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Os olhos turgidos de Carol se abriram por volta das três da manhã para não se

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Academic year: 2022

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Do fundo do coração - Ab Imo Pectore - Carol

Os olhos turgidos de Carol se abriram por volta das três da manhã para não se fecharem mais. Assim que despertou com um desconforto ou outro, notou que as nuances da noite a haviam presenteado com sonhos que, com o tempo, jamais recobraria. Conseguiu, no momento em que emergiu do sono, capturar uma imagem ou outra do que fora um estranho sonho; porém, não se ateve a desvendá-lo – sabia que logo tudo se esvaeceria sem deixar rastro.

Tentou reconfortar-se sobre a cama quente mesmo sabendo que não conseguiria voltar a dormir. Virava prum lado, virava pro outro... Por fim, limitou-se ao sofá da sala e aos programas televisivos da madrugada. Era melhor do que incomodar o sono do marido – ela sabia que ele teria um árduo dia pela frente. Arthur teria de acordar as cinco e cinquenta, como de praxe, para, depois de enfrentar o trânsito, conseguir chegar ao trabalho a tempo. “Por sorte ele não acordou”, pensou ela.

“Tem um sono tão pesado...”

Henrique

Diferente da mãe, Henrique não esqueceria de seus sonhos mesmo que quisesse.

Rolava na cama, mas não em razão de algum desconforto, e sim por conta do prazer venéreo que certas projeções púberes lhe proporcionavam. Sempre que mudava a cabeça de lado, levava um sorriso cegamente aberto de uma extremidade a outra do travesseiro.

Arthur

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Mais uma vez fora dormir tarde. O Relatório Final teimara em não ficar apresentável;

foi, então, obrigado a fazer de tudo para aperfeiçoá-lo – o que, infelizmente, não aconteceu. Além de seus Relatórios, havia uma importantíssima Apresentação de Projeto para dali a três dias, e ele, sendo Arthur, não poderia estar mais nervoso com o compromisso.

Depois de um “boa noite” proferido à filha – Henrique já estava no sétimo sono –, atirou-se na cama notando, assim que o fez, o quão exausto estava. E foi nessa mesma noite em que a esposa acabou por acordá-lo. “Prum, pro”, faziam as fronhas e os lençóis. Carol rolava de um lado a outro com uma notável sutileza. Ele,

percebendo que ela se esforçava para não despertá-lo, fingiu não se incomodar para não magoá-la. Continuou a “roncar” com uma maestria de anos de experiência.

Assim que Carol se levantou, ele suspirou aliviado. Eram cinco e meia.

Anna

Assim como o pai, Anna não sonhou. Se sonhou, jamais se lembraria. Suas preocupações com a prova de Física do dia seguinte se desvaneceram no exato momento em que ela se lançou à cama. Fechou os olhos logo depois do “Boa noite, filha” que recebera de seu pai. “Boa noite, pai”. A noite não foi nem boa, nem ruim:

foi noite. No entanto, se considerarmos o “boa noite” universal como sendo uma simples noite dentre muitas, oh, então essa foi realmente a melhor das Noites. Sim, a melhor.

Um solavanco no quarto ao lado a fez semicerrar os olhos, mas depois de um “hum, hum”, Anna voltou a dormir.

Arthur

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O som do despertador do celular ressoou pelo quarto com uma música

desesperadamente familiar. Hora de acordar. Arthur não pensou, simplesmente – e por instinto – soube que hesitar seria a pior coisa a fazer. Com os olhos saturados de sono, virou-se para encontrar o lado oposto da cama vazio. “Claro”, lembrou-se ele, “está na sala”. Sem perder tempo – era um homem prático e econômico (em se tratando de tempo, inclusive) – rumou à sala. Ao descer as escadas, viu incrédulo a esposa dormindo no sofá. A TV exibia o primeiro noticiário do dia.

— Amor. Carol. Acorde. Vou tomar banho.

Ela sobressaltou-se, apesar do cuidado que teve o marido ao chamá-la.

— Humm. Claro... – bocejou. – ...Bom dia.

O “bom dia” dele desceu as escadas, no sentido oposto.

Carol

Adormeceu novamente em razão do sono acumulado. Mas o repouso durou apenas alguns eternos minutos. Levantou-se achando ter perdido hora. Mirou o relógio: seis e quatro. Relaxou e, assim que se espreguiçou, subiu as escadas numa morosidade de quem havia perdido o sono as três da manhã. Arthur saía do banho.

— Bom dia – disse novamente.

— Bom dia.

