família Brasileiro, Samuel, Ladyjane, Samuca e Nati, minha enorme gratidão. O amor e carinho da casa de vocês é inspirador e contagiante!

Agradeço ainda ao enorme apoio que recebi dos amigos Jônatas Mota, Wilton Júnior e Helena Vieira para a concretização deste trabalho. Vocês são demais!

Por fim, agradeço profundamente a meu orientador Professor William, pela completa disponibilidade e atenção, sempre respondendo tão rapidamente a todas as minhas dúvidas, sendo verdadeiramente presente durante este processo de criação.

À professora Gabriela Gomes e à amiga mestranda Luana Adriano, muito obrigada pela gentileza e pela disponibilidade de avaliarem este trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho pretende debruçar-se acerca da concepção pouco explorada de identidade de gênero, situando-a no campo dos direitos da personalidade, aprofundando-se na compreensão de um Direito Civil essencialmente balizado pelos princípios constitucionais. Nesse sentido, perpassa-se pela concepção da filosofia pós-moderna acerca da transexualidade, identificando-a como conceito fluido e social, distante dos conceitos patologizantes produzidos pela ciência e reforçados pelo Estado. Demonstram-se, então, os mecanismos de exclusão patrocinados pelo Poder Público, no que diz respeito ao direito à livre expressão identitária, e seu respectivo reconhecimento pelo Estado nos registros civis públicos. Discute-se amplamente a problemática da ausência de lei federal que disponha acerca dos direitos das pessoas trans no Brasil de forma adequada, apresentando-se os principais projetos de lei que se encontram atualmente em votação no Congresso Nacional. Procura-se, por fim, demonstrar que o Projeto de Lei 5002/2013 mostra-se o mais apropriado para tutelar os direitos de transexuais e travestis, eis que, partindo de uma perspectiva mais humanizada e despatologizante, sugere a desburocratização e a democratização do acesso de pessoas trans aos seus direitos civis constitucionalmente garantidos.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 12

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS DA

PERSONALIDADE... 14

2.1 Direitos da Personalidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro:

Panorama Histórico no contexto da Constitucionalização do Direito

Civil... 15

2.2 O Rol Aberto dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002... 18

2.3 Definição e Características... 20

3 A TRANSEXUALIDADE E SEUS ASPECTOS FILOSÓFICOS E

JURÍDICOS... 25

3.1

3.2

3.3

3.4

4

5

6

7

A Excessiva Regulamentação sobre o Corpo Humano...

Gênero, Sexo e Sexualidade: Conceitos e Distinções...

A Transexualidade...

A Repercussão Jurídica: Autorização versus Reconhecimento...

ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº5002/2013 (LEI JOÃO W. NERY)...

CONSIDERAÇÕES FINAIS...

REFERÊNCIAS...

ANEXO... 25 28 36 39

44

53

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1 INTRODUÇÃO

Os direitos da personalidade consistem no reconhecimento jurídico dos elementos subjetivos que refletem a mais íntima percepção do indivíduo, constitutivos da própria essência do sujeito. Apresentam-se em grande parte no art. 5º da Constituição Federal enquanto direitos fundamentais, como o direito à honra, à imagem, à privacidade. O rol dos direitos da personalidade, entretanto, é aberto e ilimitado, tal qual a subjetividade da pessoa humana. Em razão disso, os direitos da personalidade que não se encontram textualmente previstos na constituição, ainda assim carregam o status de direito fundamental, eis que essencialmente consectários da dignidade humana.

É o caso do direito à identidade de gênero. Ainda pouco compreendido socialmente, o conceito de identidade de gênero está intimamente relacionado ao processo de autodeterminação psíquica do ser, não estando necessariamente vinculado ao seu sexo biológico ou à sua orientação sexual. Na medida em que a identidade de gênero traduz a forma como nos reconhecemos em nós mesmos e desejamos que os outros nos reconheçam, percebemos tratar-se de fenômeno intrínseco à dignidade da pessoa humana.

A afirmação da identidade de gênero, portanto, é fato que complementa a identidade dos indivíduos, compreendendo a realização da dignidade, no que concerne à possibilidade de expressar todos os atributos sexuais imanentes a cada pessoa.

A transexualidade é um conceito contemporâneo que pretende representar aquelas pessoas que não se reconhecem com o gênero socialmente sugerido pelo seu órgão sexual. Tal designação só encontra propósito em uma sociedade que reduz o entendimento de gênero à mera constatação biológica da genitália ou da disposição cromossômica de um indivíduo, ignorando as demais variantes psicossociais da sexualidade.

O entendimento equivocado acerca da percepção de gênero custa aos transexuais a patologização de suas próprias existências. Atualmente, a transexualidade encontra-se listada na CID-10 (Classificação Internacional de Doenças), gerando uma série de consequências discriminatórias nos âmbitos pessoal e jurídico à essa parcela da população.

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e desumana, atentatória contra o espírito constitucional.

É, então, partindo do direito civil constitucionalizado e do estudo da identidade de gênero na pós-modernidade, marcado por uma maior fluidez na percepção do eu, que o presente trabalho propõe a análise do Projeto de Lei nº 5.002/13, problematizando-se a capacidade de integração e reconhecimento da despatologização das identidades trans do Projeto de Lei João Nery em comparação com os demais projetos relacionados à tutela dos direitos das pessoas transexuais e travestis no Brasil.

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2 CONSIDERAÇÕES EM TORNO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

O Direito Contemporâneo teve origem no ideário da Revolução Francesa, sendo, portanto, fortemente marcado pelas características do liberalismo econômico. Neste cenário, a nova ordem jurídica nascia com a competência de minimizar o papel do Estado, mantendo este o mais distante das relações entre os particulares e limitando-o a reger timidamente os aspectos relacionados à segurança nas relações sociais, deixando livre o espaço para o pleno desenvolvimento das relações econômicas.

As relações privadas, por sua vez, gozavam da mais ampla liberdade, sendo a autonomia das vontades entre particulares requisito suficiente para legitimar todo e qualquer negócio jurídico. Acreditava-se, então, que, deixadas livres para perseguir sua própria felicidade, as pessoas alcançariam o máximo bem comum (GALBRAITH, 1986).

No século seguinte o que se observa, entretanto, é que o contexto de profundas desigualdades sociais e econômicas evidenciaria que a essência do projeto liberal resultava, na realidade, na submissão da liberdade dos mais fracos às arbitrariedades da liberdade dos mais fortes.