— Conseguiu terminar seus Relatórios ontem?

— Consegui. Tomara que estejam em ordem, porque... – Carol havia saído do banheiro, fazendo com que as palavras do marido se perdessem.

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— Pode continuar, estou ouvindo – ele enxugava-se. Arthur continuou

pausadamente enquanto ela, distraída, pensava em sua amiga, Isabelle, cujo irmão havia morrido no dia anterior. “Pobre Isabelle”. – Nossa, Arthur. E a que horas foi dormir?

— Carol, eu cabei de falar.

Logo depois que Arthur deixou o banheiro, ela entregou-se ao box. Eram seis e doze.

Anna

— Anna, meu bem, acorde – chamou Carol.

As responsabilidades do dia baixaram em sua cabeça como um download virulento.

A prova de física, a preocupação com Amanda – cujo namorado achou melhor terminar –, o desconforto com o Rafa – que não a deixava em paz...

— Anna?

— Já acordei, mãe.

— Então vamos, levante – Anna desbloqueou o celular. Nenhuma mensagem de Amanda, mas havia as quatro enviadas pelo tal-Rafa que ela não lera.

Henrique

— Henrique. Vamos, acorde.

— ...

— Henrique... Henrique!

— Hum?!

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— Levante.

— Já vô.

Arthur

— Cadê a Anna?

— Já chamei ela. Logo desce, pegou tudo?

— Peguei. Pode colocar o café na térmica, Amor, por favor... Ali, ela.

Ambos estavam na cozinha, já prontos. Arthur, em uma de suas camisas róseas preferidas, Carol, em um blazer cáqui.

— Dê um beijo nas crianças... Obrigado. Ish... – Arthur desviou-se habilmente do ricochete de uma gota que pulou da borda da térmica para sua camisa. – Ah, não.

Manchou?

— Hum, não – disse a esposa depois de averiguar. – Não – confirmou. – Feche essa caneca. Espere, deixe eu ajeitar sua gravata... Pronto. Tenha um bom dia.

— Obrigado, Amor – ele já havia lhe dado as costas. – Boas vendas – desejou de dentro do carro. Ela fez questão de vê-lo dobrar a esquina.

Anna

Logo depois que saiu do banho, viu que o havia tomado em pouco tempo:

conseguiria maquiar-se sem ter a mãe em seu encalço, apressando-a. Passou em frente ao quarto do irmão e o viu jogado sobre a cama, todo emaranhado ao cobertor. Não fez questão de acordá-lo. “Hum”, fungou, balançando a cabeça em negação. Ouviu o drama do pai com o ricochete da gota antes de fechar a porta do quarto.

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***

Conseguiu tomar seu café com o tempo folgado e ainda assistir à notícia de um chocante assalto a um posto de gasolina no centro da cidade vizinha. “Que horror”.

Alimentou Chuck, o cão, e verificou se haveria água e ração para que ele pudesse passar bem o dia. Ele a agradeceu com algumas lambidas. Assim que viu os

ponteiros precipitarem-se sobre os algarismos profanos, chamou a filha. Ela já havia iniciado a descida pela escada.

— Anna!

— Já estou aqui.

— Cadê seu irmão?

— Bom dia pra você também, mãe.

— Bom dia, Anna. Desculpe, meu bem. Cadê o Henrique?

— Não sei.

— Henrique!

***

Alguém com o tom alterado disse seu nome. Seus olhos se abriram e ele recobrou a memória de que sua mãe já o havia chamado. “Caralho”. Ele levantou atordoado, tentando decidir o que seria mais vantajoso fazer. Cheirou as axilas: um

desodorante resolveria. Certamente não havia tempo para um banho. Arrancou o samba-canção. Sua mãe abriu a porta no momento em que se vestia.

— Henri.. Henrique! Você ainda não está pronto?!

— Já tô indo, saí!

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— Não fale assim comigo! Anda! – ele olhou para a mãe, incrédulo.

— Dá licença, mãe, por favor!

Ela o deixou e foi para a cozinha com passos firmes cravados sobre o assoalho.

Henrique não precisou de mais do que quatro minutos para descer. Assim que

sentou-se para o café, Anna pôde sentir o cheiro forte de seu perfume volatilizado no ar.

— Não tomou banho de novo, né? Seu porco!

— Cala a boca!

O garoto engoliu seu cereal e preparou como pôde seu sanduíche. Carol não o faria dessa vez.

Aliás, mesmo após seus sonhos, Henrique não trocara de cueca.

***

— Anna, vou te esperar no carro. Anda logo.

— Ok, só vou pegar minha mochila.

Henrique já esperava no carro, de cinto atado e celular na mão. “Depois eu que demoro”, iminenciou a pensar, mas a atenção ao jogo do celular inibiu esse

pensamento antes mesmo de ele tomar forma... “A bateria!”. Henrique constatou que esquecera de colocar o celular pra carregar na noite anterior: 21%. “Merda!”. Logo após hesitar em sair do carro para pegar o carregador, ousou processar algumas lembranças; por fim verificou um dos compartimentos da mochila e encontrou seu cabo USB. Conectou-o ao painel para carregar o celular; e o carro estava

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desligado... “Claro”. Assim que esticou-se para girar a chave, sua mãe entrou e o interrompeu.

— Liga o carro.

— Só um instante – ela sacou o batom da bolsa e ajustou os contornos dos lábios olhando-se no espelho do quebra-sol.

— Vai mãe, por favor – Anna, que vinha às pressas logo após ter trancado a porta da casa, entrou no carro (por ser mais velha, sentava, eventualmente, à frente).

— Vamos – apressou ela assim que bateu a porta e entregou a chave à mãe. Carol guardou o batom, e eis a surpresa: a chave do carro!

— Esqueci a chave dentro de casa!

— — Aêê – ironizaram os irmãos em uníssono.

— Não tá na sua bolsa? – mas Carol já estava terminando de averiguar os confins de sua bolsa.

— Não. Vai lá pra mim Henrique, por favor.

— Merda!

— Vai que já estamos atrasados. Espera! – Henrique, que já pousara o tênis sobre o solo, voltou-se à mãe.

— O quê? – perguntou em tom impaciente.

— Toma aqui, a chave de casa. – Carol entregou-lhe a chave. Os dedos do filho e os da mãe se tocaram, mas nenhum deles deu valor àquele átimo, àquele ínfimo décimo de segundo... Não, nenhum deles.

Henrique voltou correndo.

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— Trancou a casa?

— Tranquei.

O sedan deslizou para o asfalto e rumou à escola. Dessa vez o carro atreveu-se a pensar: “lá vamos nós, outra vez!”. A TV foi esquecida ligada, exibindo programas ao sofá.

***

O outdoor da Gucci reconheceu os olhos de Anna. A menina mirava o casaco verde- aspargo – o que repousava sobre o corpo de uma modelo negra hipermagra –, com um rotineiro ar de desejo. Ao lado da modelo havia um homem igualmente negro, ele vestia um modelo equivalente, próprio ao seu sexo. Estavam em poses

extravagantes e sensuais, fato ao qual Henrique sempre atentava. Carol acelerou o carro para conseguir passar sob um semáforo ainda amarelo. Conseguiu.

— Ai, aquele casaco é tão lindo...

— Também acho, querida. Tem uma cor maravilhosa.

A rádio interrompera uma sequência de músicas pop para apresentar os comerciais.

Anna cogitou conectar seu celular à entrada USB – pretendia ambientar o carro com suas músicas –, mas interrompeu a mão ao ver o celular de Henrique conectado.

— Não carregou seu celular?

— Esqueci.

— Em quanto tá? – Henrique apertou o botão lateral do celular, que estava sobre sua coxa, com a mão esquerda, pois a direita fora levada à boca para ter as unhas

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dos dedos roídas (uma mania incontrolável). 28%. Um sinal fechou, obrigando o carro a parar.

— Tá em 28.

Assim que respondeu, Henrique virou a cabeça para a janela numa letargia realmente curiosa. Um mendigo, junto de seu cão, estava deitado sob o toldo de uma loja ainda fechada. Ambas as criaturas compartilhavam do mesmo cobertor.

Mexiam-se. Aprumavam-se. Aninhavam-se em meio a bocejos calorosos. O cachorro olhou para Henrique e Henrique, para o cachorro. Novamente, Henrique esteve na iminência de atinar, na iminência de concluir alguma verdade ou

pensamento. Desinteressou-se, por fim. Seu desinteresse foi acompanhado por um insipiente sorriso – achara graça na cena. O carro partiu e o cachorro também sorriu, mas não como Henrique. Não. Não como Henrique.

O menino não havia reparado, mas o mendigo dormia em frente a um exemplar do mesmo casaco verde-aspargo Gucci do Outdoor; sim: curiosamente ele jazia exposto na vitrine da loja.