Ao criar um espaço de atuação a salvo de qualquer interferência do Estado, o liberalismo jurídico acabava por chancelar a submissão imposta pelas forças econômicas. Qualquer renúncia do homem aos seus direitos mais essenciais era vista como legítima porque

fundada na “livre manifestação de vontade” do renunciante (SCHREIBER, 2011).

Os juristas passam então a perceber que a própria liberdade haveria de ter certos limites, eis que a não interferência estatal acabava permitindo que muitas pessoas abrissem mão de seus direitos mais essenciais quando deparadas com necessidades mais imediatas.

Nesse contexto ganha relevância o questionamento sobre quando, como, por que e em que medida a ordem jurídica deverá intervir na vida particular das pessoas. Diante da complexidade das relações humanas tal questionamento mostra-se, sem dúvidas, continuamente necessário e perante as mais variadas correntes que se propõem a respondê-lo, é possível afirmar que existe um consenso mínimo: certos direitos essenciais à dignidade humana devem ser promovidos e protegidos pelo Estado independente dos desígnios compactuados entre particulares, e, ainda, em situações extremas, da vontade do próprio titular do direito.

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adiante, em 1789, pela Declaração dos Direitos do Homem, que consolidava a tutela da personalidade humana e a defesa dos direitos individuais.

Foi somente após a II Guerra Mundial, entretanto, diante das atrocidades cometidas pelo nazismo contra a humanidade como um todo, que surge internacionalmente o reconhecimento da necessidade de uma tutela expressa e categórica dos direitos básicos fundamentais à dignidade da pessoa humana.

Na segunda metade do Século XIX, então, surgem as primeiras construções acerca dos direitos da personalidade, expressão concebida por jusnaturalistas franceses e alemães para designar direitos inerentes à pessoa humana, tidos como preexistentes ao seu reconhecimento por parte do Estado (RUGGIERO, 1999). Os direitos da personalidade passam a representar, portanto, o substrato mínimo necessário à garantia daquilo que Maria Celina Bodin de Moraes vislumbra como “o valor supremo de alicerce da ordem jurídica

democrática”; a dignidade humana (DE FARIAS; ROSENVALD apud BODIN DE MORAES, 2011)

Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 137):

A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais, inclusive) mínimos para que se possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.

Constata-se, portanto, que, os direitos da personalidade se relacionam com a proteção da própria complexidade humana, o que os caracterizará no ordenamento jurídico brasileiro como direitos absolutos, imprescritíveis, inalienáveis, indisponíveis e de natureza complexa e aberta.

2.1 Direitos da Personalidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro: Construção

Histórica no Contexto da Constitucionalização do Direito Civil

O cenário de efervescência das lutas por direitos humanos em âmbito internacional e as feridas ainda abertas deixadas pelo regime militar no Brasil contribuíram para verdadeira reconstrução da dogmática jurídica brasileira, consolidada pela promulgação da Constituição Federal de 1988.

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conferiram nova feição ao direito privado, especialmente no que tange à ciência civilista. Impondo uma releitura dos institutos fundamentais do Direito Civil, a CRFB/88 traz a dignidade humana como princípio norteador, que influenciará no progressivo abandono do liberalismo e materialismo de outrora, em favor de uma abordagem mais humanista e solidária das relações jurídicas.

O Código de 1916 (elaborado ainda em 1899), nascido sob a égide do liberalismo econômico, possuía a explícita missão de garantir estabilidade às atividades privadas, seguindo uma ideologia marcadamente individualista, na qual o indivíduo era desenhado como um abstrato sujeito de direitos patrimoniais. A propriedade privada e a liberdade contratual recebiam tutela absoluta, sem qualquer possibilidade de relativização e, assim, o desenvolvimento da personalidade mostrava-se, até então, como fruto da expansão do patrimônio, e não do respeito e estímulo à essência e complexidade inerentes a cada um de nós (DE FARIAS; ROSENVALD, 2011, P. 21).

Destaca-se que a liberdade ali resguardada era, sobretudo, uma liberdade econômica e comercial, mais precisamente retratada como a liberdade para adquirir, manter e transmitir bens sem a interferência do Estado, a não ser para impedir que terceiros prejudicassem o gozo destas faculdades (SARMENTO, 2004).

Rapidamente observou-se que a codificação de Bevilácqua não dispunha de fôlego suficiente para acompanhar as transformações sociais e jurídicas pelas quais passava a sociedade brasileira no século XX, tendo seu anacronismo resultado na nomeação, em 1967, de uma comissão de juristas, coordenada pelo Professor Miguel Reale para a elaboração de um novo Código Civil. O anteprojeto do novo código, finalizado em 1972, sob a vigência do regime militar, preservou, ainda, muitas das disposições de seu antecessor, mas não chegou a vigorar.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a redemocratização do país, viu-se imperiosa a necessidade de reformular o Direito Civil como um todo, já que tão grandes eram as mudanças nos valores existenciais acolhidos pela nova Carta Magna.

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Sobre o Código de 2002, Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p.19):

Parece que o legislador pretende restabelecer a pureza técnica da codificação, sem perceber o contexto histórico, político e cultural do momento presente (dinâmico, complexo, plural, aberto, multifacetado e globalizado). Sobre o tema, vale invocar a página memorável do emérito Professor italiano Stefano Rodotá, observando que é tarefa do jurista aproximar-se das ciências sociais (filosofia, economia, sociologia, antropologia, história...) para evitar a elaboração de um corpo de normas que, a despeito do rigor e da atualidade técnica, esteja de costas para a sociedade. Em eloquente imagem, Rodotá visualiza, em perfil tão bem aplicável ao nosso sistema legal, a figura de um legislador que apenas chancela as transformações sociais, sem as protagonizar, ganhando feição de um verdadeiro tabelião da história.

Para Gustavo Tepedino (2001), o Código Civil de 2002 “é demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em

nossa cultura jurídica pelo menos desde o pacto político de outubro de 1988”.

Observando-se o nítido conflito entre a perspectiva patrimonialista e individualista da codificação civil de 1916 com os novos ideais constitucionais, parece bastante medíocre a solução encontrada pelo Congresso Nacional de somente readaptar um projeto concebido antes da Constituição brasileira de 1988. Maquiou-se sua essência liberal com toques de uma personalização manifestamente superficial, como quem semeia terreno morto, trazendo a grande novidade de um capítulo dedicado apenas aos direitos da personalidade, entretanto, dando-lhes um formato excessivamente rígido e puramente estrutural.