**

Arthur chegou em tempo satisfatório ao edifício onde ficavam os escritórios da empresa para a qual trabalhava: apenas quatro minutos atrasado. Entrou no estacionamento e cumprimentou o porteiro e procurou uma vaga e estressou-se;

procurou novamente. Estacionou. Entrou no saguão e cumprimentou os recepcionistas com um sorriso barato. Tomou o elevador.

— Bom dia, Arthur.

— Bom dia, Celia, como passou de ontem? Bem?

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— Bem e você?

— Bem. Os relatórios?

— Aqui.

**

Uma sacola plástica cruzara a rua. Era de se notar que estavam chegando à escola, pois o fluxo de carros e de pedestres repentinamente aumentou. Carol parou pouco antes dos portões.

— Tchau tchau, meus amores.

— A gente fica até mais tarde hoje, mãe. Não vai esquecer.

— Vocês têm dinheiro pro almoço?

— Eu tenho – respondeu Anna, abrindo a porta do carro. Era a única interessada em responder a mãe.

— Você tem, Henrique?

— Hum?!

— Tem dinheiro pro almoço?

— Ah, puts, não. Ainda bem que você lembrou – Carol, prevendo tal momento, já havia retirado uma nota da carteira.

— Aqui – disse ela, entregando a nota a Henrique – vão logo que tem um carro aí atrás. Beijo.

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— — Tchau mãe / Falou mãe – responderam ambos. Faltavam quatro minutos para o sinal bater. Carol ainda tinha de chegar à Imobiliária em que trabalhava;

felizmente, ela era relativamente próxima à escola.

A TV-esquecida-ligada exibia o rotineiro programa de culinária ao sofá.

**

Arthur construíra alguns gráficos e tabelas para consagrar previsões multilaterais ao alto escalão. Os gráficos tinham, dentre suas principais variáveis, a capitalização, os gastos em investimentos diversos, a influência no capital da empresa por taxas pagas ao governo... Exporia alguns desses gráficos na tal Apresentação de Projeto, que visava, além de a um “singelo corte de gastos” – palavras utilizadas pelo Diretor –, à dinamização da produção e das vendas. Tramitou seus dedos pelo teclado e consultou Relatórios e Planilhas Antigos por boa parte daquela manhã. Pensava ora na Secretária do Diretor, ora no horário de almoço. Os ponteiros ociosos custavam a girar. O telefone tocou. Arthur atendeu prontamente, meio que ansioso por qualquer interrupção que o forçasse a abandonar sua escrivaninha – apesar de ainda estar engajado em terminar tudo aquilo.

— Setor de Administração de Recursos e Transações, Arthur.

— E aí Arthur, bom?

— Diga, Gu.

— Nossa, quanta monotonia.

— Fala logo.

— Só depois daquele “Bom Dia”.

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— Sério?

— Sério.

— ...bom dia, Gustavo.

— O Chefe quer falar com você.

**

— Cara, comia sua mãe e sua irmã fácil, fácil.

— Vai tomar no cu.

Henrique cumprimentou seus amigos do jeito mais cordial possível. Enturmou-se e, logo em seguida, seu bando tomou a direção da sala, pois em instantes o sinal tocaria. Apesar de ter ido para a cama mais cedo do que de costume, dormiu no quarto minuto de aula.

**

— ... concomitantemente a isso, o sangue passará para a aorta com pressão elevada. É por isso que a parede do ventrículo esquerdo é mais grossa, olhem. A musculatura é desenvolvida para pressionar o sangue durante a sístole. Bom, até aqui, alguma dúvida? Nenhuma? Então vamos lá. Da aorta, o sangue...

As anotações de Anna demonstravam um capricho de quem se dedica. Estava atenta ao professor e às ronronantes lamúrias de Amanda, que se sentava ao seu lado.

— ... e ele decidiu terminar. Ai, agora fica aquele desconforto...

— ... a troca ocorrerá nos alvéolos, onde o CO2 presente no sangue passará...

— ... mesmo assim, tô nem aí. Já sabia que o relacionamento tava desandando...

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— ... vai voltar para o coração com pressão mais baixa...

— ... agora não sei o que fazer.

— Ei, as duas moças aí, algum problema?

Anna virou os olhos nas órbitas. Ambas baloiçaram a cabeça em negação.

— Não? Então prestem atenção. – Amanda calou-se e retomou o livro de Física, já que a prova seria na aula seguinte.

**

Carol estacionou seu carro na vaga-de-sempre. Entrou pela porta dos fundos, que dava do estacionamento à cozinha dos empregados – era mais acessível do que dar a volta para entrar pela frente. Cumprimentou o vigia da guarita e sentiu o olhar dele acompanhando sua saia. O costumeiro asco subiu-lhe à garganta na forma de um nó.