A crítica de J. Oliveira Ascenção à demagogia do legislativo, em seu artigo “Os direitos de personalidade do Código Civil Brasileiro”(1997, p.13), ainda que anterior à vigência do novo Código, resume o pé atrás que a doutrina moderna conserva em relação ao

dito fenômeno da “repersonalização do direito civil”:

Se confrontarmos, porém as previsões normativas com a realidade circunstante, ficamos colocados perante a evidência de que a vastidão das proclamações constitucionais coexiste com a violação continuada dessas previsões. A realidade não acompanha o empolamento da lei. E não pode deixar de nos invadir a dúvida sobre o verdadeiro significado de semelhante empolamento. Pois pode significar manifestações de demagogia. É sempre airoso fazer grandes declarações, sem se tomar nenhum compromisso quanto à transformação social efetiva que deveriam acarretar. É pecha velha das sociedades democráticas escusar-se através do legislativo das culpas de uma situação que só a transformação histórica de uma realidade social poderia apagar. (grifou-se)

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norma civil para o mundo real e palpável, que demanda uma tutela jurídica mais adequada às suas necessidades presentes.

2.2. O Rol Aberto dos Direito da Personalidade no Código Civil de 2002

Apesar de todas as devidas críticas disparadas ao código vigente, é inegável seu avanço no que tange aos Direitos da Personalidade. Pela primeira vez o legislador dedicaria um capítulo inteiro à proteção da pessoa, trazendo, em sua parte geral, 11 artigos (arts. 11 ao 21) destinados a regulamentar os direitos ao próprio corpo, ao nome, à honra, à imagem e à privacidade.

Afinado com a centralidade do ser humano no ordenamento jurídico, o Código Civil de 2002 dá novas dimensões à existência humana além da rasa faceta patrimonial. Pretende ali demonstrar que por trás do indivíduo abstrato do código de 1916, existe uma pessoa concreta, com múltiplas peculiaridades. Assim, na pós modernidade o cidadão passa a

ser qualificado e concreto, merecedor de proteção real. “É o consumidor, a criança, o

adolescente, o idoso, o deficiente físico, enfim, a pessoa humana!” (DE CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 37).

Acerca da inevitável influência dos ideais constitucionais sobre o Direito Civil, brilhante passagem do professor William Paiva Marques Júnior no artigo “Influxos do Neoconstitucionalismo na Descodificação, Micronormatização e Humanização do Direito

Civil” (2013, p. 316):

Na contemporaneidade, a ausência de identidade do Direito Civil com os tradicionais paradigmas positivistas, delineados pelo racionalismo dogmático-cartesiano (herança da cultura eurocêntrica) dos séculos passados, não é uma recusa para com a cientificidade do Direito, em verdade implica em um giro hermenêutico na medida em que rompe com a ideologia conservadora da civilística tradicional (manutenção do status quo através da propriedade e do contrato numa visão eminentemente liberal) na percepção da interpretação constitucionalizada do Direito Civil.

Assim, o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil não se trata meramente da criação de limites externos ao direito privado, mas sim da imposição de uma nova hermenêutica que permitirá profundas alterações no conteúdo da lei pelo necessário

“giro” interpretativo, afinando a letra da norma civil com os valores e objetivos da

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e desenvolver sua mais autêntica versão de si. Para Anderson Schreiber (2011, p. 12):

A inserção dos direitos da personalidade na Parte Geral do Código Civil já representa, por si só, uma admirável evolução em relação ao Código Civil de 1916, carregado de tintas patrimoniais. A inauguração de um capítulo dedicado à proteção da pessoa, em seus aspectos essenciais, deve ser interpretada como afirmação do compromisso de todo o direito civil com a tutela e a promoção da personalidade humana. O acerto do legislador nesse aspecto é indiscutível e merece todos os aplausos.

José Lamartine Corrêa e Francisco José Ferreira Muniz, no artigo “O Estado de

Direito e os Direitos da Personalidade” (1979, p.228) defendem:

(...) a impossibilidade de uma construção doutrinaria que busque construir essa cláusula geral e se feche dentro do campo do Direito Civil, ignorando os fundamentais princípios que asseguram o respeito à dignidade da pessoa humana. No plano doutrinário, isso significa que só através do entendimento da ordem jurídica como um todo, que tem por base uma hierarquia de valores, dentro da qual ocupa lugar primacial a noção de que o ser humano é pessoa, dotada de inalienável e inviolável dignidade, é possível dar à noção de direitos da personalidade toda a sua real amplitude

Compreender o ordenamento jurídico como uno e indivisível é fundamental para se enxergar que o rol dos direitos da personalidade jamais poderia ser taxativo. A complexidade da natureza humana não haveria de estar restrita aos cinco aspectos da personalidade tratados pela codificação vigente, quais sejam, o corpo, o nome, a honra, a imagem e a privacidade.

A devida atenção à cláusula geral de tutela da dignidade humana, consagrada no art. 1o, III, da Constituição Federal já é bastante para enxergar-se uma nova gama de direitos absolutamente correlatos à personalidade humana, não arrolados no Código Civil, tais como o direito à integridade psíquica, o direito à liberdade de expressão, e, por que não, o direito à identidade de gênero? Estar à margem da lei não significa ser desprovido de direito nem pode impedir a busca do seu reconhecimento na justiça. O Direito, ainda que sempre necessariamente marcado pelo tempo, espaço e cultura nos quais está inserido, deve sempre buscar olhar para além do que socialmente se constrói como normal.

Segundo Anderson Schreiber (2011, p. 15):

Embora o Código Civil brasileiro tenha retratado apenas de alguns direitos da personalidade e não tenha tido cuidado de ressalvar a existência de outros tantos além daqueles que contempla em seus arts. 11 a 21, essa omissão não impede que outras manifestações da personalidade humana sejam consideradas merecedoras de tutela, por força da aplicação direta do art. 1o, III, da Constituição.

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manifestação essencial da personalidade humana.

2.3. Definição e Características

A dignidade da pessoa humana é o primeiro e principal parâmetro a ser levado em consideração quando se busca definir quais são os direitos da personalidade. É ela quem vincula o conteúdo das regras acerca da personalidade, pautando, como consequência, a centralidade do ser humano no ordenamento jurídico, ditando que todas as normas devam servir à pessoa e a sua realização existencial.

Sublinha-se o pensamento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011), segundo o qual a dignidade humana traz consigo, necessariamente, uma dupla face: de um lado, a eficácia positiva, relacionada à vinculação de todo o tecido normativo infraconstitucional, e a sua consecutiva imposição de obrigações ao Estado e aos particulares, sempre com o objetivo de reafirmar a dignidade humana. Do outro lado, a eficácia negativa, relacionada às restrições impostas ao Poder Público e às pessoas como um todo, ao exercício de determinados direitos.

Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 60) leciona que dignidade da pessoa humana é a:

Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos

Os direitos da personalidade são portanto, o aporte jurídico mínimo necessário ao exercício pleno de uma vida digna. Ressalta-se que no plano internacional, a regulação da proteção dos chamados direitos humanos depende do consenso entre diferentes culturas e pode apresentar variações em relação ao direito interno de cada Estado (SCHREIBER, 2011).

Em razão de estarem os direitos da personalidade intimamente relacionados ao valor mais protegido pela Constituição Federal de 88, qual seja, a dignidade humana, ganharam do legislador características privilegiadas em relação aos demais direitos civis.

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sofrer limitação voluntária”.

Ao contrário do que pode ocorrer com os direitos patrimoniais, como o direito ao crédito e à propriedade, os direitos da personalidade não podem ser livremente transacionados, ainda que de acordo com a vontade das partes. Em razão da proteção constitucional aos aspectos essenciais da pessoa humana, o legislador vedou a possibilidade de os direitos da personalidade serem alienados ou transmitidos a outrem, independente se tratar de ato entre vivos, ou em virtude da morte de seu titular.

O entendimento da indisponibilidade dos direitos da personalidade, todavia, é certamente relativo, tendo em vista a própria redação do artigo 11, o qual menciona que a lei estabelecerá algumas exceções em que será possível a cessão de seu exercício.

Destaca-se que as exceções previstas pela lei não consistem em hipótese de transmissão total ou permanente de um direito pessoal, mas sim de autorização legal para alguns casos específicos, balizados pela consagração da dignidade humana, da transferência do exercício daquele direito, e não de sua titularidade. É o exemplo do direito à imagem, que pode ser cedido gratuita ou onerosamente, durante determinado lapso temporal (DE FARIAS; ROSENVALD, 2011).

Sobre a cessão temporária de direitos da personalidade, o Enunciado 4 da Jornada de Direito Civil consolidou o entendimento de que “o exercício dos direitos da personalidade

pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Ou seja, dentro dos limites da preservação da dignidade humana, podem alguns direitos da personalidade ser temporariamente restringidos, se assim desejar seu titular.

A intransmissibilidade destes direitos também é colocada em xeque quando se trata de ofensa a direito da personalidade de pessoa já falecida. Objetivamente, com a morte extingue-se a pessoa e, portanto, a personalidade. Entretanto, há de se falar em uma projeção dos direitos da personalidade para além da vida de seu titular, na medida em que uma ofensa a direito subjetivo de pessoa já falecida pode ocasionar repercussões importantes no meio social.

O Código Civil apresenta de forma simples a solução para os casos de violação de direito da personalidade de pessoa morta, elegendo seus herdeiros como possíveis legitimados à propositura de ações reparatórias e demais medidas de proteção da honra e dignidade do falecido:

Art. 12: Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

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prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Ainda sobre a necessidade de se proteger post mortem a honra e os demais direitos da personalidade, a seguinte observação de Anderson Schreiber (2011, p. 24/25):

Não se trata de uma concessão fantasmagórica, mas de norma ditada pelo interesse social. Os direitos da personalidade projetam-se para além da vida do seu titular. O atentado à honra do morto não repercute, por óbvio, sobre a pessoa já falecida, mas produz efeitos no meio social. Deixar sem consequência uma violação desse direito poderia não apenas causar conflitos com familiares e admiradores do morto, mas também contribuir para um ambiente de baixa efetividade dos direitos da personalidade. O direito quer justamente o contrário: proteção máxima para os atributos essenciais à condição humana.

Bastante ilustrativo é o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça, acerca da possibilidade da reivindicação de indenização moral por ofensa a direito da personalidade de terceiro falecido. Veja-se:

CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO.

Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade.

Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita

à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula.

Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido.

Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido.

(REsp 521.697/RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2006, DJ 20/03/2006, p. 276)

Além da intransmissibilidade e da irrenunciabilidade, características expressamente previstas no texto legal, os direitos da personalidade também carregam particularidades implícitas, advindas do próprio entendimento dos mesmos enquanto direitos básicos para uma existência digna. Por isso, a doutrina atribui-lhes as qualidades de absolutos, imprescritíveis, extrapatrimoniais e vitalícios.

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abstenção de conduta, os direitos absolutos possuem eficácia erga omnes, ou seja, podem ser oponíveis contra toda e qualquer pessoa que ameaçar desrespeitá-los.

A imprescritibilidade diz respeito à impossibilidade da ofensa a um direito da personalidade convalescer com o passar do tempo. Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Ronsevald (2011) inexiste um prazo extintivo para o livre exercício de um direito da personalidade, ou para a pretensão de se garantir judicialmente o exercício do mesmo. Os autores entendem, entretanto, que isso não significa dizer que a pretensão reparatória pecuniária decorrente de eventual dano à personalidade seja também imprescritível. Para eles, a ação indenizatória por ofensa a direito da personalidade prescreve, normalmente, em três anos, por possuir a referida ação natureza patrimonial e não existencial.

No presente trabalho, ousa-se discordar de tal entendimento, na medida em que se acredita ideologicamente que não há ofensa a um único direito da personalidade, de uma única pessoa, sem que haja, necessariamente, ofensa ao interesse social de toda a coletividade. Por consequência lógica, acredita-se que uma ação indenizatória que vise compensar economicamente eventual dano a direito existencial, não pode, por constituir atentado ao princípio da supremacia do interesse público, prescrever em 3 anos como se se tratasse de ofensa a direito meramente privado sem repercussões difusas.

Apoia-se aqui na vanguardista doutrina de Flávio Tartuce (2014), que defende ser

esse posicionamento o mais “condizente com a valorização da dignidade da pessoa humana

constante no texto constitucional”. Para Tartuce, o entendimento segundo o qual as ações reparatórias por dano a direito da personalidade são imprescritíveis é o único verdadeiramente coerente com a moderna visão constitucionalizada do Direito Civil.

Tal concepção é, entretanto, ainda minoritária tanto na doutrina quanto na jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça. Destaca-se que a jurisprudência pátria chega a declarar a imprescritibilidade de ações indenizatórias de danos causados por prisão ou tortura, durante o regime militar ditatorial. Tal exceção, nos parece verdadeira hierarquização dos direitos fundamentais, em nítido confronto com a intenção do legislador constitucional, que horizontalmente os elegeu, sendo cada um deles parte indispensável para o pleno estabelecimento da dignidade humana. Por que o castigo físico inescrupuloso da ditadura militar haveria de ser mais indigno ou doloroso do que a violação também inescrupulosa e institucionalizada à integridade psíquica de pessoas transexuais que têm seu direito fundamental à identidade de gênero negado em pleno regime democrático?

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característica relativa à incapacidade de se quantificar economicamente esses direitos. São, portanto, insuscetíveis de aferição monetária, resguardado, todavia, a possibilidade de reparação do dano moral, independente da existência de prejuízo material.

Da extrapatrimonialidade decorre a impenhorabilidade dos direitos da personalidade, característica que determina não poderem esses direitos sofrer qualquer constrição judicial que vise à satisfação de dívida de qualquer natureza. Sobre o assunto, Maria Helena Diniz (2012, v.1, p.136) aduz serem os direitos da personalidade:

Necessários e inexpropriáveis pois, por serem inatos, adquiridos no instante da concepção, nao podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver por dizerem respeito à qualidade humana. Daí serem vitalícios; terminam, em regra, com o óbito do seu titular, por serem indispensáveis enquanto viver, mas tal aniquilamento não é completo, uma vez que certos direitos sobrevivem.

A definição dos direitos da personalidade é fluida em sua essência e necessariamente em constante evolução. Que estes direitos são consectários da dignidade humana, não existem dúvidas. Entretanto, é imprescindível demarcar o fato de que não são os direitos da personalidade aspectos inatos à existência humana, impostos por ordem sobrenatural às pessoas e aos ordenamentos jurídicos. A ideia de que a consolidação dos direitos da personalidade no cotidiano jurídico tenha decorrido de um processo evolutivo natural e pacífico, na realidade, reforça a existência de um molde limitado dos mesmos.

Os direitos da personalidade são, antes de tudo, frutos de muitas lutas e pressão política, conquistados principalmente por aqueles que veem suas existências sistematicamente negadas. Conforme observado por Hannah Arendt, “os direitos humanos não são um dado,

mas um construído”.

Neste sentido, Edson Ferreira da Silva (2003, p.14) cita Pontes de Miranda:

Os direitos da personalidade não são impostos por ordem sobrenatural, ou natural, aos sistemas jurídicos; são efeitos de fatos jurídicos, que se produziram nos sistemas jurídicos, quando a certo grau de evolução a pressão politica fez os sistemas jurídicos darem entrada a suportes fáticos que antes ficavam de fora, na dimensão moral ou na dimensão religiosa

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3. A TRANSEXUALIDADE E SEUS ASPECTOS FILOSÓFICOS E JURÍDICOS

Antes de se iniciar este capítulo, existe uma ressalva que não pode deixar de ser feita para sua melhor compreensão. O direito à identidade de gênero, aqui defendido enquanto um direito da personalidade, é, sobretudo, uma categoria política. Não será, portanto, encontrado nos sumários dos livros de direito um capítulo destinado ao estudo do mesmo.

A escassez de trabalhos científicos acerca dos direitos das pessoas trans e as inúmeras definições equivocadas, ainda marcadas por uma visão patologizada da transexualidade, presentes nas raras doutrinas mais progressistas que se dão ao trabalho de tocar no assunto, nos fazem lembrar da necessidade da valorização de outros saberes. O desapego ao excessivo rigor cientificista e acadêmico, ao se tratar das questões relacionadas à autodeterminação de gênero, é aqui proposital, ainda que inevitável.

Busca-se então, com maior prioridade, referenciar-se trabalhos produzidos por pessoas do movimento LGBT, em especial da militância transexual e travesti, eis que somente elas, com suas mais variadas vivências, poderiam dar real legitimidade aos conceitos e definições que buscaremos apresentar na presente produção.

3.1. A Excessiva Regulamentação Sobre o Corpo Humano

“O natural é uma pose muito difícil de ser mantida”

Oscar Wilde.

Herança do Iluminismo do século XIX, nossa sociedade ainda sente o inevitável impulso de categorizar tudo que nos cerca, seja em relação às coisas materiais, seja em relação às coisas incorpóreas, até mesmo aquelas relacionadas à nossa própria existência e aos nossos sentimentos.

A elite intelectual contemporânea acredita, ainda hoje, na possibilidade de se converter em claridade racional todos os fenômenos do universo, refutando tudo o que não é capaz de ser compreendido e justificado pelas leis da razão.

É importante demarcar que esse processo de classificação de tudo e de todos é, muitas vezes, a principal origem das diversas opressões que podemos identificar na sociedade atual. É que toda categorização envolve uma padronização, e toda padronização gera, essencialmente, a marginalização de algo ou alguém que ali não se enquadrou.

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jamais poderia ser comprimida dentro de algumas categorias, pois nunca existirá uma quantidade suficiente de compartimentos que abarquem todas as nuances da existência humana.

Deste modo, mostra-se violenta a conduta de uniformizar os mais variados aspectos da humanidade, reduzindo nossa diversidade biológica, sexual, corpórea, cultural a um pequeno nicho do que socialmente se definiu como o “normal”.

Em 2008, a filósofa americana Judith Butler, referência nos estudos sobre gênero e sexualidade, participou das filmagens do documentário “Examined Life” (Vida Examinada), no qual oito filósofos da modernidade caminham pelas ruas de grandes metrópoles estadunidenses, discutindo acerca da aplicação prática de suas teorias no cotidiano da sociedade.

Em sua aparição, Judith Butler conversa, durante um passeio por São Francisco – Califórnia, com Sunaura Taylor, ativista pelos direitos das pessoas com deficiência física. Sunaura, dentre tantas outras características, é portadora de Artrogripose, uma condição caracterizada pela rigidez nas articulações e fragilidade muscular, que afetam de certa forma seus movimentos físicos, de modo que sua locomoção se dá por meio de uma cadeira de rodas elétrica, comandada por sua mão esquerda.

Butler é grande defensora da noção segundo a qual o gênero humano não é consequência lógica e natural do sexo biológico com o qual uma pessoa nasce, mas na realidade, trata-se de fenômeno produzido a todo instante, de modo que não chega sequer a representar um fato sólido sobre alguém, mas sim uma informação fluida e mutável, conforme sua natureza performativa (BUTLER, 1990). Partindo dessa ideia, em meio à conversa com Sunaura, a filósofa faz um intrigante paralelo entre a transexualidade e a vivência dos deficientes físicos. Em uma comparação que para muitos poderia parecer problemática ou ofensiva, a filósofa demonstra com naturalidade que tais condições não passam de outras possibilidades da existência humana, que foram interpretadas pela sociedade como não-conformes, ou, muito frequentemente, como patologias, justamente por não se enquadrarem ao que fora historicamente elegido como o padrão “normal” de conduta ou como a maneira correta de se relacionar com o mundo.