No exato momento em que se acomodou em sua escrivaninha, lembrou-se de Isabelle. Ana, uma de suas colegas (essa com apenas um “n” no nome), ainda não havia chegado. Como o irmão de Isabelle não morava na mesma cidade em que a irmã trabalhava, “muito provavelmente Isabelle foi ao seu funeral”. Ligou o

computador para esperar por clientes. Retomou um orçamento enquanto Henrique acordava embaraçado em meio à aula.

**

“Provavelmente é sobre o Projeto, só pode ser”. Mesmo conhecendo o Diretor há muito tempo, Arthur, sendo um Arthur entre muitos Arthures, estava nervoso.

Simulava e perscrutava meios para cumprimentá-lo. Os passos faziam barulho “Bom dia, Tom” sobre o piso e ele podia escutá-los, certamente esses passos espreitavam

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“E aí? Bom?” para condená-lo. “Toc, toc, ‘tudo bom?’, toc, toc, toc, ‘e sua filha, melhorou?’ toc”.

— Arthur! Cadê o bom dia?

— Bom dia, Gustavo. Ele está no escritório?

— Sim, pediu pra que você entre. Vai lá.

No final das contas, era só sobre o Projeto mesmo.

**

O sinal tocou. Ambos os irmãos trocaram olhares vagos no corredor. O típico nervosismo para a prova de Física abalava os que não haviam estudado direito.

Anna aproveitou o intervalo para checar seu absorvente e fazer xixi. Amanda a acompanhou. Logo após isso, comeram algo e foram para a classe. O sinal tocou. A prova começou. 1) Uma partícula puntiforme foi eletrizada com carga...

**

Assim que saiu da sala, Henrique trocou um tênue olhar com a irmã. Reconheceu, lá no fundo, que ela era bonita, não só bonita, mas... bem... Comeu o sanduíche que trouxera de casa. Dessa vez ele mesmo o havia preparado! Tinha atum e tudo.

Encarou-o logo após desembrulhá-lo: seu aspecto não era dos melhores, mas o sabor... Ora, o sabor também não era dos melhores, mas conseguiria tragá-lo.

**

Um calafrio percorreu seu corpo no momento em que a urina tocou a água sanitária.

Ahh... Enquanto aliviava-se, Arthur pensava onde parou. Em qual gráfico, ou seria numa tabela? Balançou. Deu descarga e lavou as mãos. “Na tabela C4G, sobre

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financiamento. Claro”. Retomou aquela árdua tarefa logo após a ida ao banheiro, um cafezinho, um papo sobre o jogo de domingo e uma olhadela nos seios de Rebecca.

**

— Coitada da Isa.

— Ah, nem me fale. E a cidade onde o irmão mora, quer dizer, morava é tão longe...

— É?

— Se é.

— Olha lá, aqueles seus clientes chegaram. Não é o carro deles ali?

— Onde, Ana?

— Acabaram de chegar. Tão esnobes, uhll!

Carol olhou-se no reflexo da tela de seu celular. Fecharia negócio a qualquer custo.

Estava, pois, determinada. Os clientes entraram.

— Olá – levantou-se –, como estão?

— Bem. Viemos pra dizer que vamos fechar negócio. Mas dessa vez vamos levar meu marido aqui pra ver a casa. Pode ser?

Ana sentiu um lampejo de inveja pela amiga, mas permaneceu sorridente em seu posto. “A comissão para imóveis naquele bairro é tão boa...”

**

A intuição dizia que se saíra razoavelmente bem na prova. Amanda decepcionou-se ao verificar as respostas de algumas questões com a amiga. Antes de entrar para a próxima aula, Anna escutou com toda atenção ao drama de Amanda. Aconselhou-a

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como pôde e começaram a falar sobre outros rapazes, como o Thomas. O assunto terminou no Rafa. Entraram para a aula de Química, assistiram-na e, finalmente, o horário do almoço estava próximo.

*

Cada tedioso mover de pálpebras lhe revelava: quarenta e sete minutos, vinte e dois minutos, dezesseis minutos, nove, sete, cinco, quatro e quinze segundos, três e vinte segundos, dois e dez, um minuto, dez segundos; dois! “A porra do relógio está adiantado, só pode”. E estava, o sinal tocou três minutos depois do horário

estipulado para o Almoço. Três minutos que Henrique mal pôde suportar de tão tediosos, tão tediosos quanto o narrar ácido de um conto/crônica que aborda assuntos contemporâneos. Pois bem, Henrique, eis seu almoço...