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satisfazer sua necessidade imediata, evita fazê-lo em razão do desconforto que causa nas pessoas, quando faz algo com partes de seu corpo, que não são necessariamente para as quais assume-se que tenham sido feitas.

É possível afirmar, portanto, que existe uma padronização até mesmo dos nossos movimentos diários, padronização esta que se propõe a determinar o que é aceitável e o que não o é. Mas porque existe um jeito padrão de se pegar uma xícara, significa que todas as outras diversas formas possíveis de agarrá-la deixam de ser normais e legítimas? Enquanto para alguns possa parecer completamente inadequado o ato de pegar uma xícara de café com a boca, para Sunaura e diversas outras pessoas em condições iguais ou similares, representa a mais pura expressão de autonomia.

Sunaura ainda sugere uma distinção conceitual entre deficiência1 e incapacidade. Aduz que o que foi cientificamente estabelecido como deficiência física, refere-se objetivamente ao seu corpo, por exemplo, ao fato de que nascera com o que a comunidade médica rotulou de artrogripose, e que a incapacidade, por sua vez, estaria relacionada à repressão social das pessoas com algum tipo de deficiência, aos efeitos incapacitantes da aversão cultural às pessoas com deficiência.

Muito valioso é o entendimento que se depreende da fala de Sunaura, segundo o qual a incapacidade à qual seu corpo é frequentemente associado, se trata, em verdade, da incapacidade das pessoas, das cidades, das ruas, imóveis, até mesmo das leis, em lidar com a forma por meio da qual os “deficientes físicos” desenvolvem suas próprias existências.

Quanto menos preparadas estão as estruturas físicas de uma cidade para a locomoção de pessoas com algum tipo de necessidade especial, menos essas pessoas participarão do amplo convívio com a sociedade, e, em consequência, mais apartadas e apagadas estarão essas pessoas, aumentando-se o abismo e o estranhamento cultural às mesmas.

Neste sentido, é de fato inevitável o paralelo da exclusão sistemática de pessoas com deficiência e a marginalização compulsória das pessoas trans no Brasil, eis que estas, também absolutamente obliteradas pelas políticas públicas e patologizadas pela legislação, restam excluídas do mercado de trabalho, das escolas e das universidades, completando-se, assim, o mesmo ciclo de perpetuação de invisibilização e injustiça.

A excessiva e rigorosa regulamentação sobre os corpos de transexuais e travestis

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consiste em manifesta afronta à autonomia e à dignidade destas pessoas que passam a receber tutela legal como se incapazes fossem, restando o exercício de seus direitos condicionados a autorização ou reconhecimento judicial.

Corroborando a compreensão de que a transexualidade vem sendo encarada como verdadeira incapacidade, afirma Berenice Bento (2012, p. 206) que “...as pessoas transexuais são infantilizadas, consideradas irracionais ou irresponsáveis para alcançar a subjetividade

verdadeira”.

Também neste sentido, Jaqueline Gomes de Jesus (2014, p.14)

Como efeito imediato da concepção patologizante das identidades de gênero inconformes, observa-se um profundo desrespeito à auto-percepção das pessoas e uma tentativa de domínio sobre suas identidades, por meio do controle sobre o reconhecimento legal do gênero com o qual se reconhece, sobre as possibilidades de expressão do próprio gênero e sobre os processos biomédicos de intervenção corporal.

Entender que a regulamentação sobre o comportamento e o próprio corpo humano é essencialmente histórico mecanismo de controle de uma população e não algo que deva ser naturalizado e reiterado pelo Estado é o primeiro passo para se enxergar as raízes das mais diversas opressões sofridas pela população transgênero no Brasil.

Beatriz Preciado, citada por Campagnoli (2010) aduz que a certeza de sermos homens ou mulheres é produzida por um conjunto de tecnologias de domesticação do corpo, que acabam por fixar e delimitar nossas potencialidades, funcionando como um filtro que distorce e enquadra. Assim, este sistema permite a produção de sujeitos que pensam e atuam como corpos individuais, que se reconhecem como espaços privados, mas que compartilham uma identidade de gênero e sexualidade fixada.

A noção de que pessoas trans são anormais, senão doentes, não decorre da natureza de suas identidades trans, quaisquer que elas sejam, mas sim do erro intrínseco ao processo científico de associação automática entre sexo biológico e gênero, ignorando-se os fatores identitários, sociais e comportamentais.

É necessária uma reflexão acerca dos limites das instituições sociais hegemônicas que categorizam a transexualidade enquanto patologia, para que seja possível, na contramão, defender-se o gênero enquanto característica autodeterminada, resultante do processo íntimo de realização existencial de cada indivíduo.

3.2. Gênero, sexo e sexualidade: conceitos e distinções.

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talvez tenha resistências em iniciar este diálogo” Guacira Lopes Louro na obra “Gênero, sexualidade e educação” (2014,

p. 18).

O atual modelo de produção de conhecimento é fortemente pautado pela sede de classificações e conceituações herméticas. Cumpre-se, entretanto, destacar, que as definições encontradas nos livros e dicionários também acumulam elevada carga de discursos hegemônicos e crenças populares, muitas vezes desprovidas de uma análise mais profunda e holística dos fenômenos.

A noção de que os signos linguísticos não são imparciais ou neutros, remete às reflexões de John Austin (1990) acerca da capacidade da linguagem de criar realidades. Para o autor, é necessário apontar que a linguagem não se resume a descrever a realidade, mas é, em verdade, uma de suas produtoras.

O estudo sobre a identidade de gênero deve consistir, então, na imersão em um universo plural e diverso, marcado pela variedade e não pela binariedade; pela fluidez e não pela imutabilidade. A identidade de um indivíduo é característica manifestamente complexa, síntese de diversos processos íntimos, incluindo-se aí a sua auto-designação de gênero, em contraponto à compulsoriedade heternormativa de vinculação do gênero ao órgão sexual, tão difundida popularmente.

A cultura ocidental tradicional, calcada na binariedade de gêneros e na heteronormatividade, popularizou concepções equivocadas acerca do que é sexo, gênero e sexualidade, situando-os como vértices de um mesmo plano, criando, assim, ainda mais obstáculos para a integração de pessoas cujas vivências de gênero e sexualidade não correspondem às expectativas atreladas a seus genitais no momento do nascimento.

Para as psicólogas Rossana Schmidt e Joana Puglia (2013, p.4):

Vivemos uma lógica de obrigatoriedade a adequação aos padrões preestabelecidos. O gênero, orientação sexual e sexo biológico serão entendidos a partir de uma única possibilidade, ou seja, uma pessoa nascida biologicamente mulher, deve obrigatoriamente se relacionar com o sexo diferente e se identificar com o gênero feminino. Dessa forma, podemos perceber que descartamos todo um universo de relações e formas de ser, contribuindo para o preconceito e praticas homofóbicas, transfóbicas e misóginas. Bento (2006) nos traz portanto, que os corpos estão aprisionados a um binarismo, que regula e institui uma única verdade.

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descobrir o que ele é, mas, ainda, de identificar tudo aquilo que não é.

Muito embora frequentemente utilizados como sinônimos, os termos sexo e gênero não guardam o mesmo significado. Traçar uma distinção entre os dois é de fundamental importância para a compreensão dos assuntos relacionados à transgeneridade e à concepção psicológica da identidade de gênero.

As ciências biológicas e as relacionadas à saúde utilizam classicamente a

terminologia “sexo” para se referir à designação de seres vivos enquanto macho, fêmea ou

intersexual, sendo encaixados em uma destas categorias a depender do tipo de gametas que produzem – espermatozoides ou óvulos - ou do tipo de órgão reprodutor que apresentam. Aqueles que possuem caracteres anatômicos tanto masculinos quanto femininos são chamados, atualmente, de intersexuais, em substituição à antiga nomenclatura de

“hermafroditas” (DIAMOND, 2002).

O sexo biológico, portanto, diz respeito à mera constatação física e material da genitália com a qual um indivíduo nasce, não sendo substrato suficiente para se concluir verdadeiramente o gênero de alguém. Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 6) também compartilha desse entendimento:

Para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozoides, logo, macho; grandes: óvulos, logo, fêmea), e só. Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura, a qual define alguém como masculino ou feminino, e isso muda de acordo com a cultura de que falamos.

O gênero, por sua vez, é o termo que passa a ser utilizado no século XX por feministas anglo-saxãs em oposição a “sexo”, buscando-se “rejeitar um determinismo

biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual”, afim de se destacar, por meio da linguagem, “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT, 1995, p.72). Para Guacira Lopes Louro (2014, p.25), não há dúvidas que, além de

ferramenta analítica, o termo “gênero” é também importante ferramenta política:

Ao dirigir o foco para o caráter fundamentalmente social, não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas.

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Há quem diga que são dois os gêneros existentes; o feminino e o masculino, segundo os quais alguém se identifica enquanto homem ou enquanto mulher. Diamond (2002) leciona que enquanto macho e fêmea são entidades biológicas, homem e mulher são as entidades sociais, as quais carregam consigo certas expectativas e classificações, de acordo com a cultura na qual está o sujeito inserido.

Judith Butler (1990), por outro lado, ao comparar sexo e gênero, afirma que, ainda que os sexos pareçam logicamente binários em sua morfologia e constituição, inexiste razão para se acreditar que os gêneros também devam obedecer à mesma binariedade (feminino x masculino) e permanecer como sendo apenas dois. Segundo Butler, pressupor isso seria novamente cometer o erro de associar gênero como espelho do sexo.

Bastante valiosa é a lição de Jaqueline Gomes de Jesus (2014, p. 9/10):

É comum se dizer ou escrever que pessoas trans “nasceram homens/mulheres e

viraram mulheres/homens”. Raciocínio falacioso. Todos os seres humanos nascem com um sexo biológico/uma conformação genital e se tornam alguém de um gênero que corresponde ou não às expectativas sobre esse sexo/conformação genital. A partir dessa compreensão, tornam-se inteligíveis mulheres com pênis ou homens com vagina. Quando o conceito de gênero é central, compartilha-se a noção de que o primado do sexo biológico não se impõe sobre o gênero que se produz discursivamente, reconhece-se que o ideal normativo do sexo é incapaz de explicar a pluralidade de identidades de gênero identificadas ao longo da História da humanidade. E se torna crível que as pessoas, na sua diversidade, podem ser felizes como são, porque a fisiologia não as restringe, apenas os particulariza.

De fato, são muito frequentes as definições acadêmicas que reduzem a

transexualidade a uma “incongruência” entre corpo e mente, geralmente explicando uma mulher trans, por exemplo, como “uma mulher que nasceu homem”. É demasiado problemática esta definição pois, partindo de uma perspectiva centrada no genital, perpetua a ideia de que o gênero seja algo dado, que pertence a um indivíduo desde o seu nascimento.

É justamente a popularização desta definição equivocada e aparentemente inofensiva que, posteriormente, tem levado o poder judiciário a, não raro, condicionar a mudança do gênero registral à realização de cirurgia transgenitalizadora.

Ora, se o genital é o fator principal para se definir o gênero de alguém, uma pessoa transexual, “que não se reconhece com o sexo com o qual nascera”, deverá extirpar o sexo com o qual veio ao mundo para que possa, de fato ser reconhecida como de outro gênero.

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REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ POSSÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a mudança do nome, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. 2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do requerente. 4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é, que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgão genitais tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso desprovido, por maioria. (Apelação Cível Nº 70064503675, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em... 24/06/2015).

(TJ-RS - AC: 70064503675 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 24/06/2015, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 06/07/2015)

Em idêntico sentido observe-se:

Apelação Cível - Retificação de Registro - Transexual não submetido a cirurgia de alteração de sexo - Modificação do prenome - Possibilidade - Autor submetido a situações vexatórias e constrangedoras todas as vezes em que necessita se apresentar com o nome constante em seu Registro de Nascimento - Princípio da Dignidade da Pessoa Humana - Alteração do gênero biológico constante em seu registro de masculino para transexual sem ablação de genitália - Impossibilidade - Sentença reformada - Recurso conhecido e parcialmente provido.

(TJSE - APELAÇÃO CÍVEL Nº 2012209865, 1º VARA CIVEL DE ESTÂNCIA, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, DESA. MARIA APARECIDA SANTOS GAMA DA SILVA , RELATOR, Julgado em 09/07/2012)

Chega a ser impossível se mensurar quantos direitos fundamentais são ofendidos de uma só vez, com esse tipo de decisão, simplesmente em razão da definição equivocada de gênero e sexo. Percebe-se que no primeiro julgado, chega-se a mencionar que “a definição de

sexo é ato médico”, para então falar em uma “verdade biológica”.