*

Dessa vez, Arthur resolveu evitar o refeitório do edifício. Preferiu o restaurante logo em frente, que tinha uma excelente panqueca de ricota. Hmm. Mas o cardápio

daquele dia da semana revelou-se hostil: não tinha a bendita panqueca, ora, e ele foi obrigado a contentar-se com frango com creme de milho, o “menos pior” dentre as opções. Arthur nunca fora um grande fã de milho. “Mas”, pensou ele, “pelo menos estou sozinho e fora do escritório”.

— Arthur!?

— Gu?

*

Foi logo após ter levado o tal casal a casa que sondavam, que Carol aliviou-se: de fato fechariam a venda, possibilidade à qual ela não deu tanto valor assim. Havia

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assistido a mais uma enfadonha discussão Esposa-marido sobre o “quão bom seria mudarem-se para aquele bairro novo”, havia a vizinhança, as árvores, a proximidade com a casa da Marlene... Entraram num acordo, finalmente; tanto o marido com sua esposa quanto Carol com sua cliente. Ela passou na imobiliária para pegar uns papéis, seus clientes voltariam logo após o almoço para acertar as minudências da burocracia.

— Fechei venda, Ana!

— Isso aí, esse é o espírito! Eles voltam depois do almoço?

— Sim, sim. Falando nisso vou almoçar, até logo, querida. Beijos.

Foi pra casa, tendo de passar no posto de gasolina na ida. Pretendia esquentar a comida que sobrara da janta, que sobrara do almoço do dia anterior. A moça que ajudava na arrumação da casa, além de limpar e ajeitar, cozinhava. Pena que vinha duas vezes por semana. Ao entrar, Carol ouviu a TV ligada. “Ué, será que Arthur...”

— Arthur! – o som ecoou, reverberando pelas paredes, como acontece quando não tem ninguém em casa. Não. Recobrou a memória de que ela a havia deixado ligada.

“Droga!”. Agradou a Chuck com mais ração e com um brinquedinho artificial que parecia um osso, afagou-o e despediu-se, trancando-o.

E Carol comeu as sobras tão rápido quanto o micro-ondas as esquentou.

*

O almoço de ambos os irmãos se deu como de costume: enfrentaram a fila para as bandejas, as bandejas suportaram os pratos e os pratos, a comida. O Rafa, que perdera boa parte de sua manhã arrumando o cabelo na tentativa de impressionar Anna – inclusive acordara mais cedo –, aproximou-se e, nervoso, deu o

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— Oi.

que planejara. Ela respondeu, tentando não decepcioná-lo, mas também preocupada para não lhe dar as impressões erradas. O penteado, pobre Rafa, passou despercebido por Anna. Mas foi muito bem notado pela estagiária da Gráfica, que o achava um fofo.

Tudo que Henrique quis saber era se seus amigos jogariam bola antes das aulas da tarde começarem.

*

A fabulosa-tarde-comum transcorreu àquela família da forma mais normal possível;

não deixando, no entanto, de ser mágica e esplendorosa! As impressões sempre dependeram dos olhos de quem vê. Torporizado pela rotina, Arthur prosseguiu com seu trabalho logo após o frango, o qual, imaginou, lhe havia dado azia. Carol, assim que terminou suas sobras, voltou à imobiliária para esperar por seus clientes – mesmo com pensamentos predominantemente positivos, ela considerava a

desistência deles em adquirir o imóvel. Estava errada e acabou se atrasando para buscar seus bonecos na escola; teve de registrar a venda e cuidar da papelada. O negócio foi fechado logo após um saudoso

— Muito obrigada, viu,

que saiu um pouco agudo, e um aperto de mão vindo de ambos os membros do casal. A mão do marido estava suada. Carol enxugou a sua na saia assim que o homem lhe deu as costas. Mal sabia ela que ele ficou nervoso por tê-la achado bonita na frente da esposa.

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Pois bem: Carol pegou seus filhos, eles reclamaram por conta da demora; ela

comemorou a venda – dificilmente algo a colocaria pra baixo naquele dia –, e eles se calaram por reconhecerem o mérito da mãe. O atraso estava perdoado. Carol

deixou-os em casa, mas ainda teria de voltar ao trabalho para terminar o turno. O casaco verde-aspargo sorriu-lhe na volta. O dinheiro da comissão teria um bom destino, quem sabe.