Novamente, fica o questionamento do que seria o natural, o verdadeiro. Se a imposição da verdade de um profissional da Medicina ou do Direito prevalece em detrimento da vontade de um indivíduo, sobre questão que afetará exclusivamente a si próprio, é então difícil de se reconhecer o que seria o artificial. Foucault (2012) defende que não há sentido na

busca por um “sexo verdadeiro”, pois ele não existe.

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entendimento os prejuízos concretos da aplicação da primazia do sexo biológico, supramencionada por Jaqueline de Jesus. Tal perspectiva leva o senso comum a acreditar que a transexualidade esteja intrinsicamente relacionada ao desejo de transformação do órgão genital, o que não é verdade.

A decisão pela realização ou não da cirurgia transgenitalizadora deve ser escolha absolutamente íntima, assim como quaisquer outras cirurgias plásticas o são2. Da mesma forma como acontece com as cirurgias estéticas, há quem faça e há quem não as queira fazer. Acreditar que o que faz uma mulher ser uma mulher é a mera existência de uma conformação genital específica, é pensamento perigosamente reducionista e representa verdadeira afronta a toda a complexidade da natureza humana.

É exatamente essa a ideia defendida por Simone de Beauvoir em “O Segundo

Sexo” (1970), segundo a qual: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Ou seja, não há nenhuma característica física em um recém nascido que possa ser requisito suficiente à conclusão do gênero daquela pessoa enquanto masculino, feminino ou outro.

Na Espanha tramitou Projeto de Lei que dispunha acerca dos direitos civis de pessoas transexuais que determinava a realização da cirurgia como requisito para as respectivas retificações legais. Na oportunidade, o Coletivo de Transexuais da Catalunha (CTC) manifestou-se publicamente a respeito:

Impõe-nos a cirurgia genital como requisito imprescindível para aceitar nossos direitos. Pretende-se fazer acreditar que as ditas cirurgias são maravilhosas e que todas nós queremos realizá-las. Isto é falso. A valorização do resultado das ditas intervenções é algo muito pessoal que em todo caso deveria ser deixado ao arbítrio do sujeito, nunca impor-lhe como requisito legal forçoso.

É certamente arcaica a origem de nosso entendimento atual acerca da interligação obrigatória entre sexo, gênero e comportamento afetivo. Nesse sentido afirma (FOUCAULT, 1985, p.65): “...vincular comportamento ao sexo, gênero à genitália, definindo o feminino pela presença da vagina e o masculino pelo pênis, remonta ao século XIX quando o sexo passou a conter a verdade última de nós mesmos.”.

Ainda, ambas as decisões reconhecem que o descompasso entre o nome de

2

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registro do autor e sua identidade social poderia submetê-lo a situação vexatória ou constrangedora. Entretanto, contraditoriamente não reconhecem os diversos outros embaraços os quais ainda poderá vivenciar o autor enquanto não for retificado o gênero em seu registro geral.

Conclui-se, portanto, que o gênero é aspecto síntese de uma série de processos pessoais, construído sobre a efetivação da livre expressão existencial do ser, dentro de um contexto social e cultural específicos. Fundamentando este entendimento, Guacira Lopes Louro (2014, p. 26/27)

Na medida em que o conceito (de gênero) afirma o caráter social do feminino e do masculino, obriga aquelas/es que o empregam a levar em consideração as distintas sociedades e os distintos momentos históricos de que estão tratando. Afastam-se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas sobre os gêneros; a ótica está dirigida para um processo, para uma construção e não para algo que existia a priori. O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem.

A sexualidade, por sua vez, diz respeito aos desejos e prazeres corporais de um ser

e, para “invenção social”, constituída por múltiplos discursos que a regulam, normalizam,

instauram saberes e produzem frágeis verdades (FOUCAULT, 1988).

Quando se entende o gênero enquanto qualidade diariamente forjada e essencialmente fluida, torna-se mais simples compreender a ideia de sexualidade defendida por Foucault. Não é a existência do desejo e da atração sexual que o filósofo ignora, mas sim a sua regulamentação e classificação em categorias.

A análise moderna da sexualidade humana vem se restringindo a apresentar categorias criadas com base no já limitado conceito de gênero que, no cotidiano é utilizado como sinônimo de sexo. Desta forma, conforme alguém se relacione com pessoas do mesmo gênero, de gênero oposto, de ambos os gêneros, ela é classificada enquanto homossexual, heterossexual ou bissexual, respectivamente.

Entretanto, novamente observa-se aqui os prejuízos da excessiva regulamentação da subjetividade humana. Como anteriormente explicitado, todo processo de categorização envolve um atrelado processo de eleição de uma categoria como padrão de normalidade. Desta forma, enquanto a heterossexualidade cumpre o papel de se tornar o parâmetro ideal de relacionamento, as demais categorias de sexualidade acabam por serem rejeitadas, vistas socialmente como espécie de desvio moral ou até mesmo perversão sexual.

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assim como o gênero, um processo construído socialmente, com arranjos transitórios, que se transformam ao longo da vida de cada pessoa, conforme suas mais variadas vivências e influências. Para Guacira Lopes Louro (2014) não é possível fixar um momento que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou de gênero é estabelecida. Segundo a autora, as identidades (sexual e de gênero) estão sempre se constituindo, sendo instáveis e transformáveis.

A ideia de definição da sexualidade fora de uma lógica heteronormativa é defendida por Butler (apud MAC AN GHAILL, 1996, p.198) nos seguintes termos:

[...] é crucial manter uma conexão não causal e não redutiva entre gênero e sexualidade. Exatamente devido ao fato de a homofobia operar muitas vezes através da atribuição aos homossexuais de um gênero defeituoso, de um gênero falho ou

mesmo abjeto, é que se chama os homens gays de “femininos” ou se chama as mulheres lésbicas de “masculinas”.

Ainda sobre o assunto, Deborah Britzman (1996, p.74) afirma com precisão: Nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não

finalizada” (grifos da autora).

O pós-estruturalismo defende, portanto, a impossibilidade de se compreender a sexualidade observando-se as características biológicas ou mesmo o gênero de alguém. Entende-se que cada uma dessas definições se encontram em planos autônomos e independentes entre si. No horizonte utópico compreende-se, em verdade, a completa desnecessidade de categorização ou padronização dos desejos humanos.

A eleição de um desejo padrão heterossexual é forte amarra que contribui para a sistemática opressão não só de pessoas que desviam desse arquétipo, mas também dos próprios indivíduos considerados heterossexuais que não raro sequer enxergam terem seus desejos também moldados e controlados por uma pressão social exercida em homeopáticas doses desde o seu nascimento.

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