*

Os dois jovens abriram a porta de casa com a chave que a mãe lhes entregou, a mesma que Anna entregara à mãe entes de saírem de casa naquela manhã.

Henrique estava suado por conta do futebol, mas não tão mau cheiroso: as camadas de desodorante haviam resistido, bem como seu perfume. Anna estava preocupada com os deveres de casa; também sentia o cansaço fustigar-lhe os olhos, mas que importava? Faria seus deveres o quanto antes para não ter de lidar com eles

durante a noite, um clássico subterfúgio. Trivial, aliás. E ambos se dispersaram pela casa como vapor, pelo ar. Anna entregou-se à sua escrivaninha e aos deveres, Henrique pretendeu ligar a TV para uma partida de Fifa no Xbox. “Deixaram a TV ligada”, percebeu ele; fato estranho, sim, pois Carol a havia desligado com toda certeza. Como ninguém tocaria no assunto mais tarde, a curiosa ocorrência não seria investigada.

*

Arthur saiu do escritório numa lassidão de bicho-preguiça. A má posição a qual era submetido ao se sentar, juntamente com os olhos vidrados no monitor,

desgastavam-no de uma forma indescritível. Não se importou com a demora do elevador, pois pelo menos esperaria parado e em pé. A vaga em que se encontrava

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o carro, recobrou ele, estava longe por conta da dificuldade que teve em encontrar um lugar pra estacionar. E lá estava Arthur, arrastando-se pelo estacionamento – a maior parte dos funcionários já havia deixado o prédio; ele permaneceu unicamente para dar “um fim de vez” a todos aqueles preparativos.

Assentou-se e mirou o painel por uns três minutos, pelo menos. Inspirou e expirou.

Inspirou e expirou. Dessa vez conseguiu engolir o choro. Fora um dia cansativo, nada mais. Veria sua família agora – isso o animou. Tirou alguma disposição da cartola e girou a chave para a ignição. Nem mesmo o trânsito o pôs pra baixo, afinal não havia visto as crianças naquele dia.

*

Carol chegou em casa bem antes de seu marido.

— Cheguei!

Presenciou o filho dormindo sobre o sofá. A TV, sim, jazia ligada. Ela, com certa dificuldade em manusear o controle, colocou no noticiário. Depois de um beijo em Anna, de uma ida ao banheiro e de um bom banho, ela, alegre e ululante, principiou o jantar. Anna, com seu dever concluído e sem mais nenhuma responsabilidade que lhe comprometesse a noite, finalmente, desceu as escadas em busca de algo pra comer. Havia algumas panelas mal dispostas sobre a pia e sobre o fogão. A mãe picava provisões para um molho.

— Está com fome, meu bem?

— Tô. Mas eu aguardo o jantar – a filha contentou-se com um copo d’água e não tardou em subir novamente. Ficaria, com certeza, por um bom tempo no Facebook.

Visou o irmão com repugnância e asco. Ela já havia tomado banho, ele, não.

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A família, agora, estava toda reunida e na mesma casa que haviam deixado pela manhã. Arthur abriu a porta, morto de cansaço e completamente exaurido. Caso Henrique o tivesse visto, teria dito que se parecia muito com um zumbi. Carol correu para a porta na ânsia de lhe dar a boa notícia; ele, como sempre foi o bom-marido- que-ouve, escutou-a com todo o logro e satisfação possíveis.

— Ora, que bom, Amor. Em que bairro foi mesmo?

Ela, como o boa-esposa-que-percebe, agradou o marido com uma massagem nos ombros.

— Vá tomar um banho, estou preparando um macarrão...

— Não quer ajuda?

— Não, não. Seu dia foi puxado, Arthur. Dessa vez deixa comigo.

— Não. Cansado ou não, faço questão.

Ela o achou fofo e não preciso dizer que, logo após o “faço questão”, eles se

beijaram da forma mais terna e amorosa concebível; os lábios ásperos do marido se encontraram com os tenros lábios da esposa; em seguida houve maior pressão e as partes internas da boca de ambos se confundiram num clamor de afeto; clamor esse suave, quente e úmido. Um clamor que durou quatro segundos e dezessete décimos de segundo.

— Então primeiro tome um banho, vá – asseverou ela com graça.

Era tudo do que Arthur precisava. Mexeu um pouco mais no celular e rumou ao box do chuveiro.

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A essa altura, Henrique já se levantara e agora, assim como a irmã, perambulava pela Internet em seu quarto. Facebook, YouTube, X... Pois bem, a noite caía e mal imaginavam eles que algo surpreendente havia transcorrido. Sim! Não haviam notado que a Terra estava prestes a completar outra magnífica volta em torno de seu próprio eixo. Passava-lhes despercebido que o Sol, sim, a estrela que os mantinha vivos em suas rotinas, fundira mais e mais Hidrogênio – cada átomo condenando aos poucos sua própria existência, mas todos de fundamental importância para manter-lhe o brilho e a energia. Aproximadamente, mais um trezentos e sessenta e cinco vírgula vinte e cinco avos da órbita elíptica que o planeta descreve ao redor do Sol havia sido completada! Pequeníssimos Fótons colidiam com superfícies, estrelas se fundiam, nebulosas se formavam, e que importava, se Henrique havia perdido a partida de futebol? Se Carol fizera uma venda ou se Anna tirara uma nota medíocre, embora não fizesse ideia de que isso fosse plausível? Que importava, se Arthur estava mais relaxado logo após seu

banho? Novamente: que importava? O Universo observava ansioso, mas indiferente.

Todo o Cosmos, uma engrenagem distorcida e entregue à harmonia do caos, observava – mesmo a par do final – atônito.

E, de repente, lá estava Arthur, de banho tomado e abraçando sua esposa pelas costas; fechava os olhos, num deleite infinito, que fazia ocitocina invadir-lhe a circulação.

— O jantar está quase pronto – disse Carol, com seus olhos também fechados, volvendo a cabeça para trás para que essa se confundisse à de Arthur.

— Vou arrumar a mesa – ele, dessa vez, limitou-se a arrumar a mesa da sala de jantar. Foi a única ajuda que comprometeu-se a prestar. Vinte minutos se passaram e ninguém viu.

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— Vamos chamar as crianças? Juntos? – a ideia veio da boca da esposa.

— Vamos.

Primeiro, bateram à porta de Henrique e entraram logo em seguida. Por pouco um momento de extremo embaraço não toma forma – por pouco não o pegam de mão munida. Surpreendentemente o menino já estava de pijamas e de madeixas

molhadas. A toalha sobre a cama – um drama universal.

— Henrique, meu bem, vamos jantar. Ah, agora sim, já tomou banho?

— Vamos, rapaz. Anna!

— Já... eu, já. Já. Já tomei – aprumou-se na cadeira, consternado.

— Então vamos, e estenda a toalha! / — Venha jantar, Amor – a voz da mãe, que falava a Henrique, e a do pai, que chamava à filha, se confundiram aos ouvidos do menino. A voz do pai mais abafada que a da mãe, devido à certa distância.

Enquanto um latrocínio acontecia na Avenida Central e um grupo de crianças indígenas da Amazônia capturavam uma Tarântula-golias para alimentarem-se;

enquanto um buraco negro do Braço Crux-Scutum perdia massa devido à atração de léptons – com exceção aos neutrinos, claro –, e “enquanto” uma civilização

avançada que habitava uma galáxia do Grupo Local era pulverizada pela estrela que orbitavam, aquela nobre família jantava. Todos juntos – evento raro – à mesa. Essas pessoas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer...

Depois da farta refeição – sobraria comida para o dia seguinte, afinal –, todos se dispersaram. Arthur, no entanto, fez questão de ajudar Carol com a louça; foi ele, também, quem alimentou Chuck. Pois bem, tudo acabado e limpo! Poderiam ir para cama, assistir à TV e mexer no celular, finalmente; mas não antes de um “boa noite”

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aos filhos. Dessa vez, quem dormia já no sétimo sono era Anna, exausta, coitadinha.

O casal, unido, decidiu então dar seu caloroso “boa noite” a Henrique. Eles abriram a porta de seu quarto:

— Boa noite, Filho. Nós te amamos – as vozes dos pais vieram em uníssono.

Henrique, que estava grudado no computador, não limitou-se a virar a cadeira para olhar para seus pais. Respondeu dali mesmo com um ar glacial:

— Boa noite, também amo vocês.

Arthur já havia saído do batente e tomado a direção para seu quarto, onde esperaria por Carol. Ela, no entanto, reteve-se, estacando. Voltou a olhar para o filho, que estava de costas para ela; o quarto, uma zona. Ela comprimiu o cenho, sulcou a testa. Olhos fixos nele.

— ... do fundo do Coração, tá? – completou.

Henrique virou-se. Vergou-lhe os lábios num sorriso que pareceu a ela ser raro, mas que era, na verdade, indistinguível. De fato, indistinguível. Ele confirmou com os olhos cravados nos dela:

— Do fundo do coração.

Referências

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